“Eu não aceito”

Myrthes Suplicy Vieira (*)


“EU NÃO ACEITO”
Alguém conhece fala mais prepotente que essa?


Pense um pouco: ela pressupõe que a pessoa – agrupamento social ou instituição – que a profere acredita ser a autoridade suprema, com poder de decidir monocraticamente o que os outros devem e não devem fazer, o que pode ou não acontecer.

“Eu não aceito o fim do nosso relacionamento”, alega o agressor e feminicida em potencial ao tentar justificar sua violência, ignorando o fato de que um relacionamento pressupõe a existência de duas consciências, duas vontades e duas autonomias para a tomada de decisão.

”Eu não aceito o resultado da eleição”, gritam em uníssono os golpistas bolsonaristas enlutados, revelando a mesma patologia mental que confunde amor com possessividade. Depois de 4 anos vivendo firmemente ancorados na crença de que “tudo posso naquele que me fortalece”, é normal que eles tenham caído na armadilha de tomar a parte pelo todo: sentem que o país lhes pertence, que os símbolos nacionais são exclusivamente seus para serem usados como e onde quiserem, que seu voto deveria valer mais do que o de qualquer outro cidadão, que são donos da consciência ética de seus adversários ideológicos, que sabem o que é melhor para o futuro da nação. Estão convictos de que patriotismo é demonstrar devoção incondicional e perpétua a um governante de ocasião, alçado por eles mesmos à condição de impoluto Homem-Deus.

Compreensível. O desempoderamento é, de fato, uma das dores psíquicas mais excruciantes e insuportáveis que um ser humano pode conhecer. Equivale ao que Freud chamou de ferida narcísica: apaixonado pela própria imagem refletida nas águas de um lago, Narciso acha necessário parar de respirar para que as águas não se turvem e deixem de funcionar como espelho. Sem a imprescindível troca gasosa com o ambiente e sem oxigenação do cérebro, ele perde os sentidos, cai no lago e acaba morrendo afogado.

Substitua “não aceito” por “não entendo” e se tornará evidente o que se esconde por trás de tanta fúria revanchista. Ao se darem conta da existência de outras aspirações de igual poder, tanto o misógino quanto os bolsonaristas narcisistas descobrem apalermados que, embevecidos com sua pretensa superioridade moral, se miravam apenas nas águas paradas de seu pântano particular de ódio ao diferente. Asfixiados pelos vapores tóxicos da decomposição ambiental, eles perdem o chão ao descobrir que nunca houve troca afetiva, diálogo ou negociação em seus relacionamentos, que jamais se deram ao trabalho de consultar a opinião do outro e, mais grave, que nunca avaliaram a pertinência de seu próprio modo arrogante e violento de tratá–lo.

Agora, confrontados com a perda concreta de seu poder desabrido, eles se imolam em praça pública, na esperança de reencontrar sua imagem fabulada de representantes do bem e da verdade no espelho imperturbável das forças armadas. Qualquer forma de apoio lhes serve, tudo menos deixar transparecer sua triste impotência humana. Não entender os motivos inconscientes de seu autocentrismo, limitação cognitiva e dependência emocional é o que os enfurece e afronta sua gigante autoestima, daí ser inaceitável.

Ser alijado inesperadamente do universo da onipotência infantil, ter de enfrentar pela primeira vez a colocação de limites claros para as próprias ações e intenções, não poder usufruir mais das benesses a que acreditava ter direito, ser desautorizado pela realidade, tudo isso se acumula na mente do desempoderado e conspira para a eclosão de reações de altíssima agressividade e perversidade. Mais ainda quando o desempoderamento acontece “against all odds”.

A psicologia ensina: ao longo do desenvolvimento psicomotor humano, a criança primeiro reage à frustração com um virulento acesso de raiva que envolve seu corpo como um todo. É a conhecida crise de birra, que implica jogar–se ao chão, retorcer–se, sapatear e espernear, agitar violentamente os braços, bater, morder, cuspir, berrar e chorar inconsolavelmente. Aos poucos, a criança vai aprendendo a limitar a extensão de sua resposta corporal. Ela pode dar um pontapé ou soco na cara do coleguinha que o desagradou ou agredir a tapas um adulto que tenta impedi–la de fazer alguma coisa, mas já é capaz de permanecer em pé e respirar fundo até que a raiva passe. Mais tarde, o revanche magoado costuma se restringir às ofensas verbais. Finalmente, o adulto já emocionalmente formado tende a deixar de lado voluntariamente as agressões físicas e verbais, passando a apenas pensar em formas mais socialmente aceitas de retrucar a ofensa.

A total inversão nesse roteiro de autodomínio psíquico a que temos assistido perplexos em anos recentes e em especial no pós–eleição parece estar vinculado ao abandono da noção de bem comum, que deve pairar acima e além dos interesses individuais. Sem dúvida, a globalização tem uma importante parcela de responsabilidade na eclosão desses fenômenos, dada a inevitável relativização dos códigos morais de cada sociedade que ela implica. O caráter nazifascista e supremacista dos protestos é explícito não só por estas bandas, mas também no mundo todo. No entanto, mesmo considerando que o ‘jus sperneandi” é um direito constitucional garantido quase universalmente, é difícil explicar a volta à barbárie em sua forma mais arrebatadora sem o apoio mais uma vez da teoria freudiana.

Ao abordar o mito da horda primitiva, Freud aponta que a cola que mantém os irmãos unidos e obedientes aos ditames da autoridade paterna é a crença de que o amor do pai é distribuído de forma equitativa entre os filhos. Se se suspeita que ele favorece este ou aquele rebento, será detonada uma sanguinolenta guerra fratricida. A ambivalência na submissão acrítica, somada à inveja do poder tirânico do pai, termina levando inexoravelmente a seu assassinato e seu corpo será devorado num macabro festim pelos irmãos. Somente então o luto poderá ser elaborado, a culpa redimida e erguido um totem com regras rígidas de proibição do incesto.

Nesse sentido, parece ser natural também que todos que se sentem direta ou indiretamente culpados pela morte simbólica do autoproclamado Mito imbrochável e imorrível clamem desesperadamente por tutela. Ainda que entendam que ninguém está à altura de substituir o pai morto, precisam saber que contam com o apoio de uma autoridade externa forte o bastante para reequilibrar e dar novo ânimo ao combate. Que fique claro: eles não estão buscando uma tutela iluminada que possa conter terapeuticamente o desvario de seus demônios internos, mas simples força bruta para desfazer de uma vez por todas a incompreensível e inaceitável decisão de terceiros.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Diz-me com quem andas

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Depois de ler algumas análises feitas por especialistas da área de Humanas a respeito da politização da religião, destrinchando as motivações ocultas por trás das falas sórdidas de Damares e de Bolsonaro, repercutindo os recentes conflitos entre religiosos católicos e fanáticos bolsonaristas, tive certeza: quanto mais se fala no assunto, quanto mais se ataca o comportamento do “gado”, quanto mais se tenta rebater os preconceitos e as perigosas ilações que os líderes da extrema-direita costumam fazer contra os adeptos das ideologias de esquerda, quanto mais nos embrenhamos nessa pseudoluta do Bem contra o Mal, mais se aprofundam os laços entre o público fundamentalista e seu “Mito”.

Fera acuada reage com muita maior agressividade. Pode parecer paradoxal que nosso esforço de aclarar os fatores-chave que estão em jogo obtenha o efeito exatamente contrário ao pretendido. Ainda assim, é algo bastante fácil de entender. É como acontece com as campanhas de prevenção contra as drogas, o álcool ou o fumo. Estabelece-se uma argumentação lógica, de ordem estritamente técnica, apontando os efeitos maléficos do vício e enquadrando o usuário como “vítima” inconsciente ou involuntária dessas armadilhas. O problema é que nenhum dos argumentos utilizados consegue se antepor de forma minimamente crível aos “benefícios” percebidos de prazer e escape temporário de uma realidade dolorosa causados por essas substâncias.

Adianta menos ainda apelar para os brios morais ou para a responsabilidade social – argumentos do tipo: comprando drogas você está abastecendo o crime organizado; bebendo, você perde tudo, emprego, apoio da família e respeito por si próprio; fumando, você causa prejuízo ao SUS que vai ter de tratar das comorbidades e deixar de atender quem mais precisa. Sem perceber, essa forma de mensagem aciona imediata e automaticamente um poderoso mecanismo de defesa, que se engalfinha na luta para racionalizar a necessidade de adesão ao vício.

Ou seja, toda forma de admoestação usada até aqui só comunica uma mensagem desagradável, de oposição aos seus bons propósitos: a de que os especialistas no combate a esses males são pessoas “quadradas”, alienadas, com a vida ganha, que “não entendem” as necessidades de segmentos sociais específicos – jovens desesperançados, desempregados, vítimas de violência doméstica e/ou policial, pessoas de periferia e de baixa renda que não veem futuro de ascensão social e os discriminados em função de sua origem racial, orientação sexual ou simples diferenças no jeito de se vestir, se comportar em público ou questionar o “sistema”.

Da mesma forma, no plano político, as críticas vindas das forças progressistas de esquerda às propostas e ao projeto de poder do bolsonarismo naufragam miseravelmente, antes mesmo de atingir seu alvo. Basta desqualificar de antemão essas vozes, associando-as a perigosas intenções dissimuladas: querem instaurar uma ditadura comunista (e para nós a liberdade é mais importante do que a vida, ainda que isso implique o fechamento do Congresso e do STF); defendem o aborto (e nós somos radicalmente a favor da vida, ainda que acreditemos que algumas vidas não merecem ser preservadas); são cristofóbicos (e nós odiamos quem não se pauta pelos mandamentos inscritos no Velho Testamento, ainda que sejamos obrigados a perseguir os que veneram o diabo); tentam impor a ideologia de gênero (o que representa para nós a destruição dos valores da família e a perversão de mentes infantis pela introdução precoce do tema da educação sexual nas escolas).

O irracionalismo definitivamente não pode ser combatido racionalmente. Isso porque ele está ancorado na própria identidade do convertido, nos conflitos inconscientes que permeiam sua estrutura psíquica. Está enraizado no imenso benefício emocional de se sentir parte indissolúvel de um grupo coeso e aguerrido, que conta com a proteção de uma figura poderosa e temida pelos adversários, que acolhe a todos sem julgamento e dá segurança para lidar com as incertezas da vida cotidiana.

Negar os desvios de caráter do líder passa, assim, a ser uma questão de sobrevivência psicológica. Aceitar que se abram brechas na estrutura monolítica do código pessoal de valores equivaleria a suicidar-se social e espiritualmente. Trata-se, no fundo, de uma cosmovisão dogmática. E dogma é, por princípio, uma verdade que não pode ser discutida nem contestada pela razão secular.

Mas não é só às hordas bolsonarista que isso se aplica. Infelizmente. Vale também, com força máxima, para o outro lado do espectro político-ideológico. Alegar que sua causa é nobre, que se está do lado certo da história, que somos seres iluminados a serviço da conscientização geral antes que seja tarde demais, também revela o quão pouco entendemos da natureza humana.

Se não concordássemos intimamente com a ideia de que o inferno são os outros, muito provavelmente já teríamos encontrado humildade de espírito suficiente para dialogar com o ressentimento histórico dessa gente, eternamente abandonada pelos governantes de plantão – e que, portanto, não vê diferença alguma entre ser governado pela esquerda, pelo centro, ou pela direita. Opor barbárie à civilização pode fazer sentido para uma elite intelectual, mas não agrega um só osso com restinho de carne à sopa a ser preparada para a família hoje à noite.

Um antigo chefe meu, sociólogo holandês, brincava que havia só duas teorias de aprendizagem: a que afirma que as pessoas aprendem pelo prazer e a que dita que a verdadeira aprendizagem só acontece pela dor. E, acrescentava ele, rindo: “Idealmente, todos deveriam aprender exclusivamente pelo prazer, mas não dá para esquecer que tem uns FDP por aí que merecem aprender pela dor”.

Qual seria, então, a saída? O que estou propondo de fato: censura, guerra civil, tratamento psicológico compulsório para quem adere a teses que considero absurdas? Nada disso. Como diria Stanislaw Ponte Preta, “ou nos locupletamos todos ou reinstaure-se a moralidade”. Que se reinstale o diálogo democrático sereno, que todos sejam chamados à mesa de negociação, que aceitemos abrir mão de alguns anéis para não perder os dedos, que se testem novas propostas de convivência democrática ainda não experimentadas entre nós.

Só não sei ainda como implementar essas mudanças na prática. Sei que não dá para negociar com terroristas armados até os dentes. Sei que não é possível eliminar a insanidade a golpes de realidade. Entendo que nenhum progresso humano é linear e incorpora avanços e recuos estratégicos permanentes. Mas será que não é suficiente perceber que se pode levar um cavalo até à água, mas é impossível fazê-lo dela beber?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Teoria conspiratória de ocasião

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não gosto nem estou habituada a embarcar em teorias conspiratórias, mas não teve jeito: ainda em estado de choque com o resultado do primeiro turno das eleições, especialmente as dos governos estaduais, deputados federais e senadores, vi-me forçada a criar eu mesma uma que lavasse de alguma forma minha honra de pesquisadora com mais de 20 anos de experiência. Ela pode parecer um tanto alucinada, como aliás são todas as outras, mas retrata uma possibilidade bastante factível e traz um fundinho de veracidade que precisa ser ainda mais bem explorado.

Refletindo sobre as causas dos erros monumentais cometidos por todos os institutos de pesquisa de renome nacional, me ocorreu que a inversão de última hora nas preferências pode não ter sido fruto de incompetência técnica ou metodológica, ingenuidade, parcialidade ou falta de integridade ética de tantos pesquisadores envolvidos. Algo me diz que o “erro” está na força do bolsonarismo de raiz nas redes sociais. Os institutos podem apenas não ter sido capazes de rastrear a tempo o tsunami de votos despejados no capitão provavelmente porque embalados pela confiança na altíssima estabilidade das previsões e convergência da intenção de voto apontada pelas diferentes instituições e confirmada por diversos agregadores de pesquisa.

Convenhamos: para que tivesse havido uma fraude dessa dimensão, seria preciso que todos os dirigentes desses institutos e pesquisadores subordinados, que elaboraram os questionários, determinaram a amostragem e treinaram o pessoal de campo, tivessem concordado em “suicidar” sua reputação e afundar voluntariamente a futura credibilidade comercial e política de suas empresas. Uma possibilidade que evidentemente está longe de ser lógica ou exequível.

