De Paris

José Horta Manzano

Num passado distante, o latim foi responsável pelo fornecimento da maior parte de nossos vocábulos. Já na atualidade, os empréstimos vêm principalmente da língua inglesa. Entre o latim e o inglês, houve um período, entre os séculos 17 e 19, em que o grande provedor de palavras novas era o francês.

Numa época em que a hora de glória de Espanha e Portugal já havia passado, e a ascensão da Inglaterra ainda não se havia firmado, o “centro do mundo” ocidental era Paris. De lá vinham descobertas científicas, novas teorias políticas, invenções práticas – e, com isso, muitos vocábulos novos.

Essas palavras costumavam dar nome a objetos novos, ou àqueles que ainda não tinham nome definido. Foram adotados por inúmeras línguas da Europa e do resto do mundo. Eis alguns exemplos.

Em sueco
Calçada é trottoar (=trottoir) e evento é evenemang (évènement)

Em italiano
Mamadeira é biberon (=biberon)  e sobremesa é dessert (=dessert)

Em inglês
Terça-feira de carnaval é mardi gras (=terça-feira gorda) e beco sem saída é cul-de-sac

Em turco
Cadeira de praia é şezlong (=chaise longue) e enxaqueca é migren (=migraine)

Em alemão
Escritório é Büro (=bureau) e beringela é Aubergine (=aubergine)

Em espanhol
Estreia de um artista é debut (=début) e o papel que ele representa é rol (=rôle)

Em dinamarquês
Motorista é chauffør (chauffeur) e guarda-chuva é paraply (=parapluie)

Em russo
Concreto armado é Бетон (=béton) e estribilho é Куплет (=couplet)

Em nossa língua temos uma grande coleção de importações daquela época. São palavras científicas, vocábulos técnicos e termos de todos os dias, que utilizamos sem nos dar conta.

Penhoar (peignoir)
Gravata (cravate)
Caçarola (casserole)
Virabrequim (vilebrequin)
Capô (capot)
Paletó (paletot)
Embreagem (embrayage)
Sabonete (savonnette)

E milhares de outras.

Cuspido e escarrado

José Horta Manzano

A Folha de SP publicou um excelente artigo assinado pelo jornalista Mario Sergio Conti. “Bolsonaro é um personagem cuspido e escarrado de Shakespeare” é o título. Se o leitor não é assinante da Folha e gostaria de ler o texto, faça-me saber. Mando por email.

Espirituoso, o título faz menção a uma expressão que se ouve de tempos em tempos. “Cuspido e escarrado”; dito assim, parece meio nojento, não? Usa-se para comentar que uma pessoa se parece muito com outra. A maior parte das vezes, se diz que o filho é o “retrato cuspido e escarrado” do pai. Mais raramente, usa-se também pra comparar pessoas que não são parentes. De onde será que vem essa esquisitice?

Há diversas versões da origem da expressão. A mais comum explica que seria uma corruptela de “esculpido em [mármore de] Carrara”, sabendo-se que a região de Carrara (Itália) é mundialmente conhecida por abrigar afloramentos de mármore de boa qualidade. Embora muitos acreditem nessa explicação, não me parece verdadeira.

Já veremos por quê. Outra versão, mais sofisticada e até apoiada por gente que entende do assunto, ensina que a expressão é corruptela, sim, mas de “esculpido e encarnado”, como a significar que as duas pessoas se parecem tanto que é como se a segunda fosse uma estátua representando a primeira, uma estátua que ganhou alma. Muita gente, como eu disse, só jura por esta segunda hipótese. Sob risco de decepcioná-los, não acredito que seja verdadeira.

Curioso que sou nesse assunto, cogitei durante um bom tempo. Um dia, bobamente, me dei conta de que, em francês, quando alguém – geralmente um filho – é parecidíssimo com o pai, diz-se que ele é le portrait craché de son père – o retrato cuspido do pai”. Vai daí, constatei que o inglês e o italiano têm expressões na mesma linha. O inglês tem spitting image – imagem cuspida” e o italiano, ritratto sputato – retrato cuspido”.

Foi quando a suposta coincidência me pareceu grande demais. Acabei descobrindo que há uma teoria que assimila o ato de cuspir à ejaculação. Uma cuspida seria símbolo da procriação – portanto, da geração de um filho. Pode até ser, mas fico um pouco desconfiado. Não tenho muita tendência a acreditar nisso. Se assim fosse, a expressão só valeria para comparação de um rebento com seu pai, nunca com sua mãe. No entanto, “é o retrato cuspido e escarrado da mãe” se usa também. Ou do irmão, do tio, do primo. Como é que fica, então?

Bem, pouco importam essas minúcias. Acho que é importante saber que a expressão não tem a ver com mármore de Carrara, nem com escultura, nem com encarnação. É de origem muito antiga e está presente em pelo menos 4 línguas europeias: português, francês, italiano e inglês. De outras, não sei.

Expressões costumam ser saborosas. São elas que dão sal e pimenta ao falar de todos nós.

Açougueiro da Bósnia

Folha

Estadão

O Tempo

José Horta Manzano

Séculos atrás, açougue era o nome do estabelecimento onde reses eram abatidas e desmembradas para posterior consumo. A prática continua, mas o nome do estabelecimento mudou: hoje se diz matadouro. Em nossos dias, açougue designa apenas a loja que vende carne. Açougueiro, por consequência, é o indivíduo que lá prepara a mercadoria e atende aos clientes.

Em inglês é diferente. O termo butcher serve para designar tanto o funcionário do açougue quanto o do matadouro. Ao dar a Ratko Mladić a alcunha de “Butcher of Bosnia”, não o estão comparando ao açougueiro da esquina, mas a um funcionário do abatedouro, um matador, aquele cuja função é abater animais. A imagem é contundente, especialmente porque o referido senhor não era propriamente funcionário de um matadouro. Fazia por gosto. E com gente. Dá até arrepio.

