A pequena rainha

Bicicleta 2

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José Horta Manzano

Você sabia?

O pouco caso que se faz da bicicleta no Brasil contrasta com o prestígio de que ela goza em outras partes do mundo. Na Europa em particular. Na França, por sinal, tem o apelido de «petite reine» ― a pequena rainha.

Os primeiros veículos de transporte pessoal apoiados sobre duas rodas já existiam desde princípios do século XIX. No entanto, não eram dotados de pedal, o que tornava seu uso problemático na subida.

Nos anos 1860, o estabelecimento parisiense Maison Michaux lançou a bicicleta com pedais, novidade absoluta para a época. A partir de então, o veículo se popularizou. Numa época sem automóveis, poder triplicar ou quadruplicar a velocidade de deslocamento era uma revolução!

A minha também é Peugeot!

A minha também é Peugeot!

A Europa do Norte conheceu, em poucos anos, uma revoada de “magrelinhas”. A novidade teve especial sucesso em regiões de planície ― é fácil entender por quê. Norte da França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, norte da Alemanha, norte da Itália são bons exemplos.

Com a popularização, o novo veículo foi objeto de melhoramentos constantes. Foi-se tornando mais confiável, mais seguro, mais resistente, mais veloz. Quem fala em velocidade, pensa em competição. Foi exatamente o que aconteceu.

Na virada do século XIX para o século XX, surgiram grandes concursos nacionais de corrida por etapas. Cada país fez questão de ter o seu. O Tour de France (1903), o Giro d’Italia (1909), a Vuelta a España (1935), competições prestigiosas, têm sido disputadas sem interrupção até hoje. Só foram suspensas durante períodos de guerra.

Trecho da corrida Paris-Roubaix

Trecho da corrida Paris-Roubaix

Além dos incontornáveis concursos nacionais, que duram de uns poucos dias a três semanas, há inúmeras corridas regionais ou locais, com duração de algumas horas. Uma das mais antigas é a Paris-Roubaix, que se realiza a cada ano, sempre no mês de abril.

Como seu nome indica, o percurso original levava da capital a Roubaix, no extremo norte, fronteira com a Bélgica. Já faz quase 50 anos que, apesar do nome, a largada é dada em Compiègne, a uns 70km da capital. Essa corrida é conhecida como Inferno do Norte.

Campeão Paris-Roubaix 2013

O troféu da corrida Paris-Roubaix

A razão de qualificativo tão drástico é o fato de uma parte da corrida se efetuar em estrada de paralelepípedos (em geral úmidos, visto que a região é chuvosa). Sem ser ciclista, cada um pode imaginar o que esses 257 km representam de sacolejo, escorregão e pneu furado.

Ciclistas belgas constituem a vasta maioria dos campeões do passado. De cada duas edições, nos últimos 50 anos, uma foi vencida por um corredor belga.

Uma curiosidade dessa corrida é o troféu. O vencedor tem direito a… um paralelepípedo! Limpinho, lavado, escovado, montado sobre uma base, é verdade, mas sempre paralelepípedo será. O mais difícil é, depois de horas de suadeira, ainda encontrar força para fazer o tradicional gesto de levantar os 15-20kg do troféu e exibi-lo à multidão.

Até hoje, a História não registra nenhum vexame.

Publicado originalmente em 13 abril 2014.

Fronteira entre os pés e a cabeça

Hôtel Franco-Suisse
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José Horta Manzano

Você sabia?

Muitas das fronteiras entre o Brasil e os países vizinhos cruzam zonas escassamente povoadas, notadamente na região amazônica. Uma linha demarcatória tanto pode seguir cursos d’água – caso em que será dita «fronteira natural», como pode ser representada por divisor de águas ou por traçado artificial riscado num mapa. Neste caso, teremos uma «fronteira seca».

Fronteiras secas costumam ser assinaladas por balizas plantadas no solo. Antigamente, eram de pedra. Hoje em dia, é mais comum o concreto. A elas dá-se o nome de marcos divisórios ou geodésicos.

No Brasil, certos trechos de fronteira contam com balizas bastante espaçadas, uma aqui, outra quilômetros adiante. No fundo, tanto faz, que pouca gente passa de um lado para o outro. Na Europa, dada a densidade da população, fronteiras são demarcadas com bastante rigor.

Marco divisório suíço

O Tratado de Dappes, acertado em 1862 entre a França e a Suíça, delimita com precisão um trecho da fronteira entre os dois países na região dos Montes Jura. O acordo, concluído em dezembro daquele ano, ficou programado para entrar em vigor em fevereiro do ano seguinte.

Um certo Monsieur Ponthus, proprietário de um terreno no povoado de La Cure, ficou sabendo que seu lote seria atravessado pela nova fronteira. Aproveitou-se do intervalo e, pelas caladas e às pressas, erigiu imóvel provisório bem em cima da linha. A intenção era de contrabandear chocolate, tabaco e bebidas alcoólicas.

Assim que o tratado entrou em vigor, a construção era fato consumado – e com porta dos dois lados da fronteira, faz favor. E assim foi ficando. Com o tempo, os sucessores do esperto cavalheiro ampliaram o imóvel e o transformaram em hotel-restaurante. O estabelecimento funciona até hoje.

Alguns quartos do hotel oferecem ao hóspede a curiosa possibilidade de dormir com a cabeça na Suíça e os pés na França. Ou vice-versa. Na escada que leva ao segundo andar, o 7° degrau marca a fronteira entre os dois países. Alguns asseguram que a linha verdadeira passa pelo 13° degrau. A controvérsia persiste.