Imagino, então, que o arrastão de votos a favor de Bolsonaro no dia do primeiro turno tenha acontecido da seguinte maneira: um comando do Gabinete do Ódio teria sido enviado desde as últimas semanas das sondagens eleitorais aos principais cabos eleitorais do presidente para que determinassem por sua vez que, caso fossem entrevistados por algum grande instituto associado a jornais, emissoras de tevê e portais de internet “de esquerda”, os eleitores intencionalmente mentissem, respondendo ou que ainda não sabiam em quem votar ou que estivessem pensando em votar nulo ou branco. Mas essa era só a primeira fase do complô que imagino e descrevo a seguir.

O primeiro sinal de que algo de grande porte e malcheiroso estava sendo tramado por baixo dos panos foi dado quando, a menos de 10 dias da eleição, o próprio presidente se encarregou de espalhar a notícia de que seria reeleito, com “ao menos 60% dos votos”. Além disso, na mesma época ele ensaiou pela primeira vez encarnar o personagem “JB paz e amor”, conclamando os eleitores a optarem pela “harmonia” social, pela segurança das armas e pela diminuição dos indicadores de fome e desemprego.

Na sequência, entre sexta-feira e domingo, o comitê central da ala mais radical do bolsonarismo deve ter ordenado aos principais cabeças regionais da campanha – isto é, gente com forte ascendência sobre uma massa de subordinados/dependentes e também capaz de garantir sigilo absoluto da operação – que “persuadissem” gentilmente o maior número possível de eleitores indecisos, além dos de Ciro Gomes e Simone Tebet, a despejar seus votos em massa no capitão. Dada a complexidade logística da operação, o comando pode ter sido distribuído através de sites da ‘dark web’ que não pudessem ser facilmente monitorados, e multiplicado aos milhares através de grupos fechados de whatsapp. O que foi prometido a cada um para que alterassem de última hora sua intenção de voto é difícil de saber. Além das habituais promessas de dentadura e alpercatas, emprego e comida, deve ter funcionado fundamentalmente a pressão dos grandes empresários do agronegócio e da indústria extrativista, dada a promessa explícita de muitos de demitir todos os funcionários que manifestassem direta ou indiretamente a intenção de votar em Lula. Não me parece improvável ainda que a operação tenha contado com o auxílio luxuoso de lojistas de grande porte do sudeste, como Luciano Hang, e até de milicianos para reforçar o exigido código de silêncio.

O que me leva a pensar que isso tenha acontecido de fato? Antes de mais nada, o silêncio e a compostura dos bolsonaristas fanáticos no dia das eleições. Aquilo que todo mundo temia – gigantescas manifestações e conflitos sangrentos de rua, boca de urna agressiva, intimidação aberta de eleitores nas ruas do entorno das seções eleitorais – simplesmente não aconteceu. Nem aqui nem no exterior. Tenho vários amigos que moram além-mar e todos registraram, sem exceção, sua surpresa (e até uma pontinha de orgulho) com a civilidade dos apoiadores de Bolsonaro na França, na Suíça, na Holanda e na Inglaterra.

Ninguém mais voltou aos temas-lemas de urnas auditáveis, sala secreta de totalização dos votos, fiscalização dos militares, etc. por pelo menos duas semanas antes da eleição. Ninguém protestou ou xingou Alexandre de Moraes em função das regras de proibição de celulares e do transporte de armas. Um estranhíssimo silêncio, compatível com a tradicional estratégia dos índios americanos antes de um ataque mortal contra as caravanas dos primeiros colonizadores.

Outra evidência para lá de suspeita: pouquíssimos votos em branco e nulos foram observados na contagem final. Mais uma vez, uma estranhíssima coincidência dado o grande contingente de eleitores declaradamente ‘nem-nem’. Raríssimos casos de crimes eleitorais – como postagem de imagens de celular de dentro das cabines de votação, denúncias fake de fraudes ou conflitos com mesários – surgiram nas redes sociais e compõem os derradeiros indicadores. Curiosamente, todas as peças publicitárias da campanha de segundo turno do capitão exibem eleitores entusiasmados declarando que “consegui mais dois”, “e eu consegui trinta”. Coincidência?

Finalmente, uma vez constatada a gritante incoerência entre as previsões e o resultado efetivo colhido nas urnas, o que foi que aconteceu? A generalizada gritaria e exigência de criminalização dos institutos de pesquisa por parte de figuras manjadas do Centrão, além da cara de paisagem do filho de Bolsonaro, Carlos, ao lado do pai, subitamente sereno e com ar de aliviado, na primeira aparição pública após a divulgação dos resultados.

Seja ou não confirmada minha teoria conspiratória por outras evidências, posso apostar que a mesma estratégia será usada no segundo turno e causará um clima de tensão inaudito entre os analistas e cientistas políticos. Não me espantarei se Bolsonaro colher mais votos ainda em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Já quanto à eleição do carioca Tarcísio de Freitas para o governo paulista, a meu são favas contadas, independentemente da participação dele ou não nesse grande imbróglio: paulista adora um canteiro de obras atrapalhando o trânsito.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Algumas vezes é preciso não entender

Luto

Myrthes Suplicy Vieira (*)


Algumas vezes é preciso não entender


A frase acima foi dita originalmente por Anna Verônica Mautner, psicóloga, psicanalista e escritora altamente provocativa, que foi também minha professora na USP. Na ocasião, ela havia sido chamada a explicar por que uma pessoa até então dita “normal” atingira um grau de crueldade tão inaudito. O caso era o de um homem que pensava em se suicidar e, de última hora, achou por bem jogar antes mulher e filho pela janela do 13º andar. Para piorar, no último instante, ele recuou de seu intuito e acabou preservando a própria vida.

O pasmo, a incompreensão, o estado de choque tem paradoxalmente um impacto esclarecedor e reumanizador poderoso sobre nosso psiquismo, mais forte talvez do que qualquer explicação científica ou policial. Servem de alerta que sempre estamos sujeitos a ultrapassar os limites civilizacionais e embarcar numa jornada inumana de destruição de tudo à nossa volta. Não há como explicar o inexplicável por mais que se tente: pulsão de morte, o mal-estar na cultura, a dimensão trágica da existência, o niilismo, a alienação, o predomínio da emoção sobre a razão, tudo isso pode servir de justificativa temporária apenas e tão somente para tentar exorcizar a possibilidade de que isso aconteça conosco. Mas não serve de consolo, nem de vacina. O inferno continuam sendo os outros, os tais psicopatas que continuam circulando livremente por aí.

Ficar com a dor, passar recibo do luto, contorcer-se dias sem fim diante da perda injustificável, praguejar contra os deuses e o destino, pode ser nossa única salvação. Reservar um tempo para lamber as próprias feridas é a única rota de escape admissível. Saber que o humano não abrange apenas um lado espiritualmente iluminado e gregário, mas chafurda também num poço sombrio e irracional, nos permite reavaliar nossos recursos internos e reequilibrar forças.

Essas considerações me ocorrem ao analisar os resultados das eleições 2022. Até dá para sacar timidamente uma explicação para o crescimento de última hora de Jair Bolsonaro e a acachapante vitória de seus aliados no pleito para governadores do sudeste – e mais grave ainda para a Câmara Federal e o Senado. Se há um fator racional para justificar a inversão das preferências, ele tem um nome: Ciro Gomes. Graças ao fato de ter elegido Lula – e não Bolsonaro, como seria de se esperar – como seu único adversário, de forma a se oferecer como contraponto palatável, ele conseguiu desestabilizar o emocional dos eleitores que já se dispunham a fechar o nariz, ignorar suas reservas intelectuais e votar no PT, na tentativa desesperada de salvar a democracia tupiniquim. Colheu o que plantou: até o final de sua vida vai ser forçado a ruminar em casa os motivos inconscientes de sua raivosa batalha egóica. Em volta de sua tumba política, vão se juntar as vivandeiras e carpideiras nem-nem que apostaram mais uma vez na própria incorruptibilidade e superioridade intelectual/moral.

Até aí, dá para tentar, não sem esforço, entender. No entanto, como explicar a eleição de Damares, de Pazuello, de Mário Frias, de Carla Zambelli e principalmente de Ricardo Salles? Que justificativa moral terão se concedido as pessoas que enfrentaram enormes perdas nos últimos três anos, desde mortes de familiares por covid, desemprego, fome, não-acesso à saúde e à educação, até as terríveis enchentes e as queimadas na Amazônia? Serão os eleitores das classes C, D e E os culpados mais uma vez por impedir o avanço civilizatório em nosso país? Ou será que os evangélicos se consolidarão como os novos bodes expiatórios da brasilidade?

Ontem fui dormir mais cedo, exausta de pensar na lógica estapafúrdia do quadro pós-eleitoral e arrasada emocionalmente com esse festival de mediocridade e agonia democrática. Embora minha intuição já me avisasse há algumas semanas que ainda não era hora de celebrar a volta da racionalidade ao jogo político-ideológico, eu ainda tinha esperança de ver esse pessoal jogado na lata de lixo da história. Não deu. Esqueci que também votam os farialimers, os empresários do agronegócio, os coronéis com expertise no voto de cabresto, os grileiros e os garimpeiros, os CACs, os milicianos, os moralistas de plantão e os ressentidos de classe média.

Fechei os olhos sem querer para a divisão bicentenária de nossa sociedade em dois Brasis irreconciliáveis: o Brasil das elites urbanas do Sul e do Sudeste e o Brasil dos desassistidos dos rincões miseráveis do país. Porém, acima e além da incompreensão com a aposta na perpetuação do fascismo à brasileira, meu maior desalento se deu com a escolha dos integrantes do Legislativo.

Lembrei que, há mais de duas décadas, o Senado solicitou uma pesquisa de imagem ao instituto para o qual eu trabalhava. Montamos uma gigantesca equipe de pesquisadores quantitativos e qualitativos, mantivemos reuniões exaustivas sobre a melhor forma de abordar o eleitorado sem permitir que simpatias e antipatias para com senadores isolados interferissem na análise do coletivo, gastamos horas e horas no treinamento do pessoal de campo. Já na primeira fase do projeto-piloto colhemos um resultado estarrecedor: pouquíssimos brasileiros sabiam dizer para que serve um senador da República e que importância ele tem como contrapeso ao Executivo. Simplesmente não dava para avançar no entendimento das características ideais para ocupar um cargo federal ou para a melhoria da imagem do Senado. Tiro n’água total, o restante do projeto acabou sendo abortado.

A pergunta, então, é como acontece a escolha dos representantes do Congresso. Intimidados com a profusão de nomes e números, desinformados sobre o histórico político dos candidatos e distraídos pela disputa mais tensa para o cargo presidencial, como apontar os que poderiam contribuir de forma mais efetiva para um futuro promissor, livre do toma lá, dá cá? Se não se sabe a quais tarefas eles vão se dedicar, só resta então aos eleitores mais apartados do jogo identificar os nomes já conhecidos – e mais polêmicos – do cenário político atual, que não por coincidência também se destacaram no apoio explícito às teses amalucadas do presidente de plantão. Antiabortistas, misóginos, portadores de virilidade tóxica, racistas, homotransfóbicos e companhia bela se unem então para exorcizar o “perigo comunista” e reafirmar os valores de defesa da família, da vida, da propriedade, da pátria e de Deus. Ganha uma passagem só de ida para a Ucrânia quem conseguir vislumbrar uma forma eficaz de reverter esse quadro dantesco e peitar os invasores russos.

Tristemente, cabe perguntar aos que, como eu, não conseguem atinar com uma explicação ou justificativa minimamente aceitável: ATÉ QUANDO?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A reação das minhas cachorras ao debate

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Confesso que me surpreendi com a apatia com que minhas cachorras assistiram ao debate entre presidenciáveis do domingo passado. Eu estava uma pilha de nervos desde a hora em que acordei, aguardando ansiosamente o início do que prometia ser uma sanguinolenta troca de acusações entre os candidatos, ao invés de focarem em seus respectivos programas de governo.

Temia que, nos momentos mais tensos, dois ou mais competidores acabassem perdendo as estribeiras e se engalfinhassem fisicamente, ou ainda que o estúdio fosse invadido por uma horda de apoiadores armados até os dentes para exigir a cabeça dos adversários. Já me preparava psicologicamente para contabilizar um ou dois mortos e vários feridos graves, inclusive entre os âncoras e os jornalistas convidados. Só fiquei um pouco mais tranquila quando soube que não haveria a presença de plateia e que somente os assessores, marqueteiros e políticos aliados seriam autorizados a ocupar uma sala atrás do estúdio. Mesmo assim, eu vigiava com angústia e preocupação a cada segundo a escalada de ofensas, golpes abaixo da cintura e ameaças mal disfarçadas.

Minhas cachorras, por sua vez, pareciam bem relaxadas: se aboletaram gostosamente no sofá em frente à televisão e fingiram prestar atenção aos confrontos do primeiro bloco, permanecendo em absoluto silêncio. No entanto, tão logo terminaram de jantar, logo na entrada do segundo bloco, não conseguiram disfarçar que estavam entediadas com tanto palavrório, tanta conversa mole para boi (também cachorro?) dormir, desconcentraram-se e se deixaram embalar pela monotonia dos discursos, logo caindo em sono profundo.

Sacudi-as no começo do terceiro bloco para questioná-las a respeito das razões para tanto desinteresse. Ainda sonolenta, a mais velha me lançou um olhar enviesado e respondeu: “Tá brincando? Pra um domingo à noite, com chuva e frio, tinha que ter alguma coisa mais empolgante para assistir. Até agora, só teve mais do mesmo. Qual é a novidade que está sendo trazida a público? Nadica de nada! Parece que todos acabaram de reinventar a roda e descobriram a solução definitiva para exterminar todos os males que assolam a população desde o descobrimento, em 1500. Por que ninguém tinha pensado em tudo isso antes?”.

Já a mais nova e ainda inexperiente nos empolados confrontos pátrios agitou-se por alguns minutos para reclamar quando o candidato Felipe D’Ávila fez referência desdenhosa ao complexo de vira-lata que caracteriza os brasileiros. Rosnou, um tanto indignada: “Dobra a língua para falar de nós, seu verme! Somos SRD, com muito orgulho! Isso significa que, assim como vocês, somos fruto de miscigenação e exigimos respeito por nossa condição. Somos mais resistentes a doenças, mais resilientes e mais safos para lidar com situações de penúria, além de mais valentes para encarar as inevitáveis batalhas com tantos pitbulls nas ruas”.

