Sua Majestade, o rei

José Horta Manzano

Dizem que a morte de um ancião nunca é uma tragédia mas o caso da rainha Elizabeth talvez seja a exceção que confirma a regra. Ela era, com certeza, a pessoa mais conhecida do mundo, e seu desaparecimento deixa um vazio. Todos os veículos da imprensa mundial, sem exceção, dão destaque hoje à morte da rainha.

Na Inglaterra, até aqueles que são contra a monarquia e que gostariam que a instituição fosse abolida apreciavam e, sobretudo, respeitavam Elizabeth II. Ela era como um rochedo, sempre firme no meio das tempestades.

Ninguém nunca soube o que ela pensava. A rainha permaneceu a vida toda fiel ao dever de reserva que impôs a si mesma. Dizem uns que ela era a favor do Brexit; outros garantem que nunca ela apoiaria uma ideia tão maluca – ao fim e ao cabo, não saberemos jamais.

De longe a personalidade mais fotografada do mundo, ela deixava qualquer estrela do cinema ou das artes comendo poeira. Elizabeth II visitou praticamente todos os países, mas – curiosidade singular: nunca teve passaporte.

A rainha nunca teve documento de identidade. Sempre carregava uma bolsa cuja utilidade era desconhecida. Não pagava nenhuma compra. Não entrava em nenhuma loja. Nunca foi ao cinema. Nunca fez compra numa padaria ou num açougue. Não deve nunca ter usado dinheiro vivo. Talvez nunca tenha entrado numa cozinha. Dá pra imaginar passar 70 anos num regime rígido assim?

Ela vai fazer muita falta. Não fosse ela, a monarquia britânica já teria desmoronado. Vamos ver se o novo rei aguenta o tranco. Não será fácil, visto que sua popularidade é bem mais baixa que a da mãe, sem contar a esposa, vista por muitos britânicos como uma intrusa.

Não será fácil preencher o vácuo deixado por Elizabeth. Não é o filho nem a nora que têm carisma para isso. Num futuro mais distante, quem sabe.

Por enquanto, la reine est morte, vive le roi! – a rainha morreu, viva o rei!

PS
Charles não é obrigado a conservar o nome de batismo. Pode adotar um outro nome que lhe agrade, a escolha é dele. Seu avô, pai de Elizabeth, nasceu Albert, mas reinou como George VI. Saberemos rapidamente.

Pecado imperial

José Horta Manzano

O próprio das monarquias absolutas é dispensar a organização política tal qual a conhecemos. Nas nações em que vigora esse sistema, o monarca é praticamente o dono do país, prescindindo de representantes do povo. Faz e desfaz conforme lhe dá na cuca. Ainda sobram uns quantos reinos desse tipo no planeta. A pequena Swazilândia, no sul da África, e os emirados árabes são exemplos.

Nas Américas e no mundo ocidental, com a notável exceção da monarquia dinástica cubana, não sobra nenhuma nação sob domínio absoluto. As monarquias que subsistem ‒ uma dezena ‒ são todas constitucionais. Todas elas contam com parlamento composto de representantes do povo.

Nas monarquias ocidentais, é de regra o rei ser apartidário. Suprapartidário será ainda melhor definição: ele paira acima de partidos e nunca se intromete em disputas políticas. Contenta-se em ser chefe do Estado, com funções protocolares, isento de responsabilidades políticas. Não se esperam dele manifestações de preferência ‒ sequer de mera simpatia ‒ por este ou por aquele partido. Sua figura deve permanecer augusta e distante, como convém ao pai da pátria: o alicerce sólido que simboliza a unidade nacional.

Bandeira do Império do Brazil

No Brasil, em 1889, um golpe militar aposentou a monarquia e despachou a família imperial às carreiras, no primeiro navio. Muitos hoje se dão conta de que talvez não tenha sido boa ideia derrubar o regime. Os males de nossa república são tantos que a gente se pergunta se não teria sido melhor guardar um sistema que, comparado com o atual, não ia tão mal assim.

Deodoro e seus amigos republicanos não trucidaram a família imperial, como viriam a fazer os revolucionários russos trinta anos mais tarde. Assim, faz cinco lustros que os descendentes de Dom Pedro II aguardam o dia ‒ quem sabe? ‒ em que serão reconduzidos ao trono.

