Receita para enriquecer rápido

José Horta Manzano

Guardo um livro de receitas escrito por minha avó. Sim, eu disse escrito por ela. Escrito à mão. Na verdade, copiado. É que antigamente não havia internet nem televisão. A dona de casa prendada anotava cuidadosamente num caderno as receitas que colhia aqui e ali. Ter a receita de determinado prato já era, em si, uma preciosidade. Sem receita, como preparar um cobu mineiro um toucinho do céu ou um alfenim ‒ aquela bala de coco que derrete na boca?

As melhores receitas eram agraciadas com um qualificativo: «Esta é ‘explendida’», assim, com xis, como se escrevia quando a língua ainda não estava engessada pelo emaranhado de normas atuais. Vou dar hoje ao distinto leitor uma receita «explendida» para enriquecer rapidamente. Não dá muito trabalho. Seguida à risca, é sem risco. Vale arriscar!

Receita «explendida» para enriquecer rápido e sem risco
(em 17 etapas)

1) Você pode fazer sozinho, mas é mais seguro arrebanhar um grupo de companheiros. No final da receita, você vai entender por quê.

2) Reunido o bando, escolha um alvo e um modo de proceder. Pode ser um assalto a banco, embora não seja a melhor opção. Pode ser um estelionato de alto coturno. Infrações enquadradas no Artigo 312 do Código Penal são bem-vindas: concussão e peculato em especial.

3) Há mil soluções. Discuta com o grupo de companheiros pra definir qual delas é a mais adequada. Enfim, sinta-se livre de escolher o alvo, mas cuide que seja frutuoso. Anote isso: o ato tem de render no mínimo 10 milhões. Se o golpe for de 50 milhões, melhor ainda. Golpezinho pequeno é coisa de pé-rapado, só gera problema.

4) Planejem bem, que uma boa preparação é a alma de todo golpe de mestre. Fixado o alvo, defina o papel de cada membro do grupo. É essencial que todos sigam rigorosamente as ordens de Seu Mestre.

5) Dê o golpe. Procure agir no tempo mais curto possível. Práticas que se eternizam não são boa opção. Não ultrapasse 6 meses. Quando o produto do golpe estiver em suas mãos, não guarde em malas nem em apartamentos. O melhor é despachar logo pra um banco em Singapura ou em Hong Kong. Nem em pesadelo mande para a Suíça: embora alguns incautos não saibam, já faz anos que o segredo bancário foi lá abolido.

6) Apesar de todo o empenho e de todos os cuidados, o risco existe de algum membro do grupo ser apanhado e, uma vez encarcerado, pôr-se a delatar. Não é desejável, mas é possível.

7) Denunciados, todos os membros do bando vão ter de passar um (breve) período atrás das grades. Você também. Mas não se preocupe, que ninguém vai mandá-lo pra prisão de pobre. Quanto mais volumoso for o produto do crime, mais luxuosa será sua cela.

8) É agora que o montante obtido se revela importante. Quanto mais elevado for, mais e melhores advogados você poderá contratar. Não economize. Se puder, chame até antigos ministros do STF ‒ isso dá um plus a sua defesa.

10) Você será acusado de estelionato. Dado que o crime terá sido cometido em bando, você receberá também acusação por formação de quadrilha. Isso é muito bom. Quanto mais pesada for a acusação, mais respeito suscitará.

11) A partir daí, é simples. A fortuna que você tiver guardado em Singapura será amplamente suficiente pra bancar os honorários do batalhão de advogados. Na hora de pagar, basta transferir de uma conta para outra ‒ todos eles têm conta naquele país.

12) Agora descanse. Seus defensores impetrarão habeas corpus para você e para todos os seus amigos. Você não passará nem dois dias na cadeia. Talvez lhe imponham o uso de tornozeleira. Não esquente a cabeça, que ela é discreta e passa despercebida.

13) Em casa, tranquilo, você aguardará que seu caso seja julgado. De qualquer maneira, se você se comportar bem, não terá de portar a tornozeleira por mais que uns dois meses. Depois disso, estará livre de ir e vir. Enquanto isso, seu caso vai passeando pelas instâncias: a primeira, a segunda, a terceira, a quarta. Isso vai levar no mínimo dez anos. Pode chegar a vinte. E você tranquilo, já imaginou? Rico, tranquilo e livre!

14) Pode usufruir o produto do golpe, que ninguém vai reparar. Gaste à vontade, mas procure não dar sinais explícitos de riqueza. É mais prudente comer caviar em Paris do que pizza no Rio.

15) Resta um último risco. Há uma probabilidade em um milhão de seu caso chegar ao STF antes da prescrição. O Supremo pode até negar provimento ao seu caso. É raro que aconteça, mas não é impossível. Sua prisão pode até, nesse caso, ser decretada. Se tal infelicidade viesse a acontecer, não se apoquente. Dirija-se a um sindicato qualquer. Um que tenha prédio grande, de preferência. Tranque-se lá dentro e resista.

16) Chame os amigos de seus amigos. Seja generoso na distribuição de churrasco e cerveja. Muita gente virá. Ensine-lhes palavras de ordem. Distribua megafones. Pague um extra para quem ficar no horário noturno ‒ afinal, isso não é problema, você já é rico e seu dinheiro está guardado em lugar seguro.

17) Mande rezar uma missa, que pega bem pra caramba. Nenhuma polícia tem a ousadia de invadir lugar de culto pra prender alguém. Se o pior acontecer e você acabar de novo preso, não se aborreça. Será por pouquíssimo tempo. Seu batalhão de defensores vai tirá-lo de lá rapidinho.

A partir daí, descanse. Você está livre. Nunca mais alguém vai importuná-lo. Relaxe e goze.

Frase do dia — 334

«Se quiser garantir o futuro do seu filho, mande-o para a advocacia. Com as denúncias expondo um corrupto por minuto, nunca no Brasil os serviços dos advogados foram tão disputados.