Tive de concordar. Parecia mesmo que todos os debatedores diziam ao apresentar suas propostas pseudograndiosas: “Pra quem é [povo brasileiro alienado], tá de bom tamanho”. Antes que elas voltassem a dormir, ainda tentei entender como elas avaliavam a repercussão do comportamento dos candidatos-líderes nas pesquisas sobre eventual mudança de intenção de voto. Para afastar o tédio, propus a elas um joguinho, perguntando: se os candidatos fossem bichos, como vocês enquadrariam o perfil psicológico de cada um? Tudo o que consegui reunir, entre muxoxos, foi o seguinte:

Bolsonaro, o escorpião e seus instintos irrefreáveis
Deve perder um bocado de votos entre as eleitoras ainda indecisas, até entre as evangélicas. Mesmo tomando extremo cuidado para não parecer exageradamente agressivo em suas colocações, acabou deixando implícito que, tão logo ele chegue à outra margem do rio, não resistirá ao impulso de dar uma ferroada mortal no cangote daqueles que o tiverem auxiliado na travessia – com provável exceção dos fardados. Se e quando, ainda em estado de choque, um dia a população confrontá-lo com sua promessa de respeitar os demais poderes, o estado democrático de direito e o resultado das eleições, ele responderá candidamente: “É da minha natureza, e vocês sabiam disso, tá ok?”

Lula, o bom cabrito
Também deve perder um bom percentual de votos entre os antibolsonaristas e bolsonaristas arrependidos pela aparente falta do tão estimado pulso firme. Esforçou-se o tempo todo para não berrar, sabedor que era de suas vulnerabilidades, mas acabou passando uma imagem envelhecida, de pouca força e ânimo para mudar o destino do rebanho. Apegou-se à imagem de valentia do passado, mas a falta de sangue nos olhos entregou seu cansaço. Perdeu-se de vez quando hesitou em assumir o compromisso de montar um ministério paritário, de homens e mulheres, quando tudo o que o mulherio ensandecido pelo desrespeito de Bolsonaro a Vera Magalhães esperava era que ele enterrasse seus chifres bem fundo no intestino misógino de seu principal adversário.

Ciro, o rato que incorporou o flautista de Hamelin
Deve ganhar mais alguns pontinhos nas pesquisas, mas para encostar nos mais bem votados seria preciso encarnar a credulidade de um doutor Pangloss. Apesar de extraordinariamente articulado intelectualmente, não consegue desfazer a imagem de velho coronel nordestino autoritário que se vê como único portador de todas as virtudes e não se cansa de vomitar todos os defeitos de seus concorrentes. Ele parece acreditar piamente que seu projeto de pacto nacional + plebiscito após 6 meses de mandato será suficiente para que 27 ratazanas que engordam às custas do erário dos estados, 513 ratos pequenos e 81 grandes que estraçalham o restante do tesouro público se rendam ao seu carisma e o sigam acriticamente até a beira do precipício. Se vão se jogar ou não, essa é outra estória. Aposta ainda que a população já terá condição efetiva de estimar o acerto de suas medidas econômicas após 180 dias de governo e votará em peso pela manutenção de seu “revolucionário” esquema de governança.

Simone, a galinha-mãe e professora
Deve ser a que mais vai ganhar votos do público nem-nem e dos que avaliam que “é tudo farinha do mesmo saco”. Embora corajosa, auto afirmativa e doce ao mesmo tempo, desculpou-se o tempo todo por não ter conseguido apoio incondicional e universal dos galos do seu partido e assumiu seu desconforto com o passado corrupto da maioria de seus aliados, o que pode pesar muito contra seu estilo “lírio no pântano”. De boas intenções o inferno está cheio parece ser seu lema de campanha.

E isso é tudo. Minhas cachorras se recusaram a elaborar o perfil dos demais candidatos, seja por falta de informações confiáveis quanto aos seus reais interesses na candidatura e na política, seja por lembrarem do passado bolsonarista de uma e o perfil agressivamente desestatizador de outro.

Para encerrar logo a conversa e poderem voltar a dormir, elas avaliaram em uníssono que faltou abordar durante todo o debate um fato indesmentível e preocupante, ao qual a imensa maioria do eleitorado finge não prestar maior importância: qualquer que seja o resultado das eleições, estamos condenados a sermos governados por um tchutchuca do Centrão, velho ou novo, mais ou menos jeitosinho com seus pares homens e sempre tigrão com as mulheres, especialmente as mais pobres e as mais críticas/incisivas. Quem ousaria discordar?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Sexo por obrigação

 

Myrthes Suplicy Vieira (*)

De todos os pronunciamentos delirantes a respeito da condição feminina, sua estrutura psíquica e interpretações quanto à sua disponibilidade para o sexo feitos ultimamente por integrantes da ala masculina ultraconservadora brasileira, o mais surpreendente e intrigante foi sem dúvida o registrado pela pena do digníssimo procurador de São Paulo, Anderson Gois dos Santos.

Num e-mail enviado a seus colegas da Procuradoria, ele propõe textualmente que “é de fundamental importância recuperar a ideia do débito conjugal no casamento”. E acrescentou, para perplexidade geral: “A esposa que não cumpre o débito conjugal deve ter uma boa explicação, sob pena de dissolução da união e perda de todos os benefícios patrimoniais”.

Fiquei tão impactada com o caráter medieval da proposta que fui pesquisar na Internet o que significa aos olhos da lei o débito conjugal e como esse conceito se insere na jurisprudência brasileira. Descobri que ele teve origem no Direito Canônico e foi absorvido no Código Civil de 1916. Depois que a constituição de 1988 introduziu a necessidade de observância do direito à dignidade de toda pessoa humana e a igualdade de direitos entre homens e mulheres no casamento, a tese perdeu amparo legal, embora hoje em dia ainda existam casos de pedidos de divórcio aceitos em tribunal por ter a mulher se recusado a fazer sexo com o marido.

Dado o furor condenatório com que juristas e colegas procuradores receberam a proposta, acusando seu autor de estar disfarçadamente defendendo a legalidade do estupro marital, ele achou por bem se antecipar e esmiuçar as ‘terríveis’ consequências sociais da não-aprovação de sua proposta: a recusa feminina em cumprir suas obrigações sexuais teria o potencial de levar a “traições desnecessárias” [não deixou claro se, no seu entender, haveria alguma forma de traição necessária], consumo de pornografia e acúmulo de pedidos de divórcio.

Arrogou-se ainda o direito de pontificar sobre questões fora de sua área de especialização, fazendo uma incursão amadora, típica de almanaque de farmácia do início do século 20, ao território da psicologia e da psiquiatria. Associou o feminismo a um “transtorno mental” ainda a ser catalogado num futuro CID [Classificação Internacional de Doenças], apontou as causas do distúrbio como “problemas com os pais na criação” e “muita mágoa no coração”. E foi além, descrevendo no mais misógino dos estilos a luta pelo empoderamento feminino como uma “tentativa de suprir profundos recalques e dissabores com o sexo masculino, gerado por suas próprias escolhas de parceiros conjugais”. Culpa da vítima, é claro.

Confesso que fiquei na dúvida se o foco de sua intervenção era efetivamente o de discutir os aspectos psicossociais pertinentes às obrigações conjugais ou se, além e acima dessas preocupações, pairava na mente dele a urgência de encontrar formas jurídicas seguras de proteger o patrimônio financeiro do homem casado, livrando-o da necessidade de dividi-lo com uma esposa não merecedora de tal ‘privilégio’.

Não pretendo ir a fundo na exploração das impropriedades científicas nas quais ele incorreu ao se manifestar sobre traumas psicológicos, dificuldades de identificação com o papel sexual e motivações aberrantes que comporiam em tese o perfil das mulheres feministas. São tantos e tão complexos os fatores envolvidos nessa questão que prefiro me abster, por puro cansaço e tédio antecipado. Deixo a cargo dos especialistas em psiquiatria a revelação de quais e quantos transtornos mentais estão na base da virilidade tóxica, essa sim uma doença passível de enquadramento num próximo CID.

Entretanto, reservo-me o direito de apontar a sobreposição ilógica de conceitos díspares que permeiam o raciocínio do douto procurador. Lídimo representante do pensamento binário, ao misturar num mesmo balaio a recusa a fazer sexo com o parceiro oficial e o comportamento feminista, ele deixa entrever que aposta que feminista é toda mulher que não gosta de homem. O que, convenhamos, deve ser fonte de muita angústia e ansiedade para ele.

No entanto, o que mais chamou minha atenção na proposta de revitalização da norma de “débito conjugal” foi a desconsideração – intencional ou acidental – da existência também da obrigação do marido em manter relações sexuais regulares com sua esposa. Passei horas me divertindo com a possibilidade de inversão do raciocínio, isto é, a eventualidade de uma mulher ingressar na justiça com uma queixa contra o esposo por ele ter falhado em cumprir suas obrigações sexuais no casamento e consequentemente pleitear que ele fosse destituído dos direitos à divisão do patrimônio do casal.

Em meio a piruetas mentais, acabei concebendo a seguinte cláusula contratual pré-matrimonial que poderia ser exigida pela mulher: “A parte masculina do presente contrato compromete-se a realizar o ato sexual com a parte feminina no mínimo 3 (três) vezes por semana, por todo o tempo que durar a convivência do casal, independentemente da presença de fatores limitantes à atividade, como idade, doenças físicas e mentais, abatimento com a situação financeira, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas psicoativas e outros elementos intervenientes ocasionais, com penetração obrigatória em cada coito e número indeterminado de tentativas, até que a parte feminina atinja o orgasmo ou se declare plenamente satisfeita. Se, para tanto, a parte masculina não corresponder às expectativas de desempenho da parte feminina, assim descumprindo a presente cláusula, sob qualquer tipo de alegação, estará ele sujeito à pena de dissolução unilateral do contrato conjugal e perda do direito à divisão dos bens patrimoniais auferidos pelo casal”.

Cheguei até a fantasiar uma cena de novela rural ilustrativa desse novo enquadramento jurídico: uma “coronela”, empresária de sucesso no ramo agropecuário, entra no quarto do casal e dirige-se ao marido, que está deitado, de pijama e cueca furada, fingindo dormir, com as seguintes palavras: “Levanta já daí, seu imprestável! Vai se lavar porque hoje eu vou te usar”. Ou ainda, num contexto mais urbano, uma cena em que a mulher informasse ao parceiro intimidado por não conseguir uma ereção: “Vamos logo que hoje eu estou sem tempo e sem paciência. Se você não der no couro, vou dar para o primeiro que passar pela minha porta”.

Voltando a falar sério, qualquer que seja o ângulo pelo qual a proposta do procurador seja examinada, fica claro que não se trata apenas de anacronismo obscurantista: é um total desconhecimento da fisiologia humana e do funcionamento psíquico. Como associar sexo a obrigação se estamos falando de uma pulsão animal natural e instintiva que tem como principal propósito o prazer e o alívio das tensões? Como garantir a necessária lubrificação na mulher e a ereção masculina se na cabeça dos parceiros há um imperativo categórico de desempenho imediato? Até mesmo entre animais inferiores na escala filogenética, se a fêmea da espécie não consente com a cópula, mesmo estando no cio, ela simplesmente não acontece. Não há nada que o macho possa fazer para dissuadi-la da recusa, a não ser estupra-la, é claro – mas, se isso acontecer, quase certamente ocorrerá em meio a muita luta, sangue e provável despedaçamento de corpos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

“Escolha moral é para quem não tem fome”

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Você concorda com essa afirmação? Pense um pouco: se, por um lado, ela explica por que o furto famélico encontra muitas vezes uma jurisprudência de tolerância e até de não-punição, por outro, pode servir de argumento para, por exemplo, justificar a reeleição de Bolsonaro, diante do pacote de bondades que ele acaba de implementar com o auxílio luxuoso do Centrão. Mesmo que os beneficiados estejam profundamente insatisfeitos com os atos de seu governo e condenem vigorosamente a defesa que ele faz da compra de armas em vez do feijão.

Antes de esclarecer quem foi que disse essa frase, proponho que você reflita sobre qual seria sua escolha caso estivesse na mesma situação das pessoas que se viram forçadas a abandonar seus princípios e valores morais para não ver sua família morrer de fome. Se você acha que está imune por ser uma “pessoa de bem”, incorruptível, que está acima das paixões humanas mais comezinhas, detentora de uma postura ética inabalável quaisquer que sejam as circunstâncias externas, eu o convido a pensar duas vezes. Responder com orgulho, dizendo que preferiria morrer de fome a se dobrar à tentação de roubar um pedaço de carne, um pacote de arroz, pão ou leite, revirar latas de lixo ou correr atrás de um caminhão para pegar ossos descartados, é se atribuir uma natureza essencialmente angelical – ou, pior, divina – mas que, em nenhuma hipótese, guarda relação com a frágil e imperfeita condição humana.

Absolutamente tudo já foi dito a respeito dos problemas cognitivos, disciplinares, diplomáticos e administrativos do ex-capitão. É chegada a hora de analisarmos com coragem o perfil de seus eleitores em potencial. Tradicionalmente, os eleitores do Nordeste e de outras áreas carentes da periferia do país foram acusados de serem os responsáveis pela manutenção de oligarquias perversas no poder, por aceitarem cair na armadilha do voto de cabresto, em troca de uma dentadura nova ou um par de alpargatas. Agora, num cenário desolador de pandemia, desemprego, redução de poder aquisitivo e desesperança entre os mais jovens, são os eleitores ‘nem-nem’ [que não querem a volta de Lula nem a reeleição de Bolsonaro] os mais propensos a mudar sua intenção de voto e cristãmente oferecer a outra face e dar uma segunda chance ao Anticristo em pessoa, imaginando que ele saberá finalmente orientar sua reeleição para o atendimento das demandas mais primárias do povo sofrido e contemplá-lo com novas benesses. Ao menos é isso o que indicam as mais recentes pesquisas eleitorais.

É preciso admitir: somos todos tão reféns da violência política e ideológica obscurantista de Bolsonaro quanto as mulheres vítimas de violência doméstica que decidem voltar para os braços de seus agressores alegando que “ruim com ele, pior sem ele”. E, parafraseando meu colega de profissão, Gasparetto, só se desilude quem se ilude.

Será a fome uma força-motriz superior à comoção pela morte de mais de 670 mil brasileiros e à indignação com o brutal retrocesso da democracia brasileira, além do descarado desmonte dos projetos de proteção ao meio ambiente e da educação de qualidade que poderiam garantir nosso futuro? Se você pensa que sim, lembre-se que a fome já ameaça a vida de 33 milhões de conterrâneos e coloca contra a parede 61 milhões que vivem em insegurança alimentar. Se essa turma toda resolver, de fato, abrir mão de uma escolha moral nas próximas eleições, estaremos definitivamente fritos. Por isso, antes de começar a atacar nas redes sociais esse “povinho alienado”, o gado bolsonarista, os evangélicos fundamentalistas, e reclamar pela enésima vez que “brasileiro não sabe votar”, reflita sobre os fatores estruturais que deram origem à nossa tenebrosa desigualdade social e a mantêm incólume até hoje. E pare de poupar os farialimers, os empresários ligados ao agronegócio e os economistas que colocam o equilíbrio fiscal acima do bem-estar e da qualidade de vida da população.

