Le der des ders

José Horta Manzano

Vanzolini, 5 nov 2011
com minha irmã

Le dernier des derniers, abreviada em le der des ders é a expressão que os franceses usam para se referir ao derradeiro, ao último dos moicanos, a um acontecimento que assinala o fim de uma era.

Foi o que senti ao tomar conhecimento do desaparecimento de Paulo Vanzolini, aos 89 anos. Não sei que repercussão estará tendo a notícia no Brasil nestes tempos de rap e de funk. Quanto a mim, tenho realmente o sentimento de uma perda derradeira. Foi-se o último dos últimos.

Vanzolini, 24 set 2011
Roda de samba

Com sua partida, fechou-se um ciclo. Isso não quer dizer que não haja gente boa entre os modernos, mas os tempos são outros, o gosto musical mudou, a técnica se alterou, a MPB seguiu novos rumos. Dos sambistas tradicionais, não sobrou nenhum.

Não tenho a pretensão de fazer aqui um necrológio. Disso já cuidaram os jornais. Gostaria de frisar uma característica rara no panorama musical brasileiro: Paulo era um compositor que não dependia de suas músicas para ganhar a vida. Era, no mais puro sentido da palavra, um amador. Compunha por prazer, como queria e quando lhe dava vontade.

Vanzolini, 20 out 2012
De chapéu, como se deve!

«Duro de ouvido», sem formação musical, autor de compassos de pé quebrado, Vanzolini não era um músico que se interessava por lagartos. Cientista de formação, era um renomado zoólogo ― mais precisamente um herpetólogo, especialista em répteis ― que fazia uma musiquinha aqui, outra ali. Mas que musiquinhas!

Não foram centenas, mas as poucas que chegaram a ser gravadas são verdadeiros monumentos. Além das ultraconhecidas Ronda e Volta por cima, há preciosidades. Amor de trapo e farrapo, Cravo branco, Samba erudito, Praça Clóvis, Mulher que não dá samba são grandes composições.

Vanzolini, 15 set 2012
Roda de samba

Maior ainda que a musicalidade inata, o talento do Vanzolini letrista era excepcional. «Inveja é a raiva do pó contra quem o pisa», fragmento do samba Inveja está, a meu ver, no mesmo patamar do célebre «Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima».

Vanzolini, 5 mai 2011
com minha irmã e o neto dela

Ultimamente, embora debilitado pelo passar dos anos, Paulo Vanzolini conservava absoluta lucidez. Costumava frequentar um boteco na avenida Lins de Vasconcelos, em São Paulo, perto de seu Cambuci natal. Tinha lá sua mesa reservada. Vinha sempre acompanhado de dois ou três amigos para uma roda de samba improvisada.

Em algumas dessas ocasiões, familiares meus tiveram a sorte de passar momentos amigos com ele. Algumas fotos acompanham este post .

Oxalá outras mentes inspiradas e privilegiadas como a de Vanzolini possam surgir. Que descanse em paz.

Paulo Vanzolini
Citação

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Entre as dezenas de artigos que li estes últimos dias sobre Paulo Vanzolini, sobressai o escrito Cobras e lagartos, publicado por Cláudio Ângelo em seu blogue Curupira.

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Clique nas imagens para ampliar.

Ramona

José Horta Manzano

Faz muitos anos que não passo por lá. Talvez nunca volte a passar. No lugar deve hoje estar um prédio moderno, todo enjaulado como convém, com porteiro e elevador, daqueles onde só se entra com autorização. A não ser que seja de arrastão. Na época, era um terreno baldio onde o povo costumava jogar trastes velhos que não cabiam na lata de lixo. Não era propriamente um lixão fedido, mas uma espécie de cemitério de objetos indesejados. Consciência ecológica não era matéria muito em voga naqueles anos 60.

Criança ainda, passando um dia por perto, um grande livro me chamou a atenção. Cheguei até lá. Era um álbum encadernado e pesado, de capa dura revestida de couro vermelho. Jazia no meio do terreno, de boca para baixo, aberto numa das páginas que, ao contacto da terra, já estava tingida de cor de barro.

Um livro daquele tamanho jogado no lixo? Fiquei curioso e folheei. Não era um livro de texto, mas de músicas. Continha uma boa centena de partituras de músicas populares antigas, algumas com dedicatória dos anos 20, em grafia da época. Coisas do tipo “‘á gentil senhorinha Fulana, offerece affectuosamente Beltrano”. O repertório ia do Brejeiro ao Despertar na Montanha, passando por valsas, tangos, maxixes e foxtrotes americanos.

Estudante de piano clássico ― embora muito mais interessado por música popular ― não tive dúvida: levei o livro para casa. Afinal, tinha sido atirado ao lixo.

Para evitar reprimenda, não contei nada à professora de piano. Ela era bem capaz de me vedar o acesso às partituras. Eu me sentia como um seminarista que escondesse um gibi debaixo da sotaina.

Pouco a pouco, fui «tirando» as músicas. Uma velharia que só ― as mais recentes datavam dos anos 30. Um dia, tinha acabado de decifrar uma peça chamada Ramona. Minha velha avó, que passava por perto, ficou meio pálida. Ralhou comigo e foi bastante incisiva: «Menino, não toque nunca essa música, que dá azar!». Obediente e respeitoso, como pediam os costumes da época, o menino não perguntou o porquê do pito. Simplesmente evitou tocar de novo aquela melodia. Na presença da avó, naturalmente.

Um velho tio me confirmou, anos mais tarde, que tocar Ramona dava uma uruca danada. O que ninguém jamais soube me explicar foi a origem dessa crença.

Estes dias, mais de meio século depois, lembrei-me do episódio. Naquela época pré-internet, não havia meio de satisfazer esse tipo de curiosidade. Dado que enciclopédia nenhuma trazia a história da maldição de Ramona, a gente tinha de acreditar no que se ouvia. Mas hoje tudo se resolve com alguns cliques. Resolvi clicar. Queria conhecer a origem daquela história de azar.

Não foi difícil encontrar. Não era lenda familiar, mas crença disseminada no País inteiro. A história seria até engraçada, se não fosse tão trágica.

Cartaz do filme Ramona

Cartaz do filme Ramona

Em 1927, foi lançada a canção Ramona, composição americana, que viria a servir de tema para o filme homônimo, estreado no ano seguinte, quando o cinema falado engatinhava. Antes mesmo do aparecimento do filme, a música foi sucesso imediato e mundial. Ganhou versões em várias línguas estrangeiras. Foi parar no topo do hit parade, como diríamos hoje.

No dia 25 de outubro de 1927, o navio italiano de passageiros Principessa Mafalda, apinhado de alguns endinheirados e de muitos imigrantes, foi vítima de um pavoroso acidente ao largo da costa baiana. Foi um desastre que, por suas proporções, lembrou o que tinha acontecido com o Titanic, 15 anos antes. Construído em 1908, o vapor estava já em péssimas condições. Em seus anos de glória, tinha transportado gente famosa como Guglielmo Marconi, Tatiana Pavlova, Arturo Toscanini, Luigi Pirandello. Mas a travessia daquele outubro estava programada para ser a última antes do desmanche. Foi.

Vapor Principessa Mafalda

Vapor Principessa Mafalda

Oficialmente, o navio sofreu uma explosão na casa de máquinas, adernou e soçobrou em pouco tempo. As versões quanto à causa do acidente, contudo, variam. O governo italiano, fascista, fez pressão sobre os meios de comunicação para que a tragédia fosse minimizada e não arranhasse a imagem de força e modernidade do país. O número oficial de desaparecidos é de 314. Mas jornais brasileiros e argentinos da época mencionam até 657 mortos, mais que o dobro.

Garantiram alguns sobreviventes que, enquanto o pânico tomava conta dos passageiros, a orquestra de bordo tocava… Ramona. Ninguém é capaz de confirmar. Seja como for, a história se alastrou de boca em boca pelo Brasil inteiro. Toda uma geração passou a sentir-se abalada à simples menção do nome daquela valsa.

Quem quiser conhecer os detalhes do naufrágio do Principessa Mafalda consulte o artigo publicado pelo engenheiro José Goes de Araujo. Vai ficar sabendo tim-tim por tim-tim. Está aqui. A Wikipédia traz um relato bem pormenorizado. Em italiano, aqui.

Ainda se ouve Ramona hoje em dia, mais em versão orquestral, tipo «música de elevador». A trilha sonora original do filme está no youtube, aqui. (*)

Não acredito muito em bruxaria, mas devo confessar que, até hoje, prefiro não cantarolar Ramona. Evitar acidentes é dever de todos.