Ao longo desse tempo, os Orléans e Bragança, bem ou mal, se têm mantido discretos, sem demonstrar apego a este ou àquele partido. Todavia, uma nota destoante acaba de ser tocada pelo príncipe Luiz Philippe d’Orléans e Bragança. O moço teve a infeliz ideia de associar a pompa solene que acompanha seu sobrenome à fama sulfurosa de doutor Bolsonaro. Deixou circular a notícia de que estava sendo cotado para candidatar-se ao cargo de vice-presidente em dobradinha com o ex-capitão.

O príncipe pecou duas vezes. Por um lado, é desperdício emprestar prestígio a dono de ideário tão primitivo. Por outro, não convém a membro da família imperial envolver-se com luta partidária. Se querem guardar a reduzida esperança de um dia retornar ao trono, os Orléans e Bragança deveriam manter prudente distância da cozinha política. A imperial sabedoria do velho Pedro II anda fazendo falta.

País judiciarizado

José Horta Manzano

«Era abril de 1996 em Assunção. Um golpe estava em andamento contra Juan Carlos Wasmosy, presidente constitucional. Adiantando-se aos fatos, ele mandou para a reforma o general Lino Oviedo, chefe da insurreição ‒ que respondeu com a ameaça de bombardear a residência presidencial.

Ao cabo de três dias dignos de filme de suspense, Wasmosy recebeu telefonema de Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil. Era para expressar seu apoio. Mas não foi mero bate-papo telefônico. A chancelaria brasileira tratou de despachar um avião para recolher os demais ministros de Relações Exteriores dos países do Mercosul para levá-los a Assunção.

O motim foi neutralizado. Alguns terão certamente etiquetado os fatos como ingerência em assuntos internos do Paraguai. Esse golpe foi exatamente o motivo pelo qual o Mercosul conta hoje com a cláusula democrática, consagrada pelo Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998. Diante das crises, mais instituições.»

A citação acima é parte do excelente artigo ‘Indispensable Brasil’, escrito estes dias pelo cientista político argentino Héctor E. Schamis e publicado no jornal espanhol El País. Vale a leitura. Quem estiver interessado clique aqui.

«Diante das crises, mais instituições [são criadas]», a última frase da citação, merece reflexão. É fato. Quando situações de alto poder explosivo se esgotam, o risco é grande de serem substituídas por ordenamento ostensivamente oposto.

Nem precisa ir muito longe pra encontrar exemplo. Em nosso país, em meados dos anos 80, após a falência de um regime duro e repressivo que tinha durado duas décadas, a tendência era reorganizar a sociedade para mantê-la o mais longe possível de derivas autoritárias. Nova Constituição foi negociada. O temor de que o regime descambasse de novo não foi bom conselheiro. A Carta saiu exageradamente liberal, com muitos ‘podes’ e pouquíssimos ‘não-podes’, recheada de ‘direitos’ e parca de ‘deveres’.

Muitas das distorções que nos atormentam hoje vêm justamente das boas intenções dos constituintes de 1988. A liberalização exagerada acabou gerando descontrole. Mensalões e petrolões são filhotes tardios daquele estado de espírito. E olhe que tivemos sorte de não terminar como a Venezuela, sufocada por um autoritarismo desesperado. Estávamos caminhando para a mesma situação. Era um paradoxo. Estávamos resvalando pela ladeira da qual os constituintes tudo fizeram para nos resguardar.

A crise está de novo aí. Desta vez, é política, insitucional, econômica e moral. Um pacote de mazelas pra ninguém botar defeito. Como vai se resolver, ninguém sabe. É possível que, aos trancos e barrancos, cheguemos às eleições previstas para 2018. Não é impossível que uma PEC qualquer nos leve pelo caminho de eleições antecipadas. Pode ainda ser que uma emenda nos traga regime parlamentarista. Nem a restauração da monarquia está excluída da lista de possibilidades ‒ aliás, no meu entender, está entre as boas opções.