Identificar seu ‘lugar de fala’ na análise do quadro eleitoral pode ser uma providência necessária mas não suficiente. Há uma série de tarefas mais sérias e mais urgentes a realizar antes de outubro próximo. A primeira delas, me parece, é que você se desvie das polêmicas externas de ocasião e encare a frio de que forma você historicamente contribuiu com seu voto para perpetuar a eleição de pretensos salvadores da pátria de todas as colorações ideológicas.

Aprender a distinguir as consequências de votar em um nome forte o bastante para se opor “a tudo o que está aí” e da escolha consciente de um projeto de país talvez seja a tarefa mais difícil que o aguarda. Se a terceira via não lhe apetece porque você não quer “perder o voto”, pense que mais uma vez você está impedindo a renovação dos quadros políticos nacionais e empurrando todo mundo a fazer mais uma impossível “escolha de Sofia”. Embora a jornada de mapeamento honesto de suas próprias motivações seja longa e dolorosa, é fundamental que você entenda que eleição presidencial não é o mesmo que votar em um ‘reality-show’ para decidir quem fica e quem sai. Achar que democracia é apenas depositar seu voto na urna, lavar as mãos e voltar para casa à espera do milagre da multiplicação dos pães é a forma mais segura de fomentar o desastre.

Portanto, se você não passa fome (ainda), a única escolha legitima que tem a fazer é se juntar às forças de oposição para promover a conscientização – de famintos e não-famintos – a respeito do que é cidadania responsável. Deixar-se levar por falácias do tipo “É tudo farinha do mesmo saco” não ajuda a fazer avançar nossa carcomida República.

Ah, já ia me esquecendo de contar que não foi nenhum economista, sociólogo, psicólogo ou filósofo que disse a frase acima. Ela apareceu de surpresa, no meio do capítulo final de uma novela, na boca do protagonista, um indivíduo que hesitava o tempo todo entre assumir de vez sua vilania ou fazer acreditar que era apenas vítima impotente de um destino cruel.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Do golpismo ao banditismo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Os mais jovens podem não saber, mas presidente golpista não é novidade por estas bandas. Basta folhear um livro de história para descobrir uma penca deles. Aliás, ao fazê-lo, a mais ingênua das criaturas vai entender que nossa república começou precisamente com um golpe.

O que há de novo no pedaço é um presidente que escala do golpismo de ocasião para o banditismo mais deslavado e explícito. Questão de caráter, não de contingências políticas ou ideológicas. Quem não o conhecia em 2018 e o comprou por medo de que o Brasil avançasse para um patamar um pouco menos desigual que o diga. Quem já o conhecia e, mesmo assim, apostou que ele se corrigiria e respeitaria ao menos as instituições republicanas e o decoro do cargo agora está de pires na mão, implorando pela clemência de seus pares para retomar algum grau mínimo de cidadania.

Em 5 de fevereiro de 2019, poucos dias após Bolsonaro completar um mês de governo, escrevi um texto alertando para os tempos sombrios que nos aguardavam sob sua batuta. Nele estavam registrados, além dos óbvios defeitos de caráter do recém-eleito, os projetos macabros que alimentaram a escolha de ministros, assessores, líderes do governo e presidentes de estatais. Prevendo que a explosiva mistura de religiosos fundamentalistas e militares subservientes ocupando cargos técnicos nunca poderia dar certo. Num dos trechos fiz questão de escrever que “por medo dos bandidos, a maioria concordou em pagar a milicianos para cuidar de sua proteção pessoal”. Vidência, visionarismo, mediunidade? Não, simples experiência de vida, atrelada a algum conhecimento de psicologia clínica – ainda que a psicologia, como ciência, não lide com questões de caráter.

Como dizia um espírita famoso e colega de profissão (Gasparetto), só se desilude quem se ilude. Quem passou a vida tentando mudar as crenças e comportamentos de seus pais, companheiros, filhos, amigos ou chefes – e se frustrou redondamente – sabe bem do que estou falando. As pessoas apaixonadas costumam acreditar que o outro possa mudar “por amor” a elas. Ledo engano. Se isso já não vale para as relações pessoais, imagine então o que pode ser esperado nesse ninho de serpentes peçonhentas que é a política brasileira.

O desrespeito às leis e às instituições é marco simbólico de toda a carreira pública de Jair Bolsonaro. Inútil elencar os escabrosos atos tresloucados do ex-capitão, cada um pode localizar algum malfeito mais a seu gosto. Mas ainda vale a pergunta: Como acreditar que um indivíduo incapaz de separar o que é público do que é privado poderia da noite para o dia se transformar em estadista respeitável internacionalmente? Ingenuidade tem limites, ora bolas.

Mais além da obsessão por transgredir, no entanto, está o cinismo covarde, a hipocrisia, a insensibilidade e a desfaçatez premeditada dessa criatura. Essa talvez seja a verdadeira e única novidade na presidência em todos os tempos. Antigamente, os políticos pegos com a boca na botija ainda se davam ao trabalho de fazer pronunciamentos indignados, repletos de linguagem empolada e termos incomuns da norma culta, destinados a convencer os mais crédulos de que eram seres impolutos, exemplos de probidade administrativa e simples vítimas de “perseguição política”. Hoje em dia, se já não bastasse a linguagem chula típica de botequim de beira de estrada e de prostíbulo com que o atual mandatário se dirige à nação, temos de lidar com o contínuo arremesso de responsabilidades à distância e de nos haver com bravatas inconsequentes, mentiras e desmentidos, seguidas por novas mentiras e novos desmentidos.

Não bastasse o golpismo explicitado nas manifestações do 7 de setembro passado e rapidamente minimizado como infeliz resultado do “calor do momento”, o Anticristo tupiniquim agora anuncia destemido a repetição da façanha para este ano. Quer mostrar de forma cabal “de que lado o povo está”. Fiquei pensativa: lembrei do apelo do “não me deixem sozinho” de Fernando Collor, que deu no que deu. Mas, ainda perplexa, me indago: e se as ruas e praças das capitais se encherem com multidões de devotos violentos repetindo a plenos pulmões “eu autorizo”, como reagirão as oposições e o Judiciário? Haverá guerra civil, cancelamento das eleições ou a pressão interna e internacional se encarregará de botar freio no ânimo demolidor do déspota?

Não fosse suficiente a sustentação indisfarçada de alguns militares de alto coturno para a aventura golpista, ele agora decide fechar com chave de ouro sua carreira de banditismo profissional com um inédito crime de lesa-pátria: ir buscar o apoio do presidente dos Estados Unidos para tentar impedir a ascensão de seu adversário. Aparentemente, continua apostando no cansaço e no esgarçamento das forças democráticas. Resta saber se vamos ser capazes de ressuscitar os caras-pintadas, pegar em armas mais uma vez para defender a pátria dos seus algozes ou se Deus, brasileiramente, vai dar um jeitinho de demonstrar que ele não é nem imorrível nem imbrochável.

É, pois, em nome de Marielle, de Bruno Silveira e Dom Phillips, de tantos jornalistas atacados grosseiramente, das crianças e jovens pretos da periferia mortos por violência policial, dos mortos pela pandemia e dos que estão perto de morrer pela fome que eu pergunto: como você vai justificar – não só para terceiros, mas principalmente, para sua própria consciência – sua intenção de votar nele outra vez? Ou vai continuar achando que o tal bicho-papão do “comunismo” é um mal maior a ser enfrentado?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Conservadorismo e defesa da família

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Eu estagiava num hospital psiquiátrico, como parte obrigatória da graduação em psicologia clínica. Uma de minhas pacientes era uma jovem franzina, tímida, na casa dos vinte e poucos anos, que pouquíssimo falava sobre sua vida pregressa. Dado seu mutismo quando questionada sobre as emoções que se agitavam em seu universo interior, era difícil para mim obter informações confiáveis sobre os motivos que a haviam levado a ser internada e que alimentavam delírios religiosos frequentes.

Decidi então submetê-la ao teste de Rorschach para colher subsídios que pudessem determinar a melhor forma de abordar o caso. Esse teste, também chamado de “teste dos borrões de tinta”, consiste na apresentação, em uma sequência padrão, de 10 pranchas com manchas aleatórias, em branco e preto ou coloridas, e a solicitação de interpretação simbólica das figuras formadas – mais ou menos como acontece na brincadeira de identificar formatos nas nuvens em movimento no céu que se pareçam com pessoas, animais ou objetos.

A cada prancha apresentada, ela respondia com uma evidente mistura de curiosidade e medo. Depois de se deter por alguns minutos escaneando visualmente mas em silêncio os detalhes com total interesse, ela se retraía súbita e inexplicavelmente, dizendo: “Não estou vendo nada… só meu pai consegue ver”. O comportamento e a frase esdrúxulos se repetiram ao longo de todo o teste. Cada vez mais intrigada com aquela clara proibição interna de revelar conteúdos profundos, resolvi então reapresentar as 10 pranchas, uma a uma, perguntando: “O que seu pai vê aqui?”

Naquele instante, o psiquiatra que supervisionava o estágio entrou na sala e me lançou um olhar furioso. Como eu ousava alterar as regras do jogo irresponsavelmente, confundindo ainda mais a cabeça da garota? Fiz um intervalo, saí da sala e contei a ele o que estava acontecendo. Expliquei que, como o teste é projetivo, isto é, depende da projeção de percepções, emoções e sentimentos pré-existentes no psiquismo do paciente e que só são liberados quando há autorização da censura interna, eu precisava apostar que ela estaria driblando a própria censura ao assumir as percepções do pai como suas e trazendo à tona os elementos necessários para compreender as razões de sua falta de autonomia. Ele consentiu.

Minha estratégia foi um sucesso. Ela produziu um farto material para investigação, na maior parte das vezes com conteúdo de violência sexual. Entrou num frenesi verborrágico ao entrar em contato com uma prancha em que há uma mancha vermelha, com respingos espalhados sobre um fundo preto, que interpretou em meio a muita angústia como vagina sangrando, penetração violenta, sensação de fragmentação do corpo.

Comecei a escarafunchar o histórico familiar da paciente, na tentativa de descobrir as raízes dessas percepções. Sabia que o pai da garota era pastor de uma igreja fundamentalista cristã e era tido na comunidade como modelo de moralidade exemplar. No entanto, ninguém sabia informar como eram as relações dele no interior da família, com a esposa e com a filha.

Contrastando o material colhido no teste com esses fatos, foi-se revelando aos poucos que a garota não só era vítima aterrorizada de um pai autoritário, que se pretendia também possuidor de moralidade religiosa inatacável, mas havia sido estuprada seguidas vezes por ele e dele havia engravidado aos 14 anos. Forçada a abortar para não manchar a reputação do pai na comunidade, com o silêncio cúmplice da mãe, ela colapsou sob o fardo da opressão sexual e enlouqueceu.

Diagnosticada como esquizofrênica, ela passou a ter delírios religiosos, durante os quais se via como a Virgem Maria, a única pessoa isenta de pecado que poderia aceitar a missão de conceber o filho de Deus, representado pelo pai pastor. A morte forçada do filho também se encaixava à perfeição nesse contexto de autoridade divina inquestionável. Só ele sabia o que era melhor para ela e ela não podia duvidar das intenções e desígnios “sagrados” dele.

Sem o saber, eu havia encostado num fio desencapado em que entravam em curto o horror sexual real e a fantasia da pureza espiritual. Ela se refugiava nas alucinações místicas para escapar da loucura de sua realidade familiar. A partir dali, percorremos juntas toda uma Via Crucis de reinterpretações, avanços, quedas e retrocessos, até que ela se abrisse para a possibilidade de ajuda terapêutica. Esse caso me ajudou a entender não só o papel da cisão esquizofrênica na tentativa de restaurar a coesão do Eu mas também a aprofundar minha compreensão da violência contida na estrutura patriarcal de nossa sociedade.

Agora, com a campanha eleitoral de 2022 já em andamento, constato estarrecida que um grande número de candidatos insiste em apresentar-se ao público como “conservador”, repisando orgulhosamente o tema da “defesa da família” como trunfo eleitoral. Inevitavelmente, o caso dessa jovem esquizofrênica volta à minha cabeça e me força a perguntar: A qual família eles se referem, afinal? À família patriarcal, branca, de classe média/alta, heteronormativa? Àquela mesma família em cujo seio se instala a imensa maioria dos casos de pedofilia, estupro, abuso sexual, perversões e violência doméstica? Àquele tipo de família em que deve haver um abafamento compulsório de casos de homossexualidade e transgeneridade, mesmo que isso termine em suicídio de crianças e jovens?

Se é a esse tipo de família que precisamos voltar para reestruturar nossa sociedade, estamos de fato perdidos. Se ele fosse realmente tão poderoso para gerar harmonia social, convivência democrática e progresso, por que vivemos tempos tão sombrios de ódio e intolerância radical? Quando a esse modelo patriarcal se junta a noção de um Deus Pai todo-poderoso, guardião dos costumes para o alcance de elevação espiritual, não há como vislumbrar um futuro de mínima sanidade psíquica, de respeito às diferenças e de reafirmação da cidadania para o avanço das pautas das minorias.

O foco central da família patriarcal cristã sempre esteve na exigência de pastoreio rigoroso da sexualidade… feminina apenas, é bom lembrar. Segure suas cabras que meu bode vai sair para pastar. O duplo padrão de moralidade sexual do patriarcado continua a se vender como salvação da lavoura nacional ‘against all odds’ e, no atual contexto de direito à “liberdade de expressão” sem limites, deriva muitas vezes para um padrão de masculinidade tóxica que ainda seduz politicamente muitas cabeças jovens.

Claro que há famílias saudáveis, bem-estruturadas e funcionais em todos os estratos sociais, raciais e religiosos, mas ninguém se atreve a questionar de que forma esse modelo fantasiado de família de comercial de margarina se encaixa com a realidade da imensa maioria das famílias brasileiras em que as mulheres são as chefes, as provedoras e os modelos inspiracionais, em meio a muita carência, fome, desemprego e violência sexual/social.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Minha Páscoa estragada

Myrthes Suplicy Vieira (*)

A bem da verdade, não foi apenas a atual que foi conspurcada. Foram 21 Páscoas minhas estragadas, justo no período que deveria ter sido o mais produtivo e de mais efervescente participação social da minha vida. Longuíssimos 21 anos em que eu e muitos de meus compatriotas fomos forçados a percorrer em silêncio e impotência todas as estações da Via Crucis da ditadura militar e a reviver em agonia todos os anos o martírio da carne de nossos companheiros seviciada impunemente. Para meu desconsolo, a elas juntam-se agora mais três Páscoas estragadas, contaminadas pelo veneno do descompromisso de nossas elites civis e militares para com a vida e a dignidade humana.