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(*) O escrevinhador não se responsabiliza por consequências infaustas que possam advir do fato de ouvir a canção. Antecipadamente, agradeço pela compreensão.

Angola, pobre mas vigilante

José Horta Manzano

Angola? O que é que você sabe de Angola? Muito pouco, não é? O que todos aprendemos na escola é que o país se formou ao longo dos quase cinco séculos que durou a colonização portuguesa.

Fique também sabendo que o comandante luso Diogo Cão aportou por aquelas bandas alguns anos antes do desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro.

Claro está que o país não existia ainda como entidade política naqueles tempos recuados. Como do lado de cá do Atlântico, os novos chegados criaram entrepostos em diversos pontos do litoral, estabelecimentos esses que não necessariamente mantinham contacto entre si. Não havia telefones nem GPS naquele tempo.

Com o passar dos anos, as terras africanas ― assim como as americanas ― atraíram aventureiros de outras origens. Ingleses, franceses, holandeses, espanhóis, muitos se interessaram pela exploração das riquezas.

A costa africana que, conforme a Bula Intercaetera e o Tratado de Tordesilhas, deveria ser reservada à exploração portuguesa foi-se esfacelando. Os proprietários que o decreto papal havia designado como «legítimos» não eram numerica nem militarmente suficientes para garantir a posse do longuíssimo litoral do continente.

Os portugueses se saíram bem na defesa de seus estabelecimentos americanos. Já na costa ocidental da África, conseguiram segurar somente o arquipélago de Cabo Verde e mais alguns minúsculos territórios esparsos. Preferiram concentrar suas forças para assegurar a posse da então chamada África Ocidental Portuguesa, embrião da atual Angola.

A Revolução dos Cravos, que sacudiu Portugal em 1974, provocou súbita e desastrada descolonização. Tudo o que restava do império ultramarino foi abandonado. Angola mergulhou num longo período de caos e de lutas cujas cicatrizes ainda estão hoje sendo tratadas.

Angola

Angola

Apesar da pobreza em que vive grande parte da população, os dirigentes do país vêm mostrando, estes últimos anos, uma clarividência que gostaríamos de enxergar nos mandachuvas de nosso ultraorganizado Brasil.

Faz já uns 20 ou 30 anos que seitas neopentecostais ditas «evangélicas» proliferam em terra tupiniquim. Em nome da liberdade de culto, inscrita na Constituição de nossa República Federativa, o governo central tem dedicado pouca atenção à espantosa e desordenada multiplicação desses agrupamentos.

É importante que liberdade de consciência seja garantida a cada cidadão. Sem isso, estaríamos escorregando para uma ditadura. No entanto, há princípios que primam sobre outros. A obrigação maior de um Estado civilizado é proteger os mais frágeis entre seus cidadãos. As variadas bolsas têm, mal e mal, dado conta das necessidades materiais básicas do brasileiro.

No entanto, a proteção há de ser mais ampla. Não basta aplacar a fome dos que não têm como prover a seu próprio sustento. Há quantidade de brasileiros que, embora consigam garantir seu prato de comida sem ter de esperar pela esmola de quem quer que seja, não dispõem de estrutura intelectual suficientemente sólida para resistir a charlatanismos vários.

Ao mesmo governo que mitiga a fome cabe também defender a população contra flagrantes abusos que vêm sendo cometidos. O País está cheio de espertinhos que se valem da ingenuidade de pessoas simples. Muitos andam enchendo os bolsos à custa da credulidade alheia. Além de ser coisa muito feia, abusar da fragilidade de outrem é crime. Mas vem passando impune no Brasil de todos.

Pela pluma de Patrícia Campos Mello, a Folha de São Paulo nos informa que os governantes de Angola ― o pobre e sofrido país africano ― têm tomado iniciativas para proteger sua população mais frágil contra o que consideram «propaganda enganosa».

Recomendo a leitura da reportagem. É edificante. Enquanto a ex-colônia portuguesa, machucada e cansada de guerra, se preocupa com a proteção de seus cidadãos mais fracos, a Câmara Federal brasileira escolheu um pastor neopentecostal racista e homófobo para comandar sua Comissão de Direitos Humanos. De direitos humanos!

E pensar que os «emergentes» somos nós…

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Desconcertante

José Horta Manzano

Para quem vive no exterior, tem períodos em que a leitura dos jornais brasileiros é desencorajante. Fica a impressão de que o País está se desmanchando, se liquefazendo.

Estes dias, ficamos sabendo que, para induzir os brasileiros a acreditarem no sucesso de certos programas educacionais, autoridades federais encarregadas da Instrução Pública andam maquiando estatísticas de bolsistas custeados com dinheiro público. Parece que alguns são contados duas vezes. Pode até lembrar certos municípios onde o número de eleitores é maior do que a população. Só que aqui estamos falando de autoridades encarregadas da ― vá lá o termo ― Educação!

Crédito: Silvana Saboia

Crédito: Silvana Saboia

Outro exemplo vindo da bem-intencionada elite que ora ocupa o andar de cima nos foi dado pelos ínclitos deputados federais componentes da Comissão de Constituição e Justiça. A confraria ― que conta, entre outras sumidades, com José Genoino e João Paulo Cunha, ambos condenados no processo do mensalão ― aceitou que seja posta em pauta uma proposta de emenda constitucional pra lá de acintosa. Obra de um obscuro deputado, visa a desequilibrar a isonomia entre os poderes da República. Na prática, retira do STF a atribuição de Corte Constitucional, para deixar ao Congresso a palavra final.

Outra manchete apavorante informa que assaltantes atearam fogo a uma dentista cujo único crime foi não dispor, naquele momento, de muito dinheiro na bolsa. Em matéria de ferocidade, estamos superando lutas tribais sírias, afegãs e africanas.

Um dos blogues alojados no Estadão nos conta que, no segundo semestre de 2012, o governo brasileiro foi o que mais pedidos fez ao google para que retirasse conteúdo da rede. Nem a Venezuela, nem Cuba, nem a China, nem mesmo a Rússia ousaram tanto quanto nossos mandachuvas tupiniquins. Devem ter mais medo que os outros todos. É por aí que começa o “controle social da mídia”.

Bom, acho que, para um sábado, é suficiente. Vamos parar por aqui, que evitar depressão é dever de todos.

Mas fica a frustrante impressão de que, no Brasil, os marcadores da civilização estão desregulados. Os parâmetros andam afrouxados, e os limites, incertos.

Com certeza é só impressão minha.

Reeleição

José Horta Manzano

Desde que o mundo é mundo, os que têm acesso a uma posição de mando não costumam desgostar da situação. Alguns poucos, mais desprendidos, não oferecem grande resistência quando soa a hora de descer do trono. A maioria, no entanto, não desencarna tão facilmente.

Jogadas limpas, jogadas sujas, jogadas de bastidores, tudo vale para se segurar. «É dando que se recebe», máxima reservada até faz pouco tempo aos pios frades franciscanos, vem-se impondo como princípio basilar e desabrido da política nacional.

Ainda recentemente nossa presidente deixou de lado todo pudor para afirmar-se capaz de «fazer o diabo» a fim de reeleger-se. Que ninguém duvide. Discursos antecipados, casuísmos, dossiês, tudo vale. Ganhará a guerra aquele que tiver maior habilidade na hora de puxar o tapete e derrubar, assim, o adversário.

Tudo isso faz parte da natureza humana, não é invenção recente. O que tem mudado de uns dez anos para cá não é o fundo, mas a forma. As lutas que, dado seu caráter nebuloso, se chamavam justamente intestinas tornaram-se verdadeiras batalhas campais. Tudo é feito às claras, à vista de todos, desavergonhadamente. Já que ninguém parece se ofuscar, por que esconder, não é mesmo? E alguns ainda ousam chamar esse esparramo de transparência…

Urna 2

O senador Aécio Neves, dado como candidato à candidatura à presidência da República, acaba de lançar uma ideia requentada. Propõe a extinção da possibilidade de reeleição de ocupantes de cargos executivos. Para compensar, o mandato atual de 4 anos seria espichado. Presidente, governadores e prefeitos passariam a ser eleitos para um período de 5 anos.

Não é propriamente uma ideia revolucionária. O instituto da reeleição é recente no Brasil. Cento e vinte anos atrás, os pais da República, num rasgo de visão, já tinham intuído o que se confirmaria mais de um século depois. Temiam que os futuros eleitos se valessem, para reeleger-se, do poder que lhes conferia a máquina pública. Daí terem optado por não permitir a reeleição.