Claro, nem todos terão o desafio de defender os indefensáveis ‒ Temer, Lula, Dilma, Aécio, Cunha, Cabral (alguns deles contratam até 20 defensores) ‒, mas sempre lhes sobrará um Renan, uma Gleisi, um Palocci, também suculentos.»

Ruy Castro (1948-), escritor, biógrafo, jornalista e colunista.

Cartilha da Ética

José Horta Manzano

Soube-se esta semana que o advogado que defende os interesses do Lula, de Palocci e de Mantega na Lava a Jato está prestes a abandonar os clientes. Cada um abraça a cartilha ética que lhe parece mais próxima das convicções íntimas, assim é a vida. O causídico não sentiu embaraço ao aceitar assumir a defesa do trio. Agora, a coisa se complica.

Tudo indica que Palocci está disposto a abrir o bico e firmar acordo de delação premiada. Se assim for, o que é que o antigo ministro pode revelar? Ora, a turma da Lava a Jato já tomou depoimento de dezenas de subs, vices e outros personagens secundários. As únicas informações de peso que podem assegurar algum benefício de leniência a senhor Palocci se referem a… quem estava acima dele, a quem dava as ordens e coordenava o funcionamento da máquina. Em termos crus: nosso guia periga ser a figura central da delação. Se não for assim, dificilmente os procuradores de Curitiba assinarão o acordo.

Nenhum advogado pode assumir a defesa de um de seus clientes que esteja sendo atacado por outro de seus clientes. A situação é insustentável. Para defender o cliente A, o causídico teria de se valer de informações que lhe foram confiadas pelo cliente B. Nessas alturas, como fica o segredo profissional? Simplesmente não dá.

Quando fiquei sabendo do nome do advogado do trio, uma luzinha longínqua se acendeu. Não me soou estranho. Fui cavoucar e descobri: trata-se do mesmo que, doze anos atrás, assegurou a defesa de Paulo Salim Maluf. Os mais antigos devem se lembrar que o ex-prefeito de São Paulo passou 40 dias preso, junto com o filho, em 2005. Saiu da cadeia por mérito de um habeas corpus impetrado pelo advogado que hoje defende o Lula.

Na época, correu um zum-zum-zum. Houve quem desconfiasse de conluio nas altas esferas para beneficiar Maluf, medalhão cujo nome figura até hoje na lista de procurados pela Interpol. Naquela altura, o povo ainda andava meio apático. Fosse hoje, dificilmente o STF permitiria a soltura do figurão. É, a coisa anda feia pro lado da bandidagem, gente! Cruz-credo!

Quase doze anos atrás
Em artigo publicado no Globo em 21 out° 2005, o jornalista Ricardo Noblat comentava a soltura de Maluf nestes termos:

«Não, meus caros, definitivamente todos não são iguais perante a lei. Não no Brasil, onde o Estado é um anti-Estado. Existe para proteger e beneficiar os que podem mais e, aqui e ali, faz alguma coisa pelos que valem menos.

Carlos Velloso (STF) & José Roberto Batochio (advogado) em 2005
foto: Dida Sampaio

A foto acima é quase um resumo de nossa história de iniqüidades. À esquerda, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso, relator da ação que tirou da cadeia Paulo Maluf e o filho; à direita, José Roberto Batochio(*), ex-presidente nacional da OAB e advogado dos Maluf.»

(*) Doutor Batochio (deturpação do sobrenome veneto Battocchio) é o advogado do trio Lula, Palocci e Mantega.

Contas secretas

José Horta Manzano

Tem cada uma… Bom, é verdade que todo advogado que defende bandido costuma pedir clemência para seu cliente. Cabe a ele pedir ‒ quem tem de dizer “não” é a Justiça. Assim mesmo, tem limite pra tudo. Pretensões exageradas acabam deixando um gostinho azedo de justiça bolivariana.

A equipe de defesa da esposa de senhor Eduardo Cunha ‒ falo daquela que costumava gastar milhões de euros em artigos de luxo e mandar a conta para banco privado pagar ‒ é acusada de lavagem de dinheiro ilícito. Não há de ter sido difícil concluir que as fortunas que gastou eram incompatíveis com suas posses.

Num ato de magnanimidade, a equipe de juízes de Curitiba (ainda) não mandou prender a moça. Naturalmente, recolheu seu passaporte, visto o risco de fuga para o exterior.

Antigamente se diza que quem rouba um tostão rouba um milhão. Corrigindo pela inflação, melhor dizer hoje que quem rouba um milhão rouba um bilhão. Ou mais.

Banco 6A Justiça brasileira talvez não venha nunca a conhecer o montante exato surrupiado por senhor Cunha e esposa. Mas fica no ar a desconfiança de que, além do que já foi confessado, haja outros trusts, outras empresas de fachada, outras contas não declaradas, outros investimentos aqui e ali, outras barras de metal amarelo encafuadas em cofres de bancos discretos.

Pois o pelotão de advogados de defesa da acusada pede à Justiça nada menos que… a devolução do passaporte da ré. Para ficar no ambiente judiciário, seria como pedir que entregassem ao preso a chave da cadeia. É pretensão exagerada pra meu gosto, um desplante.

Espero que os juízes paranaenses não se dobrem a essa exigência. Numa época em que se rouba até faixa presidencial, todo cuidado é pouco.

Faixa presidencialFaixa presidencial
Para quem acaba de desembarcar do planeta Marte, informo que foi instaurado «processo de sindicância» para saber quem deu sumiço na faixa presidencial(!) e nos presentes que o Brasil recebeu durante a gestão do Lula e da doutora Dilma.

Ignoro o que seja «processo de sindicância» e quais possam ser as consequências. Um leigo imaginaria que se instaurasse logo um procedimento penal para esclarecer crime de peculato. Quem viver verá.

Lula aciona ONU

José Horta Manzano

Lula caricatura 2Assombrado com a ordem de prisão, cada dia mais nítida, o batalhão de advogados do Lula implora à ONU que faça alguma coisa para proteger o antigo mandatário.