Não sei se o indigníssimo general se deu conta em algum momento de que seu pronunciamento foi feito exatamente em referência ao dia em que os cristãos celebram a vitória do espírito sobre a carne. Ao dia da Ressurreição do compromisso cidadão (mais do que cristão) com o combate à desigualdade, com o respeito às diferenças e com a justiça social. Não, é mais do que provável que ele não tenha percebido. A Páscoa, para ele, deve ser apenas mais um feriado de comilança com a família, depois do tempo do jejum forçado. Aquele dia tão aguardado em que o gosto amargo de sangue em suas bocas pode finalmente ser substituído pelo sabor doce da consagração do princípio do excludente de ilicitude.

Tivesse compreendido que ‘mesmo calada a boca, resta o peito’, não teria se dado ao luxo de debochar de maneira tão afrontosa de nossa dor, de nossas feridas mal cicatrizadas que voltam a sangrar sempre que somos atingidos por novos golpes de desfaçatez. Pensando bem, é até compreensível que ele se dirija à nação como se dono fosse do país e da razão: não está acostumado a perguntar a opinião de seus comandados. Foi treinado para mandar, não para o exercício da cidadania.

Para sustentar sua indiferença arrogante, o Pilatos de plantão deve ter partido da premissa de que foi uma escolha de nossa sociedade – representada por todas aquelas senhoras cristãs da Marcha da Família com Deus pela Liberdade – a implantação de um regime de horror e exceção. Afinal, tudo estava uma bagunça e havia o risco de uma ditadura comunista, não é mesmo? Estava claro o que os mais céticos nunca conseguiram compreender: a urgente necessidade de implantar um regime autoritário de direita para impedir a ascensão do autoritarismo de esquerda. Mas, por um descuido, por um desses raciocínios matemáticos incompreensíveis, ele pulou de uma equação a outra e acabou não conseguindo explicar a conexão lógica entre a necessidade da tortura e o pleno restabelecimento da democracia.

Desculpe minha ignorância, general. Não compreendo muito bem as razões estratégicas de Estado para conduzir a nação com mão de ferro a seu destino glorioso de paz e harmonia social. Deve ter sido um ‘mal necessário’ para alcançarmos o ‘bem’ de uma vida civilizada, disciplinada, em que os de farda se locupletam e os sem farda se contentam resignados com a evidente impossibilidade de restauração da moralidade. Pena que nem todos, como eu, compreendamos a nobreza patriótica dos atos das Forças Armadas nos porões do Doi-Codi.

Para ser sincera, seu pronunciamento fez-me lembrar a prepotência da patricinha alienada que reage às cobranças de maior sensibilidade social dizendo: “O que vem de baixo não me atinge”. Perdão mais uma vez, general. Nós, aqui de baixo, não conseguimos visualizar a estrada toda, só os descaminhos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A síndica

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Tem gente que se torna praticamente virtuose na arte de manipular emocionalmente outras pessoas. Sua expertise é provocar a fúria de qualquer um que atravesse seu caminho, fazendo comentários desrespeitosos sobre características que a pessoa não tem como controlar (como cor da pele, gênero, deficiências físicas ou mentais), desqualificando moralmente seus oponentes e abalando sua autoestima.

Um dos pontos-chave dessa estratégia é que a ofensa seja feita sempre de forma sorrateira, indireta: é preciso que o agressor pegue o outro desprevenido, seja através de uma postura inicialmente amistosa, seja através de um raciocínio ferino rápido durante a conversação que pareça ocasional, não-intencional. O emprego de um tom de voz contido ou jocoso colabora para que a intenção de causar descontrole emocional no noutro se concretize mais rapidamente. O lado triste é que, quando a vítima finalmente sai do sério, retrucando de forma intempestiva, ela não está dando uma resposta à altura, mas apenas reforçando a eficácia da estratégia e confirmando o poder demolidor do agressor.

As mulheres sabem bem como isso funciona. Acuadas por frequentes comentários discriminatórios a respeito de sua competência técnica ou autoridade para liderar grupos, ou ainda por observações de baixo nível (normalmente de cunho sexual), se reagem chorando ou estapeando o agressor, lá vem a velha cantilena: “Mulheres são instáveis emocionalmente, não têm sangue frio para lidar com situações de tensão, não têm senso de humor”. E o agressor, impune e com presumido ar de espanto, se rejubila com a comprovação na prática de suas teses.

Forçoso é admitir que, para que a estratégia funcione, o agressor precisa possuir algum resquício de inteligência. Precisa saber que não pode levantar acusações diretas aos berros, uma vez que isso demonstraria para os circunstantes que ele também não consegue controlar seus impulsos. Precisa saber identificar com antecedência qual é o posicionamento exato de seu oponente na escala reativa que vai de “sangue de barata” a “pavio curto”. Precisa impedir a qualquer custo que os circunstantes se alinhem com a vítima e saiam em defesa dela. Um caso emblemático desse tipo de expertise é o que eu relato abaixo.

Todo mundo sabe como os síndicos costumam ser malvistos pelos moradores de um condomínio. As razões para esse estereótipo são muitas: postura autoritária, moralismo, tentativas de interferência na vida particular dos moradores, formação de panelinhas no atendimento às demandas dos moradores, suspeitas de apropriação indébita ou de má gestão orçamentária, dentre muitas outras.

No condomínio onde moro não foi diferente. A síndica de ocasião era uma senhora de cerca de 80 anos, que se apresentava como especialista em administração de pessoal, contabilidade, legislação trabalhista e fiscal. O síndico anterior havia sido acusado de desviar dinheiro do condomínio. A eleição dela representava, portanto, a esperança de uma faxina completa nas contas do condomínio.

Era uma pessoa altiva e austera mesmo fora das funções de síndica. Ríspida no trato com moradores e funcionários, logo começou a causar um sem-número de conflitos. Sentia-se à vontade para legislar sobre novas regras de convivência caso a convenção do condomínio fosse omissa nesse sentido. Gritava com crianças e adolescentes que brincavam no jardim do térreo pisando na grama, ou ouviam música alto. Vira e mexe soltava uma circular recriminando hábitos dos moradores que, segundo ela, contrariavam a imagem de um condomínio “de classe”.

Uma das coisas que mais a irritavam era o contato afetivo próximo dos moradores com os porteiros. Alegando questões de segurança, ela passou a proibir que o contato fosse além do ‘bom-dia’. Mandou reformar a portaria, colocando-a num plano mais elevado e revestiu os vidros com filtro escuro. Proibiu os funcionários de se afastarem do posto mesmo que por alguns segundos para ajudar moradores com sacolas de compra ou problemas de locomoção.

Ao longo do tempo, sua especialidade mostrou ser mais especificamente a de tirar os moradores do sério, tratando-os como subordinados. Para isso, ela não economizava adjetivos pejorativos e humilhações em público. Chamou a mãe de uma moradora, de quase 90 anos, de esclerosada. Acusou, sem provas, um morador eletricista de ter feito uma gambiarra na antena de tevê para ter acesso indevido a canais pagos. Certa vez, depois de ter brigado com um morador gay por seu comportamento espalhafatoso, interfonou para meu apartamento, pedindo que eu alertasse a mãe dele de que ele “não valia a comida que a mãe preparava”.

Intimidados, os condôminos deixaram de recorrer a ela para resolver quaisquer pendengas. Temendo serem a próxima vítima de seus maus bofes, limitavam-se a comentar em voz baixa pelos corredores os absurdos mais recentes. A tensão escalou sem controle até o dia em que ela resolveu confrontar um morador que era um ex-militar aposentado por distúrbios psiquiátricos. Como o homem tinha surtos frequentes de agressividade e andava armado, representava um páreo duro para a intempestividade dela. Certo dia, ao passar em frente ao escritório da administração, ele foi questionado sem meias palavras se não se envergonhava de ser “encostado na mulher”, que trabalhava dia e noite para sustentar a casa, enquanto ele levava uma vida fútil, cuidando apenas de sua cachorra.

Foi o que bastou: furioso, o homem invadiu o escritório e estapeou a síndica sem dó nem piedade. Pega no contrapé pela primeira vez, ela registrou um boletim de ocorrência, mandou trancar a porta da administração e deslocou um vigia para fazer sua segurança 24 horas por dia. Contratou um advogado e exigiu que os moradores pagassem por seus serviços, alegando que estava no exercício de suas funções quando da agressão. O rebuliço foi total. Logo os moradores se dividiram, uns apoiando uma mulher idosa vítima de agressão e outros justificando a perda de controle de um homem aviltado em sua honra, já sem muitos freios racionais.

Por fim, um grupo de moradores decidiu organizar um abaixo-assinado para a realização de uma assembleia extraordinária, em que se discutiria o afastamento definitivo da síndica em função de tantas polêmicas. Para que ninguém fosse alvo isolado de fúria, ficou combinado que cada morador apresentaria de própria voz as circunstâncias de seu embate pessoal com ela. Informada dessa tática e vendo que não teria como contraditar cada caso, poucos minutos antes do início da assembleia, a síndica apresentou sua renúncia por escrito.

Aprendi com essa mulher que não há uma forma 100% eficaz de reagir a esse tipo de manipulação emocional, nem mesmo o silêncio despeitado. No limite, pode-se respirar fundo, perguntar-se se há um fundo de veracidade no comentário insultuoso e retrucar usando da mesma técnica: a ironia ou o sarcasmo.

Certa vez, quando nos encontramos no corredor e ela pretendeu me ensinar a melhor forma de embalar o lixo para que ele não provocasse mau cheiro, olhei para ela espantada e emendei com toda coragem: “Nossa, me desculpe, devo estar ficando com Alzheimer! Imagine a senhora que eu não me lembro de ter pedido sua opinião…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Brasil: um país para não-amadores

Myrthes Suplicy Vieira (*)

A primeira vez que me dei conta da imensa importância da energia elétrica – e do gigantesco estrago que ela pode causar na vida das pessoas comuns caso falte por alguma razão – foi quando a luz acabou no prédio da empresa em que eu trabalhava.

Eu atuava no RH da companhia e minha sala ficava no primeiro andar. Naquele momento, eu estava finalizando a contratação de um funcionário e precisava esclarecer alguns pontos da remuneração a que ele teria direito com o departamento financeiro – que, para meu desgosto, ficava no quarto andar. Como a coisa era urgente, subi pelas escadas e me deparei com uma pá de funcionários inertes, recostados em suas cadeiras, braços cruzados e olhar perdido na distância. O silêncio era geral e todos pareciam resignados com a situação, esperando obedientemente que a energia fosse restabelecida para entrar novamente em ação, como cachorros adestrados para não se mover até que um apito ou tiro fosse disparado.

Surpresa e incomodada com a apatia geral, tentei fazer o supervisor resolver o problema fazendo contas à mão mesmo, já que o recém-contratado não podia esperar. Ele me olhou com ar de perplexidade, como se eu lhe estivesse pedindo para escalar o Everest sem cordas. Respondeu que seria impossível, uma vez que teria de fazer cálculos complexos para posicionar os benefícios previstos para o cargo proporcionalmente à remuneração dos demais funcionários do setor a que a pessoa iria pertencer.

Foi minha vez de ficar perplexa. Perguntei se não havia alguma calculadora manual que pudesse dar conta do recado. Ele balançou negativamente a cabeça, sem disfarçar uma careta de desdém. Era como se ele me dissesse: Como assim? Calculadoras manuais são objeto de interesse de museus, mas não de uma empresa multinacional como a nossa. Não pude deixar de pensar no meu velho pai, também contador, que varava madrugadas a fio fazendo e refazendo suas contas incansavelmente na ponta do lápis. Não gostava de calculadoras e nunca se permitiu aprender a lidar com computadores.

É curioso como a gente desaprende certas habilidades ao terceirizá-las para máquinas. Se você teve de redigir algum texto mais longo à mão nos últimos anos, sabe do que estou falando. Se precisou lembrar do número do telefone de algum conhecido sem dispor de uma agenda eletrônica, também. Até hoje me pergunto como os mais jovens fazem para reter os aprendizados escolares se sua memória foi integralmente delegada ao Google.

Voltou à minha cabeça um acidente aéreo acontecido na rota São Paulo – Belém do Pará. O piloto havia se distraído ao inserir o código da região de destino no computador de bordo e só percebeu o engano depois de horas sobrevoando a floresta amazônica sem enxergar o aeroporto em que deveria pousar. A bordo havia um mateiro, experimentado nas características geográficas da região. Acompanhando o trajeto dos rios, a posição do sol, da lua e das estrelas, o dito cujo logo se deu conta de que o piloto estava perdido. Levantou-se, foi até a cabine e alertou o piloto que estavam fora de rota. Preferindo confiar mais nos instrumentos de bordo do que na sabedoria ancestral de um homem do povo, o piloto continuou voando em círculos até que o combustível acabou e o avião acabou se chocando contra as árvores.

Sem um plano B efetivo, não há como lidar com imprevistos. Dizem que as maiores descobertas científicas acontecem quando a máquina quebra. Como apontou Darwin em sua obra, não é o mais forte nem o mais inteligente que sobrevive. É o mais adaptável, o mais flexível diante das situações extremas. Por estranho que pareça, meu cérebro sempre se sai melhor em situações de alta tensão. Aliás, um dos meus prazeres mais extravagantes é imaginar o que eu faria se vivesse no século 18 e precisasse obter ajuda rápida sem poder contar com os recursos tecnológicos contemporâneos.

Terça-feira, 15 de fevereiro de 2022, 6 horas da manhã. Ao acordar, percebi que estava sem acesso à Internet. O problema não era falta de energia, mas algo errado com a minha conexão. Já prevendo atraso com minhas traduções, peguei o telefone para reclamar com a operadora e, surpresa! Meu telefone fixo estava mudo também! Entrei em surto: pela primeira vez na vida a sensação de estar isolada do mundo civilizado representava uma dor insuportável.

Nunca fui exatamente fã dos computadores, mas sempre foi motivo de orgulho para mim manter-me atualizada, em sintonia com a realidade. De repente, me ocorreu que eu já dispunha de um celular. Como não o uso habitualmente, não havia me dado conta de que a salvação estava ao alcance da minha mão. Liguei para o serviço de atendimento da operadora só para ficar ainda mais transtornada. Uma voz eletrônica descontraída me informou, assim como se nada de anormal estivesse acontecendo: a previsão é a de que o serviço seja restabelecido na quinta-feira, 17 de fevereiro, após as 18 horas!

Meu cérebro travou de tanta indignação. Vivendo na principal cidade da América Latina, em pleno século 21, num mundo em que a informação circula em velocidade ultrassônica, ele não conseguia entender como uma empresa que vende justamente acesso rápido ao mundo se permitia oferecer resposta em passo de tartaruga – e ainda encarar o fato como mero acidente de percurso totalmente desculpável.