Ressuscitar a visão antiga não me parece, em princípio, má ideia. Estes últimos anos, nosso País tem pendido perigosamente para esquemas populistas. Não nos ajuda, tampouco, a proximidade geográfica e ideológica com nações sul-americanas cujos mandachuvas não pedem outra coisa senão agarrar-se indefinidamente a seus cargos.

A experiência destes últimos tempos tende a provar que o tempo de permanência no governo não melhora a qualidade de seus titulares. O bom-senso manda trocar de chefe com maior frequência. No entanto, visto o balcão de negócios em que se transformou o Congresso, a ideia do senador não tem lá muita chance de prosperar. É pena.

Não acredito que a proibição da reeleição resolvesse, como por encanto, todos os problemas nacionais. Mas já seria um bom começo. Pelo menos, presidentes estariam dispensados de «fazer o diabo» para garantir permanência no cargo.

O que é bom dura pouco

Interligne vertical 2José Horta Manzano

Por que será que a grande ceifadeira chega tão cedo para levar gente tão promissora? «Bicho ruim não morre», costuma-se dizer. Na verdade, todo bicho, bom ou ruim, acaba morrendo, que não tem jeito de escapar. Mas tem muita gente fina que se vai cedo demais e nos deixa um gosto de quero mais.

Frédéric Chopin foi-se aos 39 anos. Wolfgang Amadeus Mozart nos deixou aos 35. Noel Rosa foi colhido com 27 aninhos. Castro Alves partiu aos 24 e Gonçalves Dias aos 41. Cacilda Becker, Edith Piaf e Lilian Lemmertz não chegaram a completar meio século ― antes disso foram chamadas de volta. Elis Regina, precoce em tudo o que fez, disse adeus antes dos 37.

Se há alguém que fez falta foi o carioca Sergio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta. Espírito brilhante, revelou humor fino e cáustico desde que escreveu sua primeira crônica. Tampouco ele chegou a completar meio século. Aos 45, seu coração parou de bater.

Mas a curta carreira foi suficientemente densa para nos deixar pérolas valiosas. Muita gente já deve ter ouvido falar em febeapá, termo que ainda hoje, quase 50 anos depois de seu desaparecimento, ainda é citado aqui e ali. Era o título de sua obra maior: Festival de Besteira que Assola o País. Tornou-se palavra comum. Uma suprema homenagem, espontânea e justa, ao inteligente escritor. Transcrevo abaixo uma de suas crônicas. Dispensa maiores explicações. A simples leitura destas linhas deixa perceber a joia que o Brasil perdeu num triste 30 de setembro de 1968.

Interligne 3a

Com a ajuda de Deus
Stanislaw Ponte Preta

Tia Zulmira, pesquisadora do nosso folclore, descobre mais um conto anônimo. Conforme os senhores estão fartos de saber, quando uma coisa não tem dono, passa a ser do tal de folclore. Assim é com este conto muito interessante que a sábia macróbia colheu alhures.

Diz que era um lugar de terra seca e desgraçada, mas um matuto perseverante um dia conseguiu comprar um terreninho e começou a trabalhar nele e, como não existe terra bem tratada que deixe quem a tratou bem na mão, o matuto acabou dono da plantação mais bonita do lugar.

Foi quando chegou o padre. O padre chegou, olhou para aquele verde repousante e perguntou quem conseguira aquilo. O matuto explicou que fora ele, com muita luta e muito suor.

— E a ajuda de Deus — emendou o sacerdote.

O matuto concordou. Disse que no começo era de desanimar, mas deu um duro desgraçado, capinou, arou, adubou e limpou todas as pragas locais.

— E com a ajuda de Deus — frisou o padre.

O matuto fez que sim com a cabeça. Plantou milho, plantou legumes, passou noites inteiras regando tudo com cuidado e a plantação floresceu que era uma beleza. O padre já ia dizer que fora com a ajuda de Deus, quando o matuto acrescentou:

— Mas deu gafanhoto por aqui e comeu tudo.

O matuto ficou esperando que o padre dissesse que deu gafanhoto com a ajuda de Deus, mas o padre ficou calado. Então o matuto prosseguiu. Disse que não esmorecera. Replantara tudo, regara de novo, cuidara da terra como de um filho querido e o resultado estava ali, naquela verdejante plantação.

— Com a ajuda de Deus — voltou a afirmar o padre.

Aí o matuto achou chato e acrescentou:

— Sim, com a ajuda de Deus. Mas antes, quando Ele fazia tudo sozinho, o senhor precisava ver, seu padre. Esta terra não valia nada.Interligne 3aFonte: Ponte Preta, Stanislaw. O melhor de Stanislaw Ponte Preta: crônicas escolhidas; seleção e organização de Valdemar Cavalcanti. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. 85.

Casamento gay

José Horta Manzano

Quando a infamante qualificação de filho ilegítimo ou filho natural foi oficialmente abolida no Brasil, dez anos atrás, já fazia muito tempo que, na prática, os documentos de identidade não mais ostentavam essa especificação discriminatória. Até os anos 1930, 1940, os formulários de registro de nascimento brasileiros traziam uma linha pré-impressa com os dizeres «filho(a) _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ de (…)». O espaço tracejado servia para informar se o pequerrucho era nascido de pais casados ou não.

Havia os legítimos, filhos de pais casados. E havia os ilegítimos, naturais ou ― se o escrivão estivesse de mau humor ― bastardos. Os tempos mudaram. Hoje em dia, mostrar esse detalhe não faria o menor sentido.

Neste 23 de abril, o parlamento francês aprovou, em votação definitiva, a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Até aí, morreu o Neves, como diria o outro. Não há aí nenhum pioneirismo. Outros 13 países já haviam seguido o mesmo caminho antes. Por que, então, a França tem sido palco de tantas manifestações, passeatas, discursos inflamados, uma gritaria que não acaba mais?Drapeau arc-en-ciel

A razão não está no cerne da nova lei, que, de qualquer maneira, reflete os tempos atuais. Duas pessoas que decidam compartilhar seu destino, quer sejam do mesmo sexo ou não, têm direito a serem tratadas e consideradas como um casal. Um par, se preferirem.

Herança, direito de visita em caso de internação hospitalar, situação perante o fisco, pensão alimentar em caso de divórcio são agora, aos olhos da lei, as mesmas para todos os casais. Sejam eles homo- ou heterossexuais. Em caso de falecimento do parceiro, problema espinhoso em todos os sentidos, as consequências e os trâmites post mortem passam a ser os mesmos para todos os casais.

Parece justo. Até aí, poucos se sentirão chocados com a nova regulamentação. O problema maior, aquele que agitou (e continua agitando) multidões, é um dos dispositivos da lei. Foi concedido aos casais de mesmo sexo o direito a adotar. Uma adoção plena transmite à criança o sobrenome do pai. E agora, como é que fica?

Joãozinho carregará pelo resto da vida documentos em que aparece como filho de Pedro e de Paulo, ou de Maria e de Marisa. Qual dos pais (ou das mães) legará o sobrenome ao rebento? Sem dúvida, ser filho de ladrão, de assassino, de traficante é bem pior, concordo. Assim mesmo, convenhamos, ser oficialmente filho de dois pais ou de duas mães não deve ser situação fácil para um guri frágil e imaturo.

Os franceses que, por um sim ou por um não, entram em greve e fazem passeata, não deixaram passar em branco a oportunidade. O país dividiu-se entre os que são a favor da nova lei e os que se opõem a ela. Para uns, já estava passando da hora de encarar a modernidade e desempoeirar o arsenal judiciário. Para outros, é cedo demais para assumir o risco de expor crianças a situações potencialmente vexatórias.

Mas há que manter a cuca fresca e encarar essas mudanças filosoficamente, com uma certa distância. Se não fosse hoje, seria amanhã, no ano que vem ou daqui a poucos anos. Portanto, por que não já?

Assim como filhos «ilegítimos» já não assustam ninguém, alguns anos bastarão para que a poeira baixe. Filhos de dois homens ou de duas mulheres farão parte da paisagem.

Daqui a algumas dezenas de anos, algum articulista ainda há de mencionar o rebuliço que a oficialização do casamento gay causou na França de 2013. Os filhos de nossos netos dificilmente entenderão o porquê de tanto barulho.

De vento

José Horta Manzano

Quais são as grandes firmas alemãs? Qualquer um será capaz de recitar uma meia dúzia de nomes, de Mercedes-Benz a Bayer, passando por Hoechst, Lufthansa & companhia. E as grandes da França, quais são? Sem dúvida, Renault, Peugeot, L’Oréal e Vuitton estão entre elas. E na Itália, quem são as grandes? E nos Estados Unidos? E no Japão? Todos conseguiremos desfiar, sem dificuldade, uns 10 ou 20 grandes nomes.