O hotel e a fronteira

Durante a Segunda Guerra, com a França ocupada pelo exército alemão enquanto a Suíça permanecia neutra, a singularidade do local deu margem a uma movimentação sui generis. Além do contrabando habitual, inúmeros judeus perseguidos pelos nazistas conseguiram escapar entrando pelo lado francês e saindo do outro lado, já na Suíça, onde os alemães não podiam intervir. Dizem que outros fugitivos seguiram o mesmo caminho – paraquedistas ingleses entre eles. É verdade que não durou muito tempo. Militares alemães logo se deram conta do vazamento e condenaram portas e janelas do lado francês. Depois de tudo emparedado, ninguém mais passou.

Impávido, o Hôtel Franco-Suisse continua lá até hoje. Nestes tempos modernos, sem os controles de antigamente, a alfândega é relíquia de outras eras.

O imóvel representa um quebra-cabeça administrativo tanto para a França quanto para a Suíça. A situação é tão intrincada que Paris e Berna preferem empurrar com a barriga e deixar como está. Não vale a pena travar batalha judicial por tão pouco.

Publicado originalmente em 6 jul° 2015.

Liberdade de expressão: até onde?

Assembleia Nacional francesa

José Horta Manzano

Dois dias atrás registrou-se um incidente grave na Assembleia Nacional da França (que corresponde a nossa Câmara Federal). Ao microfone, um deputado pedia esclarecimentos ao governo sobre um navio pertencente a uma ong, que vagava pelo Mediterrâneo em busca de um porto europeu que acolhesse os migrantes que ele trazia a bordo.

De repente, ouve-se o grito de um deputado vindo do outro lado do anfiteatro. Muito erodida foneticamente, a língua francesa propicia o aparecimento de homófonos, palavras que soam igual mas têm significados diferentes. A frase que se ouviu foi:

   Qu’ils retournent en Afrique!
= Que eles voltem para a África!

Acontece que Monsieur Bilongo, o deputado que denunciava o descaso para com o navio, é preto de cor. Francês, nascido na França, legitimamente eleito pelo povo, mas… preto. Tendo em mente esse importante detalhe, boa parte dos parlamentares interpretou a frase como:

   Qu’il retourne en Afrique!
= Que ele volte para a África!

As duas frases se pronunciam exatamente da mesma maneira. Só o contexto faz a diferença. Dado que a frase era solta, sem contexto, a dúvida ficou. Nesta segunda opção, o contestador estaria se dirigindo pessoalmente ao discursante, criando assim um contexto de ofensa racial.

O escândalo se instalou entre os parlamentares. A revolta foi grande, todos se levantaram e falavam alto ao mesmo tempo. A presidente da câmara foi obrigada a encerrar a sessão. O caso ficou de ser levado ao comitê disciplinar, que decidirá o tipo de sanção a adotar.

Os apoiadores do partido do deputado ofensor (de extrema-direita) são os únicos que não viram nada de mais no comportamento dele. Os outros – de esquerda, centro e direita – se dividem entre os que acreditam que a frase foi dita no plural e os que juram que ela foi pronunciada no singular, numa ofensa direta ao discursante negro.

Seja como for, singular ou plural, não é frase que se pronuncie na Assembleia Nacional. O comitê da Câmara não tem poder para cassar o mandato do deputado, mas pode condená-lo a uma suspensão temporária com perda de salário.

Esse acontecimento deixa no ar uma dúvida interessante. Em 2023, diversos estreantes se instalarão Congresso Nacional, em Brasília. Boa parte deles professa ideologia sabidamente de extrema-direita, com valores de exclusão de diferentes grupos, seja por razões étnicas, sexuais, religiosas, territoriais & afins.

No Brasil, não temos problemas imigratórios que possam gerar xenofobia. Mais dia, menos dia, um dos noviços vai derrapar e ofender pesadamente alguma minoria, seguindo a cartilha do capitão. Como vão então reagir seus pares? Vão denunciar e adotar uma sanção? Ou simplesmente vão deixar pra lá, incitando outros parlamentares a se pronunciarem com virulência cada vez maior?

Observação
Escutei meia dúzia de vezes o vídeo do episódio. Minha conclusão é ainda pior. Não distingo o “que” inicial. O que ouço é:

“Retourne en Afrique!”

É frase no imperativo, sem homofonia possível. Se assim for, significa:

Volta pra África!

Só faltou acrescentar “seu vagabundo”.

Naturalmente meus velhos ouvidos podem me enganar.

Breaking news
A Comissão de Ética da Assembleia Nacional Francesa impôs ao autor da interpelação racista a pena mais rigorosa de seu arsenal: interdição de presença durante as próximas 15 sessões do parlamento. Além disso, o salário do deputado será cortado pela metade durante dois meses. Pra coroar, a penalidade será ficará registrada para sempre nos anais da República.

Trata-se de sanção raríssima. Nos últimos 65 anos, é a segunda vez que um parlamentar recebe penalidade tão pesada. No futuro, todos vão pensar duas vezes antes de soltar ofensas.

Se acabou

João Selva, cantor e compositor carioca

José Horta Manzano

Hoje, logo depois do almoço, estava eu tranquilamente na cozinha pondo ordem em panelas, pratos e talheres. Observe-se que deste lado do mundo, pra pagar serviçais, precisa ser abastado. O rei da Inglaterra, por exemplo, com os bilhões que já tem mais outros tantos que acaba de herdar, tem quem lhe arrume a cozinha. Eu não tenho.