Instantaneamente, comecei a fabular formas de vingança contra tanto descaso. Acessei o site do Procon, na vã expectativa de que pudessem forçar a empresa a resolver o problema mais rápido. Qual o quê! Para pasmo ainda maior, pediram um prazo de 20 dias para investigar junto à equipe técnica do provedor qual teria sido o real motivo da interrupção do serviço: incompetência, descaso ou simples obstáculo tecnológico incontornável.

Eu acabava de perceber que a indisponibilidade da tecnologia era ainda mais poderosa do que a falta de energia elétrica. Eu havia sido devolvida, de fato, ao século 18. Impotência, humilhação, descrença. Agora era eu de mãos vazias contra o Golias da comunicação, uma cidadã sem poder de influência contra os verdadeiros donos da nação.

Fernando Sabino, em seu livro Encontro Marcado, imaginou um divertido ataque terrorista contra a típica indiferença das autoridades brasileiras: certa manhã, os habitantes de uma cidade descobrem que não podem sair de casa porque há um gigantesco pão interditando a entrada. Mais tarde, surgem outros pães em pontos aleatórios da cidade, interrompendo o tráfego nas ruas, avenidas e pontes. Perplexidade geral. Peritos são chamados às pressas para examinar tão exótico artefato: nada com que se preocupar, trata-se apenas de farinha, água e fermento. Logo outras cidades começam a relatar o mesmo fenômeno e, em poucas horas, o país inteiro é paralisado.

Pondero que tipo de pão terrorista eu poderia utilizar em substituição. De repente, faz-se luz: vou infiltrar-me nas hostes inimigas e destruir o sistema por dentro, usando as redes sociais para aliar-me a outros usuários insatisfeitos e aumentar a pressão. Dito e feito, experimento uma sensação tola de justiça. Relaxo, me deito indolente, à espera do retorno ao paraíso.

Sexta-feira, 18 de fevereiro, uma e meia da tarde, a conexão é finalmente restabelecida…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

BREAKING NEWS: Deus não é mais brasileiro!

Myrthes Suplicy Vieira (*)


O Altíssimo convocou uma cadeia de rádio e televisão de urgência para um pronunciamento bombástico, retransmitido por todas as plataformas de streaming.

Com o rosto tenso e a voz embargada, começou dizendo:


“Quero informar que estou abrindo mão em definitivo do título de cidadão brasileiro. Como sabem todos, tenho o dom da ubiquidade e, portanto, posso assumir todas as nacionalidades ao mesmo tempo. Agrada-me que as pessoas me tratem como um dos seus, uma vez que isso sinaliza que habito seus corações. No entanto, não me parece mais adequado que um determinado povo queira sequestrar para sempre minha identidade só para si.

Aceitei a contragosto por muito tempo a falácia de que sou brasileiro. Na época, pareceu-me simpática a homenagem que me prestavam, já que minha mãe também é considerada nativa desse país miscigenado e gigante e foi inclusive aclamada sua padroeira. Além disso, queria deixar claro na ocasião que não é preciso demonstrar a sisudez e a formalidade dos povos do Velho Continente para ter acesso a mim. A descontração, a alegria e a espontaneidade típicas da cultura brasileira me cativavam e, confesso, me davam também a oportunidade de expandir meu domínio sobre todo o continente americano. Era, portanto, não só uma questão familiar mas também estratégica para minha igreja.

Parecia-me ainda uma justa retribuição por todos os privilégios que concedi ao Brasil. Dotei a terra brasiliense de múltiplos recursos naturais. Os brasileiros puderam contar sempre com uma abundância de água, terras férteis, sol o ano inteiro, ausência de cataclismos e vulcões. Os mais belos cenários naturais do mundo eu os plantei aqui. Permiti que a maior floresta tropical da terra aqui florescesse. Adornei estas terras com uma das floras e faunas mais exuberantes, coloridas e belas do mundo. Para habitar esse paraíso terrestre, escolhi um povo multifacetado, herdeiro dos melhores traços de caráter de três etnias fundamentais: brancos, índios e negros.

Imaginava que a harmonia entre o homem e a natureza nesse pedaço de chão tão generoso fosse durar para sempre, assim como a integração e a colaboração de todas as raças. Mas o que fizeram com tantos dotes? Escravizaram índios e negros, alijaram os mais pobres do usufruto dos bens derivados de seu próprio trabalho, destruíram todos os biomas escavando a terra para dela extrair ouro, pedras preciosas e minerais, como se não houvesse amanhã. Envenenaram os rios para acumular fortunas e, no processo, mataram de sede e de fome as populações ribeirinhas. Deixaram-se levar pela crença de que a destruição do patrimônio natural, humano e cultural em nome do progresso era prerrogativa dos seus governantes e de sua elite empresarial. Acreditaram que o bolo da economia só pode ser dividido depois de ter crescido e, por isso, não aprenderam a compartilhar. Não satisfeitos, zombaram de todos os seus vizinhos sul-americanos que enfrentavam uma história de escassez e de revoluções sangrentas.

Mais grave, imaginaram que minha ira diante de tanta insensibilidade e desumanidade seria aplacada se construíssem templos revestidos de ouro para minha adoração. Que tipo de ser abominavelmente vaidoso seria eu para deter meu braço de justiça em troca de luxo fútil? Alardearam que estou no comando de todas as operações que interferem na vida do homem e, blasfêmia, insinuaram que até mesmo eventuais desastres naturais, períodos de fome e seca, de crise política, degradação moral e desalento espiritual faziam parte de minha vontade soberana, caracterizando-os como forma de punição aos homens maus. Ora, mau seria eu se permitisse que o castigo fosse generalizado e atingisse quem não tem como se defender da cupidez dos homens poderosos que só querem perpetuar a injustiça social e a desigualdade.

Jamais me imiscuí em seus assuntos políticos, até porque cansei de dizer que meu reino não é deste mundo. Embora alguns de meus representantes na terra tenham por vezes tentado me associar a esta ou aquela força político-ideológica, nunca tomei partido nas disputas humanas por poder. Eu lhes concedi livre arbítrio justamente para que pudessem determinar o melhor rumo para suas vidas e para o da nação. E, muitas vezes, vocês escolheram seus líderes com base na miopia do rancor e do ressentimento pessoal, não na razão. Quando se deram conta de que haviam se colocado voluntariamente nas mãos de tiranos impiedosos, imploraram pela minha interferência e eu nada fiz. Esqueceram do comando bíblico: faze tua parte e eu te ajudarei.

Para minha suprema tristeza, seus dois últimos mandatários declararam terem sido escolhidos por mim. Inominável absurdo! Elegem inconscientemente o Anticristo de plantão e ainda me culpam? Repito: A Deus o que é de Deus, e a César o que é de César. Assumam responsabilidade por suas escolhas equivocadas de uma vez por todas. Pelo amor de Deus (no caso, eu mesmo), cresçam, amadureçam. Tenho mais o que fazer do que ficar cuidando de picuinhas humanas.

Tolerei por séculos esse estado de coisas, acreditando que as demonstrações de fé inabalável em mim e de resiliência da gente humilde brasileira bastariam para instaurar novos tempos de comunhão entre o povo e seus dirigentes. Mas o país do futuro promissor também não aconteceu nesse sentido. Ultimamente as coisas atingiram um patamar paroxístico que não posso mais tolerar. O ódio entre irmãos nunca esteve tão forte, a desigualdade nunca pareceu tão irreversível e a insensibilidade social de seus dirigentes jamais se mostrou tão despudorada. E tudo isso acontecendo ao mesmo tempo em que seus líderes políticos proclamam que o Brasil está acima de tudo e eu estou acima de todos. Será mesmo?

Como isso é possível se tudo o que fazem é repetir como um disco quebrado meu nome e o de meu filho Jesus, aceitando, ao mesmo tempo conviver com o mais dramático quadro de desamor ao próximo de que se tem notícia? Como fiz questão de deixar registrado na Bíblia no começo dos séculos, meu nome não pode ser pronunciado em vão. Entendam em definitivo que a salvação nunca vem de fora, que palavras e ações têm de coincidir para que as coisas mudem para melhor.

Compreensivelmente, não posso mais acobertar tanto desatino. Ontem, quando soube que seu ministro da Saúde – aquele mesmo que já foi até comparado a Herodes por precisar de um “número significativo” de mortes de crianças para tomar alguma ação prática de defesa de suas vidas – disse ter se inspirado na minha sagrada família para desenvolver um novo programa de saúde familiar, entendi que não há mais esperança de tudo mudar. A hipocrisia e o cinismo venceram. Mesmo sabendo e repetindo todos os dias que a verdade liberta, seus dirigentes optaram explicitamente pela desfaçatez, pelo perjúrio, pela ignomínia.

Se vocês dizem conhecer minha vontade e ainda acreditam que ela deve prevalecer, saibam que eu já não acredito na sua capacidade de superação do egoísmo, nem em seu amor por mim. Vocês decidiram livremente pelo pior dos caminhos e devem, portanto, percorrê-lo até o fim, sem mim.

Em bom português: Cansei, pra mim já deu. Fui, vazei. Hasta la vista, babies…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O Papa, os filhos e os pets

Papa Francisco

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Causou espécie o recente pronunciamento do papa Francisco de que seria um sinal de egoísmo e perda de humanidade a decisão de “trocar” filhos por pets. Não sei como as palavras do papa ressoaram junto às feministas, aos defensores da causa animal ou aos católicos tradicionalistas, mas admito que esse discurso me atingiu em cheio.

Em primeiro lugar, porque nunca quis ter filhos, embora tenha contemplado muitas vezes a possibilidade de adoção e me dedicado à criação de meus sobrinhos e sobrinhos-netos. Em segundo lugar, porque há 20 anos convivo prazerosamente com cachorros e os considero essenciais para meu bem-estar psicológico. Em terceiro lugar, ainda que não menos importante, porque nunca achei que, na decisão de adotar um pet, estivesse implícita necessariamente a escolha de substituição afetiva, a ideia de não querer lidar com a criação de um filho humano. Por que não as duas coisas ao mesmo tempo?

Confesso que uma fala forte como essa, associando o amor aos animais com menos amor à humanidade me chocou por ter saído da boca justamente de um papa que escolheu o nome de Francisco – o santo protetor dos animais – para enaltecer seu pontificado.

Não pretendo absolutamente crucificar um papa que me encanta desde que assumiu o pontificado. Compreendo que, por ser o líder máximo de uma estrutura patriarcal, hegemônica e conservadoramente misógina, ele precisa moderar suas palavras para não detonar uma crise que poderia ser fatal ao catolicismo, diante da crescente influência do neopentecostalismo.

No entanto, o que me parece central na sua mensagem é que, na tentativa de conciliar visões de mundo antagônicas e não ferir suscetibilidades, Francisco acabou dando uma no cravo e outra na ferradura. Antes de mais nada, não deve ter escapado a ninguém a inoportunidade do ‘timing’ de sua fala: como desejar colocar mais crianças num mundo pandêmico, em que os recursos naturais do planeta se esgotam a olhos vistos e onde o desemprego e a fome campeiam? Mesmo entendendo que ele não poderia escapar de estimular o comando bíblico do “Crescei e multiplicai-vos’, como desconsiderar as diferenças abissais em termos de contexto político, econômico e social de cada país ou continente?

Mas os deslizes conceituais não param por aí. Voluntária ou involuntariamente, Francisco colocou em pé de igualdade conjunturas psicológicas e sociais distintas, mesmo dentro de uma mesma comunidade. Misturou, por exemplo, a opção de não ter filhos biológicos com o tema da responsabilidade social de adoção (que deveria ser contraposta mais propriamente com a crescente valorização das técnicas de fertilização in vitro ou barriga de aluguel, acessíveis apenas aos mais ricos). Me veio à cabeça na hora aquela canção satírica de Eduardo Dussek (“Troque seu Cachorro por uma Criança Pobre”) que fez muito sucesso por aqui nos anos 80.

Talvez por ser um homem idoso, Francisco não conseguiu abarcar em sua exortação as profundas diferenças psíquicas e aspiracionais de homens e mulheres, tratando como se fossem idênticos os desejos e sentimentos vinculados à paternidade e à maternidade, o que evidentemente não são nem nunca foram. Ignorou, consciente ou inconscientemente, as lutas de emancipação femininas e os dilemas éticos enfrentados por muitas mulheres ao entrar para o competitivo universo do trabalho. “Esqueceu-se” de mencionar que os cuidados com a prole sempre foram tratados historicamente como atribuição exclusiva das mulheres. Deixou de abordar os graves transtornos psicossociais derivados do abandono masculino de suas parceiras logo após tê-las engravidado e do decorrente abandono de recém-nascidos por impossibilidade de sustento financeiro.

Talvez ainda mais grave, assumiu que o desenvolvimento de um vínculo de amor entre pais e filhos é algo natural, instintivo e está inscrito mais especificamente na natureza feminina. Há um livro chamado ‘Um Amor Conquistado, o Mito do Amor Materno’, de Elisabeth Badinter, que demonstra de forma exaustiva que essa pretensa devoção amorosa incondicional da mulher a seus rebentos flutua ao sabor das épocas e das culturas. Ela narra como se dava a criação de bebês na Europa dos séculos 17 e 18: as crianças eram normalmente entregues a uma ama e levadas para um depósito na zona rural, onde eram acumuladas sem qualquer cuidado higiênico, e as que sobrevivessem só eram devolvidas às mães após os cinco anos de idade. Sempre me perguntei também como uma mulher estuprada pode vir a amar o fruto de uma violência sexual, como defendem muitos cristãos fundamentalistas antiaborto.

Do ponto de vista psicológico, não sei se há base científica para se afirmar que se “escolhe amar” isto ou aquilo. Há muito pouco de racionalidade na entrega amorosa. Que seja possível eleger objetos preferenciais de amor só faz sentido à luz das necessidades afetivas individuais, valores, carências, traumas infantis, contingências atuais, etc. Mas parece não haver qualquer fundamento científico na crença de que apaixonar-se por A significa desapaixonar-se por B, C ou Z, ou de que um amor substitui todos os demais possíveis.

Já a necessidade de cuidar de outros seres vivos – seja de uma planta, uma baleia ou outra pessoa – me parece uma tendência universal, que não é apanágio do universo feminino, mas abrange também os homens, todas as classes sociais, raças e idades. Excetuando-se, é claro, os casos de psicopatias e sociopatias que abundam entre nós.