Agora vamos mudar de registro. Vamos parar, por um momento, de fazer perguntas retóricas. Façamos uma pergunta séria. Alguém acredita que a grandeza e a riqueza desses países se baseia nessas 10 ou 20 firmas gigantescas? Se acredita, está iludido.Construção 2

Sem menosprezar a importância das grandes firmas, a força maior da França, da Alemanha, da Itália e dos outros países altamente desenvolvidos não reside unicamente nessas marcas mundialmente conhecidas. Longe disso.

O combustível que move as economias mais avançadas ― sem prescindir de conglomerados gigantescos, evidentemente ― é representado pela pequenas e médias empresas. A Câmara de Comércio Alemã nos informa que, só na região de São Paulo, estão implantadas mais de 800 firmas alemãs. Oitocentas! De origem francesa, são quase 500. Para completar o quadro, temos milhares de sociedades de origem americana, centenas de japonesas, italianas, suecas, espanholas, canadenses e até portuguesas.

Até aqui, só falamos de empresas que, mesmo sem ser enormes, têm cacife para se estabelecer no exterior. Se adicionarmos as menores, as que (ainda) não abriram sucursais no Brasil, a calculadora periga explodir. São milhares e milhares de Firmen, de sociétés, de ditte, de compañias, de bolagen. São elas que marcam o compasso e conferem dinamismo e diversidade à economia de seus respectivos países.

Crédito: Irina Tischenko

Crédito: Irina Tischenko

O Estadão de 22 de abril traz uma excelente reportagem sobre o BNDES, assinada por três colaboradores. E incrementada com uma entrevista com Luciano Coutinho, presidente do banco.

O texto deixa bem claras as diretivas que foram dadas àquela instituição seis anos atrás, durante a gestão do então presidente da República. A meta era fazer o que necessário fosse para elevar uma meia dúzia de empresas nacionais à categoria de «campeãs».

Se considerarmos que nossos mandachuvas vêm dando maior importância a ações de marketing político do que a diretivas de longo prazo, faz sentido. A embalagem tornou-se mais importante que o conteúdo. Nossos ingênuos dirigentes acreditaram que, se pudéssemos mostrar ao mundo algumas empresas «campeãs», a cortina de fumaça encobriria as mazelas que se ocultam por detrás.

Na mesma linha de pensamento, o governo brasileiro fez das tripas coração para conseguir acolher os Jogos Olímpicos e a fase final da Copa do Mundo. Se esses grandiosos eventos pudessem coincidir com a eclosão de firmas brasileiras gigantescas, o milagre da transfiguração imediata estaria completo. Daríamos ao mundo a impressão de um País rico, dinâmico, feliz, digno de admiração.Construção 1

Na entrevista concedida ao Estadão, o presidente do BNDES reconhece ― ainda que com meias palavras ― que o potencial de nossas maiores empresas ainda não lhes permite galgar os degraus da fama planetária. Para quem tiver preguiça de ler a entrevista inteira, recomendo dar uma olhada na 13a. pergunta feita pelos repórteres. E, naturalmente, na resposta do entrevistado.

Quanto aos JOs e à Copa-14, continuamos torcendo para que os que aqui vierem não se assustem demais com a realidade que encontrarão. Mas não se pode garantir. Milagre, ninguém faz.

E pensar que, enquanto os amigos do rei podem contar com o apoio e os préstimos de nosso principal banco de fomento, tantos pequenos empresários brasileiros sofrem o inferno de uma burocracia sufocante e de nossos impostos escorchantes.

Dá muita pena ver tanto potencial desperdiçado. Não me cansarei nunca de repetir que, para construir um edifício sólido, há que fincar alicerces robustos. Não se começa pelo telhado.

Saco vazio não para em pé. Não se vive de vento nem de aparência.

Emergentes

José Horta Manzano

A raiz merg, que aparece no verbo latino mergĕre, não foi muito produtiva. Deixou prole escassa, hoje presente em meia dúzia de palavras em cada língua românica. Imergir, emergir e submergir são os membros mais ilustres da família. Seus derivados entram também na lista: imersão, submersível, emergência.

O étimo deixou também uma descendência de ares menos eruditos. São palavras que, com um jeitão mais pobre, caíram na boca do povo. Mergulho e seus parentes mergulhar e mergulhador estão entre elas. Mergulhão é nome usado para designar uma boa dezena de famílias de aves, desde o cormorão europeu até o biguá amazônico.

Esses pássaros têm todos em comum o fato de serem predadores aquáticos.Voando em alta velocidade, quase na vertical em direção à superfície da água, conseguem mergulhar até alguns metros de profundidade e, assim, capturar o peixe ou o crustáceo que lhe servirá de almoço.

Imergir e submergir indicam movimento descendente. Quem ou aquele que sai da água emerge, volta à superfície. Em princípio, para emergir, é preciso haver estado submerso.Imersão

Até não muitas décadas atrás, o planeta se dividia em alguns poucos países desenvolvidos e uma multidão de subdesenvolvidos. Era assim que se usava dizer. Mas isso foi num tempo em que se davam às coisas e aos fatos seus nomes verdadeiros, sem ter de recorrer a eufemismos «politicamente corretos». Saber que seu país natal era subdesenvolvido não ofendia ninguém.

De uns tempos para cá, subdesenvolvimento virou tabu. Ai de quem classificar assim um país! Lá pelos anos 80, os subdesenvolvidos foram promovidos a uma categoria superior, a de «países em desenvolvimento». A denominação mudou, mas chineses, indianos, indonésios e brasileiros continuavam a viver as mesmas agruras de antes.

Desde que o século XXI despontou, os grandes «países em desenvolvimento» começaram a sentir um certo desconforto ao serem classificados na mesma categoria de territórios miseráveis. Forjou-se então uma classificação intermediária. Apareceram os «países emergentes».

Segundo os critérios geralmente aceitos, são chamados emergentes os países que apresentam um forte crescimento do PIB, um nível relativamente elevado de industrialização e de exportação de produtos industriais, uma taxa importante de abertura ao exterior e um mercado interior em expansão. Muito poucos são os que correspondem a essas quatro condições. Em rigor, somente a China e, alguns degraus abaixo, a Índia preenchem os requisitos. Ninguém mais.

Nosso País chegou a registrar excepcional e constante crescimento do PIB entre 1960 e 1980. Depois disso, hesitou. Hoje, praticamente estacionou.

A industrialização brasileira cresceu impressionantemente a partir dos anos 1940. Continuou, sem parar, até o começo dos anos 1990. Hoje tentamos segurar, mal e mal, o que sobrou. Nossa luta atual se restringe a estancar ou, pelo menos, limitar a desindustrialização.

A abertura ao exterior nunca foi nosso forte. Importações e exportações têm sido historicamente entravadas por monoculturas, chicanas burocráticas, infraestrutura cronicamente deplorável.

Sobra-nos um mercado interior em expansão. Sim, é verdade. Mas é um mercado ironicamente ávido por produtos industriais ― e até agrícolas! ― vindos do exterior.

Há solução? Certamente. Só para a morte não há remédio. Mas os problemas acumulados são tantos e a vontade de resolvê-los tão escassa que, a curto prazo, não há grande esperança.

Por enquanto, o mais cômodo seria criar uma nova categoria de países. Na base da pirâmide, teríamos os que estão «em desenvolvimento» (leia-se os miseráveis). No meio, continuariam os «emergentes», aqueles que estão já mais pra lá que pra cá, quase chegando. No topo, como de costume, os «desenvolvidos».

E o Brasil como fica? Ora, que se invente uma categoria intermediária entre pobres e remediados. Poderemos chamá-la, por exemplo, «países em via de emersão». Com isso, voltaremos a nos ufanar de nossas conquistas. Sem ficar com a consciência pesada.

Em terra de cego

José Horta Manzano

Em terra de cego, quem tem um olho é rei. É o que se costuma dizer.Peruca empoada 2
Mas os redatores do STF andam exagerando na dose.
Para eles, ter um olho não basta.
Não dispensam um pincenê e uma peruca empoada.

A mestra Dad Squarisi
― escritora, especialista em língua portuguesa,
editorialista e editora de opinião do Correio Braziliense ―
descreveu, em linguagem bem-humorada,
a impressão que lhe causaram
os recém-publicados acórdãos do mensalão.