Ao traduzir “Butcher of Bosnia” por “Açougueiro da Bósnia”, toda a dramaticidade da expressão inglesa se perde. Mais adequada será dar-lhe a alcunha de “Carniceiro da Bósnia”.

Butcher
A palavra inglesa é a adaptação fonética do francês boucher. Na Idade Média, quando foi importado, o termo designava o homem que abatia reses para, em seguida, vender a carne no varejo. Um serviço completo, do pasto ao prato.

No francês atual, a palavra corresponde a nosso açougueiro. Em inglês, todavia, butcher mantém os dois sentidos – o homem que abate e o que vende são designados pelo mesmo termo.

Eis por que, em inglês, faz sentido dizer que nosso gentil personagem é um “butcher”. No Brasil, para guardar o mesmo impacto, temos de dizer “carniceiro”.

Nota final
Um genocidário não perde por esperar. A justiça acaba por alcançá-lo, nem que seja um quarto de século depois.

Euroinglês

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 abril 2021.

Diante do drama linguístico que vive hoje a União Europeia, convém recordar as palavras pronunciadas em 1962, numa coletiva de imprensa, por De Gaulle, presidente da França. O velho general tinha o dom do espetáculo; as credenciais para assistir a suas entrevistas eram disputadas a tapa pelos jornalistas. Naquele dia, ele pareceu ainda mais inspirado que de costume. Lá pelas tantas, citou Dante, Goethe e Chateaubriand e declarou que, se esses autores são venerados até nossos dias, é justamente porque cada um deles, ao se expressar na língua materna, guardou o espírito de seu país. Disse ainda que eles não teriam sido de nenhuma valia para a Europa se tivessem se exprimido “num esperanto ou num volapük qualquer”.

Não foi por acaso que o general mencionou duas línguas artificiais. Não foi sem razão que se referiu a elas em tom de desprezo, como se não passassem de brincadeira infantil do tipo língua do pê. É que, naquela altura, as lembranças da Segunda Guerra ainda estavam frescas na memória. Num Mercado Comum formado por apenas seis nações, a paisagem linguística era simples. Apenas três países eram grandes: França, Alemanha e Itália. Dos três, dois estavam em posição frágil, por serem os derrotados de 1945. Sobrava a França. Na lógica do general, a língua francesa se imporia naturalmente como lingua franca. Daí ter rejeitado toda ideia de língua neutra.

Passaram-se quase 60 anos, De Gaulle se foi, o mundo mudou. A União Europeia saltou de meia dúzia de membros para os 27 atuais, o que complicou o panorama linguístico. As línguas oficiais passaram de 4 a 24. E a tática do general furou: o francês não se impôs como língua de comunicação entre os europeus. Com o passar do tempo, foi o inglês que acabou por se impor.

Na administração da UE, a primazia da língua inglesa é fato incontestável. Em 2015, a Comissão traduziu 1.600.000 páginas para o inglês e apenas 72.000 para o francês, a segunda língua mais procurada. O domínio do inglês é brutal. Com sua estratégia de barrar línguas neutras, De Gaulle acabou facilitando a entrada do inglês. O que ele temia aconteceu: a língua de Shakespeare suplantou as demais.

O Brexit levou o Reino Unido para o outro lado da fronteira e deixou a UE numa situação linguística peculiar. Tirando Malta e a Irlanda, países de importância muito relativa, nenhum outro membro dá ao inglês estatuto oficial. No entanto, o inglês é de facto o idioma de todos os dias. No Parlamento, o número de intervenções em inglês equivale às falas em francês, espanhol e alemão somadas. A Inglaterra foi-se, mas o inglês ficou.

Depois do desaparecimento do sabir, um pidgin que serviu de lingua franca na bacia do Mediterrâneo desde a Idade Média até meados do século 19, é a primeira vez que um consórcio de povos adota, para a comunicação do dia a dia, uma língua estrangeira que não a do antigo colonizador – mesmo porque de descolonização não se trata. Não se trata tampouco de imposição de quem quer que seja. A adesão espontânea ao inglês teve crescimento vigoroso a partir da admissão de países da Europa Oriental, em 2004.

Chega-se agora a uma situação curiosa. Há uma corrente propondo que se oficialize o inglês como segunda língua dos europeus, junto à língua materna. Se isso ocorrer, a língua inglesa assumirá importância superior à do latim medieval, que se restringia ao posto de língua de cultura, sem jamais perpassar a fala popular. A moderar os ardores dessa corrente, surgem vozes que, sem renegar a realidade, recomendam que o futuro inglês europeu – euroinglês, provavelmente – lance, de certo modo, seu grito de independência: “Que se afrouxem as amarras que me prendem à tirania do inglês britânico!”.

O pleito faz sentido. Não é confortável nem admissível que um inglês oficializado na UE continue sob a tutela de Cambridge ou de Oxford. Nenhum parlamentar europeu deveria se envergonhar de não dominar o idioma como um nativo. Não se pode esperar que um lituano, um espanhol ou um húngaro manejem o inglês como se fossem ingleses. Ainda que puristas britânicos possam não apreciar, a futura lingua franca europeia será fruto do idioma de Shakespeare. Será fruto, é verdade, mas será também bastardo.

A lagoa e o jacaré

José Horta Manzano

Com o estilo mordaz que caracteriza o espírito francês, Le Nouvel Observateur (l’Obs), órgão importante da imprensa, sintetizou o fim da Operação Lava a Jato.

Brésil: Bolsonaro enterre l’opération anticorruption à laquelle il doit son électionBrasil: Bolsonaro enterra a operação anticorrupção à qual ele deve a própria eleição.

Em matéria de logro eleitoral, é raro ver uma trapaça feita tão às claras. Mas deixe estar, jacaré, que a lagoa há de secar. Quem pelo engodo venceu, pelo engodo será vencido. Memento Lula – Lembrem-se do Lula!