O rádio estava ligado. O locutor comentava das algas que infestam os grandes lagos pré-alpinos. E continuava falando de algas comestíveis, que alguns gostam de misturar na salada. Eu ouvia sem escutar, que o assunto não era lá tão interessante. Eis senão quando, entra um intervalo musical. E a música me pareceu familiar.

O ritmo estava entre o baião e a marchinha de carnaval. Acompanhamento singelo e uma voz masculina suave. Prestei atenção na letra. Dizia:

Se acabou, fora Bolsonaro!
Se acabou, fora capitão!

Em seguida falava em galo, galinha, periquito, carcará e toda a animália que pode caber numa letra de música. A imagem era de a bicharada toda estar comemorando a despedida do capitão. E voltava o refrão:

Se acabou, fora Bolsonaro!
Se acabou, fora capitão!

Pensei: “Puxa, será que o horário de propaganda eleitoral gratuita chegou até aqui?” Logo me dei conta de que a ideia era absurda. Que tolice!

Cogitei então que os candidatos de oposição a Bolsonaro tivessem feito uma vaquinha pra inserir um anúncio pago na rádio pública suíça. Cheguei logo à conclusão de que a ideia não fazia sentido. É verdade que a colônia tem aumentado e que somos hoje dezenas de milhares de conterrâneos no país; assim mesmo, não dá um contingente em que valha a pena investir.

Em seguida, pensei em mais uma explicação para o fato de a rádio suíça estar tocando uma musiquinha anti-bolsonarista às vésperas da eleição brasileira. Certamente estão dando a contribuição que podem para abrir os olhos daqueles que ainda teimam em mantê-los fechados.

Não acredito que funcione. Ninguém consegue ensinar uma avestruz a desenterrar a cabeça. Assim mesmo, fico grato aos serviços públicos de radiodifusão do país pela boa vontade.

O autor
O locutor descreveu a musiquinha como “Sê acabú” cantada por “Joaô Sellvá”. Traduzi: Se acabou, por João Selva.

Nunca tinha ouvido falar nesse artista. Fui pesquisar e fiquei sabendo que se trata de um carioca que se casou com uma moça de Guadalupe (ilha francesa do Caribe) e se estabeleceu na França há alguns anos. Não sei se é conhecido no Brasil, mas em seu país de adoção lança discos, participa de festivais e se apresenta em programas de rádio.

Se você quiser ouvir um trechinho, está aqui no Youtube.

Da Silva

José Horta Manzano

Você sabia?

Até fins do século 19, a Suíça era um pais de emigração. Populações pobres de regiões desfavorecidas partiam, com armas e bagagens, em busca de oportunidades numa terra que lhes abrisse os braços.

Os destinos do imigrante suíço foram variados. Muitos foram para os EUA. Houve quem preferisse se estabelecer nalgum país da Europa, até na Rússia. Colônias se formaram em países da América Latina, como no Brasil, no Uruguai e na Argentina.

O tempo passou e o sentido da transumância se inverteu. Já faz um século que, de emissor de migrantes, a Suíça passou a ser receptor – um importante receptor, diga-se. Atualmente, a população estrangeira com residência permanente no país atinge a marca de 25%, ou seja, de cada quatro habitantes, um tem cidadania estrangeira.

Níveis tão altos só se encontram em países do Golfo Pérsico (emirados), onde a população operária é numerosa e inteiramente estrangeira. Ou também em microestados, como Luxemburgo ou Mônaco. Nem o Brasil, que teve, um século atrás, seu período de desembarque contínuo de imigrantes, chegou a contar com um quarto de estrangeiros.

Metade dos estrangeiros vivendo na Suíça são originários de quatro países europeus. Na ordem: Itália, Alemanha, Portugal e França. Essa população estrangeira não é distribuída uniformemente pelo território nacional. Por afinidade linguística, imigrantes vindo de determinado país se concentram numa determinada região.

A imensa maioria dos 328 mil italianos está estabelecida no Cantão do Ticino (Lugano, Locarno), região de língua italiana. Os 311 mil alemães preferem a grande região de expressão alemã (Zurique, Berna, Basileia). Os 151 mil franceses, por seu lado, estão quase todos estabelecidos nos cantões francofalantes (Genebra, Lausanne, Neuchâtel). Já os 255 mil portugueses são menos exclusivistas, embora se note certa preferência pela região de fala francesa.

O Instituto Federal de Estatística (equivalente a nosso IBGE) acaba de publicar rica edição de estatísticas da população. Entre outros pontos interessantes, informam a distribuição dos estrangeiros por região linguística, por cantão e até por município. Constata-se que, na região de língua francesa, o sobrenome Da Silva é o mais difundido. Chega bem à frente de todos os nomes de família tradicionais.

E isso não é nada. Os primeiros lugares, do primeiro ao quinto, são todos ocupados por sobrenomes portugueses. Veja:

 1 Da Silva
 2 Ferreira
 3 Pereira
 4 Dos Santos
 5 Rodrigues

Pensa que é só isso? Pois não é. A lista continua. Vamos continuar até o 20° lugar:

 6 Favre
 7 Gomes
 8 Martin
 9 Fernandes
10 Lopes
11 Martins
12 Müller
13 Oliveira
14 Alves
15 Pinto
16 Marques
17 da Costa
18 Ribeiro
19 Silva
20 Gonçalves

Não é impressionante? Entre os 20 nomes mais comuns na Suíça de expressão francesa, 17 são de origem portuguesa, 1 é de origem alemã, e somente 2 são locais.

Mas não se assuste. Todos convivem em paz e harmonia, exatamente como costumava ser em nosso país até a virada do século. Quem sabe um dia volta, quando a tempestade passar.