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DE MAL COM A LÍNGUA

Dad Squarisi

Qual o texto mais aguardado por esta alegre Pindorama? Ganha um bombom Godiva quem respondeu a ementa dos acórdãos do mensalão. Ufa! Foram quatro meses de espera. Agora, finalmente, a obra veio à luz. Advogados, políticos, estudantes, réus, corréus, familiares, amigos, inimigos, indiferentes congestionaram o site do Supremo. Mas não desistiram. Pacientes, chegaram lá. Ao pôr os olhos no documento, ops!

Baita surpresa os espreitava. As 14 páginas parecem floresta sem clareiras. Mas percorrê-las é preciso. Vá lá. Tropeços em rimas, vírgulas, redundâncias, maiúsculas & cia. descuidada não arrefecem a avidez da leitura. O interesse no conteúdo abre trilhas. Ilumina desvios. Permite ignorar os obstáculos. Mas nem todos. Alguns freiam os pés e dificultam a marcha.

O tamanhão dos períodos impõe idas e vindas. Testes sobre a memória demonstram: o leitor retém bem frases com 150 toques. Com 200, guarda a segunda metade pior que a primeira. Com 250 ou mais, grande parte do enunciado se perde. Valha-nos, Padim Ciço. Períodos com mais de mil caracteres são regra, não exceção. Todos ostentam uma marca — o corte de relações com o ponto final.

Eis uma provinha de 296 dos 1.352 toques de um parágrafo: “Prosseguindo no julgamento quanto ao item III da denúncia, após o voto da Ministra Rosa Weber acompanhando parcialmente o Relator, divergindo somente em relação ao réu João Paulo Cunha para absolvê-lo do delito de peculato decorrente da contratação da empresa IFT – Idéias, Fatos e Texto Ltda., deixando a apreciação dos delitos de lavagem de dinheiro…” Quer chegar ao fim? Vá ao site do STF. Antes, previna-se. Peça socorro à legibilidade.

Passagens confundem. Ao passar por elas, o pobre leitor não sabe quem faz o quê: “O presidente indeferiu a suscitação de questão de ordem pelo advogado Alberto Zacharias Toron, ressalvando que poderá fazê-la por ocasião de sua sustentação oral”. Valha-nos, Deus! Quem é mesmo que vai fazê-la — o presidente ou o advogado? Com a palavra, a ambiguidade.

Qual é a da reforma ortográfica? Até 2016 convivem as duas grafias. Pode-se adotar uma ou outra. Só não vale misturar as estações. É o que fazem os acórdãos. Ora omitem o trema (cinquenta), ora o conservam (cinqüenta). Ora omitem o acento diferencial (polo), ora o ressuscitam (pólo). Ora atualizam o hífen (coautor, corréu), ora voltam ao passado (co-autor, co-réu). Cadê a coerência? O gato comeu.

E fez mais estragos. Nem o pronome escapou. O indefinido cada tem alergia à solidão. Pra evitar coceiras e brotoejas, anda sempre acompanhado. O texto às vezes respeita a fragilidade do dissílabo (cada um dos agentes), às vezes pisa-a sem piedade (multa no valor de 10 salários mínimos cada). Mais: a colocação do átono não se decide. Ou fica de olho na atração. Ou a ignora com desdém. O esta e o essa? A dupla compõe o samba do demonstrativo doido.

O ex aproveita o ritmo e dança. Fora do baile, o prefixo dá um recado claro. Diz que alguém foi, mas deixou de ser. O ex-marido dividiu a cama com a mulher, mas deixou de fazê-lo. O ex-ministro usou crachá de excelência, mas o devolveu. Enquanto foram marido e ministro, não eram ex. É o caso de João Paulo Cunha. Ele cometeu os malfeitos quando presidia a Câmara dos Deputados.

Eis o xis da questão. Os acórdãos o cassaram em pleno exercício do cargo: “Vinculação entre o pagamento da vantagem e os atos de ofício de competência do ex-presidente da Câmara, cuja prática os sócios da agência pretenderam influenciar”. Que baguuuuuuuunça. Mesmo sem poder, o homem fez e aconteceu. É mágica? Não. É cochilo da revisão.

República Federativa

José Horta Manzano

Você sabia?

Federal ― está aí um termo de uso corrente no Brasil. Pacto federal, Polícia Federal, Tribunal Federal, Câmara Federal. Alguns filhotes também estão na língua do dia a dia: federação do comércio, federação de esportes, federação estudantil. Mas de onde, diabos, vem essa palavra?

Já no sânscrito, etimólogos identificam a raiz bandh, com significação de ligar. O radical chegou ao grego antigo sob a forma feithê e, daí, passou ao latim como fides. Nessa altura já havia assumido o sentido de fé, confiança.

Com o passar dos séculos, a família foi crescendo e se multiplicando, como mandam as Escrituras. Mas o significado pouco evoluiu. Continua expressando a fé, a confiança entre pessoas ou conjuntos de pessoas. Uma federação é um grupo em que uns confiam nos outros e todos miram a um objetivo comum.

Confiar, desafiar, perfídia, confidência, fiança, fiador, fiel, fidelidade são da mesma família. Quem vende fiado, vende na confiança.

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A Confederação Helvética ― nome pomposo da Suíça ― divide-se em cantões, correto? Não, caros leitores, não é bem assim. A Confederação Suíça não se divide em cantões, mas é formada por eles. Como assim, que diferença faz?

Diferentemente da idéia que temos no Brasil, segundo a qual o País se divide em unidades mais ou menos estáveis, a Confederação Suíça foi formada pela agregação paulatina de novos estados. As unidades já existiam antes de se juntarem ao grupo.

Tudo começou mais de 700 anos atrás, quando três pequenos territórios se uniram no intuito de defender-se mutuamente de predadores externos. Uma espécie de «unidos, venceremos», ideia avançada para a época. Aconteceu na Idade Média, exatamente em 1291, reza a História.

Suisse

Suíça – Confederação Helvética

A partir de então, vendo que a união podia realmente fazer a força, outros pequenos territórios foram, pouco a pouco, solicitando sua adesão à federação. Que tenha sido em razão de perseguição religiosa ou por algum outro interesse comercial ou estratégico, outras pequenas províncias foram aderindo ao agrupamento inicial.

Não aconteceu da noite para o dia. Mais de 500 anos separam o pacto entre os três cantões e os últimos a se juntarem ao grupo. Um detalhe interessante: em listagens e estatísticas suíças oficiais, os cantões não aparecem em ordem alfabética. São sistematicamente relacionados na ordem de entrada na Confederação.

Como em toda família que se preze, desavenças também ocorreram por aqui. Em alguns casos, razões de ordem religiosa ou linguística fizeram que cantões se desentendessem e acabassem se subdividindo. Mas nem por isso abandonaram a federação.

Jamais aconteceu de a autoridade central decretar a subdivisão de cantões. A iniciativa sempre partiu do nível local para ser, em última instância, referendada pelos outros membros da confederação.

A última refrega é relativamente recente. O Cantão de Berna, dono de grande território ― para os padrões suíços, naturalmente ― conta com população majoritariamente de língua alemã e com uma minoria de francofalantes. Os de fala francesa, que, ainda por cima, são católicos, diferentemente da maioria protestante, reivindicaram durante séculos sua autonomia.

A coisa foi sendo cozinhada em água morna até que ferveu no século XX. A região chegou até a conhecer espantosos atentados terroristas! Bem, não há que imaginar homens-bomba explodindo em plena multidão, nada disso. Um ou outro artefato arrebentou alguma estátua, na calada da noite, sem que ninguém fosse atingido.

Nos anos 70, Berna finalmente concordou em organizar um plebiscito nos distritos de fala francesa para permitir que a população se pronunciasse. Em 1974, a maioria dos distritos se pronunciou pela separação. Outros preferiram continuar a fazer parte do Cantão de Berna.

Por sorte, os distritos que votaram pela autonomia formavam um território contínuo. Como havia sido combinado, ganharam o direito a formar um novo cantão. Faltava ainda ver se os cidadãos da Confederação aceitavam o novo membro. O povo se pronunciou favoravelmente. Ufa! Em 1978 nasceu, assim, o último cantão suíço. Chama-se Jura.

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No Brasil, fala-se frequentemente em subdividir estados. Aliás, a teoria já foi posta em prática algumas vezes no século passado. Taí uma visão enviesada da ideia de federação. Criar novos estados sem que haja uma real demanda da população contraria o figurino.

Faz ano e meio, escapamos por pouco de ver o Pará fragmentado em unidades menores. Numa república federativa que se preze, tentativas assim não fazem sentido. O anseio pela independência deve vir de baixo para cima. Não é o que acontece no Brasil.