Não por acaso, usei o verbo implorar. O Brasil, como país soberano, dispensa tutela de organismos estrangeiros ou supranacionais. Se nem o Mercosul tem poder de influenciar nossas instituições, menos ainda terá a Organização das Nações Unidas. O Lula há de estar em pânico, o que explica estar arriscando as últimas fichas na empreitada. Acaba de dar passo perigoso.

Há duas possibilidades: a ONU tanto pode aprovar como reprovar o funcionamento da Justiça brasileira. Caso considere o processo isento e honesto, Lula terá perdido definitivamente a batalha ‒ quiçá a guerra. Caso considere que o ex-presidente é vítima de jogo de cartas marcadas, como numa «república de bananas», nosso Judiciário se sentirá, com razão, afrontado, ofendido e desafiado.

Lula caricatura 2aNinguém gosta de se sentir afrontado, nem ofendido, muito menos desafiado. O orgulho nacional será atingido. Nossos magistrados se sentirão todos insultados. Esse sentimento periga voltar-se contra o acusado, surtindo efeito contrário ao que estava sendo buscado.

É verdade que o Lula não tem muitas opções. Como cônjuge de cidadã italiana, deve ter imaginado poder um dia, em caso de necessidade, refugiar-se na Itália. O caso Pizzolato freou seus ardores. A Itália provou que, quando lhe parece justo, não hesita em extraditar os próprios cidadãos.

Caso consiga escapar das garras do juiz Moro, como tem tentado, quem garante que nosso guia não cairá nas mãos de magistrado ainda mais rigoroso? Moro não é o único juiz competente e tenaz.

Lula caricatura 2Se escolher deixar o país e estabelecer-se em alguma ilha paradisíaca, estará abrindo o flanco para os EUA pedirem ‒ e obterem ‒ sua extradição. Transação internacional de dinheiro sujo ou limpo costuma transitar por aquele país. No escândalo que emaranha Lula, Petrobrás, Mensalão, Eletrobrás, BNDES & companhia, não será difícil encontrar fundamento jurídico para pedido de extradição. Bilhões de dólares roubados aqui transitaram por lá.

Sobra ainda a possibilidade de o Lula pedir asilo político a algum país. (Quem garante que a eventualidade já não tenha sido sondada?) Não vai ser fácil encontrar abrigo. Se ninguém quis acolher um simples Snowden, quem abrigará um Lula? A Bolívia ou a Venezuela talvez? Pode ser um caminho. Pelo menos, enquanto não caírem os respectivos governos.

Vão ainda duas ou três reflexões. A primeira, mais evidente, é quanto ao custo do batalhão de advogados. Quem paga? Estarão todos trabalhando por amor a um acusado desvalido?

Outra observação é quanto à escolha do escritório de Mister Robertson, jurista australiano especializado em direitos humanos, que conta com Salman Rushdie e Julian Assange entre seus clientes. Não é um fantástico cartão de visitas.

Lula caricatura 2aO escritor britânico Salman Rushdie sobrevive há quase 30 anos, sob rigorosa proteção policial, a uma ordem de assassinato expedida pelo bondoso (e já finado) aiatolá Khomeini. Quanto a Mister Assange, esconde-se há quatro anos num cubículo da embaixada do Equador em Londres. Visto o histórico da banca de advocacia de Mister Robertson, não fica claro o que podem fazer pelo Lula.

Penso ainda no foro competente para julgar nosso ex-presidente. Por enquanto, é acusado comum. Na inimaginável eventualidade de dona Dilma voltar à presidência, o Lula poderia até ser nomeado ministro, o que lhe daria direito a ser julgado pelo STF. Ainda assim, não é concebível que a maioria de nossos magistrados-mores se pronunciem pela total inocência do indiciado. Nenhum deles vai querer entrar para a História com reputação manchada.

Uma saideira: ninguém garante que as informações vazadas até agora representam a totalidade dos indícios e das provas. Debaixo desse angu ainda deve ter muita carne.

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Observação
Para quem acaba de chegar de Marte, aqui está a notícia no Estadão e na Folha de São Paulo.

Fim de ano na Terra Brasilis

Myrthes Suplicy Vieira (*)

É um pesadelo, só pode ser. Meu coração bate mais acelerado do que de costume. Sinto a boca seca, o peito apertado, a musculatura tensa de braços e pernas e o desejo incontrolável de fugir ou me esconder.

O medo de que, na virada do ano, não haja um dia seguinte é meu velho conhecido. Todo fim de ano, a despeito do calor sufocante, sinto o vento gélido do final dos tempos me rondando. É um medo parecido com aquele que os velhos marinheiros portugueses deviam sentir ao se aventurar por mares nunca dantes navegados, temendo despencar no abismo da quadratura da terra.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Este ano, porém, há algo de podre no ar que ajuda a reforçar meu habitual desconforto. Em todos os planos da vida nacional, respira-se um ar denso de degradação moral, torpor, constrangimento e profundíssimo cansaço. É como se estivéssemos todos amontoados no fundo do cenário, assistindo impotentes o desenrolar de uma pornochanchada de péssimo gosto. A cada nova performance acrobática, nossos corações e pulmões se comprimem ainda mais na busca desesperada pelo oxigênio da dignidade e da conciliação. A realidade tenebrosa, francamente indecente, estende seus tentáculos e nos enreda a todos num cipoal orgiástico do qual preferiríamos poder nos livrar.

As revelações bombásticas se sucedem e explodem sobre nossa cabeça com a força de tiros de canhão. Eu, que sempre me esforcei para não parecer moralista, sucumbo à indignação geral e exijo em troca da minha delação a cabeça de João Batista. Quando a seguro em minhas mãos, percebo, no entanto, que nem mesmo ela pode me servir de amuleto para esconjurar o fato de que sou natural de Sodoma e Gomorra.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Sento-me no sofá da sala para assistir ao noticiário da televisão, com o coração aos pulos, na ânsia de conhecer os detalhes escabrosos do escândalo mais recente. Na tela, juízes de toga, de peito estufado e empertigados em suas cadeiras de espaldar alto, leem com voz monocórdia seus pareceres legais. De repente, talvez como resultado daquele som monótono e do mormaço, começo a alucinar. A tela da tevê funde-se com insólitas imagens mentais. Penetro num labirinto de escatologias.