République bananière

 

José Horta Manzano

“Mas… de onde saiu essa gente?” – é a pergunta que se faz desde que o capitão vestiu a faixa. De onde vem esse povo estranho que cerca o presidente, gente desprovida de inteligência, de bom senso e de lógica, sempre com quatro pedras no bolso e uma faca entre os dentes? Onde se escondiam antes? Como é que passaram despercebidos até chegar ao entorno de Seu Mestre?

Todos os jornais da França, sem exceção, reproduziram a inacreditável fala de Sua Excelência Guedes, ministro-chave desta República, que ousou apontar o dedo para a França e declarar que ela estava “ficando irrelevante para nós”.

O trecho do discurso em que o ministro chantageia o tradicional parceiro do Brasil e o ameaça de “irrelevância”caso não cessem as críticas sobre o desmatamento da Amazônia foi estampado em todos os jornais. Até o palavrão (coisa fina, Guedes!) sujou o papel. Fico aqui imaginando a incredulidade que marcou a expressão dos leitores, gente pouco habituada ao baixo nível da fala de Guedes. Talvez o ministro nem desconfie, mas francês é um povo que lê.

Falando nisso, muitos dados importantes sobre o comércio exterior brasileiro devem estar escapando a nosso bizarro ministro. Levantamento do Estadão mostra que, segundo dados fornecidos pela embaixada da França em Brasília, há 1.042 empresas francesas instaladas em nosso país, que dão emprego a 471.784 funcionários e atingem um volume anual de negócios de 66,1 bilhões de euros (R$ 350 bi).

No ano de 2020, com um volume de 32,3 bilhões de dólares (R$ 165.3 bi) a França foi o terceiro investidor estrangeiro no Brasil, atrás apenas dos EUA e da Espanha. Agora vem o dado mais interessante: enquanto a França ocupa o 11° lugar entre todos os países que vendem para o Brasil, o Brasil ocupa o 36° lugar entre todos os países que vendem para a França.

Tenho o dever de contradizer o ministro e informá-lo de que, no ponto em que estamos, é o Brasil que se está tornando irrelevante para a França, não o contrário. Sem as importações do Brasil, a França poderia continuar funcionando sem sobressaltos. Já sem as importações da França, o Brasil teria problemas.

É verdade que Paulo Guedes é reincidente. Já reclamou do horror que seria ter de viajar de avião ao lado de uma empregada doméstica; já deixou claro que lugar de filho de porteiro não é na faculdade; já insultou a primeira-dama da França ao dizer (em discurso público) que ela era feia mesmo. Tudo isso é verdade.

É verdade que ele é tolo, arrogante, boca-suja, inconsequente, imbuído da própria importância. Só que tem uma coisa: se seu chefe fosse um outro presidente que não Bolsonaro, sua soberba e essa sujeira que lhe sai pela boca ficariam quietinhas, guardadas no fundo de uma gaveta e trancadas a sete chaves. Se abre as asinhas e se comporta como se discursasse para bêbados num botequim, é porque se integrou no time presidencial e absorveu os princípios éticos e morais em vigor no Planalto.

Senhor Guedes acaba de dar excelente contribuição para cristalizar, aos olhos europeus, a imagem do Brasil como legítima república de bananas.

No Brasil, sua fala já saiu das manchetes e faz parte do passado; na França, há de marcar nossa imagem por décadas.

Monsieur Pap Ndiaye

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 28 maio 2022

O semipresidencialismo imposto pela Constituição francesa criou um país bicéfalo, em que um presidente (chefe do Estado) convive com um primeiro-ministro (chefe do Executivo). Em teoria, o poder de cada um é equivalente, embora distinto. Na prática, o do presidente é muito maior do que “as quatro linhas da Constituição” lhe atribuem – parodiando expressão em voga em nossas altas esferas. Seu poder é diretamente proporcional à força de sua maioria no Parlamento.

Uma vez reeleito o presidente, a tradição manda que a totalidade dos ministros, incluindo o primeiro-ministro, deem demissão do cargo. O presidente nomeia então novo primeiro-ministro, e a maioria dos ministros são substituídos por caras novas. Foi o que aconteceu estes dias. Entre os estreantes, surgiu um nome vindo da sociedade civil, um cidadão que nunca havia ocupado cargo político. Trata-se de Monsieur Pap Ndiaye, novo titular do Ministério da Educação Nacional.

Sua nomeação provocou uma onda de choque que balançou as estruturas do país. Todos ficaram surpresos, muitos protestaram, alguns se indignaram. Percebe-se até uma não disfarçada revolta proveniente das bordas do espectro político. Faz uma semana que analistas políticos não param de discutir a nomeação. Vamos ver por que razão.

Monsieur Ndiaye é um intelectual brilhante. Seu currículo é de dar inveja a muita gente fina. Ele é diplomado em História pela Escola Normal Superior, o nec plus ultra do ensino universitário nacional. É titular de um doutorado obtido na Escola de Estudos Superiores de Ciências Sociais, onde é palestrante especialista em História dos Estados Unidos e em temas ligados às minorias. É diretor do Museu da História da Imigração. Além disso, seu currículo inclui cinco anos de estudos na Universidade da Virgínia (EUA), onde preparou sua tese de História. É ainda autor de meia dúzia de livros, entre os quais “Obama na América Negra”.

Ninguém contesta a bagagem cultural do novo ministro nem sua capacidade a assumir a elevada função. A grita que se alevanta vem de círculos ultraconservadores (mas não só deles). O problema maior é o seguinte: Monsieur Ndiaye é negro. Sua mãe é francesa e branca, enquanto seu pai é senegalês e negro. O novo ministro nasceu em família atípica. Além de resultar de miscigenação pouco habitual no país, seu pai foi o primeiro negro africano diplomado pela Escola Nacional de Engenharia da França, uma façanha. O ministro se autodefine como “um puro produto da meritocracia republicana”.