Isso tudo posto, preciso concordar com Francisco em alguns aspectos: há realmente pessoas que optam pela convivência com os bichos porque não conseguem superar suas dificuldades de relacionamento com outros humanos. Tenho ainda de dar a mão à palmatória de que a tendência de tratar pets como filhos é um fenômeno recente, uma distorção típica da pós-modernidade líquida de que falava Bauman, e eivado de egocentrismo e futilidade.

Mais do que filhos, acredito que os pets são representações de um ego ideal – isto é, revelam os traços de personalidade valorizados pela pessoa para se destacar socialmente, assim como as pré-condições impostas por ela para a formação de um relacionamento minimamente aceitável com outras criaturas (sujeição incondicional ao seu estilo de vida e valores, além de risco quase zero de virem a ser abandonados um dia).

Falando nisso, o mesmo descompromisso que muitos revelam com filhos humanos pode ser testemunhado com os pets todos os dias nas ruas e praças das cidades: o número de animais abandonados só fez crescer tão logo a pandemia deu os primeiros sinais de recrudescimento.

Pode parecer paradoxal, mas estou convicta de que, ao contrário do que apregoa o papa, a convivência com os bichos nos humaniza ainda mais – ou seja, nos desarma de nossa intelectualidade discriminatória e, dessa forma, destrói o mito da superioridade moral da espécie humana.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Lamento, mas…

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Leio no dicionário em relação ao significado do emprego de “mas” em uma frase: conjunção coordenativa, que liga orações com as mesmas propriedades sintáticas, introduzindo frase que denota basicamente oposição ou restrição ao que foi dito”.

Desde a icônica frase de Mário Amato, então presidente da FIESP, referindo-se a Dorothea Werneck, então ministra da Indústria e do Comércio, “Ela é inteligente, apesar de ser mulher”, nunca mais tinha atentado para o sentido de correção de rumo do pensamento embutido no emprego de uma simples locução conjuntiva. Só com a ascensão ao trono de Jair Messias Bolsonaro e, em especial, após a eclosão da pandemia de coronavírus, voltei a prestar atenção às intenções ocultas contidas num pronunciamento de autoridade.

Impressionantemente, o presidente da República parece jamais ter-se dado conta da gravidade de seus constantes lapsos linguísticos. Nunca percebeu que seu pretenso compadecimento pelo sofrimento de seu povo ia somente até a página 2 (isto é, o capítulo de apoio à sua reeleição), jamais mostrou ser capaz de colocar um ponto final na frase lamurienta que lhe foi evidentemente impingida por conselheiros e estrategistas políticos. Jamais permitiu que suas alegadas condolências se fizessem acompanhar e se traduzissem num rosto crispado pela dor, num corpo alquebrado pelo peso da responsabilidade ou num gesto fraterno de estender a mão a quem precisasse, anunciando alguma medida urgente de amparo às comunidades mais atingidas.

Precisou sempre colocar um “mas” imediatamente após a expressão de seu suposto lamento, para introduzir uma frase aviltante qualquer que comunicasse o verdadeiro significado de altaneira indiferença contida em suas palavras. Como um moleque que diz de forma inconsequente: “Foi mal, pessoal, mas é o que temos para hoje” ou “Deu ruim, mas e daí?”. Sentiu sempre a compulsão de manifestar oposição ferrenha à lógica científica da quase totalidade das cabeças pensantes no Brasil e no mundo, duvidar da legitimidade dos procedimentos recomendados por tantos órgãos nacionais e internacionais de saúde. Sonhou sempre secretamente ser aclamado como o único chefe de Estado em todo o mundo capaz de apontar outra solução – mais rápida, barata e menos trabalhosa – para equilibrar os desafios econômicos e sanitários, mesmo que para isso tivesse de caminhar sobre uma montanha de cadáveres e se tornasse alvo do ridículo internacional.

Nunca se envergonhou de demonstrar publicamente que não está nem um pouco alinhado emocionalmente com o sofrimento da população carente, dos trabalhadores, dos idosos – e, mais recentemente, com a aflição de pais e mestres em vacinar o mais rápido possível as crianças. Em todas as ocasiões em que foi instado a expressar oficialmente constrangimento diante da ausência de políticas públicas para combater o desemprego e a fome, ele optou por relativizar a importância de tanto infortúnio e se isentar de qualquer forma de responsabilidade. Preferiu colocar a economia à frente da vida de sua gente, contrastar sarcasticamente sua suposta coragem de militar destemido à mariquice da sociedade civil, sugerir hipocritamente que estava impedido de agir por determinação do Judiciário e denunciar a “ditadura” de todos aqueles que adotaram procedimentos de prevenção e isolamento.

Seu insolente “Sou Messias, mas não faço milagres” vai passar para a história universal como a demonstração mais cabal de insensibilidade social e falta de empatia das piores lideranças populistas. Tão criminosamente pervertida quanto o lema nazista de “O trabalho liberta” afixado no portão dos campos de concentração, sua mensagem de Natal revelou-se mais um exercício nauseante de mitomania:

“Estamos finalizando mais um ano. Um ano de muitas dificuldades. Contudo, não nos faltaram seriedade, dedicação e espírito fraterno no planejamento e na construção de políticas públicas em prol de todas as famílias”.

Ao criar o conceito de atos falhos, o sábio judeu Sigmund Freud destacou que eles representam uma solução de compromisso entre o impulso individual desviante e as normas sociais, trazendo à tona “sem querer” um desejo inconsciente que havia sido reprimido – ou seja, ilustrando sempre um ‘sem querer, querendo’. Campeão mundial de atos falhos e medalhista olímpico de ouro na categoria arremesso de responsabilidade à distância, com mais essa demonstração de alienação da dramática realidade brasileira, Bolsonaro deixou escapar pela enésima vez que seu eternamente repetido amor à pátria, a Deus, à família e à liberdade serve apenas ao propósito de reafirmar seu compromisso com a mentira, a desfaçatez, o ilusionismo e o autoelogio.

A nós, cidadãos conscientes, só resta retrucar em uníssono ao excelso mandatário nas próximas eleições: “Lamento, capitão, mas desta vez vou de comunista de novo”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Golpe 2: A opção pelo engano

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Minha “filha” voltou a ligar ontem à noite, pedindo ajuda, depois de tanto tempo. Já tinham se passado vários meses desde sua última investida malsucedida e eu apostava que ela havia aprendido uma lição definitiva: nunca subestime a inteligência da pessoa a quem você pretende enganar, principalmente se ela for bem mais vivida do que você.

Para quem não acompanhou minha desdita quando da primeira tentativa de golpe, relembro: mesmo tendo adivinhado desde o primeiro minuto que se tratava de uma tentativa de extorsão, quando ouvi o apelo choroso de ajuda, algo se mexeu dentro de mim e senti pela primeira vez a necessidade de oferecer escuta terapêutica a uma golpista. Aquela jovem me soava tão convincentemente desorientada que me deixei sensibilizar e optei por permanecer em silêncio, sem recorrer a um discurso moralista igualmente batido, ao longo de todo o telefonema. Funcionou, é verdade, ela desligou sem saber como prosseguir, mas me deixou pensativa quanto ao meu papel na sociedade para proporcionar uma efetiva orientação psicológica aos jovens neste nosso desatinado mundo líquido contemporâneo.

Desta vez, mal ouviu meu alô, ela já emendou aos prantos: “Mãe, me ajuda!”. Respirei fundo e perguntei, como quem não se dá conta do que está acontecendo: “Quem está falando?”. Ela repetiu sem pudor a velha cantilena: “Sou eu, mãe, me ajuda por favor!”. Num ímpeto, misto de surpresa pela ousadia da moça em repetir um golpe tão manjado e de tristeza por a quadrilha ser tão desorganizada, a ponto de não riscar o número dos telefones que “deram ruim”, respondi: “De novo, minha filha???”

Ela desligou instantaneamente. Voltei aos meus afazeres, satisfeita por ter interrompido já no nascedouro mais uma tentativa burra de chantagem, mas de novo não pude deixar de mergulhar em pensamentos sombrios a respeito das dificuldades de maternagem num mundo pandêmico. Meu cérebro voltou a se questionar sem parar: O que leva uma pessoa a optar por ganhar a vida aplicando golpes? Mãe (ou pais) afetivamente ausente na vida real, falta de escola, de um guru espiritual ou de aconselhamento psicológico? Baixa autoestima ou inaceitável falha de caráter? Preguiça mental ou prazer psicopático com o sofrimento alheio? Que homens presos, já sem qualquer esperança de reinserção produtiva na sociedade, recorram a esse expediente talvez seja mais fácil de compreender, mas uma mulher aceitar utilizar seu talento dramático para denunciar e/ou se aproveitar da desigualdade de oportunidades?

Perto dos escândalos políticos que nos acabrunham todos os dias, refleti, isso não é nada. Que direito tenho eu de julgar o ânimo trambiqueiro de mulheres que nem conheço? Que sei eu da vida que essa moça leva? Se ela fosse presa, não seria dispensada de punição pelo juiz sob a alegação de furto famélico? Que tipo de sermão moralizante poderia eu articular se a falta de consciência ética e a insensibilidade social campeiam sem controle entre nós e vêm de cima? Que sei eu de tão fundamental sobre a maternidade (que nunca quis experimentar) para orientar e pretender compensar o desencanto com a vida no coração dessa moça? Aos poucos, o cansaço intelectual bateu e a programação rame-rame da tevê de sábado à noite conseguiu sobrepujar minhas apreensões. Distraí-me e esqueci o assunto.

Por volta da meia noite, o telefone toca de novo. Dessa vez, meu coração pulou no peito, angustiado. Quem será que me liga a essa hora? Só pode ter acontecido algo de ruim com alguém da minha família. Saio correndo para atender. Lá vem de novo a vozinha pretensamente desesperada da minha hipotética filha: “Mãe, preciso da sua ajuda mesmo, mãe… Teve um assalto de novo na minha casa…”

De início, fiquei agradavelmente surpresa por ela ter acrescentado um elemento novo à entediante trama. Dessa vez ela alegava não haver sido pega de surpresa na rua, os marginais que a atacaram haviam invadido sua casa. Que bom, pensei, ela deve ter ouvido meu conselho silencioso de inaugurar uma nova franquia de bandidagem. Mas o entusiasmo durou pouco. Ela mais uma vez não soube como prosseguir diante do meu silêncio. O rancor começou a crescer no meu peito.

O que me incomodava nem era tanto o susto naquela hora incômoda. Era a falta de inteligência e de sagacidade da moça. Para sobreviver na malandragem, pensava eu pela enésima vez, é preciso ter flexibilidade e agilidade mental, prever e se adiantar a uma eventual reação inusitada da vítima, deixar no ar outras deixas que reforcem a credibilidade quanto ao próprio desamparo. E a pessoa que me abordava pela segunda vez no mesmo dia demonstrava não ter avançado um milímetro sequer na direção por mim pretendida. Irritada, usei da voz mais doce que consegui arranjar e disse: “Lamento, filha…Faz o seguinte, meu amor. Da próxima vez que você me ligar, tente inventar novos argumentos. Que falta de criatividade, meu bem! Você não está honrando a tradição da família! Entenda, pela última vez, que eu não tenho filhas….”

Foi o que bastou. Mais uma vez, ela bateu o telefone na minha cara, assustada. Posso apostar que mais alguns meses vão se passar antes que ela ligue de novo. E, se Deus quiser, minha pressuposta herdeira vai então saber fazer jus ao perfil de feminilidade intelectualmente sedutora que eu sempre cultuei. Espero que ela me surpreenda com um discurso parecido com: “Minha senhora, desculpe estar ligando a essa hora. Isto não é um golpe, estou realmente precisando de ajuda. Liguei para a senhora antes de falar com a polícia porque uma amiga comum me garantiu que eu poderia contar com seu bom senso e expertise profissional…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Discurso e atitude

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Conta a fábula que um escorpião precisava atravessar um rio muito largo e, com medo de morrer afogado, pediu a um sapo que o levasse nas costas até a outra margem. O sapo, por sua vez temeroso de ser picado durante a travessia, rejeitou o pedido: “De jeito nenhum. Você é uma criatura traiçoeira e vai acabar me picando e me matando”. O escorpião argumentou então: “Não se preocupe, não existe essa possibilidade. Se eu o picasse, meu veneno o paralisaria, você afundaria e nós dois morreríamos afogados”.

Impressionado, o sapo decidiu confiar na lógica do que dizia o escorpião. Quando estavam a meio caminho, o escorpião de surpresa enterrou seu ferrão no dorso de seu infeliz condutor. Lutando com todas as forças para safar-se da morte, o sapo ainda teve tempo de perguntar: “Por quê, em nome de Deus, você foi fazer isso?”. Ao que o escorpião respondeu: “Porque é da minha natureza e não há nada que eu possa fazer para alterar isso”.

Não sei como outras mentes entendem o fenômeno, mas, para mim, se há um fato inelutável é o de que a natureza humana incorpora atitudes igualmente contraditórias e perversas. Sempre me chamou a atenção como nossa espécie é tão crédula e tão propensa a se deixar influenciar pelo discurso verbal de seus semelhantes. Comparada às formas de comunicação animal, que prescindem do uso de palavras, a nossa é de longe a mais ineficaz, a mais eivada de enganos e a que provoca mais sofrimento. Quando uma abelha localiza uma fonte de pólen, ela inicia imediatamente uma dança aérea em formato de oito que alerta todas as companheiras num raio de quilômetros. Quando uma formiga cai num buraco, todas as demais que caminhavam em fila indiana atrás dela se desviam automaticamente da trilha.

Minha convivência de longa data com cachorros me ensinou aquela que é, provavelmente, a lição mais preciosa de minha vida: a seleção cuidadosa de palavras não é sinônimo de boas intenções por parte de meu interlocutor. Antes de me entregar ao discurso sedutor, preciso checar se a energia emanada de seu corpo é compatível com a de sua fala. Sangue nos olhos e lábios crispados não me parecem compatíveis com a promessa de conciliação. Mãos tensas não sinalizam desejo de proximidade. Peito estufado não se harmoniza com alegação de humildade.

Para um cão, a intenção da mensagem transparece com toda clareza no tom com que as palavras são proferidas. Tom de voz e significado são uma coisa só, estão inexoravelmente interligados. Claro está que humanos sempre podem manipular seu tom de voz para gerar uma reação favorável no cão. Não há, entretanto, condição para que a mensagem seja mal interpretada se ao tom de voz se associam outros elementos, como postura corporal, respiração e cheiro da pele.

Embora não tenhamos consciência disso, nossas emoções provocam a liberação de hormônios na corrente sanguínea e estes, por sua vez, alteram nosso tom de voz e nosso cheiro. É isso o que faz seu cão pressentir que você está prestes a sair, que ele vai levar uma bronca ou que você está, de fato, propondo um descontraído passeio no parque, quaisquer que sejam as palavras que você utilize. Se pudéssemos aprender com eles a farejar a boa e a má fé de nossos interlocutores, tenho certeza que boa parte de nossos conflitos se extinguiria. A não ser, é claro, aqueles que se originam da intenção de nos causar dano, independentemente de nossa reação.