O importante é evitar todo exagero. Nossa república já se tornou por demais judiciarizada. Por um sim, por um não, contrata-se advogado, pede-se habeas corpus, apela-se para cortes superiores, chega-se até STF. Há que ter cuidado para não nos tornarmos um país onde tudo e qualquer coisa se decide dentro de um tribunal diante de um juiz. A justiça deve estar ao alcance de todo cidadão, mas abusar dela pode ser nocivo ao país. É questão de bom senso.

Salve a Seleção!

José Horta Manzano

Até não faz muito tempo, um jogo de futebol entre Brasil e Argentina, ainda que amistoso, ofuscaria todo e qualquer acontecimento e faria a manchete unânime da mídia. Dizem até as más línguas que, entre nossa Seleção e a dos hermanos, não existem partidas «amistosas», que são todas pra valer.

O mais recente encontro entre as duas, realizado hoje do outro lado do planeta, terminou há pouquinho. Curioso, vim conferir o resultado. Abro o Estadão online. Está lá uma manchete em letras enormes com o placar. Placar do jogo? Não, senhores. O placar do voto de Suas Excelências sobre o julgamento do pedido de cassação do presidente em exercício. Aliás, nem placar é, que não passa de projeção.

Dão nome, foto, idade e currículo da «seleção» de magistrados, exatamente como nas figurinhas de futebolistas que se colavam nos álbuns de antigamente. Exatamente como se descrevessem a expectativa de desempenho de cada jogador, dão a probabilidade de voto de cada um dos magistrados. A diferença mais notável entre os astros do gramado e os do tribunal é que aqueles são onze, enquanto estes não passam de sete. No mais, o entusiasmo pelo julgamento é o mesmo.

Vou descendo o elevador do jornal online à cata do resultado do jogo. Depois da manchete principal, vem uma notícia sobre a inflação de maio. Em seguida, nova manchetinha falando de acordos de leniência possíveis entre instituições financeiras e o Banco Central. Mais abaixo, uma chamada para os editoriais do dia informa que um deles discorre sobre o caráter pedagógico do julgamento.

Só depois disso é que aparece o resultado do jogo de futebol. Fico sabendo que o Brasil foi derrotado. Um pensamento me ocorre: se tivesse vencido, será que a notícia teria subido um ou dois degraus na ordem de apresentação do jornal? Nem Nostradamus tem resposta.

Bom, talvez seja eu o único a me surpreender com o que acabo de escrever. É possível que pareça natural a uma maioria de conterrâneos que a permanência ou não de doutor Temer na chefia do Executivo seja o assunto mais importante. Quanto a mim, não vejo com esses olhos, que fazer? Cada um enxerga através das próprias lentes.

Será que ‒ realmente ‒ faz alguma diferença que o presidente seja A, B ou C? Que Temer fique, que Temer caia ou que Temer balance, no fundo, que vantagem Maria leva? O que é que há de acontecer de tão importante para cada um de nós? Espremendo bem, analisando sem paixões, qualquer um chegará à mesma conclusão: nada vai mudar. É muito difícil, pra não dizer impossível, encontrar um homem público sem manchas no currículo. Qual deles nunca deu uma carteirada, nunca pegou carona num jatinho amigo, nunca empregou um parente, nunca inchou uma nota de despesa, nunca deixou a Casa no meio do expediente, nunca furou uma fila, nunca usou nenhum centavo de dinheiro público para fins pessoais?

Vai ser difícil encontrar a pérola rara, o imaculado, o honesto absoluto. Mas tem pior. Se, por um milagre do Espírito Santo, encontrassem o homem providencial, quem garante que fosse bom administrador? Honestidade e retidão não são necessariamente sinônimos de boa capacidade política e administrativa.

Em vez de insistir no «Fica, Temer!» ou no «Fora, Temer!», deveríamos pensar no «E depois de Temer?». Parlamentarismo? Voto distrital? Presidente da República desprovido de poder? Monarquia? O debate importante tem de passar por cima de querelas passageiras e enxergar mais longe. Pra frente, Brasil! Salve a Seleção!

O putsch

José Horta Manzano

Comemora-se, neste 15 nov° 2014, a dita «Proclamação da República», ocorrida faz 25 lustros. A meu ver, não há diferença entre o putsch militar de 1889 e o de 1964. Foram ambos golpes inconstitucionais e como tal devem ser considerados.