Já faz quarenta anos, desde o governo Mitterrand, que a França se habituou a conviver com ministros não-brancos. Já houve ministros da Integração e dos Direitos Humanos negros. Madame Taubira, negra originária da Guiana Francesa, foi titular do cobiçadíssimo Ministério da Justiça durante quatro anos. Nenhum desses personagens foi objeto de rejeição explícita. Por que razão a nomeação do novo ministro da Educação enfrenta uma onda de repúdio tão forte?

É que o ultradiplomado ministro possui duas características incompatíveis aos olhos de muita gente: é negro e pensa, o que é imperdoável. Se tivesse sido nomeado somente para dar um verniz de diversidade ao conjunto de ministros e acrescentar um pingo de cor à foto de grupo, ninguém reclamaria. Mas o homem pensa, e todos sabem disso. Um negro que pensa – e que vai cuidar da Educação Nacional – assusta.

Monsieur Ndiaye é conhecido e respeitado nos círculos universitários. Todos conhecem seus trabalhos e seu posicionamento em defesa dos imigrantes e das minorias. Uma vista d’olhos ao título de seus livros dá uma ideia: “Os negros americanos: da escravidão a Black Lives Matter”, “A condição negra: ensaio sobre uma minoria francesa”, “Os negros americanos: a caminho da igualdade”.

Os que o rejeitam provavelmente nunca leram suas obras. Pouco importa. Um negro dotado de ideias próprias aceitar comandar o Ministério da Educação lhes parece de uma petulância insuportável. No Brasil, essa polêmica parece um exagero, coisa de gringo. Mas há que tomar cuidado. A persistir a palavra de ordem do “nós x eles”, instaurada pelo lulopetismo e insuflada pelo bolsonarismo, em pouco tempo estaremos como a França.

Ainda dá tempo

José Horta Manzano


Num mundo polarizado como o nosso, tentar se equilibrar em cima do muro pode não ser a melhor solução.


Poucos dias antes da invasão da Ucrânia, quando batalhões russos, em quantidade impressionante, já se amontoavam junto à fronteira, Bolsonaro foi a Moscou prestar reverência ao ditador Putin.

A guerra de conquista prestes a ser lançada não lhe pareceu motivo válido para suspender a viagem nem para acrescentar, de última hora, uma “visita de médico” a Kiev – nem que fosse pra equilibrar a posição brasileira.


 

Solidariedade “à” Rússia (sic)

Uma vez em Moscou, declarou – sem ter sido indagado – que o Brasil se solidarizava com a Rússia. Foi mais um erro monumental provocado por seu inexistente senso de geopolítica – fato raro mesmo entre seus antecessores mais incapazes.

Estivéssemos sob outras latitudes, sua carreira terminaria naquele instante e seu futuro eleitoral estaria comprometido por décadas, talvez para sempre. Mas não estamos sob outras latitudes. As nossas são tropicais.

Estourada a guerra, ninguém exigiu do presidente um posicionamento definitivo. E ele não se posicionou. Ficou, pois, o dito pelo dito mesmo. Ficou cimentada a posição do Brasil: todos nós nos solidarizamos com a Rússia. E ponto final. Pô.

Até certo ponto, é compreensível que o capitão procure amigos aqui e ali. Afinal, ele é rejeitado pelo mundo civilizado, justamente em razão das incivilidades que vem cometendo desde que vestiu a faixa. Parodiando a expressão inglesa “serial killer” (assassino em série), eu diria que nosso presidente é pessoa “serially incivilized” (um incivilizado inveterado).


 

Num mundo em plena turbulência, o Brasil precisa de aliados

Procurar amigos é uma coisa; bater à porta de ditadores ferozes e sanguinários é outra, bem diferente. Em vez de solidarizar-se com autocratas belicosos, Bolsonaro estaria mais inspirado se se dedicasse a aparar as arestas e aplainar as relações com os ofendidos. Os que foram por ele agredidos são justamente nossos aliados e parceiros tradicionais, dirigentes de países com os quais compartilhamos interesses comuns.

Se ele um dia ofendeu a esposa de Macron, ignorar a existência da França não é a melhor solução. Veja o resultado: o presidente francês acaba de ser reeleito para mais 5 anos no Eliseu. Se Bolsonaro não procurar consertar esse deslize, as relações franco-brasileiras permanecerão curto-circuitadas esse tempo todo, o que não é boa coisa.

Se insultou o presidente argentino, afastar-se do personagem não é o melhor remédio. Há que ter em mente que a Argentina não vai se mudar amanhã. Não vai sair do lugar e continuará sendo nossa vizinha pela eternidade.


 

É hora de virar a página dos insultos passados e olhar para a frente

Com a carta de desculpas redigida por Temer e assinada por Bolsonaro, este último conseguiu aplacar a indignação dos brasileiros com as barbaridades proferidas naquele 7 de Setembro de triste memória. Que convoque Michel Temer de novo e lhe confie a missão de preencher as lacunas de nossa diplomacia mambembe! O ex-presidente, que é culto, não é ministro de Bolsonaro nem deve favores ao capitão, saberá encontrar termos contritos mas não servis para expressar uma guinada no posicionamento internacional do Brasil neste momento grave para a humanidade.