Rindo da desgraça

José Horta Manzano

A pandemia tem causado stress no mundo todo. Mas a pressão não é uniforme e pode variar conforme as circunstâncias específicas de cada país. Na maior parte da Europa, o que mais tem chateado são os intermináveis períodos de confinamento. As autoridades não têm sido nada camaradas nesse aspecto. Quando decretam um confinamento, não brincam em serviço. A ordem é para a população permanecer em casa mesmo.

Pra sair, precisa levar no bolso uma atestação indicando o motivo da escapada. São poucas as razões aceitas. Entre elas: ir ao (ou voltar do) trabalho, ir ao (ou voltar do) médico, dar assistência a alguém entrevado ou doente, espichar as pernas num raio de 1km em volta da residência durante meia hora. O atestado só vale para uma saída e tem de estar preenchido e assinado antes de eventual controle. Caso o cidadão seja abordado e o atestado falte, a multa chega a R$700; reincidentes pagam o dobro. Não é mole.

Muitos fatos novos apareceram este ano, para os quais não havia palavras. O povo tratou logo de inventá-las. Algumas são mostrengos, mas há pequenas pérolas de inventividade. Em balanço de fim de ano, a mídia de língua francesa (França, Suíça, Bélgica e Canadá) destacou algumas expressões. Algumas são novas, enquanto outras, antigas, passaram a ser intensamente utilizadas.

covid          covid
coronavirus    coronavírus
quarantaine    quarentena
antimasque     antimáscara(os que se opõem à máscara)
antivax        antivacina
isolement      isolamento
faux positif   falso positivo
faux négatif   falso negativo
présentiel     presencial
coronapéro     aperô virtual(happy hour sem contacto)
bulle sociale  bolha social
distanciel     distancial
confinement    confinamento
déconfinement  desconfinamento

A casa editora do Robert, dicionário tão popular quanto nosso Aurélio, também entrou na dança. Incentivou o público a inventar palavras para descrever realidades trazidas pela epidemia. Normalmente, é malvisto criar palavras por conta própria. Neste caso, no entanto, visto que é o respeitado Robert que autoriza, ninguém será criticado.

Já há centenas de sugestões de leitores. A maioria são intraduzíveis, por serem composições de palavras. Umas poucas aguentam a transposição para nossa língua. Por exemplo, mascourir (=mascorrer), que é quando a gente volta pra casa correndo porque se esqueceu de pôr a máscara obrigatória. Ou ainda as reuniões de hydroalcooliques anonymes (=alcoolgélicos anônimos); o trocadilho é atroz, mas o resultado é simpático.

Tem mais uma que me diverte. Os franceses criaram a expressão gestes barrière (=gestos barreira) para dar nome ao conjunto de providências que cada um tem de tomar para conter o alastramento da doença: usar máscara, lavar as mãos, manter distância. Alguém com espírito mais criativo sequestrou a expressão e a transformou em gestes carrière (=gestos carreira). É quando, numa reunião Zoom, o indivíduo veste uma bonita camisa para dar aos superiores a impressão de que é pessoa séria, enquanto, na parte de baixo, está de calção e chinelo de dedo.

Bem, caros amigos, o que eu contei até aqui foi o que espirrou da válvula de escape de populações conscientes de que suas autoridades estão cuidando da saúde e do bem-estar dos habitantes. Já no Brasil, as coisas não são exatamente assim. Enquanto a vacinação já começou em uma quarentena de países, não sabemos ainda nem que vacina nos será proposta. Como consequência, não temos a menor ideia de quando será iniciada a imunização dos brasileiros. Janeiro? Fevereiro? Março? Abril? Como já disse o outro, «Pra que tanta ansiedade?».

Proponho seguir o exemplo interessate dos francofalantes. Mas não precisa inventar palavras para a epidemia e seu entorno, que essas já têm nome. No Brasil, é simples. Em vez de espremer as meninges, costumamos importar o que nos vem do inglês. E engolimos tudo cru, com casca e tudo. Lockdown, homeschooling, self isolation, home office, social distancing – e o problema está liquidado.

Não. Proponho criar palavras e expressões para contar os comportamentos que povoam estes tempos estranhos. Nossa coleção de adjetivos não dá conta, por exemplo, de descrever as barbaridades cometidas por nosso presidente. Repórteres, jornalistas e analistas esgotaram o reservatório contido nos dicionários; já não há expressões suficientemente eloquentes.

Quando é que se viu, no passado, o chefe do Estado Brasileiro ser chamado (com propriedade) de idiota, apalermado, imbecil, parvo, tapado, irresponsável? Pois esses qualificativos, antes impensáveis, estão gastos de tanto ser usados atualmente. Já não bastam. Que a criatividade da nação desperte e se manifeste! Cartas para a Redação, por favor.

A face sinistra do doutor

José Horta Manzano

Já faz algum tempo que o mundo conhece a personalidade execrável de doutor Bolsonaro – o Trump dos trópicos, como é chamado na Europa. Assim mesmo, sua incompreensível antipatia pelo povo que o elegeu atingiu um pico terça-feira passada. Foi quando demonstrou, ao vivo e em cores, dar importância maior à cruzada que move contra o governador de SP do que à saúde dos duzentos milhões que, em tese, ele devia estar liderando.

A cena de horror não passou despercebida no exterior. Aqui está um trecho do que o portal estatal francês de telecomunicações publicou.

«Alors que le monde entier hier s’enthousiasmait, à tort et à travers, des bons résultats affichés par le vaccin Pfizer contre le Covid-19, alors que les éditoriaux se multipliaient sur “la lumière au bout du tunnel”, “2021 année du vaccin”, etc (on rappellera quand même qu’un vaccin qui doit être conservé à -70° C exclut de facto une bonne moitié de l’humanité qui vit dans des régions reculées et mal équipées d’Asie et d’Afrique), alors donc que le mot vaccin cristallisait tous les espoirs ce mardi, au Brésil, le président Jair Bolsonaro se réjouissait, publiquement, de l’arrêt dans son pays des tests cliniques d’un vaccin de fabrication chinoise.»