Interligne vertical 7Pequena digressão
A importância deste 15 nov° está um bocado ofuscada pela assombrosa prisão de gente graúda – falo dos elementos envolvidos no assalto à Petrobrás. Como dizia o outro, roubo de bilhões não pode ser obra de um ou dois: tem de ser feito coletivo, com dezenas de salafrários acumpliciados. Agora, a coisa está começando a fazer sentido.

Voltando à vaca fria
Nós, brasileiros, aprendemos na escola que a república se opõe à monarquia. Dizendo melhor: que o regime republicano é a alternativa ao regime monárquico. Não é assim tão simples.

Bandeira Brasil 1República é o regime em que uma população se governa a si mesma, por meio de representantes livremente eleitos. Na república, não existe a figura do chefe «por direito divino», por hereditariedade, nem por força das armas. O sistema republicano se opõe, na verdade, a regimes ditatoriais ou paraditatoriais, nos quais a escolha dos representantes é negada, desvirtuada, usurpada ou fraudada.

A história oficial do Brasil ensina que, «proclamada» a república em 1889, a família imperial foi despachada para o exterior e que, de lá pra cá, o País vive dias republicanos felizes e ininterruptos. Não é bem assim.

Nosso regime republicano já foi interrompido em numerosas ocasiões. Golpes puseram a legalidade entre parênteses por períodos mais ou menos longos. Alguns duraram dois ou três dias, enquanto outros se instalaram por décadas.

A ditadura de Vargas (1930-1934) e (1937-1945) marcou o período mais longo, desde o banimento de Dom Pedro II, durante o qual o Brasil foi dominado por um mesmo homem. Já a ditadura instalada a partir de 1964 foi mais longa, mas os militares permitiram rodízio no topo do Executivo.

Bandeira do Império do Brazil

Bandeira do Império do Brazil

Leis e decretos costumam ajuntar, à data de promulgação, uma menção indicando a contagem de tempo a partir de 1889. Os documentos garantem que estamos hoje entrando no 126° ano da República. Estaremos mesmo? Não concordo.

Sem ser demasiado rigorista, estamos em nossa Terceira República. A primeira começou com a saída do imperador e a entrada de Deodoro. A segunda, em 1945, com o apeamento de Getúlio. E a atual, a Terceira República, teve início no momento em que João Baptista Figueiredo deixou o Planalto – pela porta dos fundos, dizem – largando as rédeas do País nas mãos de José Sarney.

Melhor, mesmo, seria evitar a contagem de anos desde o golpe que aboliu nossa monarquia constitucional. É assunto demasiado complexo, daqueles que não reúnem consenso.

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O Neue Zürcher Zeitung , jornal suíço de referência – assim como são o francês Le Monde, o americano The New York Times e o brasileiro Estadão –, publicou extenso e interessante artigo sobre a mudança de regime pela qual o Brasil passou 125 anos atrás. Dá, aos bois, nomes verdadeiros. Trata a transição de golpe e de putsch. Como, de fato, foi. Quem se sentir à vontade em alemão pode dar uma espiada clicando aqui.

Era de esperar

José Horta Manzano

Uma das engraçadas leis de Murphy diz que, se o pior puder acontecer, acontecerá. A mídia europeia, naturalmente, deu boa cobertura à presença papal no Rio e a ela dedicou espaço importante.

No entanto, é compreensível que, num mundo encharcado de imagens ao vivo e em alta resolução, a figura de um papa beijando criancinhas já não entusiasme como antes.

Para apimentar reportagens modorrentas, não foi preciso procurar muito longe. A alguns passos da rota do visitante, jovens ― aparentemente sem grande coisa a fazer e, mais que isso, vítimas de estrelismo agudo ― decidiram se manifestar.

Visita do papa

Visita do papa

Houve reclamações contra o governador do estado, contra o preço das passagens de ônibus. Houve até os que fizeram questão de hostilizar o visitante, prova de que democracia não rima necessariamente com civilidade. Em resumo, as manifestações pareciam um mercado persa, uma loja de 1,99 onde se encontra de tudo.