Enquanto o destino do planeta se decide nas margens do Mar Negro, nenhum país tem o direito de virar a cara e fazer de conta que não é com ele. O peso populacional do Brasil, se não houvesse outra razão, nos obriga a nos posicionar claramente. Se Bolsonaro não sabe o que fazer – e as palavras pronunciadas em Moscou mostram que não sabe – que tome conselho com quem sabe.

A guerra acabará. Bolsonaro passará. Mas o Brasil ficará. Os brasileiros das próximas décadas não podem ser reféns das más decisões de um presidente pusilânime.

Observação
Na verdade, distorcendo a norma gramatical, o capitão não disse que o Brasil se solidarizava com a Rússia, mas que se solidarizava à Rússia. O fundo foi tão desastrado, que ninguém se preocupou com a forma.

Cinco anos de adiamento

“Frexit”, o Brexit da França
Objetivo do programa da candidata Marine Le Pen

 

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 30 abril 2022

Na Europa, desde a derrota do nazi-fascismo, ao final da Segunda Guerra, as ideias da extrema direita foram guardadas em geladeira. Não é que tenham sido erradicadas, longe disso, que a capacidade do ser humano de armazenar baixos instintos é infinita. É que, durante as décadas seguintes, toda alusão a essas ideias trazia lembranças dolorosas a uma população que havia presenciado a guerra e seu cortejo de morte e miséria. Por longos anos, nada que pudesse trazer à memória bombardeios e privações teve lugar à mesa.

O tempo passou e a geração que havia assistido ao desastre provocado por ideias extremistas foi pouco a pouco desaparecendo. No entanto, mesmo com o rareamento de testemunhas oculares, a ressurgência do extremismo de direita continuou tímida: um ameaço de surto aqui, outro acolá, nada mais. Nem a débâcle da União Soviética e o abandono da doutrina comunista foram capazes de sacudir o torpor da direita extrema.

Desde sempre, ideias de retraimento, de fechamento sobre si mesmo, de defesa de uma hipotética pureza étnica, de cerceamento à livre circulação, de hermetismo diante da imigração circularam em surdina. Mas permaneceram subjacentes, como bomba à espera de um detonador. Um dia, sem que ninguém tivesse antecipado, surgiu o estopim. Veio personificado no dirigente do país mais poderoso do planeta. Chamava-se Donald Trump.

Os que votaram por sua reeleição devem julgar que foi bom presidente. Já os 7 milhões de votos de diferença com que Joe Biden o superou amortecem essa percepção. Na política externa, o homem fez estragos. Pirotecnia, como a que pôs em prática com o dirigente da Coreia do Norte, nem sempre é o melhor caminho para resolver problemas internacionais.

O pior legado de Trump foi sem dúvida sua adesão explícita à doutrina do fechamento sobre si mesmo, escancarada pela tentativa de construção de um muro de contenção na fronteira por onde entram os indesejados. Sua desenvoltura desinibiu movimentos subterrâneos ao redor do mundo, que criaram coragem para se expor à luz do meio-dia.

Dirigentes de figurino abertamente reacionário – como o italiano Salvini, o húngaro Orbán, o esloveno Jansa e o próprio Bolsonaro – não teriam se sentido tão à vontade para subir ao palco se Trump não lhes houvesse antes carpido o terreno. A expressão é batida, mas continua verdadeira: Trump abriu a caixa de Pandora. Os males lá trancafiados despertaram de um torpor de sete décadas.

Comparado com o de outros países da Europa, o sistema político francês é sui generis. Por um lado, o presidente da República, eleito pelo sufrágio popular direto, detém poder muito grande, herdeiro que é de um rei guilhotinado há dois séculos. Por outro lado, o voto distrital puro aliado a um bipartidarismo de facto tendem a dar ao presidente maioria no Parlamento, tornando-o (quase) tão poderoso como os reis do passado.

A campanha eleitoral francesa foi acompanhada com lupa pela União Europeia. De fato, caso a vitória fosse favorável à extrema direita de Marine Le Pen, a Europa, como a conhecemos, deixaria de existir. Embora a candidata extremista tenha suavizado o discurso e arredondado os ângulos de seu programa, mantinha a firme intenção de retirar seu país da Otan e da Europa. Mais que isso, tencionava pôr fim à livre circulação das gentes, restabelecer os controles nas fronteiras, abandonar o euro, ressuscitar o finado franco francês. E, para coroar, aproximar a França da Rússia e firmar pacto militar com Putin.

Se a União Europeia resistiu ao Brexit, não resistiria à saída da França – membro fundador, o maior em superfície, o segundo em economia, o único detentor de armamento nuclear. Para Vladímir Putin, uma vitória de Madame Le Pen seria notícia estupenda. Seria prenúncio do enfraquecimento e talvez do desmonte da União Europeia, sonho acalentado por Moscou. Seria um revés para Otan, organização que é pedra no sapato de Putin. Por fim, seria um sinal verde para candidatos a autocrata ao redor do globo, um dos quais aliás ocupa atualmente o Palácio do Planalto.

Desta vez, passou. Mas foi por pouco. O mundo democrático ganhou cinco anos de adiamento, a duração do novo mandato de Macron. Em 2027 voltamos a conversar. Se, daqui até lá, um conflito nuclear não tiver extinguido a humanidade.

Savoir-vivre

José Horta Manzano

Savoir-vivre é expressão que a língua francesa criou 600 anos atrás e exportou para o mundo todo. “Savoir” é saber; “vivre” é viver. Em teoria e ao pé da letra, a tradução seria “saber viver”. Na prática, é um pouco mais que isso.

Em busca de boa definição, consultei diversos dicionários, tanto franceses quanto brasileiros. A formulação proposta pelo Houaiss, embora simples, me pareceu adequada.