«Ontem, enquanto uma onda de entusiasmo varria o mundo inteiro, a torto e a direito, na esteira dos bons resultados da vacina Pfizer contra a covid-19; enquanto os editoriais saudavam “a luz no fim do túnel”, “2021 ano da vacina”, etc. (sem esquecer, assim mesmo, que uma vacina que exige ser armazenada à temperatura de -70°C exclui, na prática, a metade da humanidade que vive em regiões remotas e carentes da Ásia e da África); enquanto o termo vacina cristalizava todas as esperanças nesta terça-feira, pois bem, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se alegrava publicamente da paralisação em seu país dos testes clínicos de uma vacina de fabricação chinesa.»

Bolsonaro passará – e quanto antes, melhor. Mas, antes disso, ele está tratando de hipotecar o futuro do Brasil. Depois que esse estropício tiver ido embora, vai levar anos pra recuperarmos nossa imagem de país amistoso e bem-intencionado. A desconfiança costuma demorar pra se dissipar.

Arroz com feijão

José Horta Manzano

A grande erosão dos fonemas da língua francesa deu origem a multidão de palavras homófonas – aquelas que, embora tenham sentido diferente, soam do mesmo jeitinho. Imagino que os estagiários dos jornais do país passem por um aprendizado de trocadilhos. Os mais aplicados serão escolhidos. É impressionante como conseguem inventar jogos de palavras, especialmente na hora de dar título.

Libération é importante jornal francês, ancorado do lado esquerdo do tabuleiro político. Neste 25 de setembro, publicou artigo assinado pela correspondente no Brasil. Como costumam fazer, aproveitaram para transformar o título num quebra-cabeça divertido.

Em vez de:
Au Brésil, on ne rit plus, c’est la fin des haricots

No Brasil, não se ri mais, é o fim do feijão

Escreveram:
Au Brésil, on ne riz plus, c’est la faim des haricots
que soa exatamente igual, mas que é intraduzível. Ao pé da letra, fica:
No Brasil, não se arroz mais, é a fome do feijão.

Trocadilho traduzido perde a graça. É que a gente tem de escrever um parágrafo inteiro pra explicar, o que deixa escapar o momentum.

O artigo explica aos leitores franceses que o arroz com feijão é o prato nacional, traço de união entre classes, consumido que é pelo empresário e pelo operário.

Fala do espanto do gringo quando descobre um povo que come a mesma coisa todos os dias – gringo este que, se ficar muito tempo, acaba sucumbindo a esse hábito alimentar.

Conta, em seguida, o atual drama nacional: a subida vertiginosa do preço do arroz, causada por um conjunto de fatores, entre os quais, o modo Bolsonaro de governar.

Fica-se sabendo que, em consequência da perda de valor do real, os produtores de arroz estão preferindo exportar, o que acaba deixando o mercado interno desabastecido. Como resultado, o Brasil está importando arroz, o que parece absurdo. De fato, exportar arroz barato para importar arroz caro parece contrassenso.

Muitos brasileiros estão tendo de modificar seu estilo de alimentação, trocando o arroz com feijão por produto mais em conta.

A articulista arremata cogitando: «E se, em vez de substituir o arroz com feijão, os brasileiros substituíssem o presidente? Sairia de graça». Faz sentido.

Dois sustos

José Horta Manzano

Você sabia?

Primeiro susto
Se alguém, na França, lhe propuser visitar uma maison troglodytecasa troglodita, o distinto leitor não deve se assustar. Não imagine que o cicerone vá conduzi-lo a lugar não recomendável a pessoas de boa família.

Troglodita 3

A língua francesa atual reserva o adjetivo troglodita para construções – em geral habitáveis, mas não necessariamente – que têm a particularidade de serem escavadas no flanco de parede rochosa. Corresponde ao que, na Espanha, chamam cueva. Têm a particularidade de manter temperatura constante ao longo do ano.

Troglodita 2

Ideal para os sem-teto medievais, abrigos desse tipo vêm sendo aproveitados para acolher turistas em busca de alojamento fora do corriqueiro. Quando bem ajeitadas, as casas trogloditas podem exibir charme incomum.

Na Idade Média, até castelos trogloditas foram construídos. Em vales estreitos, o aproveitamento da parede rochosa fazia ganhar espaço. Era prático: os fundos do imóvel já estavam prontos, só faltava construir a frente. Duro mesmo devia ser a escavação no muque para acrescentar um cômodo, quando a família crescia.

Segundo susto
Falando ainda da França, se alguém se apresentar como personne ordinairepessoa ordinária, não tome isso como sincericídio de criminoso. No francês de hoje, tudo o que não for extraordinário é ordinário. Portanto, ordinário significa comum, corriqueiro, usual. A pessoa que se qualifica como ordinária está simplesmente informando que é pessoa comum, sem atributos especiais.

Croissant 1

Se você entrar, por exemplo, numa boulangerie e pedir um croissant, virá a pergunta incontornável: beurre ou ordinaire? – de manteiga ou comum? Encomende o que lhe apetecer. No entanto, gordura por gordura, mais vale ficar com o de manteiga. Já que o destino é engordar, que seja com mais gosto.

Lafontaine sempre atual

José Horta Manzano

Nestes tempos desagradáveis, em que o cordão dos puxa-sacos presidenciais é tão atuante – e o estrago que causam, tão profundo –, a sabedoria dos antigos mostra que os defeitos da alma humana são velhos como o mundo. De lá pra cá, muito tempo passou, mas parece que o homem continua a cair nas mesmas ciladas e a cometer os mesmo erros.

A fábula do rei que estava nu, conhecida por todos, é representativa desse fenômeno. Na intenção de comprazer a vaidade do poderoso, toda a corte repete diante do rei tudo o que ele quer ouvir. O resultado é um desastre: crédulo, o monarca acaba desfilando nu pelas ruas da capital do reino, convencido de estar vestido com o traje mais fino jamais costurado.

Jean de Lafontaine (1621-1695), poeta francês que transpunha para metafóricos animais os defeitos e qualidades que distinguia nos humanos, ficou conhecido por suas quase 250 fábulas. Retrato agudo e cru da sociedade, todas elas permanecem atuais.