O jornal francês Le Monde, assim como o resto da mídia estrangeira, não se fez rogar para registrar os acontecimentos e difundi-los por aqui. Vai-se firmando a ideia de que, longe da imagem suave e idílica que se tinha, o Brasil é um país habitado por gente violenta, baderneira, mal-educada e imprevisível. Dá muita pena.

E pensar que os que tiveram nas mãos o poder absoluto estes últimos 12 anos não se empenharam em elevar o padrão civilizatório do povo. Não era tão difícil. Até nos tempos da ditadura havia uma oposição mais incisiva que a atual. Bastava que os eleitos tivessem dedicado metade de seu tempo a cumprir com honestidade o mandato que lhes tinha sido confiado. Para desgraça de todos, a maioria preferiu dedicar a totalidade de seu tempo a seus interesses pessoais. O resultado está aí. A História há de guardar estes anos irresponsáveis, de esbórnia e de incúria, entre os mais sombrios.

O bom lado disso tudo é que, por uma dessas coincidências alinhavadas pelo destino, o herdeiro da coroa britânica tenha visto a luz no mesmo dia da chegada do papa ao Rio. O choro do neonato foi providencial.

No Brasil, compreensivelmente, o evento passou praticamente despercebido. Já na Europa, o royal baby eletrizou tanto os que ainda têm um rei, quanto os que gostariam de voltar a tê-lo. Ou seja, uma importante fatia de cidadãos. Isso ajudou a sombrear a imagem das desordens do Rio e abafar-lhes o eco . Melhor assim.

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Interligne vertical 9Curiosidade pré-histórica

Jânio Quadros foi presidente do Brasil ao tempo dos Sumérios. Era personagem carregado de defeitos. Acusavam-no de beberrão, esquizofrênico, populista, imprevisível, paranoico. Pode até ser, mas há controvérsias.

No entanto, num ponto, todos concordavam: o homem conhecia profundamente a língua portuguesa. E mais: apesar dos defeitos e do raríssimo sorriso, sabia tratar os outros com civilidade e, em troca, exigia ser tratado com respeito.

Uma vez, quando de uma entrevista coletiva, um repórter dirigiu-se ao presidente chamando-o de você. A reação veio fulminante. O presidente chamou a atenção do interlocutor. Disse-lhe que não o estava tratando com tamanha intimidade e ficaria reconhecido se o repórter lhe concedesse tratamento recíproco.

Eram outros tempos. Os homens tinham seus defeitos, mas ainda mantinham um verniz de polidez. Hoje, um solvente parece haver decapado a superfície. Foi-se o polimento, e sobraram só os defeitos.

Reparem, aqui logo acima, no cartaz do manifestante. Trata o ilustre visitante por você e isso não parece incomodar mais ninguém. Jânio talvez desaprovasse.

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Época de mudanças

José Horta Manzano

Reforma política
Toda caminhada, seja ela de alguns metros ou de quilômetros, tem de começar pelo primeiro passo. Temos pela frente uma oportunidade rara, daquelas que não aparecem mais que uma ou duas vezes na vida: endireitar as estruturas de nosso País. Ou, pelo menos, tentar fazê-lo.

A frustração de constatar que aquilo que se fez não deu certo é sempre menor do que o arrependimento de não haver tentado.

Estados Unidos do Brazil Constituição da 1a. República, 1891

Estados Unidos do Brazil
Constituição da 1a. República, 1891

O Brasil é um país de muita desigualdade e de muitas distorções. Tem-se falado muito, estes últimos dias, em reforma política. Que seria isso? É um conceito amplo, vago. É como um ônibus em que, apertando um pouco, sempre cabe mais um.

Reforma política pode tratar da duração do mandato de cada eleito. Mas pode também substituir o regime republicano por uma monarquia. Num sentido lato, a política é a arte de administrar o Estado. Isso vai da fixação do horário de trabalho dos contínuos até a definição dos poderes da República e sua hipotética hierarquização.

Seria altamente recomendável que se fixassem os objetivos antes de dar o primeiro passo da caminhada. Que seja tudo muito claro. Que se determine aonde se quer chegar, sob pena de atolar no meio da estrada.

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Representatividade
Partindo do pressuposto que a reforma política mantenha a representação bicameral (Câmara + Senado), o momento vem a calhar para botar remédio numa distorção flagrante.