Diante dos meus olhos atônitos desfilam personagens e cenas grotescas. Juízes, advogados e réus falam todos ao mesmo tempo em salas de tribunal lotadas. Cada um que toma a palavra o faz com pretensa autoridade técnica, escandindo as palavras, brandindo argumentos e alterando o tom de voz em momentos cruciais. Esforço inútil, ninguém ouve, ninguém compreende, ninguém se interessa. Estão todos se preparando para, quando chegar a sua vez de falar, apresentar o arrazoado definitivo, o detalhe técnico que escapou à atenção dos demais, as palavras capazes de gerar máximo impacto.

A seriedade do ambiente não é circunstancial, como se poderia pensar à primeira vista. Há um indisfarçável odor libidinoso no ar. As palavras vão sendo manipuladas ‒ bolinadas mesmo ‒ por cada orador. Depois, vão sendo enfileiradas com afinco num crescendo de tensão para que explodam ao final como fogos de artifício. Mas o orgasmo não acontece, o alívio da tensão não vem, é preciso recomeçar mais uma vez e sempre.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Bruxas voam pelos ares sentadas em suas vassouras e gritam com voz esganiçada que o fundo do poço ainda não foi alcançado, que a descarga não virá nem agora nem nunca. As pragas que nos assolam já não são mais as sete bíblicas. Frutificaram, multiplicaram-se e se transformaram em pragas emocionais. Os gafanhotos da concupiscência agora atacam e devastam plantações inteiras de dinheiro e poder. Os sapos da intolerância entoam seus cânticos de acasalamento nos brejos que criamos em nosso seio.

Figuras esdrúxulas, de peito estufado e queixo erguido, revezam-se diante de microfones imaginários e vão elencando, uma a uma, suas transgressões, com a mesma indiferença de quem prepara uma lista de supermercado. Não há misericórdia, não há compaixão, não há arrependimento em seus olhos. Eles estão vazios, baços, sem vida.

Pelas ruas, multidões vagueiam acabrunhadas e sem direção. A aridez inclemente do clima é espelho a refletir os embates de tantas mentes, corpos e almas áridos. A desesperança ressecou tudo, criou couraças, estancou o fluxo de vontades. A tecnologia ainda tenta seduzir com novas respostas para perguntas que já não podem ser formuladas. Clima de deserto na terra e no âmago de cada um.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Um profeta coberto de andrajos abre espaço em meio à multidão. De cabeça baixa, ele chora e, em tom acusador, alerta os passantes para o perigo de rompimento de novas barragens emocionais. A lama acumulada no coração das pessoas, diz ele, precisa continuar sendo expelida até que a natureza humana reencontre seu equilíbrio e volte a se purificar.

Saio à rua cambaleante e esbarro com uma mulher grávida sentada na calçada, já em meio às dores do parto. Ela me pede ajuda em pânico. Estendo as mãos para amparar o recém-nascido que desponta e constato que ele tem a cabeça pequena demais. Ligo para o hospital mais próximo e peço uma ambulância. O atendente, com voz indiferente, diz que a única disponível quebrou no mês passado e que não há dinheiro para consertá-la.

Eu ainda tento argumentar que é Natal, que é preciso acolher com todas as honras o deus que renasce, mesmo que defeituoso na origem. Em vão. Olho em volta, desanimada e penso com meus botões: será que ainda vale a pena gestar novos deuses e tentar salvar esta humanidade?

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(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Do futuro, ninguém sabe

José Horta Manzano

Cabeçalho 4Boas surpresas podem surgir de onde menos se espera. Não é corriqueiro, mas acontece. Quando o Lula indicou, para ocupar uma poltrona no Supremo Tribunal Federal, o senhor Dias Toffoli(*), a decisão levantou um bruaá dos diabos. Foi em 2009.

Tirando os admiradores mais entusiastas de nosso guia, a escolha foi recebida com cautela e desconfiança. Desconhecido, jovem demais, antigo advogado do PT, reprovado em exame para a magistratura, alvo de processo por fraude em licitação ‒ foram as acusações que sobressaíram.

É verdade que o moço não se encaixava no perfil do ministro ideal. No entanto, a pouca idade, que parecia fator agravante, dá indícios de se estar transformando em elemento positivo. ‘A adolescência é defeito que os anos corrigem’, como diz o outro.

Dias Toffoli 1Fidelidade e gratidão são propriedades com prazo de vencimento. O fato de ter sido nomeado por este ou por aquele não é, em si, garantia de obediência nem de reverência eterna. A história está cheia de exemplos de criaturas que, com o tempo, se emanciparam do criador. É compreensível. A natureza determina que seja assim, desde animais primitivos até animais políticos.

Contrariando a bolsa de apostas, senhor Toffoli posicionou-se contra os interesses do governo na votação da semana passada sobre rito de destituição de dona Dilma. Alguns dias depois, em entrevista ao Estadão, o ministro pronunciou a frase que pus lá em cima, no cabeçalho. Foi pronunciamento sensato, uma entrevista que vale a pena ler.

Parece que, apesar do histórico pouco promissor, o rapaz esteja conseguindo se distanciar da ideologia primária e ultrapassada do PT. As declarações que deu na entrevista são animadoras. Mostram que o fato de ter chegado jovem ao Supremo pode ter sido uma vantagem: sua visão de mundo ainda não estava cristalizada.

No meio da escuridão em que está mergulhado o andar de cima, qualquer indício de lucidez é bem-vindo. Qualquer voz que se alevante para preconizar voto distrital e cláusula de barreira terá meu apoio. Ainda que venha de antigo advogado do PT.