Várias abordam a vaidade, perigoso defeito que, quando apimentado pela ingenuidade, fortalecido pela ignorância e atiçado por uma tropa de lambe-botas, é receita infalível para o desastre.

Não tenho muito esperança de ver minha sugestão atendida, mas digo assim mesmo: doutor Bolsonaro devia reler (ou pedir a alguém que lesse em voz alta) a fábula do corvo e da raposa. O ensinamento é de grande utilidade para quem está na situação dele.

Le corbeau et le renard

Maître Corbeau, sur un arbre perché,
tenait en son bec un fromage.
Maître Renard, par l’odeur alléché,
Lui tint à peu près ce langage:

«Hé! Bonjour, Monsieur du Corbeau.
Que vous êtes joli! Que vous me semblez beau!
Sans mentir, si votre ramage
Se rapporte à votre plumage,
Vous êtes le Phénix des hôtes de ces bois!»

A ces mots le corbeau ne se sent pas de joie;
Et, pour montrer sa belle voix,
Il ouvre un large bec, laisse tomber sa proie.

Le Renard s’en saisit, et dit: «Mon bon Monsieur,
Apprenez que tout flatteur
Vit aux dépens de celui qui l’écoute:
Cette leçon vaut bien un fromage, sans doute.»

Le Corbeau, honteux et confus,
Jura, mais un peu tard, qu’on ne l’y prendrait plus.

Lafontaine 2O corvo e a raposa

Senhor Corvo, numa árvore empoleirado,
Segurava no bico um queijo.
Dona Raposa, pelo odor atraída,
Dirigiu-lhe mais ou menos estas palavras:

«Olá! Bom-dia, senhor Corvo.
Como sois bonito! Como pareceis belo!
Sem brincadeira, se vosso gorjeio
For semelhante à vossa plumagem,
Sois a fênix dos habitantes deste bosque!»

Ao ouvir isso, o corvo não cabe em si de contente;
E, para mostrar sua bela voz,
Abre o grande bico e deixa cair a presa.

A raposa se apodera dela e diz: «Meu caro senhor,
Aprendei que todo bajulador
Vive à custa daquele que o escuta:
Essa lição vale bem um queijo, sem dúvida.»

O corvo, envergonhado e confuso,
Jurou, já meio tarde, que não o apanhariam mais.

Interligne 18hJean de Lafontaine (1621-1695), poeta francês.
Para ouvir a leitura do original francês, clique aqui.

O vírus vem do morcego?

José Horta Manzano

Você sabia?

O professor Luc Montagnier foi agraciado em 2008 com o Nobel de Medicina por seus trabalhos que, em 1983, tinham levado à descoberta do VIH, o vírus da aids.

Espírito turbulento, o professeur é chegado a uma polemicazinha. Volta e meia, apoia alguma tese ousada, daquelas que encontram resistência por parte da ciência oficial. No começo dos anos 2000, por exemplo, emprestou seu prestígio à defesa de um cientista francês que afirmava que a água tinha uma espécie de memória – realidade difícil de ser comprovada. Naturalmente, a tese foi rechaçada com vigor por uma indignada comunidade científica. É por isso que convém desconfiar quando o professeur vem com mais uma das suas.

Um site francês dedicado à medicina publicou em 16 de abril uma entrevista com Luc Montagnier, na qual ele dá opinião ousada sobre a origem do SARS-CoV-2, nome técnico do coronavírus que assola o planeta. Fala com a autoridade de quem já dirigiu um instituto de pesquisa em Xangai, na China.

Docteur Montagnier formula a hipótese de que a epidemia tenha tido início com o escape acidental de uma cepa de vírus que estava sendo manipulada num laboratório de Wuhan no âmbito de uma pesquisa de vacina contra aids.

Visto o histórico de tomadas de posição polêmicas do professeur, a mídia francesa não deu grande importância; e a internacional, menos ainda. Assim mesmo, a hipótese não deve ser descartada sem análise. Se bem que a missão é quase impossivel, dado que, ainda que a tese fosse verdadeira, Pequim dificilmente reconheceria o acidente. Transparência não é o forte de nenhum regime autoritário.

Quem havia de ficar feliz com a notícia são os bolsonarinhos e os associados do gabinete do ódio. A tese fortalece a narrativa de um “vírus chinês”, (que é como eles se referem ao coronavírus), criado e espalhado pra dar uma rasteira no mundo e impulsionar a dominação chinesa. Mas nenhum deles vai ler . Estão demais ocupados a arquitetar ruindades e tuitar boçalidades.

Coronavírus e pânico

José Horta Manzano

Coronavírus
Uma amiga me pergunta, preocupada, o que penso do coronavírus chinês, e se os europeus estão entrando em pânico por causa da propagação da doença. Respondi que sim, como por toda parte, o coronavírus anda mexendo com os nervos.

Há muita gente entrando em pânico, mas acho que ainda é cedo pra exagerar. É verdade que o bichinho tem potencial de se alastrar rápido, embarcado no enorme volume atual de viagens internacionais.

Assim mesmo, autoridades do Sistema de Saúde da França afirmam que esse novo vírus não é mais letal do que o da gripe comum. Cálculos atuais indicam uma taxa de letalidade em torno de 2% a 3%. Quem corre mais risco são os que estão nos extremos da vida: recém-nascidos e velhos.

Todo ano, milhares morrem de gripe e não sai nos jornais. Quanto a nós, temos de nos orgulhar de nossos vírus nacionais endêmicos; a dengue, o sarampo e a ignorância matam muuuito mais do que qualquer vírus importado.

Representação do deus grego Pan

Pânico
Embora seja atualmente usado quase somente como substantivo, pânico entrou na língua como adjetivo. Como tantas outras palavras, nasceu no grego e viajou até nós através do francês.