A fé e a confiança têm de nortear decisões graves como essa. Uma federeção não é criação artificial decidida por um poder central. Pelo contrário, é um agrupamento voluntário de unidades autônomas ou semiautônomas. Tudo isso não foi feito para satisfazer a interesses particulares deste ou daquele clã.

Há uma alternativa: é rasgar a Constituição atual, votar uma nova, eliminar a palavra federativa do nome da República e anular a autonomia dos Estados. Teremos então, como a França e tantos outros países, uma república unitária, na qual o poder emana unicamente da autoridade central. Aí, sim, estaremos entendidos.

Não é proibido, evidentemente. Mas não acredito que seja o anseio maior dos brasileiros.

A imagem do Brasil

José Horta Manzano

A imagem do Brasil no exterior vai sofrer um baque estes próximos anos.

Os turistas e os jornalistas que visitarão o País por ocasião da Copa das Confederações, da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos não são extraterrestres nem super-homens. São gente como você e eu.

Serão milhares de pessoas a constatar in loco o descaso do povo e de suas autoridades, a feiura e a ineficiência de nossas instalações, as desigualdades sociais escancaradas pelos helicópteros particulares cruzando ares poluídos por sobre pedintes maltrapilhos. Verão centros comerciais onde a polícia impede a entrada de bandidos. Verão também favelas onde bandidos impedem a entrada da polícia.

São coisas às quais os brasileiros já não prestam atenção, acostumados que estão a vê-las todos os dias. Os turistas se assustarão. Os jornalistas redigirão suas reportagens com os olhos impregnados por imagens que, a eles, não hão de escapar.Ponte quebrada

Um edifício resistente tem de ter estruturas sólidas. Nossa modernidade é de aparência, não tem fundamento. A Instrução Pública, que começou a perder qualidade nos anos 70, chegou hoje a um estado de descalabro. Escolas ditas superiores continuam a conferir diplomas a semiletrados.

Políticos populistas e despreparados dirigem o circo. As medidas tomadas não visam necessariamente ao bem-estar público. Os mandachuvas valem-se continuadamente de molecagens, de artimanhas e de “geniais” jogadas de marketing com o objetivo de satisfazer sua vaidade e seus interesses pessoais. O povo? Ora, o povo…

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A Folha de São Paulo traz um informe que ilustra perfeitamente o desmazelo que, de tão habituados, já não enxergamos. Que não se nutram falsas esperanças. Nada disso passará despercebido a olhos estrangeiros.

A reportagem traz imagens da passarela que serve ao Aeroporto de Congonhas, um dos mais movimentados do País. É a ponte que, simbolicamente, liga a mais rica metrópole brasileira ao resto do Brasil e ao mundo. Serve de cartão de visita para quem chega à megalópole tropical. Vale a pena dar uma conferida. Aqui e aqui.

A série de fotos mostra o viaduto, já em estado de quase ruina em 2004. Nove anos depois, novas fotos provam que tudo pode piorar. Até o que já estava muito mal.

Resta-nos invocar São Cristóvão, o patrono dos viajantes, para que, ao desabar, a estrutura não atinja nenhum vivente.

L’Etat c’est moi!

José Horta Manzano

Alguns dias atrás, o ultramidiático ministro Barbosa, do STF, fez mais um de seus pronunciamentos polêmicos. Demonstrou desagrado com o conluio que, segundo ele, enreda advogados e juízes.

Foi um deus nos acuda. Advogados e juízes, naturalmente, se ensombraram. Mas não só eles: qualquer cidadão minimamente recatado se insurgiria contra a fala do ministro. Não tanto pelo fundo, mas pela forma. Conluio, a palavra utilizada, traz uma carga pejorativa pra lá de pesada. É termo mais apropriado para descrever acordo entre bandidos do que acerto entre magistrados.

Mas há que ser condescendente. Quem nunca pronunciou uma palavra torta que atire a primeira pedra. Vamos ignorar o termo empregado, demasiado forte. Façamos de conta que ele tenha apontado indícios de conivência entre juízes e advogados. Fica menos excessivo. Mas… será verdade?

.:oOo:.

Tivesse sido uma declaração vazia, fruto de um momento de mau humor, a fala de Joaquim Barbosa já teria sido esquecida. Acontece que, na edição online deste 17 de abril, o Estadão nos brinda com um artigo intrigante.

Segundo a reportagem, o ministro Fux ― também membro do Tribunal Supremo ― estaria dando sinais de envolvimento em atividades conflitantes. O artigo explica o caso tim-tim por tim-tim. Não vale a pena repetir a informação. Aqueles que porventura tenham perdido o capítulo podem atualizar-se aqui.

.:oOo:.

Os franceses têm um ditado, frequentemente citado: «on ne peut pas être juge et partie», não se pode ser ao mesmo tempo réu e juiz. Na França, a lei proíbe expressamente que eleitos pelo povo (deputados, senadores) ou nomeados de alto escalão (ministros, por exemplo) continuem a exercer o ofício de advogado. A antiga atividade tem de ser posta entre parênteses, pelo menos enquanto durar o novo cargo do cidadão. Há conflito de interesses evidente. Não convém deixar pairar a sombra de uma suspeita sobre essas personalidades.

No Brasil, curiosamente, essa colisão potencialmente explosiva parece não preocupar muita gente. Ministros e deputados mantêm sua banca de advocacia, como se fossem cidadãos comuns. Não são.

A partir do momento em que alguém se vê investido do poder, das regalias e, sobretudo, da responsabilidade de uma função pública, deixa ipso facto de ser um cidadão como qualquer outro. Ganha direito a foro especial, a mordomias, a salário garantido pelo erário. Por outro lado, não é normal que continue envolvido com as mesmas atividades do tempo em que não estava imbuído de poder.

Se o ministro da Pesca continuar a dar aulas particulares de grego bizantino, ninguém vai se incomodar. Se o ministro da Saúde continuar a acudir seus antigos pacientes, ninguém vai tampouco achar ruim. Mas que um ministro do STF ― a instância julgadora suprema ― guarde, de perto ou de longe, ligação com a defesa deste ou daquele réu é difícil de admitir.

Print Depicting the Execution Louis XVI in 1793

Luís XIV, dizem, considerava que o Estado era ele ― «l’Etat c’est moi!». Décadas mais tarde, Luís XVI, seu descendente, terminou na guilhotina.

Não acredito que o povo brasileiro, embora entorpecido pela magistral estratégia de marketing orquestrada pelo poder central, esteja pronto para uma revolução à francesa. Cabeças dificilmente rolarão.

Decapitado foi o bom-senso, e está fazendo muita falta. O simancol, como dizíamos antigamente, anda escasso.

Será que liberou de vez? Geral?

Memória ameaçada

José Horta Manzano

Dos edifícios antigos que subsistem nas cidades brasileiras, raros são os que têm mais de um século. Poucas casas foram levantadas no século XIX num País escassamente povoado à época. Assim mesmo, dentre as poucas que restam, boa parte anda abandonada ao deus-dará.

Interesses comerciais primam sobre considerações históricas. Um século atrás, as cidades eram bem menores e seu perímetro construído, restrito. As aglomerações cresceram vertiginosamente. As construções mais antigas se encontram hoje, naturalmente, em regiões valorizadas, em pleno centro das metrópoles.

Com a valorização das regiões centrais, o proprietário de construções antigas tende a vendê-las a promotores. Novos edifícios ― altos e modernos ― surgirão dos escombros da História destruída. Para o brasileiro padrão, mais vale um belo prédio moderno de 20 ou 30 andares, dotado de todas as comodidades da vida moderna, do que um velho casarão. Diferentemente do que ocorre na Europa, a velha construção aparece como mancha urbana, excrescência a ser eliminada quanto antes. Afinal, em Miami não há essas velharias.

Crédito: Germano Neto

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto
Crédito: Germano Neto

É triste, mas assim é. E assim seguimos. O grosso de nossa população não aprendeu a conceder o devido valor aos (poucos) testemunhos históricos que nos restam. E, como ninguém consegue dar o que não tem, os adultos de hoje estão desarmados para transmitir às novas gerações a formação e a informação que eles mesmos não receberam. Assim, nossos jovens não dispõem de fontes onde impregnar-se.

Um exemplo noticiado pela Folha de São Paulo de 16 de abril vem a calhar. A reportagem nos informa que a igreja de Nossa Senhora da Conceição, erguida em Ouro Preto na primeira metade do século XVIII (1724), foi obrigada a fechar suas portas ao público visto o risco de desabamento.