O marketing é a ciência da sedução através do discurso. Se as palavras forem articuladas de acordo com as expectativas do público a que se destinam, o desejo de consumo será despertado e significará um incremento nas vendas. O marketing político não é, de forma alguma, exceção. Destina-se a ressaltar as boas qualidades do aspirante a um cargo público, disfarçar seus defeitos e, dessa forma, minimizar os receios de problemas futuros do eleitorado. Na falta de argumentos verossímeis sobre a qualidade do produto, pode também ser usado para maximizar as fragilidades dos concorrentes, de modo a infundir descrença prévia nos argumentos que estes venham a utilizar em retaliação.

As redes sociais, a forma contemporânea de marketing político mais utilizada, notabilizam-se por ecoar apenas as mensagens que seus usuários querem receber. Eventuais contrapontos e dissidências podem ser eliminados de pronto, bastando clicar no botão deletar ou bloquear. Na ausência de fontes acessórias de informação (como o olhar, o tom de voz, etc.), as mensagens ganham status de verdade cristalina, por mais contraditórias ou chocantes que sejam. Mais grave ainda, em nome da liberdade de expressão, as mídias sociais descobriram uma maneira de driblar a censura que o contato olho no olho implica e de desconstruir a necessidade de emprego do vocabulário politicamente correto.

É possível que muitos acreditem que a disposição de cada um dizer o que pensa e exatamente da forma como pensa represente um benefício a longo prazo para a sociedade, qual seja o da diminuição da hipocrisia. Acreditar, no entanto, que o ódio gerado pela maior transparência do discurso vencedor pode ser contido ou engolido pelos perdedores a posteriori com atitudes concretas é uma ilusão que ainda nos vai custar muito caro.

Há mais de um século, Freud já alertava que as pulsões humanas primitivas estão em permanente choque com a cultura. Einstein, mesmo alegando não saber como seria a terceira, profetizou que a quarta guerra mundial se travaria com pedras e paus. Assistindo ao espetáculo horripilante da involução da civilização brasileira, eu faço coro à advertência de uma terapeuta: aquilo que entrou com violência sai com violência ainda maior. Não dá para relaxar e esperar. A natureza sempre ganha a luta contra o discurso no fim. Salve-se quem puder.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Pasárgada, aqui vou eu

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não tem mais jeito, aconteça o que acontecer, vou-me embora para Pasárgada. De manhã, bem cedinho, antes mesmo do horário de abertura das seções eleitorais, ponho o pé na estrada, levando comigo mala e cuia. Ainda não sei onde fica Pasárgada, nem como chegar lá, mas estou apostando que o caminho se fará no meu caminhar.

Não me entendam mal. Não estou indo para Pasárgada porque lá sou amiga do rei. Não sou. Aliás, nem mesmo sei se Pasárgada é de fato uma monarquia. Ainda que seja, ignoro se o soberano ‒ ou soberana ‒ que a governa é pessoa amistosa, intelectualmente articulada, sensível e acolhedora de forasteiros. Além disso, desagrada-me a proximidade afetiva com integrantes de um círculo fechado de poder. Prefiro a liberdade de circular em meio às gentes e conhecer-lhes as opiniões, vontades, receios, esperanças e desesperanças.

Também não espero receber favores sexuais em lá habitando. Claro que os prazeres sensuais e a catarse que o sexo propicia me seduzem, mas não é isso o que estou buscando em primeiro lugar. É minha alma que está ferida, cansada e precisada de aconchego. Não reivindico nem mesmo o direito de escolher a cama na qual me deitarei. Basta-me que ela suporte meu peso e sirva de abrigo confortável para os sonhos e pesadelos que certamente terei.

O que me encanta em Pasárgada é que Pasárgada não é aqui, não é meu país. Mais uma vez, peço-lhes que não me interpretem mal. Não estou renegando minha pátria, sou grata a tudo o que ela me proporcionou até aqui. É que não gosto de fronteiras e prefiro não me expor à fogueira das vaidades que vem provocando lesões profundas em tantos de meus compatriotas. Sou um pouco indisciplinada para perseguir com afinco a tal da promessa de ordem e progresso. Confesso que meu coração um tanto anárquico se apraz mais com a algazarra das multidões se debatendo em meio a um caos criativo.

Na condição de estrangeira residente em Pasárgada, vou finalmente poder me desobrigar de emitir opiniões, sem culpa. Estou cansada de explicar, justificar, tentar entender, conciliar. Lá serei finalmente livre para escolher um novo estilo de vida, um novo discurso e uma nova mentalidade. Como ninguém me conhece por aquelas bandas, ainda levo a vantagem de minhas esquisitices parecerem menos destoantes do perfil do grosso da população.

Estou querendo trocar ideologias por sentimentologias, se é que me entendem. Torço para que, em Pasárgada, a tecnologia ainda não tenha pervertido o psiquismo das pessoas e substituído as relações olho no olho, o toque, as festas, as danças e o riso. Ah, como me têm feito falta a leveza de espírito, a delicadeza e a generosidade…

Se, por qualquer razão, eu não conseguir chegar a Pasárgada, posso recorrer a destinos alternativos que tenho pesquisado em segredo. Primeiro, reúno toda a minha coragem e vou para Maracangalha. Não levarei comigo um uniforme branco nem um chapéu de palha porque suspeito que lá as credenciais de malandragem não sejam exigidas com muito rigor. Também não pretendo convidar a Anália, nem ninguém mais, para me acompanhar.

Quero que minha viagem para Maracangalha se configure não como uma excursão de entretenimento, mas represente uma verdadeira peregrinação. Vou em busca de um reencontro com a alegria de ser quem sou e, para tanto, preciso caminhar só. No limite, aceito a companhia de minhas cachorras. Tenho certeza de que a travessia vai ficar mais fácil, com elas me ensinando a viver um dia de cada vez.

Se, de novo, meu plano de ir para Maracangalha não der certo, minha última cartada será mudar radicalmente de estrada e seguir altiva em direção a Macondo. Não há como errar o caminho. Latino-americana que sou, estou profundamente familiarizada com as rotas que levam ao surrealismo do cotidiano e ao realismo fantástico do clima político local.

Pode lhes parecer que essa minha opção de residir em Macondo seja uma mudança cosmética, um giro de 360° graus que só vai me levar de volta ao ambiente do qual quero escapar. Não se deixem enganar. Tenho como lema de vida as sábias palavras de T.S. Elliot de que “o final de toda jornada é voltar ao ponto de partida, vendo o lugar pela primeira vez”.

Nasci e cresci sob o signo da perseverança. Estou ciente de que, daqui por diante, a difícil missão que me espera é a de ser capaz de reconhecer a queda, não desanimar, levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.

Brasileiro não desiste nunca, que se há de fazer?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Desejo de emancipação

Myrthes Suplicy Vieira (*)

‒ Minha filha, ouça sua mãe. Aceite logo o pedido de casamento do Jair e esqueça essa loucura de se jogar no mundo por conta própria. Ponha um pouco de juízo nessa sua cabeça, meu bem. Já está mais do que na hora. Até suas amigas estão comentando que você está se fazendo de difícil só para valorizar seu passe…

‒ O que os outros pensam de mim não é meu problema. Falta de juízo eu teria se aceitasse atrelar minha vida a um homem que me trata como se eu fosse só mais uma das suas propriedades, mãe. Além disso, não estou embarcando numa aventura maluca. Estou criando meu próprio projeto de vida, de felicidade e de futuro.

‒ Mas, filha, pense bem. Sonhar é bom, necessário até, mas um dia a gente tem de encarar a realidade. O mundo é machista, cruel, não vai facilitar nada para uma mulher que não tem quem a defenda. Você vai ter de enfrentar toda espécie de dificuldade, de falta de dinheiro a falta de respeito. E o Jair tem todas as condições para lhe dar estabilidade, segurança, conforto e uma vida respeitável na sociedade.

‒ Pode ser, mãe. Mas não estou procurando um pai substituto. Já estou bastante crescidinha para continuar sentada no colo de alguém e gostar de ser chamada de princesinha. Não quero ser sustentada, quero aprender a me sustentar. E o Jair não aceita nem sequer pensar na possibilidade de eu continuar trabalhando. Não respeita minhas ideias, acha que pode me convencer aos gritos. É ciumento, possessivo, chega a ficar violento quando acha que minha saia está curta demais. Meu fígado não suportaria a convivência com ele por mais de uma semana…

‒ Meu bem, você já tem maturidade suficiente para saber como contornar essas inseguranças bobas de todo homem. Engula seu orgulho por um tempinho, revele-se uma boa administradora de um lar, dê um filho a ele e, pode apostar, ele vai comer na sua mão o resto da vida. Se um dia não suportar mais, peça o divórcio. Com o dinheiro da pensão polpuda que você vai receber, vai poder retomar esses seus projetos românticos de ajudar os necessitados lá fora…

‒ Minha consciência e minha independência não estão à venda, minha mãe. Não há dinheiro no mundo que me faça querer trocar minha paz de espírito por esse estilo de vida de dondoca que eu desprezo tanto…

‒ Bom, se você pensa assim, então se case com o Fernando. Ele também é um sonhador que aposta que a felicidade é uma equação que envolve só um amor e uma cabana. Sofro só de imaginar como será sua vida quando as primeiras contas chegarem e ele não tiver nem como botar comida na mesa.

‒ Mãe, não entendo porque você acha que minha única chance de realização na vida é me casando com um dos dois. Sabe, eu já cheguei a pensar que o Fernando era um companheiro leal de viagem, mas me decepcionei muito. Imagine que ele me pediu para ser avalista num empréstimo para a compra da casa da mãe dele e até hoje não me pagou. Depois veio com aquela desculpa esfarrapada de que, assim que a economia se estabilizar de novo, ele vai me devolver tudo, que nós vamos voltar a ser felizes. Pior, até hoje nunca me pediu desculpas por ter feito tanta cortesia com chapéu alheio.

‒ Pra você ver que não dá para confiar em quem não tem os pés firmemente plantados na realidade…

‒ Há mais opções entre o céu e a terra do que sonha sua vã filosofia casamenteira, mãe. Não me sinto obrigada a amarrar meu destino a ninguém para ser feliz. O que me encanta é exatamente a possibilidade de escolher novos parceiros sempre que eu sentir que é necessário.

‒ Tudo bem, minha filha, não quero aborrecer mais você com a ótica conservadora de toda velha mãe. Mas preste atenção: não é só casar que dá sentido à vida de uma mulher, é também ter filhos. Eu só queria que você não esquecesse que vai precisar ser amparada na velhice, seja por quem for.

‒ Não esqueci, não, mãe. Acho que é a senhora que esquece que eu posso ser minha própria provedora de amparo. Depois, não acredito que a felicidade só virá se eu me dobrar às conveniências de outras pessoas. Tem mais: os únicos filhos que eu sempre quis ter são os de quatro patas, rabo e latidos… E eles me ensinaram que o único jeito de se sentir pleno é se jogando de cabeça, sem rede de proteção, no abismo do aqui e agora…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O fator humano ‒ 5

Myrthes Suplicy Vieira (*)

A cena aconteceu dentro de um hospital psiquiátrico, no qual eu realizava um estágio obrigatório de formação em psicologia clínica.

O psiquiatra-chefe do hospital, que também era nosso professor na faculdade, distribuía os prontuários aleatoriamente entre os estudantes. A mim coube uma paciente esquizofrênica, internada havia já muitos anos, sem sinal de remissão. Nos últimos meses ela estava sendo submetida a diversas sessões de eletrochoque, aparentemente como última tentativa de trazê-la de volta à realidade.

Acontece que, durante as aulas, meu professor havia feito menção ao fato de que essa forma de terapia não era recomendada por longo tempo, dado o risco de o paciente demenciar. Intrigada, fui ter com ele para conhecer os motivos da contradição entre teoria e prática.

Ao verificar a ficha, ele pareceu ficar extremamente contrariado. Acreditei por alguns segundos que alguém da equipe de enfermagem houvesse desrespeitado suas instruções. Não era isso. A orientação havia partido dele mesmo. Indignada, confrontei-o de forma agressiva. Olhando bem no fundo dos meus olhos, ele explodiu, dizendo: “O que você queria que eu fizesse? Tenho que me sustentar, pagar os estudos de meus filhos e ainda pagar minha análise…. O que você esperava? Que eu fosse vender banana na feira?”

Com a inconsequência típica dos jovens que ainda podem contar com o respaldo dos pais para sobreviver e cheia de fúria pseudomoralista, respondi de pronto: “Me desculpe, mas se eu estivesse no seu lugar, preferiria vender banana na feira! Pelo menos, não teria de pagar terapia para minimizar a consciência de culpa…”

Quando terminei de vomitar tudo o que tinha a dizer, percebi que havia ultrapassado todos os limites da boa educação, do respeito a um mestre e até os de civilidade. Mas já era tarde. Sem dizer uma só palavra, ele permaneceu de pé, com o prontuário na mão, olhando para mim como se se perguntasse como poderia retrucar. Não disse nada.

Alguns dias depois, cruzei com ele nos corredores da faculdade. Ele estava saindo da sala da congregação. Tinha os olhos vermelhos e fungava baixinho. Assustada, perguntei: “Você está resfriado ou está chorando?”

Ele respondeu com aparente naturalidade: “Não, não estou resfriado. Estou chorando mesmo”. Fui inundada por uma sensação de culpa e de vergonha. Imaginei que alguém levara à direção da faculdade a informação sobre o que havia ocorrido com minha paciente e que, consequentemente, ele havia sido punido. Angustiada, pedi desculpas por meu comportamento agressivo na semana anterior e perguntei o que poderia fazer para corrigir a situação. Sabia que ele era um profissional respeitável, sério e sensível.

Sem nem mesmo parar de andar, ele respondeu com um meio sorriso: “Não se preocupe. Acabo de saber que fui contratado em período integral pela faculdade”. Foi minha vez de me emocionar. Era uma mistura de alívio e de orgulho por não ter tido medo de lhe dizer a verdade. Sem saber, havia sido responsável por muita reflexão por parte dele e por sua feliz mudança de rumos de carreira.

Por que conto essa história? Simples, estou sem trabalho há vários meses e extremamente ansiosa para descobrir como fazer frente a despesas extras no final do mês. Uma vozinha lá no fundo da minha consciência avisa que o melhor a fazer daqui para a frente seria começar a me preparar para armar minha barraca na feira e identificar logo fornecedores confiáveis desse fruto tão saboroso que é a banana…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.