Pânico refere-se ao deus Pan, protetor dos rebanhos e dos pastores, frequentemente representado como criatura fantástica, meio homem, meio bode. Diz a lenda que assustava e desorientava os que se aproximassem com os ruídos estranhos e fortes que emitia. Quem o ouvisse se sentia perdido, desorientado, assustado. Entrava em medo pânico (=medo de Pan).

Na língua francesa, ainda se diz peur panique (=medo pânico). Há também o verbo paniquer (=panicar), que nossos dicionários ainda não abonam. Qualquer dia destes, chega.

Carlos Ghosn e a Lava a Jato

José Horta Manzano

Até uns dois anos atrás, senhor Carlos Ghosn não era figura conhecida no Brasil. Precisou a Justiça do Japão encrencar-lhe seriamente a existência para os brasileiros se inteirarem de que tinham um conterrâneo famoso e poderoso, um homem que havia subido muito até chegar à presidência de uma das grandes montadoras de automóveis, a Renault-Nissan.

Fato é que, acusado de desviar dinheiro da firma para uso pessoal, nosso patrício foi convidado a passar uma temporada nas masmorras nipônicas. Parece que o sistema judiciário, por lá, é um bocado rigoroso. No Japão não tem essa de segunda instância, habeas corpus, nem recursos à profusão. Acusado de crime vai em cana e é lá que lhe cabe esperar pelo processo.

Depois de meses encarcerado, o moço conseguiu ir para prisão domiciliar, benefício especialíssimo cuja fiança lhe custou a bagatela de um bilhão de ienes (mais de 9 milhões de dólares). No Japão, presos em domicílio estão sob controle severo. Não pode isso, não pode aquilo. Nem internet, nem celular, nem mesmo visita da esposa. Saídas controladas, vigiadas e cronometradas. Não sei como ele fez, mas um dia conseguiu escapar.

Hoje chegou a notícia de que o homem tinha desembarcado em Beirute, cidade onde cresceu, trazido por um jatinho executivo. Mais, não se sabe. Parece essas fugas aventurosas que a gente vê muito no cinema, mas raramente na vida real. Apesar de parecer que senhor Ghosn está fugindo da Justiça, ele mantém que, na verdade, escapa da injustiça de um sistema em que não vigora a presunção de inocência; mesmo antes do processo, o acusado já é considerado culpado e como tal é tratado. Ele diz ainda que nada fez de errado, que tudo não passa de monstruosa e perversa maquinação.

Não tenho elementos pra julgar nem me compete fazê-lo. Mas é sabido que quanto mais rico e poderoso se torna um indivíduo, mais inveja e olho gordo atrai. Pode até ser que ele tenha boa dose de razão. Pode ser que a história contada pela Justiça japonesa seja fruto de montagem maligna. Provavelmente jamais saberemos.

Vinhedo no Líbano

Nosso conterrâneo é plurinacional, um luxo. Tem três cidadanias: a brasileira (por nascimento), a libanesa (pela lei do sangue) e a francesa (por naturalização). É neto de libaneses; nasceu no Brasil; foi, com a família, para o Líbano quando ainda criança. Em Beirute, fez seus estudos no Liceu Francês, o que lhe abriu as portas para a língua: fala francês perfeito e sem sotaque – condição sine qua non para ocupar posto importante em firma francesa.

No Líbano, ele é figura conhecida e respeitada. Tem lá investimentos no ramo imobiliário e em viticultura. De tão popular, já foi homenageado com um selo emitido com sua efígie. Dado que é cristão maronita, está habilitado para ocupar a Presidência do país. Ele tem grandes chances, porque muitos gostariam de vê-lo lá. De qualquer modo, o Líbano não tem tratado de extradição com o Japão. Senhor Ghosn não arrisca ser despachado de volta para Tóquio. Não sendo acusado de crime nenhum no Líbano, está livre de ir e vir à vontade.

Ele poderia também ter-se refugiado no Brasil, pois não? Como se sabe, nossa Constituição proíbe a extradição de nacionais. Nesse ponto, estaria tranquilo. Acontece que a Lava a Jato, que passou feito tsunami, abalou antigas convicções e fez um imenso favor ao país: o Brasil deixou de ser visto como paraíso para os que fogem da Justiça – tanto local quanto internacional.

Nosso país, bem mais vasto que o pequeno Líbano, permitiria a senhor Ghosn mais amplitude de movimentos. Aqui, ele jamais se sentiria sufocado. Assim mesmo, ele preferiu o país dos antepassados, onde sua vida vai ficar mais problemática. Dado que o Japão vai certamente lançar mandado internacional de captura contra ele, toda sua viagem ao exterior estará fortemente comprometida. Apesar disso, ele preferiu o país dos Fenícios. Será que nossa volubilidade política está assustando a esse ponto?

Recidivista

José Horta Manzano

A alemã Ursula von der Leyen, de 60 anos, foi recentemente eleita presidente da Comissão Europeia, cargo máximo da governança da União Europeia. A tomada de posse está prevista para novembro. Perfeitamente bilíngue alemão-francês, Frau von der Leyen fala também inglês fluentemente. O conhecimento perfeito de duas ou três das principais línguas europeias é imprescindível para os pretendentes a altos cargos.

No passado, ela já ocupou postos importantes no governo alemão. Foi, sucessivamente, ministra da Família, ministra do Trabalho e ministra da Defesa. Quando jovem, diplomou-se em Ciências Econômicas na Alemanha e fez cursos de aperfeiçoamento na London School of Economics. Além disso, é doutora em Medicina, com tese defendida perante banca na Universidade de Hanover. Como se vê, a moça é dona de sólido currículo.

Todos os eleitos do Parlamento Europeu têm direito a ajuda de custo para viagens e para alojamento – de fato, alguns vêm de muito longe, como os estonianos ou os portugueses, que têm de viajar mais de 2000 km. A nova presidente dispensou a ajuda em dinheiro, mas pediu que lhe instalassem um alojamento perto do lugar de trabalho. Uma pequena sala de 25m2 do próprio prédio do parlamento está sendo reformada pra servir-lhe de aposento. A presidente residirá, assim, no edifício onde trabalha, a poucos metros de sua sala.