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(*) Curiosidade etimológica
O sobrenome italiano Toffoli é frequente na região do Veneto, principalmente nas províncias de Veneza, Pordenone e Treviso. Provém de uma alteração ‒ que os linguistas chamam aférese ‒ do nome de origem grega Christopholus (=Cristóvão). O caminho é: Christopholus → Christopholi → Cristoffoli → Toffoli.

Os jabutis de senhor Cunha

José Horta Manzano

Animal 09A malandragem nacional não tem limites. Com certeza, o distinto leitor já ouviu falar dos “jabutis”, nome curioso dado a emendas bizarras que parlamentares tentam enxertar em MPs em tramitação no Congresso.

São penduricalhos que nada têm a ver com o tema central do projeto. Trata-se de ardil para apanhar incautos. Distraído, o deputado pode até votar a favor de uma MP sem se dar conta de que ela carrega, de contrabando, dispositivo ao qual ele nunca daria seu voto consciente.

Animal 08Senhor Eduardo Cunha, personagem cuja fama hoje se esparrama pelo território nacional, é presidente da Câmara. Por quanto tempo, ninguém sabe. Em agosto de 2011, quando o deputado era líder do PMDB, a OAB rejeitou seu nome para relatar a reforma do Código de Processo Civil. A razão alegada foi a ausência de formação jurídica do parlamentar.

Rancoroso e vingativo, senhor Cunha inscreveu a OAB em sua lista de desafetos. E jurou “implodir” a Ordem. Imediatamente após ser rejeitado, apresentou projeto de lei para abolir a exigência de exame da Ordem para todo bacharel que aspire ao título de advogado. Não teve sucesso.

Animal 10Desde então, o (ainda hoje) presidente da Câmara não sossegou. A cada MP que se apresenta, tenta adicionar um penduricalho para acabar com o exame da Ordem. Matéria publicada em maio 2013 pelo Portal Último Segundo conta que, das 17 MPs votadas ou em tramitação no Congresso naquele ano, 11 continham um “jabuti” incrustado por senhor Cunha pedindo a extinção do exame da Ordem. O homem é tenaz, do tipo que guarda mágoa em geladeira.

O afastamento do rancoroso parlamentar parece ser questão de tempo. A gente chega a se perguntar, aliás, como é possível que ainda esteja ocupando a cadeira-mor da Câmara. Assim que ele cair, a Ordem dos Advogados do Brasil há de respirar aliviada.

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PS: Matéria do Estadão desta segunda-feira informa que Eduardo Cunha acaba de ser sancionado pelo Tribunal Federal Suíço por tentativa de atravancar a comunicação de seus dados bancários às autoridades brasileiras. Recebeu pena pecuniária. Mas o Ministério Público suíço não enterrou a possibilidade de processá-lo criminalmente por lavagem de dinheiro.

A pátria em chuteiras

Myrthes Suplicy Vieira

Cabeçalho 2E estamos de volta aos permanentes embates entre o Direito e a Moralidade.

O time do Direito entra em campo confiante e, de peito estufado, entrega sua flâmula ao capitão da equipe adversária. Nela está escrito: “Nós não fazemos as leis, apenas zelamos por sua observância”.

Futebol 7O capitão do time da Moralidade adianta-se um passo, inclina-se para a frente, recolhe delicadamente a flâmula com as duas mãos, agradece com um sorriso e apresenta a sua. Nela pode-se ler: “Nós escolhemos nossos representantes com base nas condutas morais que a maioria dos funcionários e torcedores de nosso clube julga fundamentais e imprescindíveis para o exercício de qualquer mandato”.

O jogo começa. Os jogadores dos dois times ensaiam as melhores jogadas, procurando evitar a ocorrência de faltas que coloquem em risco desde muito cedo a estratégia elaborada pelos respectivos técnicos para vencer a partida. De repente, um jogador do time do Direito, posicionado dentro da área, recebe um passe irregular, vira-se e marca o primeiro gol. A equipe da Moralidade sai correndo em protesto e cerca o juiz: “O senhor não vai apitar nada? Ele estava claramente adiantado em relação à linha de impedimento!”

O juiz, que estava distraído durante a jogada, consulta rapidamente o bandeirinha, que se havia igualmente distraído durante o lance, e, sem apoio racional para outra decisão, decreta: “Vamos voltar a jogada”. O jogo recomeça, a bola é jogada para escanteio e, sem novos lances duvidosos, a partida termina no zero a zero.

Tribunal 7Um novo campeonato tem início. Desta vez, orientada por um novo técnico, a equipe do Direito consegue expressivos resultados positivos e assume a liderança em poucas partidas. O dirigente da equipe da Moralidade, acabrunhado, passa a contestar acidamente os lances duvidosos de cada uma das partidas, entrando com sucessivos recursos no Tribunal de Justiça Desportiva. Os desembargadores dão sempre o mesmo veredito: “Julgamos improcedente a demanda da Moralidade por falta de evidências na súmula das partidas de que os árbitros tenham exacerbado de suas funções”.

Realimentado em seus brios, o time do Direito dá prosseguimento a sua jornada vitoriosa, argumentando, sempre que contestado em juízo, que as mesmas jogadas foram feitas anteriormente pelo time vice-campeão, sem que tivesse havido qualquer punição.

Combalido, o dirigente da equipe da Moralidade demite o técnico, faz uma profunda reforma no time com contratação de novos jogadores e esforça-se por estabelecer laços mais estreitos com o Tribunal de Justiça Desportiva. Reúne-se com os advogados do clube e decide entrar com uma representação na Associação Nacional de Árbitros, propondo que doravante todas as partidas sejam filmadas e que os lances duvidosos sejam julgados em tempo real por um conselho de árbitros de plantão, a partir da revisão das imagens.

Futebol 1Uma luzinha trêmula começa a se acender no final do túnel. A Associação de Árbitros, já incomodada com o crescente volume de reclamações vindas de várias outras equipes, acolhe favoravelmente a proposta e compromete-se a estudar a possibilidade de que ela passe a ser incorporada em caráter experimental. Os torcedores do time da Moralidade saem às ruas, dançando e cantando, para celebrar a chegada de novos tempos.