Há mais: o templo abriga o túmulo e o Museu do Aleijadinho, o maior escultor barroco que o Brasil conheceu. Cansado de esperar por providências das autoridades pagas para cuidar de nosso escasso patrimônio arquitetural, o próprio vigário tomou a iniciativa de interditar a igreja.Igreja N. Sra. Conceição 2

Há mais ainda: o edifício está tombado como patrimônio nacional desde 1949. Portanto, está há mais de 60 anos sob os cuidados do Poder Público.

A região das cidades históricas das Minas Gerais abriga o coração de nosso patrimônio arquitetônico. Ouro Preto, antiga capital da província, é sua expressão maior. Qualquer aluno de escola média sabe quem foi Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. O que nem todos sabem é que, do jeito que vão as coisas, nossos netos perigam apenas conhecer sua obra através de belas fotos, nada mais. Serão fotos digitais e, com um pouco de sorte, em alta resolução. Naturalmente.

Vamos esperar que o tempo, a umidade e os cupins se encarreguem da demolição? Não vai precisar esperar muito.

Um passo à frente, dois atrás

José Horta Manzano

Governar é prever. Não é concebível que nossas autoridades maiores, da presidência da República até a Câmara Municipal do mais humilde lugarejo, não façam outra coisa senão tapar buracos.

Na ausência de planos visando ao longo prazo, nosso governo é errático. Em todos os níveis. Vivemos uma rotina de anúncios espalhafatosos. Em vez de uma linha diretiva com começo, meio e fim, temos um pac hoje, um pec amanhã, quem sabe um pic ou um poc na semana que vem. Anúncios, aplausos, colheita de votos. E mais nada.

Do muito dinheiro sugado dos que suam camisa, algumas migalhas são distribuídas aqui e ali aos mais desafortunados. O resto ― o grosso da colheita ― não volta à população sob forma de melhoria. Para que servirá? Onde vai parar essa dinheirama toda? Sabe Deus.

Uma parte, sabemos todos, vai servir para autolouvação dos mandachuvas: placas, comícios, propaganda dita institucional, remuneração de marqueteiros, anúncios chamativos. O distinto público não tem direito a ser informado sobre o destino do resto da bolada.

E pensar que todos, absolutamente todos contribuem para abarrotar o baú. Até aqueles que, por ignorância ou descaso, não se dão conta disso. Os próprios beneficiários de bolsas várias colaboram para retribuir, sob forma de impostos indiretos. Cooperam para o enchimento da arca central. Cada quilo de carne de sol, de feijão, de farinha traz impostos embutidos.

Enquanto anúncios de pacs, pecs e pics proliferam, a estrutura que sustenta o edifício vai sendo minada. Atordoados pela propaganda oficial, poucos brasileiros se dão conta da desorganização crescente do País e da deterioração de sua imagem.

Os de fora, que não estão embalados pelas doces e vazias promessas oficiais, veem com mais clareza. O Brasil, que dez anos atrás tinha até sido incluído na lista dos emergentes, está aos poucos submergindo, voltando às profundezas de onde não soube aflorar.

Autódromo de Interlagos

Autódromo de Interlagos

A cidade de São Paulo, vitrine maior da pujança nacional, vai deixar de ser palco de corridas de Fórmula I. A confirmar-se o que está sendo anunciado, nossa maior e mais rica metrópole será suprimida do calendário da prestigiosa competição a partir de 2014.

A megalópole que concentra fatia considerável da riqueza produzida no País não foi sequer capaz de construir um estádio de futebol ― de futebol! ― em tempo hábil para acolher a Copa das Confederações. Que vergonha!

Será que ainda tem jeito de consertar? Pelo andar da carruagem, nosso País vai continuar deitado em berço esplêndido. Eternamente.

Maioridade penal

José Horta Manzano

Tem gente que diz ser a favor da redução da maioridade penal. Outros se pronunciam contra. E você?

Antes de responder, vamos nos preocupar um instante com a propriedade vocabular. É a arte de utilizar a palavra mais adequada para cada contexto. É de grande  importância para evitar mal-entendidos. As palavras devem ser tratadas com mais respeito. Não se deve simplesmente jogá-las ao vento.

Vamos analisar juntos.Grammatica 1

A maioridade
O que é a maioridade penal? É a condição em que vivemos todos os que já completamos 18 anos de vida. Se for o seu caso, caro leitor, você é penalmente maior. Vive seu período de maioridade penal. E, sou obrigado a dizê-lo, nunca mais deixará de ser penalmente maior. É para o resto da vida, até seu último suspiro.

Portanto, a maioridade penal é o período que vai do dia em que o indivíduo completa 18 anos até o dia em que deixa este vale de lágrimas. Aos 18, o jovem atinge a maioridade penal.

A redução
Quando Pedro (ou João ou Paulo) diz ser a favor da redução da maioridade penal está usando palavras tortas. O que ele quer, suponho, é que o jovem seja imputável já antes de completar 18 anos. O que Pedro quer, no fundo, é que a duração da maioridade penal seja aumentada (prolongada), isto é, que já entre em vigor a partir do momento em que o cidadão completa 16 ou 17 anos. Estão percebendo o duplo sentido? Pedro diz querer reduzir, mas o que ele quer mesmo é espichar. Confuso, não?

Por que evitar essa palavra
Reduzir, diminuir, ampliar, aumentar não são as melhores palavras para este caso. Trazem embutido o sentido contrário do que o indivíduo gostaria de exprimir.

Quando entra em vigor a hora de verão (curiosamente conhecida como «horário» de verão), o que é que fazemos? Aumentamos o relógio? Ampliamos os ponteiros? Prolongamos as horas? Nada disso. O verbo mais apropriado é avançar. Avançamos os relógios em uma hora.

Quando volta a hora de inverno, que fazemos? Não reduzimos relógios, não diminuímos ponteiros, não encurtamos horas. Atrasamos.Grammatica 2

Sempre que se quer modificar uma data é melhor fugir de palavras como aumentar, diminuir & correlatos. Uma data pode ser mantidaavançada ou atrasada.

Como dizer, então?
Se Pedro acredita que um jovem de 18 anos, ainda imaturo, não deve ser penalmente imputável, e que seria melhor esperar até que completasse 20 anos, dirá que a maioridade penal deve ser atrasada em dois anos.

Caso João ache que, aos 16 anos, o indivíduo já é suficientemente maduro ― e responsável por seus atos ―, dirá que a maioridade penal deve ser avançada em dois anos.

Todos vão entender e a língua vai agradecer.

Que tal um friozinho?

José Horta Manzano

Você sabia?

No Brasil, quando o termômetro cai a 18°, a gente diz que está friozinho. Se desce mais uns 5 graus, dizemos que está muito frio. Abaixo de 10°, todos reclamarão que está parecendo o Polo Norte. É uma questão de hábito.

A vilazinha siberiana de Oymyakón (Оймякон em escrita cirílica), com seus quinhentos habitantes, é considerada a localidade ― habitada em permanência ― mais fria do planeta. Há regiões ainda mais geladas, mas são povoadas por pinguins ou por algum cientista de passagem.Oymyakón 1

O lugarejo de que lhes falo está situado na Federação Russa, na parte oriental da Sibéria, mais precisamente na República da Yakútia. Nas noites de janeiro, o mês mais frio, faz 50° abaixo de zero. Isso é uma média, evidentemente. Há períodos em que a temperatura desce de verdade. Já roçaram os 70° abaixo. Isso, sim, é que é frio para ministro nenhum botar defeito.

O mais inacreditável é que, em alguns dias do verão, o termômetro resolve subir tropicalmente. Em julho de 2010, encostou nos 35°! Não segurou a canícula por muito tempo, mas chegou lá.

Oymyakón é uma das três únicas localidades habitadas em que a amplitude térmica ― a diferença entre a máxima e a mínima ― ultrapassa 100 graus centígrados. As outras vilas estão também na Sibéria, naturalmente.

E olhe que a latitude, embora elevada (63°) não justifica tudo. No extremo norte da Noruega, por exemplo, fica a cidadezinha de Hammerfest onde, apesar da latitude mais elevada (70°), a média do mês mais frio não desce abaixo de menos 5°. São artes do Gulf Stream.Oymiakón 3

Em outras regiões do mundo, as escolas primárias fecham suas portas quando neva. A autoridade considera que um chão nevado pode representar perigo para a passagem dos petizes. Em Oymyakón, a escola só fecha quando o frio desce abaixo de menos 50°.

Mas não se afobem. Já estamos em abril, a primavera está aí. Oymyakón já está registrando médias bem mais confortáveis, em torno de menos 13, menos 14, por aí. Para este 14 de abril, a Central Meteorológica Russa prevê mínima de –27° e máxima de –2°. O verão, como podem ver, está batendo à porta. Para a semana que entra, deve melhorar.