No nosso regime federativo bicameral, o Senado representa os estados, enquanto a Câmara reflete os habitantes. Para evitar que estados mais populosos exerçam uma influência esmagadora no Congresso, cada um, seja qual for sua população, envia 3 representantes ao Senado. Isso faz que, na câmara alta, os estados estejam todos em pé de igualdade.

Na Câmara Federal ― também chamada câmara baixa ― cada deputado deveria representar um determinado número de habitantes. Se somos, grosso modo, 200 milhões de cidadãos, cada um dos 513 deputados deveria representar cerca de 400 mil brasileiros, pouco mais, pouco menos. Não é o que acontece atualmente.

Brasília - Congresso Nacional

Brasília – Congresso Nacional

Por alguma razão que me foge, a Constituição de 1988 passou por cima do que parece uma evidência. Desprezando a representatividade proporcional, estabeleceu que cada estado enviasse um mínimo de 8 e um máximo de 70 representantes.

O resultado é que, no caso mais aberrante, o voto de um roraimense vale o de dez paulistas. Em outros termos, se um habitante do simpático estado do Norte decidir-se pelo candidato do partido A, será necessário que 10 paulistas votem no candidato do partido B para equilibrar. Haja desequilíbrio!

A Câmara Federal está longe de representar proporcionalmente os habitantes. O voto de um acriano vale o de 4 alagoanos. O partido A vai precisar conquistar o voto de 4 ou 5 mineiros para compensar o sufrágio de um único amapaense.

O voto distrital puro, em dois turnos, parece-me a melhor solução. Seja qual for o caminho escolhido, a atual distorção na representatividade tem de ser corrigida.

Nove dias cruciais

José Horta Manzano

Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Estes últimos 10 anos, os brasileiros viveram anestesiados pelas artes de um excelente marketing governamental, que fez crer a (quase) todos que a situação do País era infinitamente melhor do que parecia.

Parede rachada Crédito: Can Stock

Parede rachada
Crédito: Can Stock

O truque funcionou. Nosso povo, um dos mais tolerantes do mundo, fechou um olho para afagos feitos por nossos mandachuvas a dirigentes sanguinários e intolerantes, a ditadores ferozes e inescrupulosos, a vizinhos malcriados e agressivos.

Alguns ― principalmente os que contam com convênio particular ― chegaram a acreditar que os serviços públicos de saúde tinham atingido padrões de países civilizados. Pois não foi o próprio presidente quem declarou isso?

São Judas Tadeu Padroeiro das causas perdidas

São Judas Tadeu
Padroeiro das causas perdidas

Por ignorância ou por ingenuidade, nossos dirigentes de primeiro escalão acreditaram que o Bric ― mera sigla inventada por um analista, no aconchego de um escritório carpetado e climatizado ― tinha significado real e palpável na vida do planeta. Imaginaram que fosse um «bloco» de países companheiros, todos empenhados em desbancar os EUA de seu pedestal. Um por todos, todos por um! Como quem tivesse decifrado o enigma da esfinge, difundiram essa ideia ilusória, imediatamente comprada como verdade insofismável por muita gente fina no País.

Muitos se encantaram com a perspectiva de nos tornarmos meros fornecedores de matéria-prima para a China. Não se deram conta de que isso nos fazia regredir 50 anos e abandonar parte significativa de uma industrialização conquistada com paciência e tenacidade.

De uns meses para cá, o edifício dá sinais evidentes de fadiga. Foi construído sobre alicerces frouxos. Rachaduras se tornam mais visíveis a cada dia. Assim como o baile da Ilha Fiscal não foi a causa da queda da monarquia brasileira, não há que identificar no aumento de preço das passagens de ônibus a causa da revolta do povo brasileiro. Foi apenas o estopim.

Às autoridades, resta acalmar os ânimos e, rapidamente, mostrar empenho em conduzir os brasileiros a bom porto. Marketing é bom, mas tem limites. Um dia, a verdade acaba aparecendo e a coisa pode ficar preta para os lados de quem mentiu. Não se consegue enganar o País inteiro o tempo todo.