Quando informado da decisão da Associação de Árbitros, o dirigente da equipe do Direito contrata a peso de ouro os mais eminentes advogados e entra com recurso no Tribunal de Justiça Desportiva alegando que “não se podem alterar as regras depois de começado o jogo”.

A argumentação apresentada em corte pelo advogado-chefe do time do Direito é considerada brilhante e empolga a todos: “Toda essa lamúria dos times perdedores do campeonato é pura empulhação. Por falta de habilidade técnica dos jogadores e por falhas de planejamento de seus respectivos técnicos, o que eles estão querendo, de fato, é ganhar ‘no tapetão’. Ora, senhores, nenhum juiz está autorizado a apitar ‘perigo de gol’, já que essa figura jurídica não existe em nossa Constituição”.

Futebol 8Acabrunhado, o dirigente da equipe da Moralidade reúne-se em caráter emergencial com seus advogados. O clima é tenso. Com voz trêmula, o dirigente expõe seus pontos de vista: “É bem verdade que ninguém pode ser condenado com base em regras que ainda não existiam quando o campeonato começou. Mas não dá para esquecer que o próprio time do Direito já havia manifestado publicamente seu irrestrito apoio às novas regras propostas muito antes de serem sagrados campeões. Para sorte deles, as regras simplesmente não foram implementadas a tempo, uma vez que os representantes de sua base aliada conseguiram bloquear a votação. Cabe a nós, agora, demonstrar que essas pessoas não nos representam. Ao contrário, elas ferem nossa própria essência, que está alicerçada no fato incontestável que nem tudo que é legal é moral”.

O advogado-chefe levanta-se e, hesitante, apresenta seu raciocínio jurídico para encontrar uma saída legal para o conflito: “De fato, forçoso é admitir que parte da razão está com nossos adversários. Não se pode mudar as regras depois de apitado o início do jogo, mas, se os senhores pensarem bem, verão que também não é defensável que um time entre em campo com 13 jogadores para enfrentar os 11 habituais do time adversário. E, fazendo uma analogia com o jogo político, fica claro que o instituto da reeleição (considerando que nossos adversários foram campeões nas duas últimas rodadas) equivale a impor a regra espúria de que eles têm o direito de entrar em campo com mais jogadores do que o permitido. Além disso, nossos adversários foram os responsáveis pela indicação de muitos dos juízes encarregados de deliberar sobre quaisquer lances duvidosos neste campeonato. Temos de buscar na história dos julgamentos desportivos momentos de exceção em que as regras puderam ser revistas, sem comprometer o Estado de direito. Isso nos auxiliará a provar que já há jurisprudência formada a nosso favor”.

Futebol 9Comovidos, quase às lágrimas, os participantes da reunião abraçaram-se e concordaram em entrar com uma última representação na Associação Nacional de Árbitros, solicitando que as regras da Moralidade Pública, aprovadas na gestão anterior, fossem finalmente implementadas e já passassem a valer para o campeonato seguinte.

Após algumas semanas de tensão à espera do veredito dos desembargadores, alívio geral. O juiz responsável pelo caso havia registrado sua decisão em tom poético: “Julgo procedente a demanda apresentada pela turma da Moralidade. Ainda que não exista a figura jurídica de impedimento por falta de representatividade, as possibilidades de enquadramento jurídico para a decretação do impedimento são várias: abuso de poder econômico e político, erro de pessoa, falsidade ideológica, falta de decoro, improbidade administrativa, perturbação da ordem pública, etc. Um ditado coreano diz que, quando dois elefantes brigam, quem paga o preço é a floresta. Orgulho-me em dizer que sou também parte responsável pela preservação da floresta”.

Interligne 18h

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora. O título do artigo faz alusão ao livro homônimo de Nélson Rodrigues.

Pimenta nos olhos…

Advogado 1Ancelmo Góis (*)

Felipe Santa Cruz, presidente da OAB no Rio, questionou, no Facebook, se um deputado com várias contas secretas na Suíça contrataria, para sua defesa, um advogado que tivesse sido reprovado no exame da instituição.

É que Eduardo Cunha assina um projeto que acaba com a prova para o exercício da profissão.

(*) Ancelmo Góis, jornalista, em sua coluna no jornal O Globo, 11 out° 2015.

Aberta a brecha

José Horta Manzano

Saiu ontem na Folha. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entende que cadeirantes têm direito a viajar de avião de graça. Sob risco de arrumar um punhado de inimigos, digo o que penso: não concordo com a determinação do TJ.

Velhice 3Explico melhor. O tribunal não fez nada de errado, apenas aplicou a lei. Na verdade, é com a lei que não concordo. Não me parece boa ideia conceder privilégios a determinadas categorias de cidadãos em função deste ou daquele motivo aleatório. O benefício tem de estar relacionado com a carência.

Que se reservem assentos para idosos ou para gestantes faz sentido. O mimo se coaduna com a necessidade: viajar de pé é problemático para gestantes e para idosos. Já garantir passagem grátis a quem padece de certos males – deixando de lado outros enfermos – faz menos sentido.

A meu ver, essa lei, que já vigora há tempos em viagens rodoviárias interestaduais, entra na mesma senda torta das quotas para estudantes, anciãos, índios, menores de idade e outros reservatários.

Onibus 4Se se concede gratuidade de transporte a quem sofre deficiência visível – caso de quem se desloca em cadeira de rodas –, a coerência manda que o benefício seja também estendido a concidadãos que padecem de deficiência não visível. Se o cadeirante pode, também deve poder o diabético, o cardíaco, o reumático, o entérico, o maneta.

A moça a quem a arbitragem do TJ do Rio Grande garantiu bilhete grátis de avião é advogada e atleta de paracanoagem. O bom senso leva a crer que outros cidadãos de situação financeira bem mais precária também gostassem de viajar sem pagar.

Velhice 2Entendo que, até certo ponto, finanças podem ser critério de seleção: àquele que pode menos, dá-se mais. A priori, no entanto, velhice e defeito físico não deveriam justificar concessão automática de privilégio(*). Ser velho ou ser cadeirante não é sinônimo de estar mal de finanças.