Os serviços meteorológicos brasileiros não trabalham com a precisão dos russos, que, temos de reconhecer, são campeões no assunto. Também, não temos tanta necessidade. Nossa amplitude térmica é bem mais estreita. O que interessa mesmo é saber se vai chover ou não.

Falando em amplitude, não consegui identificar a localidade brasileira com maior diferença entre a máxima e a mínima absoluta. Acredito que poderia bem ser alguma cidadezinha da serra catarinense. De qualquer maneira, a variação anual não chega nem à metade dos 100 graus de Oymyakón.Oymiakón 2

Muito pelo contrário, nossa tropicalidade faz que a diferença entre os meses quentes e os mais frescos seja pequena, às vezes insignificante. Fernando de Noronha, um dos pontos mais observados de nosso território, registra média de 26.8° no mês mais quente e 25.5° no mais frio. Dá para ir à praia o ano inteiro.

Aceita um refrigerante?

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Nota: Em Oymyakón não há moradores de rua.

De olhinhos puxados

José Horta Manzano

Você sabia?

O tomate, tal como o conhecemos hoje, é resultado de uma longa aventura. Originário da região onde se encontra atualmente o Peru, esse legume que alguns classificam como fruta já era cultivado pelos incas, nas encostas andinas, desde tempos pré-colombianos. Seu nome primitivo era tomalt.Tomate

Com o passar dos séculos, migrou até o México, onde teve o nome alterado para tomatl, mais adaptado à fonética dos dialetos astecas. Era uma frutinha minúscula, de gosto um tanto amargo, cuja maior atração era a cor, variando de amarelo a vermelho vivo.

Os conquistadores espanhóis se encantaram com a beleza da frutinha, mas readaptaram-lhe o nome para facilitar a pronúncia. Virou tomate, termo que nos chegou até hoje. Entre outras mudas de espécies exóticas, a frutinha também foi levada para a Europa. A aclimatação não foi difícil, dado que a solanácea é de natureza rústica e resistente.

No entanto, nos primeiros tempos, os europeus estranharam a novidade. Hesitaram em consumi-la, imaginando que pudesse ser venenosa. Serviu como planta ornamental.

Foram os italianos os primeiros a quebrar o tabu, assim mesmo uns dois séculos mais tarde. Assim que a provaram, aprovaram. E a polpa vermelha passou logo a colorir pratos peninsulares.

Tanto foi apreciado na Itália, que recebeu ali o nome excepcional de pomodoro (= fruta de ouro), denominação que guarda até nossos dias e que difere do original que, bem ou mal, se manteve em outras línguas.

Foi preciso que mais algum tempo passasse para que o tomate entrasse na culinária de outros países da Europa e da orla mediterrânea. Até não muitos anos atrás, os Estados Unidos e a Itália dominavam, soberanos, a produção mundial.

O tomate nunca foi adotado nas mesas do Extremo Oriente. Mas os chineses, bons comerciantes, deram-se conta de que valia a pena investir em seu cultivo. Para exportação, naturalmente.Tomate 2

Um conglomerado baseado em Ürümqi, na província de Xinjiang ― no longínquo Turquestão chinês, região fria e árida, onde o plantio só é possível durante 70 dias por ano ― encarregou-se da produção em escala industrial. Outras culturas exigem mais tempo para germinar, crescer e atingir a maturação, enquanto o tomate frutifica rápido. A produção é gigantesca, à moda chinesa. Catorze usinas espalhadas pelo território daquele país são atualmente capazes de processar 50 mil toneladas diárias da fruta.

O fato é que em poucos anos a semiestatal chinesa apoderou-se de respeitável fatia do mercado mundial de tomate industrializado. Abrange o leque completo, da fruta enlatada ao extrato concentrado, passando, naturalmente, pelo ketchup.

Em 2004, o conglomerado engoliu o maior produtor francês de tomate enlatado, uma cooperativa que vendia sob a tradicional marca Le Cabanon. Como não são bobos, os chineses mantiveram as aparências: conservaram o nome e a marca tradicionais. As etiquetas são as mesmas. A propaganda continua aludindo à romântica região da Provence, sul da França ― sem divulgar, naturalmente, a verdadeira proveniência geográfica do conteúdo.Xinjiang

Na França, poucos sabem que, ao consumir tomates Le Cabanon, não estão degustando produtos locais, mas mercadoria produzida a 10 mil quilômetros de distância.

Estes dias, jornais brasileiros andaram discretamente informando que «a polpa de tomate importada da China é mais barata que a brasileira». Isso é só o começo.

Não seria espantoso se, dentro de muito pouco tempo, conservas de tomate deixassem de ser fabricadas em Pindorama. Preparem-se. Nossas pomarolas e nossos elefantes perigam ter olhinhos puxados.

Mas… nada de pânico! Ainda temos soja para vender. Por enquanto.

O faroeste e o desleixo

José Horta Manzano

Todos soubemos do inacreditável acidente de tráfego ocorrido no Rio de Janeiro, faz alguns dias, quando um ônibus de transporte municipal caiu de um viaduto e estatelou-se na avenida, dez metros abaixo.

Num primeiro momento, imaginamos que tivesse havido falha mecânica no veículo ou, nunca se sabe, que o motorista se encontrasse sob efeito de alguma droga ― lícita ou não.

Não era nada disso. A assustadora ocorrência tinha sido consequência de uma disputa entre o condutor e um dos passageiros. A tapas, socos e pontapés, como manda o figurino atual. Matar ou morrer deixou de ser mote de filme de faroeste para compor a paisagem urbana corriqueira de nossas metrópoles.

Sete cidadãos inocentes morreram? E daí? Se em São Paulo um universitário pôde decepar o braço de um ciclista e atirá-lo a um riacho poluído, por que razão não poderia um outro estudante ― universitário! ― expor os ocupantes de um coletivo à morte?

Nesta quinta-feira saiu a notícia de que a empresa de transporte foi sancionada com multa pesada. Tarde demais. De qualquer maneira, o veículo precipitado no vazio já acumulava 47 multas nos últimos 5 anos. A reportagem não esclarece se as multas antigas haviam sido pagas. Talvez sim, talvez não. Cada um é livre de formar sua própria opinião.

Por detrás da barbaridade do acontecido, um fato me chama a atenção. Sabe-se agora que o veículo estava em falta com a vistoria anual obrigatória. Circulava, pois, em perfeita irregularidade havia, pelo menos, três meses. Talvez mais. E tudo bem. Poderia ter continuado assim por meses, anos, sabe-se lá.

Ônibus

Para que servem as autoridades de controle do tráfego? São como enfeites de árvore de Natal, que se mostram durante duas ou três semanas por ano, para em seguida cochilar numa caixa de papelão esquecida no porão?

A atual parafernália informática permite às autoridades acompanhar, dia a dia, a conformidade de todos os veículos sob sua jurisdição. Ao que tudo indica, não o fazem. Se não cumprem a obrigação maior, que é a de zelar pela segurança dos usuários dos meios de transporte, é sinal de que se tornaram inúteis. Para que servirão além de se terem tornado simples cabides de empregos?

Não se deve chutar cão morto nem atirar em cadáver. Mas fica a indignação. E a pergunta: quem merecia ser multado? A empresa de ônibus ou a administração que deveria cuidar do transporte coletivo na cidade?

Que se possa perder o rastro de um ou outro veículo particular, seja porque seu proprietário se mudou sem avisar ou por outro motivo qualquer, ainda dá, mal e mal, para explicar. Não elimina a responsabilidade da autoridade, mas suaviza sua culpa.

Que se negligencie a vistoria de ônibus utilizados diariamente por centenas de passageiros ― veículos estes que pertencem a empresas registradas, com endereço fixo e conhecido ― é inadmissível. Mormente num país que se orgulha de estar em via de «emergir».

Na Europa, as passagens de nível ― cruzamento de ferrovias com estradas ― costumam exibir um letreiro que diz «Cuidado! Um trem pode esconder um outro!». A tragédia do Rio de Janeiro responde à mesma lógica. Por detrás do faroeste urbano, patenteou-se o desleixo na verificação da boa manutenção dos veículos. Cuidado! Um acidente mortal pode esconder um desmazelo!

Concedo que o Departamento de Tráfego não foi concebido para aplacar a violência de cidadãos desequilibrados ― não é sua função. Com ou sem vistoria, o veículo se teria precipitado no vazio. Mas quantos veículos e quantas vidas terão ainda de ser sacrificadas até que as autoridades se deem conta de que estão lá justamente para fiscalizar e prevenir?