Ursula von der Leyen, a nova presidente da Comissão Europeia

Frau fon der Leyen é recidivista. Por razões de praticidade e de economia, já havia feito a mesma coisa quando ministra na Alemanha. No cargo de presidente da Europa, sua decisão representará economia considerável no quesito proteção à pessoa. Dado que o arranha-céu de Bruxelas onde funciona a Comissão Europeia já é normalmente ultraprotegido, não haverá gasto suplementar pra garantir a segurança da residência da presidente.

Tenho certeza de que nenhum de nossos presidentes – o da República, o do Senado, o da Câmara, o do STF – tinham pensado nisso antes. Fica aqui registrada a sugestão. Agora não poderão mais dizer que não sabiam. Preocupados que estão com preservar o dinheiro do contribuinte, certamente vão estudar a questão com carinho.

A fonte desta curiosa informação é o diário alemão Die Welt.

L’État c’est moi

José Horta Manzano

Monsieur Jean-Luc Mélenchon é um político francês. Candidato às últimas eleições presidenciais, seus 19,6% de votos não foram suficientes pra impedir que Emmanuel Macron (24%) e Marine Le Pen (21,3%) fossem alavancados ao segundo turno e o deixassem a comer poeira.

Suas origens espanholas vêm à tona no verbo inflamado. O homem tem cultura sólida, atestada por dois diplomas: Letras e Filosofia. Excelente orador, sua aparição em debates é garantia de animação. Ninguém cochila enquanto ele discursa. Desde a adolescência sua simpatia foi para a esquerda. Milita desde os tempos de estudante.

Faz alguns anos, fundou partido próprio: La France Insoumise – A França Insubmissa, situado à extrema-esquerda do espectro político. Entre os seguidores, muitos são jovens que cuidam de defender a classe trabalhadora. Na realidade, em virtude da acentuada desindustrialização, o operariado tradicional anda rarefeito, em via de extinção. Mas o dom de oratória de Monsieur Mélenchon é magnético. Seu discurso é tão persuasivo que a gente fica com a impressão de que tudo o que ele diz há de ser verdade.

Mélenchon em Curitiba – 5 set° 2019

A justiça francesa não é necessariamente da mesma opinião. Desconfiada de irregularidades cometidas pelo partido dele na prestação de contas da última campanha presidencial, mandou uma equipe em missão de busca e apreensão na sede do partido. Aos berros, um furioso Mélenchon resistiu à ação de procuradores e policiais. Gesticulou, insultou, tentou arrombar uma porta, empurrou gente e até derrubou dois agentes. A um dado momento, em meio a impropérios, lançou: «La République c’est moi! – A República sou eu!».

Pegou mal. Principalmente porque evocou a frase «L’État c’est moi! – O Estado sou eu!», que o rei Luís XIV teria pronunciado faz quase 400 anos. O monarca tinha direito a dizer o que dizem que disse. Afinal, reinava absoluto, e sua palavra era a lei. Quanto a Mélenchon, a tirada soou um tanto grotesca. É muita pretensão pretender encarnar a República.

Ontem, 5 de setembro, o político francês esteve de visita a Curitiba. Foi tomar a bênção de Lula da Silva, político brasileiro que muita gente fina acredita ser de esquerda. Ao sair da sede da PF, onde o ex-presidente está instalado, Mélenchon revelou ter vindo «tomar forças» com o encarcerado.

Embora remota, a possibilidade existe de o tribuno francês ir parar na cadeia, o que explica ter vindo aconselhar-se com o Lula, mestre na matéria.

O barraco armado por Mélenchon quando da chegada dos policiais em missão de busca e apreensão está aqui.

As declarações do francês à saída da PF de Curitiba estão aqui e também aqui.

Ícaro moderno

José Horta Manzano

Você sabia?

Franky Zapata é piloto profissional de jet ski. Apesar do nome de revolucionário mexicano, o moço é francês de Marselha. Tem uma coleção de medalhas conquistadas em campeonatos nacionais e internacionais.

Acontece que Monsieur Zapata é buliçoso e criativo. Com um grupo de amigos, trabalhou duro durante anos a fim de construir o que chamou de Flyboard. O nome da geringonça corresponde ao que ela faz: é uma prancha que voa. Desde 2012, ele comercializa exemplares de seu invento.

Trata-se de uma prancha de diminutas dimensões, sobre a qual cabe apenas um homem de pé. Debaixo estão instalados os turbopropulsores. O reservatório de combustível fica… adivinhem onde? Numa mochila, nas costas do piloto. Precisa ser meio maluquinho, não?

Bom de marketing, o rapaz achou que precisava dar ao mundo um exemplo marcante do funcionamento da engenhoca. A travessia do Canal da Mancha – 35km entre França e Inglaterra – é o sonho de todos os que inventam algum objeto voador. Desde que o pioneiro Blériot atravessou o canal com seu precário avião, em 1909, muitos seguiram sua iniciativa. Nosso campeão de jet ski sentiu que tinha chegado sua vez.

Franky Zapata de ‘Flyboard’

Depois de uma tentativa infrutifera em julho, Franky Zapata conseguiu atravessar o canal neste domingo 4 de agosto. Decolou de Sangatte, uma praia na costa francesa, e pousou em St. Margaret’s Bay (Inglaterra), 20 minutos mais tarde. Voou a uma altura de 15-20 metros, a uma impressionante velocidade média de 160-170km/h. Foi acompanhado por helicópteros. No meio do percurso, um barco estava a postos, esperando por ele. Chegando lá, o aventureiro pousou por alguns segundos, só pra apanhar nova mochila. Em outras palavras: reabasteceu.

Um grupo de cinegrafistas disse adeus ao piloto quando levantou voo na França e outro grupo saudou sua chegada à Inglaterra. O engenhoso inventor já foi sondado pelo exército francês, interessado na utilidade que o Flyboard possa ter para o Ministério da Defesa.