A brecha dos privilégios, uma vez aberta, é difícil de colmatar. Sempre aparecerão grupos de cidadãos que julgam ter direitos mais amplos que os demais. É caminho imprevisível e perigoso, oposto ao espírito republicano.

Interligne 18c

ET: Etimologicamente, privilégio é lei privada, ou seja, lei feita especialmente para pequeno grupo de cidadãos.

De mentirinha

José Horta Manzano

Como ocorreu nas demais unidades federadas, o eleitorado maranhense votou, domingo passado, para escolher novo governador. Ganhou um certo senhor Flávio Dino de Castro e Costa, sorridente advogado de 46 anos. E ganhou bem: abocanhou 63% dos votos válidos. Foi aclamado por dois em cada três eleitores.

Até aí, morreu o Neves. Que ninguém veja aqui alusão ao candidato à presidência da República. Estou usando expressão bem-educada para substituir o grosseiro «e daí?».

Lenin 2A mídia toda deu destaque ao fato de o novo governador ter desbancado o clã Sarney, que dominava e assombrava a governança estadual havia quarenta anos. Mandou pra aposentadoria o capo e tutta la famiglia. Bravo!

Em meio aos festejos, poucos prestaram atenção ao partido ao qual o recém-eleito é afiliado. Afinal, na algaravia das 32 legendas(!) registradas no TSE, não há cristão que ache seu caminho. Pois o moço é membro do… PC do B – o Partido Comunista do Brasil.

Tive a curiosidade de dar uma espiada nos estatutos do PC do B. Ele prega a «luta contra a exploração e opressão capitalista e imperialista». Vai mais longe: «[o partido] tem como objetivo superior o comunismo». Os estatutos nomeiam e louvam Marx, Engels e Lênin. E se propõem chegar ao comunismo através de um primeiro estágio – o «socialismo científico» – seja lá o que isso signifique. Está tudo preto no branco, pode conferir.

O novo governador é bem-nascido. Advogado, filho de advogados, já foi juiz federal durante 12 anos. Entrou na política relativamente tarde, quando já tinha 38 anos de idade. Sua ascensão foi rápida.

Eleito, seu discurso de vitória incluiu banalidades como «enfrentar a corrupção», «fazer um governo bom, simples, com os pés no chão», «tirar nosso Estado das páginas policiais». Declarações que cairiam bem na boca de qualquer político.

Longe de mim acusar esse senhor de falsidade ideológica. Mas custa crer que, no Brasil, em pleno século XXI, um homem maduro, aparentemente instruído, formado e experiente ainda possa comungar na cartilha comunista. Alguma coisa está fora de lugar.

Reuniao trabalho 1Fica no ar a impressão de divórcio consumado entre estatuto de partido e motivação de afiliado. O Partido Comunista não é necessariamente composto por comunistas. A recíproca é verdadeira: os comunistas – se é que sobrou algum – não estão necessariamente afiliados ao Partidão.

Partido político, hoje em dia, está mais pra balcão de negócios do que para caldeirão ideológico. São clubes de mentirinha.

Frouxidão

José Horta Manzano

Não se pode esperar que todos os habitantes do planeta tenham o mesmo nível de conhecimento e de habilidade. A diversidade é uma riqueza da espécie humana. Quem não sabe construir um muro chama um pedreiro que entenda do assunto. Quem não leva jeito para redigir uma petição solicita o serviço de um advogado capaz. Quem não consegue cortar as unhas do pé vai a um pedicuro apto a executar o serviço.

Placa com erro 2

De Sul a Norte, não há quem se importe
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Esses exemplos parecem evidentes, não é? Estou chovendo no molhado, não parece? O que eu disse salta aos olhos de qualquer indivíduo medianamente inteligente, não? Pois fique sabendo, caro leitor, que ainda há gente que não entendeu a mensagem. E gente graúda, daqueles que fazem parte do restrito clube de otoridades.

Na organização da «Copa das copas» ― segundo o slogan dernier cri bolado pelo marketing planáltico ― a acolhida ao turista estrangeiro tem recebido especial atenção.

Placa com erro 3

Estádio da Fonte Nova, Bahia
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Sabemos todos que, em cada cidade-sede, linha especial de metrô foi inaugurada ligando o aeroporto ao centro. Dezenas de terminais aéreos foram criados, e os existentes, modernizados. Policiais, agentes e pessoal voluntário seguiram curso intensivo de língua estrangeira ― são hoje praticamente todos bilíngues. A criminalidade baixou a níveis nunca vistos. Até novenas e trezenas têm sido dedicadas a Santa Bárbara para que evite tempestades. Enfim, o turista estrangeiro voltará para casa com a impressão de ter passado uma temporada no paraíso.

Infelizmente, um grãozinho de areia anda perturbando o funcionamento da máquina. É coisa pouca, mas vistosa e capaz de estragar o todo. Autoridades encarregadas de providenciar placas informativas em língua estrangeira se distraíram: encomendaram o serviço a tradutores incompetentes. O resultado tem sido desastroso.

Placa com erro 4

Cariado de preferência
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Já no ano passado, a inauguração de um estádio baiano foi objeto de zombaria por parte da imprensa nacional e internacional. O erro era tão monstruoso que ofuscou a notícia principal, que deveria ser a abertura da praça de esportes. Uma imensa placa dizia «Saída» e, mui educadamente, traduzia para o inglês. Nossa saída tornava-se «entrace»(sic). Entrance, em inglês, é a entrada. E se escreve entrance, não entrace.

Estes dias, foi a vez do respeitado metrô paulistano. Botaram placas em francês e em italiano para sugerir ao estrangeiro que procure um funcionário da companhia caso deseje obter informações. Por óbvia, a placa, a meu ver, é desnecessária. A quem mais se dirigiria o turista se não a um agente da empresa?