Savoir-vivre é o conhecimento e prática dos usos e costumes da vida social.


Sem códigos e regras de comportamento, a vida em sociedade não seria viável. Quando alguém pergunta: “Olá, tudo bem?”, não está realmente interessado em saber se o interlocutor está bem ou não. Está apenas usando um código de polidez. Poderia, em vez disso, dizer somente: “Ô, você aí!”, mas o efeito não seria o mesmo. Seria um começo de conversa torto.

O savoir-vivre designa o conhecimento – e uso – dos códigos que permitem uma convivência civilizada e sem conflitos. O savoir-vivre de um indivíduo mede o domínio que ele tem (ou não) desses códigos e dessas regras de civilidade.

O contraexemplo foi dado menos de 6 meses atrás pelo presidente da República do Brasil. Ainda está na memória de todos a escancarada falta de civilidade demonstrada por nosso capitão quando Joe Biden venceu as eleições para a Presidência dos EUA.

Decepcionado pela derrota de Trump, seu ídolo, Bolsonaro levou 38 dias para reconhecer a vitória de Biden e 73 dias para dar-lhe os parabéns. Tamanha demonstração de falta de savoir-vivre, convenhamos, não é comum. Não se deve esquecer que o chefe de Estado é o porta-voz de facto da população inteira. Suas incivilidades nos envergonham. No caso da eleição americana, foi como se todos os brasileiros tivessem posto em dúvida a lisura do sistema deles. Uma enormidade.

Faz dois dias, Emmanuel Macron venceu as eleições e foi reeleito para mais cinco anos na Presidência da França. Desta vez, nosso capitão foi menos lento. É verdade que não correu para o Tweeter para mandar suas congratulações, permitindo que outros dirigentes lhe passassem à frente.

Vinte e quatro horas depois da reeleição, o governo brasileiro emitiu comunicado. O texto é bastante banal, limitando-se a reafirmar a “disposição de trabalhar pelo aprofundamento dos laços históricos que unem os dois países”. É uma das versões daquele conhecido discurso que, com pequenas adaptações, serve para todas as ocasiões.

Curiosamente, das dezenas de mensagens de congratulações que consultei, a mais calorosa veio de Moscou.

Antes de ler a mensagem, é bom ter em mente que um dos argumentos mais fortes de Macron durante a campanha eleitoral foi a acusação feita a Marine Le Pen de que “Putin é o seu banqueiro!”. Macron disse isso referindo-se ao fato de a campanha de Madame ter sido financiada por um empréstimo concedido por um banco russo cujo dono é amigão de Putin.

Essa promiscuidade pegou mal. Uma presidente da França que deve favores a Putin? Impensável. Ao tomar conhecimento disso, muitos eleitores desistiram de votar nela.

No entanto, na hora de cumprimentar Macron pela vitória, Vladímir Putin mostrou saber que, apesar dos pesares, certas regras de savoir-vivre devem ser respeitadas. Sua mensagem chegou rápido. Vinha na primeira pessoa e dizia: “Eu espero sinceramente que o senhor tenha sucesso em sua ação pública, assim como boa saúde.”

Moral da história
Uns matam bombardeando um povo irmão, outros preferem matar sonegando vacina para o próprio povo. São farinha do mesmo saco. A única diferença parece estar no nível de savoir-vivre de cada um.

No cavalo certo

José Horta Manzano

Em 2019, as eleições presidenciais argentinas estavam sendo preparadas. Todos já sabiam que o presidente Mauricio Macri, candidato à própria sucessão, não tinha chance. Bolsonaro passou por cima das evidências. Foi até lá, trocou beijos e abraços com o dirigente argentino e ainda ousou criticar o adversário. Deu no que deu: o adversário ganhou – o que todos já sabiam que ia acontecer, menos o capitão. As relações Brasil x Argentina se complicaram.

Em 2020, foi a vez das presidenciais americanas. Os prognósticos se apresentavam apertados. Nem a vitória de Trump, nem a de Biden estava garantida. Bolsonaro passou por cima da reserva a que todo chefe de Estado inteligente se obriga nessas horas. Com palavras e atos, foi ostensivo ao sustentar Donald Trump. Encerrada a contagem dos votos, constatou-se que o presidente não havia sido reeleito. Inconformado, Bolsonaro negou a realidade quanto pôde, e foi um dos últimos dirigentes mundiais a reconhecer que tinha perdido a aposta. As relações Brasil x EUA se complicaram.

Em 2021, chegou a hora das eleições chilenas. As pesquisas hesitavam em apontar claramente o vencedor. Em situações assim, a prudência ensina que chefes de Estado estrangeiros devem evitar demonstrar claramente sua preferência por este ou por aquele. Nunca se sabe. Mas Bolsonaro não reza por essa cartilha. Pra piorar, não deve ter assessores qualificados. De novo, apostou no cavalo errado. Botou todas as fichas em cima de Señor Kast, candidato da extrema direita. Ganhou Señor Borić, um jovem esquerdista. As relações Brasil x Chile se complicaram.

Neste mês de abril de 2022, é a França que está em pleno processo eleitoral. O mandato do presidente Macron se encerra dentro de poucas semanas. Pela lógica, nosso capitão já teria se jogado nos braços de Marine Le Pen, candidata da direita extrema. Mas tem um porém.