Enquanto preparam um plano de emergência para repor o Brasil nos trilhos, as autoridades maiores devem levantar os braços ao céu e pedir, com muita força, que o Brasil vença a Copa das Confederações. A vitória não transformará o País, mas aplacará os ânimos dos manifestantes e dará aos governantes algumas semanas de trégua.

Recomendo, portanto que todos os cortesãos se recolham ― por que não diretamente no Palácio do Planalto? ― para lá recitarem juntos uma novena a São Judas Tadeu, padroeiro das causas perdidas. Eventualmente, Santa Rita também costuma aceitar esse tipo de reclamo.

Como sabem todos, uma novena dura nove dias. Portanto, ainda dá tempo de terminar antes do fim da Copa. Mas tem de começar já.

Depois, não vale dizer que não avisei.

Golpe

José Horta Manzano

Um dos senadores pelo Estado de Minas Gerais, Aécio Neves, participou de uma reunião, um congresso político na cidade de Santos (SP) no dia 4 de abril.

Num dado momento, escapou-lhe a palavra revolução para designar os acontecimentos de 31 de março de 1964. Foi um deus nos acuda. Foi pior do que se tivesse dado um chute na santa.

Jornalistas excitados vieram tomar satisfação. O senador virou-se como pôde para se safar da saia justa. Veja o que noticiaram o Estadão e a Folha de São Paulo.

Em 1964, fui «testemunha ocular da história» ― como rezava o chavão do falecido Repórter Esso, o jornal televisivo da época. Posso garantir-lhes que todos, sem exceção, chamaram o movimento militar de revolução. Não me lembro de ter lido ou ouvido, naqueles dias, que uma ditadura havia sido instalada no Brasil. Ela se enraizou depois.

Marechal Deodoro

Curiosamente, um outro trecho da fala do senador passou despercebido. Como aprendemos todos, convém dizer que, em 15 de novembro de 1889, Deodoro da Fonseca proclamou a República. Qualquer aluno da escola elementar sabe disso. E repetirá a expressão pelo resto da vida.

Não precisa ser nenhum profundo conhecedor da História pátria para se dar conta de que o termo proclamação, de aparência inocente, disfarça uma verdade bem menos gloriosa. Naquela manhã de 1889, Deodoro foi a ponta de lança de um golpe traiçoeiro. O Marechal foi o braço armado de uma insurreição urdida e apoiada por militares e civis.

O regime monárquico foi derrubado, e a família imperial, banida. Anos se passaram antes que um civil voltasse a tomar as rédeas do País.

.:oOo:.

Qual é a razão de tudo isso? É simples: a História é escrita pelos vencedores.

Enquanto durou o regime instaurado em 64, fomos ensinados a chamar os acontecimentos de 31 de março de revolução. Não foi senão depois que o regime se extinguiu que passamos a falar em golpe de estado.

Dado que a monarquia nunca mais foi restaurada, continuamos a escamotear o termo golpe e a nos valer do eufemístico proclamação.

Deveríamos deixar a hipocrisia de lado e dar aos bois seus verdadeiros nomes. Tanto em 1889 quanto em 1964, o que aconteceu foi a derrubada de um regime. Na marra, pela força. Portanto, ambos fazem plenamente jus à denominação de golpe de estado.

Mas cada um é, evidentemente, livre de usar a palavra que lhe parecer mais adequada.

A Escola Normal

José Horta Manzano

Lá pelo último quartel do século XIX, a elite pensante do Brasil sentia-se pouco à vontade. As Américas, tanto a inglesa quanto a hispânica, haviam dado origem a novos países. Inspiradas no exemplo norte-americano, todas as antigas colônias espanholas tinham adotado ― pelo menos oficialmente ― o regime republicano.

O Brasil, na visão positivista daquele fim de século, fazia figura de patinho feio. Enquanto os vizinhos elegiam seu presidente, nós aqui mantínhamos uma monarquia hereditária baseada na lei do sangue, como na Idade Média. Pior que isso: o País era o último pedaço do continente onde ainda subsistia a escravidão. Por sinal, também ela baseada na lei do sangue.