Seja como for, se placa há, que esteja bem escrita. E não está. Tanto a versão francesa quanto a italiana apresentam erros de grafia e de lógica. A frase escrita na língua de Molière soa, a ouvidos franceses, mais ou menos como se estivesse escrito: «Por informação, pergunta um emprego». Precisa um certo esforço para entender.

A versão italiana é ainda mais intrigante. Do jeito que está, sugere, com sabor dialetal, que o incauto leitor procure obter informações junto a um indivíduo cariado. Bom, ter cárie é sinal de que ainda sobra algum dente. É sempre melhor que ter de procurar um desdentado…

Duas palavras para resumir o problema: fracasso total. De otoridades incultas, displicentes, desleixadas e descompromissadas com a seriedade, não se poderia esperar mais que isso. Procuraram um pedreiro incapaz, e o muro periga desabar.

E não se esqueça de que o conceptor, o tradutor, o grafista, o pintor e o batedor de prego foram pagos com nosso dinheiro. Sem contar alguma eventual propininha aqui e ali, que ninguém é de ferro.

A Copa é nossa!

O Ipiranga 2

José Horta Manzano

Aos amigos que leram meu artigo de ontem ― O Ipiranga ―, explico que o de hoje é continuação do anterior. Aos que pularam o capítulo, peço que comecem por ler o de 12 de março. É a melhor maneira de se inteirarem do assunto.

.:oOo:.

O caso do ciclista mutilado provocou comoção nacional. É justo e compreensível. Mas cuidado! Não vamos deixar que o estupor nos leve a clamar por um governo autoritário.

Este não é um blogue que propague o cerceamento das liberdades garantidas. As leis maiores já estão aí, não faz muita falta criar mais. Meu sonho é que um dia ― talvez ainda longínquo, admito ― nossas leis sejam de fato cumpridas. Que o Brasil se torne um país civilizado.

Os brasileiros, nascidos e criados em território de povoamento relativamente recente, carecem dolorosamente do sentimento de pertencimento a uma comunidade. Mas não exageremos: nada é inteiramente negativo, nem nada é totalmente positivo.Bicicleta

O fato de nosso País ter sido formado por diferentes correntes de população tem seu lado bom. Levas de gente trazida à força da África, coletividades indígenas que já aqui estavam, bandos de aventureiros e de idealistas, torrentes de vítimas de perseguição, multidões de fugitivos da fome, grupos de imigrantes miseráveis, enfim, gentes de todos os quadrantes estão tentando construir a nação brasileira.

Nação? Chegaremos lá um dia, mas falta um pedaço de caminho. Tudo ainda está muito heterogêneo, há que dar tempo ao tempo e deixar que o caldo engrosse. O feijão ainda está meio cru, muito ralo. Falta cozinhar. Vamos precisar de muito tempo para amenizar as marcas inauguradas pela partilha do território entre os amigos do rei e aprofundadas pelo regime escravagista que vigorou durante 300 anos.

A doação de imensos territórios feita pelo monarca de Portugal a seus mais chegados é hoje objeto de breve menção na escola elementar. Quanto à segmentação da população entre escravos e cidadãos livres, essa terminou num 13 de maio, faz 125 anos. Essa é a História oficial mas, como diria o outro, na prática, a teoria é outra. Não há «discriminação positiva» nem sistema de quotas capaz de mudar mentalidades da noite para o dia.

Os brasileiros ― que isso nos agrade ou não ― dividem-se em duas categorias nítidas: os que mandam e os que são mandados. Se preferirem uma metáfora, há os que habitam no andar de cima e o resto, os do andar de baixo. Repito: constitucionalmente, somos todos iguais, mas o dia a dia se encarrega de escancarar a realidade. Alguns são mais iguais que outros.

.:oOo:.

Os jornais de terça-feira 12 de março trouxeram a continuação do caso do ciclista atropelado, uma das ocorrências mais repugnantes de que tenho ouvido falar.

Que se instalem «ciclovias» e «ciclofaixas» somente em ruas menores! Essa foi a solução encontrada pelo prefeito do município mais populoso e mais rico do País. Poxa, que perspicácia, gente! Como é que ninguém pensou nisso antes? Se os ciclistas circularem somente por «ruas menores», não encontrarão mais motoristas bêbados e, por conseguinte, não terão seus membros decepados e atirados ao esgoto. Ah, como seria bela a vida se todas as ruas fossem «menores». Se simploriedade desse cadeia…

Pensam que estou brincando? Pois comprovem aqui.

Riacho Ipiranga, São Paulo

Riacho Ipiranga, São Paulo

O Estadão traz a declaração de «um dos advogados» do acusado ― sinal de que são vários ― segundo o qual a família do jovem criminoso estaria sendo ameaçada. Se for verdade, está aí outro sinal de que ainda é longo o caminho até chegarmos a um grau aceitável de civilização. O Direito Romano, dois milênios atrás, já consagrava o princípio da individualidade da culpa. Por pior que possa ter sido a influência da família, o culpado é o autor do delito. Alguns brasileiros ainda não captaram o ensinamento.

Por acaso, um outro causídico casual já se apresentou à mãe do atropelado e se propôs a assegurar a defesa de seus interesses. A senhora, atordoada pelo que aconteceu ao filho, ainda não sabe o que fazer.

Tudo indica que o acusado pertence ao andar de cima. Sua equipe de advogados saberá valer-se de todas as chicanas que nossa legislação oferece para tirá-lo rapidinho da cadeia e para protelar o julgamento. Daqui a alguns anos, quando e se o processo tiver lugar, não me espantaria que o jovem fosse apenas condenado a pagar algumas cestas-básicas. Seu verdadeiro castigo será o peso desse braço. Será obrigado a arrastá-lo até seu último suspiro.

Já o ciclista é morador do andar de baixo. É pobre e, como convém dizer hoje, euro-afrodescendente. Uma campanha foi lançada no facebook para arrecadar fundos para a compra de um braço mecânico para o infeliz.

Uma pergunta me atormenta: a quantos braços mecânicos equivalem os honorários de um advogado criminalista?