Ainda bem que o voo experimental ocorreu antes do Brexit. Se tivesse sido depois de 31 de outubro, Monsieur Zapata poderia até ser preso assim que pisasse solo inglês. Seria processado por ter entrado no país através de passagem fronteiriça não autorizada. E era bom que tivesse o passaporte no bolso, se não ia ser ainda pior.

Para ter uma ideia de como é ver um homem voando, assista à chegada do aventureiro à praia inglesa neste videozinho de um minuto.

Libra

José Horta Manzano

Não é clara a origem da palavra libra. Parte dos etimologistas acredita que descenda de um hipotético proto-itálico *leithra, já então nome de uma unidade de peso. O que se sabe é que o nome passou para as línguas neolatinas.

Em italiano moderno, aparecem as formas libra/libbra (= unidade de peso) e lira, que é o nome da defunta moeda nacional.

Em francês, a forma evoluiu para livre, com dois significados: por um lado, é nome da unidade de peso utilizada nos países anglo-saxônicos; por outro, é a moeda em vigor em diversos países (Reino Unido, Turquia, Líbano, Egito).

Em espanhol, a forma libra é usada com vários significados. Pode ser a unidade monetária em vigor em diversos países; pode também ser o nome de moeda usada antigamente em algumas regiões do país; pode ainda dar nome a uma medida de capacidade equivalente a aproximadamente meio litro. Pode ainda se referir à constelação da Balança.

Em português, a forma é idêntica ao castelhano: libra. Encerra diversos significados: unidade de peso, nome da moeda em vigor no Reino Unido e em mais meia dúzia de países, constelação zodiacal, signo do zodíaco.

Saiu hoje a notícia de que, no rastro de outras criptomoedas que circulam por aí, Facebook está preparando o lançamento de moeda virtual própria. A novidade deve começar a circular daqui a alguns meses, mas o bebê já tem nome: vai-se chamar libra.

Libra: a criptomoeda de Facebook

Fico meio pensativo. A central de inteligência dessa empresa deve concentrar elevado número de gênios. É gente (muito bem) paga, que está lá justamente pra espremer as meninges e gerar ideias fabulosas, daquelas que fazem a empresa dar saltos à frente da concorrência. Cáspite! Como é que podem dar à nova moeda o nome de libra?

O nome já existe e é amplamente utilizado. Se a palavra soa exótica aos ouvidos formatados dos gênios californianos, deveriam, pelo menos, ter consultado gente de ouvidos mais arejados. Não precisa ir muito longe: nos USA, calcula-se que 40 milhões de pessoas sejam de língua castelhana. Além deles, os latino-americanos são centenas de milhões a falar espanhol ou português. Todos (ou quase) são usuários de Facebook. E todos dão o nome de libra à moeda inglesa.

Não acredito que o fato de haver duas moedas importantes com o mesmo nome venha a criar confusão. Também não acredito que alguém deixe de investir na nova ‘moeda-fumaça’ por causa do nome. Mas, francamente, com tanto nome por aí, deram prova de tremenda falta de imaginação.

Proficiência

José Horta Manzano

Vez por outra, topamos com alguma imprecisão de tradução na mídia brasileira. O texto original é mal transcrito, e a gente acaba não entendendo. É compreensível que isso aconteça, tão parco é nosso conhecimento de línguas estrangeiras. É pena, porque essa pobreza cultural acaba por estreitar o horizonte de todos, mas assim são as coisas. A gente imagina que, em outras terras, seja bem diferente. Em geral é – mas nem sempre.

É verdade que, na Holanda e na Dinamarca, são todos praticamente bilíngues. São pequenos países de língua praticamente desconhecida além-fronteira, onde o aprendizado de inglês é incentivado desde a escola elementar. O exemplo dos mais velhos, que praticam essa língua com habilidade, dá ânimo aos pequenos. E o círculo virtuoso se perpetua.

Mas nem todo estrangeiro é holandês ou dinamarquês. Alguns povos, mais recalcitrantes, são conhecidos pela aversão que sentem pelo aprendizado de línguas estrangeiras. Entre eles, destacam-se os franceses. Saudosos, talvez, do tempo em que a língua de Molière pairava acima das demais em prestígio e difusão internacional, resistem a estudar idiomas. Nesse terreno, são duros de molejo.

Acabo de topar com um magnífico exemplo da imperícia francesa com línguas estrangeiras. Le Petit Journal é um portal voltado para expatriados franceses. Gratuito, é financiado pelos anunciantes. Acolhe colaboração de franceses residentes no mundo inteiro. Na sequência da entrevista concedida por Lula da Silva estes dias, publicaram artigo assinado que leva título inquietante: «L’interview de Lula censurée par les médias brésiliens? – A entrevista de Lula censurada pela mídia brasileira?».

Le Petit Journal

No corpo do artigo, a dúvida do título se torna certeza. Afirmam, com todas as letras, que sim, a entrevista de nosso guia foi boicotada pelos outros veículos brasileiros. Incrédulo, tive de ler até o fim pra entender a trapalhada. A confusão baseia-se num tuíte da jornalista da Folha que entrevistou o Lula. Mônica Bergamo tuitou: «A entrevista de Lula (…) foi um ROMBO na censura no Brasil (…)». E a articulista francesa traduziu: «A entrevista de Lula (…) foi alvo da censura brasileira (…)». A autora do texto afirma ainda que a mídia brasileira não tratou do assunto e que a entrevista só foi mencionada em sites alternativos. Pra você ver aonde pode levar a pobreza de conhecimento de línguas.

Em conclusão, a moça leu o tuíte, não entendeu mas achou que devia ser o que não era pra ser mas que achava que era, resolveu seguir adiante assim mesmo, publicou o que não devia, seus leitores ficaram meio sem entender, e… viva São João!

Nesta era de fake news propositais, precisa acrescentar nova categoria: as fake news por imperícia. Assim caminha a humanidade.

Se quiser conferir, clique aqui.