Só um parêntese. Desde que, pela primeira vez, um agrupamento humano entrou em conflito com outra tribo, pareceu natural que os vencidos fossem escravizados pelos vencedores. Fazia parte dos costumes. Foi assim durante milênios. Já nossa escravatura era de outra natureza, uma bizarrice que fugia à lei da guerra. Era um servilismo de casta. A jus sanguinis ― a lei do sangue ― traçava a rota de cada indivíduo. Filho de escravo era escravo e filho de homem livre era homem livre. Fechemos o parêntese.

Quando a situação de uma comunidade não vai lá muito bem, é costume procurar um culpado. A Alemanha nazista designou o povo judeu como bode expiatório e apontou-o como responsável por todos os males do país. Outras civilizações, em outras épocas, apontaram culpados para suas mazelas.

Para muitos dos letrados daquela época, a razão do relativo atraso do País pareceu evidente: o que travava o progresso era o regime, simbolizado pelo Imperador. A abolição da escravidão, em 1888, não acalmou os ânimos. Pelo contrário. Os grandes proprietários agrícolas, subitamente privados da habitual mão de obra gratuita, aliaram-se aos republicanos.

Daí para a frente, sabemos todos o que aconteceu. Em novembro de 1889, o Imperador foi apeado do poder e despachado para a Europa com toda a família.

Escola Normal de São Paulo Inauguração - 1894

Escola Normal de São Paulo
Inauguração – 1894

A partir daí, um punhado de bem-intencionados decidiu que era chegada a hora de iniciar o caminho do progresso. Havia que regenerar o País. Precisava despertá-lo da letargia em que se tinha acomodado durante a era imperial. E por onde começar? Mas… por uma Instrução Pública de qualidade, cáspite!

Em São Paulo, homens de visão se empenharam em promover um ensino público de bom nível. Para ensinar alguém, é preciso aprender primeiro. E era justamente o que fazia falta. Numa São Paulo à qual aportavam diariamente levas de novos habitantes, era urgente formar professores.

Um prédio novinho em folha foi encomendado a Ramos de Azevedo, aquele mesmo arquiteto de cujas pranchetas sairia, alguns anos mais tarde, o Theatro Municipal da cidade.

O imenso edifício dedicado ao ensino público foi inaugurado em 1894. Para lá foi transferida a Escola Normal, que antes funcionava em local exíguo e inadequado.

Aquela que se tornaria, meio século mais tarde, a maior cidade do País, sentiu-se orgulhosa de seu pioneirismo. Bom número de jovens podiam agora ser acolhidas para serem lá preparadas para transmitir seu saber às novas gerações.

A foto que acompanha este artigo, recebida por cortesia de Wilma Legris, foi tirada dia 2 de agosto de 1894, quase 120 anos atrás. Mostra os integrantes do novo estabelecimento de ensino, situado na atual praça da República. O prédio ainda está lá, mas já não acolhe bandos de alunos como fez durante 70 anos: é hoje sede da Secretaria da Educação.

Cliquem sobre a foto para ampliá-la. Reparem na indumentária dos figurantes. Se a chapa fosse em cores, não faria muita diferença: fora uma que outra exceção, os trajes são quase unanimemente pretos ou brancos. A hierarquia é acintosamente marcada. Os personagens mais importantes, todos do sexo masculino, sentam-se à frente. Conforme as filas se vão sucedendo, aparecem figuras menos eminentes. Presumivelmente, os professores e, em seguida, as alunas. Por último, lá no fundão, há uma fileira de homens. Serão serventes, bedéis, auxiliares.

Todas as mulheres ostentam o mesmo penteado, em perfeita harmonia com os usos da época. Os homens trajam o que, com bastante propriedade, chamávamos terno, ou seja, um conjunto de três peças: paletó, colete e calça. O nome ainda perdura, mas o colete anda meio fora de moda.

Fico aqui a imaginar a incongruência que era esse povo se vestir como em Londres ou Paris para enfrentar nossas ruas poeirentas e barrentas, subindo e descendo de bondes puxados a burro, sob um calor tropical.

Enfim, bem ou mal vestidos, republicanos ou monárquicos, cada um deles deu sua contribuição. Não se pode dizer que o grosso da população do Brasil deste século XXI seja um modelo de erudição. Mas, sem o suor ― no sentido literal ― desses pioneiros, o nível geral de instrução seria ainda mais baixo.

Fica aqui expressa nossa reverência.