Um dia, em nossa eleição de 2018, quando Bolsonaro já tinha passado para o segundo turno, Madame deu uma entrevista à televisão francesa. Entre um assunto e outro, o apresentador mencionou o nome de Bolsonaro, naquele momento candidato à Presidência do Brasil, e o classificou como “de extrema direita”. Em seguida, perguntou à política francesa o que ela achava do brasileiro. Madame declarou que “não é só porque alguém costuma dizer coisas desagradáveis que se deve logo colar-lhe uma etiqueta de extrema direita”. Ficou claro que ela repelia o capitão. É certamente baseado nessa declaração que ele se absteve de tomar partido na atual disputa francesa, que voltou a alçar Madame Le Pen ao segundo turno.

Quanto ao Lula, mostrou mais uma vez que, mesmo sendo fraquinho em geopolítica, de bobo não tem nada. No primeiro turno, apoiou Monsieur Mélenchon, velho militante da esquerda radical, que completa 71 anos este ano. Pois não é que o homem quase passou para o segundo turno? Com 22% dos votos, faltou um nadinha pra ultrapassar Madame Le Pen, que obteve 23,4%.

Ao apoiar Mélenchon, o Lula estava também retribuindo a visita que o político francês lhe fez quando mofava no cárcere úmido de Curitiba. O destino não quis que o companheiro francês passasse ao segundo turno. No discurso pronunciado assim que foram conhecidos os nomes dos finalistas, Mélenchon dirigiu-se a seus eleitores e, alto e bom som, deu-lhes a recomendação para o segundo turno: “Nenhum voto para a extrema-direita!”. Para deixar bem claro, pronunciou quatro vezes a mesma frase.

Mélenchon recomendou a seus eleitores que não votassem na extrema direita, mas não teve peito pra pedir voto para Macron. Deve ter achado que era demais. Assim sendo, deixou seus apoiadores livres para se absterem, votarem em branco, anularem o voto ou eventualmente votarem em Macron. Em resumo, fez o serviço pela metade.

O Lula, que está ciente de ter boas chances de vencer a eleição brasileira, foi mais realista. Já que o companheiro Mélenchon ficou pelo caminho, lançou uma série de tuítes conclamando a derrotar a extrema direita francesa. Foi ainda mais longe que o militante francês. Deu serviço completo. Acrescentou que votar em Emmanuel Macron é fundamental porque ele “encarna melhor os valores democráticos e humanistas”.

Lula está agindo com esperteza. Em primeiro lugar, está se valendo da antipatia que Bolsonaro espalhou pelo mundo, especialmente na França. Portanto, ao apoiar o provável vencedor das presidenciais, ganha pontos. Em segundo lugar, Lula sabe que tem boas chances de ser o próximo presidente do Brasil. Um Macron reeleito e que foi apoiado pelo demiurgo estará pronto a abrir os braços para um Lula eleito e que o apoiou.

Quando insultou Brigitte Macron e quando se indispôs com meio mundo, o empacado Bolsonaro não pensou no dia seguinte. O Lula já está pensando no futuro que terá início com sua (provável) volta ao Planalto.

Entre Bolsonaro e Lula, há muitos pontos convergentes e alguns divergentes. Ambos amparam a corrupção, adoram acertos e conchavos, dirigem o país de olho no retrovisor. Uma das poucas diferenças é que o Lula pensa.

Madame e os frangos do Brasil

José Horta Manzano

Como lembrei anteontem, estamos entre os dois turnos das eleições presidenciais francesas. Ontem realizou-se o grande debate, o único organizado entre os dois finalistas. Foram duas horas e meia de perguntas, respostas, explicações, afirmações, aproximações, esgueiradas, maldades, dardos envenenados, sorrisos desajeitados.

Cada um dos candidatos – o atual presidente, Emmanuel Macron e a candidata de extrema-direita, Marine Le Pen – deu o que tinha pra dar, fez o que sabe fazer e representou o papel que costuma representar. Foi sem surpresa. O medidor de audiência marcou 15,6 milhões de telespectadores, aos quais convém acrescentar os que, em algum momento, deram uma espiada nas redes sociais, que também transmitiam ao vivo.

Pra se ter uma ideia de quanto tem baixado o interesse público por esse tipo de confrontação, é bom saber que o primeiro debate, travado em 1974 entre Mitterrand e Giscard d’Estaing, tinha reunido 30 milhões de telespectadores – o dobro da audiência de ontem.

Mas o diálogo entre os adversários, às vezes polido, às vezes ácido, sempre traz algum momento interessante. Uma passagem impagável surgiu quando Madame Le Pen criticava o funcionamento da União Europeia, cavalo de batalha que ela costuma montar com frequência. Adepta do fechamento de seu país para o mundo, ela deprecia a Europa dia sim, outro também.

Madame Le Pen (de estreita visão nacionalista-passadista) acusou Monsieur Macron (europeísta convicto) de ter intenção de “substituir o povo francês pelo povo europeu”. E continuou argumentando que há “uma série de políticas da UE com as quais não estou de acordo”. Citou “a multiplicação de acordos de livre-comércio que servem para vender carros alemães e castigam os agricultores franceses com a concorrência de frangos do Brasil ou bovinos do Canadá”.

Nesse ponto, Monsieur Macron percebeu que Madame – por ignorância ou má-fé – misturava alhos com bugalhos. Perguntou: “Que frango do Brasil?”. E lembrou à distraída adversária que ele tinha se oposto ao acordo da UE com o Mercosul, porque “quando impomos certas exigências aos agricultores nacionais, exigimos o mesmo dos de fora”. Diante do silêncio embaraçado da adversária, acusou Madame Le Pen de “tentar vender gato por lebre”.

É verdade que, enquanto Macron é dotado de uma inteligência superior à média, sua adversária se limita à esperteza dos populistas: diz o que a audiência quer ouvir. Mas uma coisa é falar num cercadinho qualquer para público cativo, e outra é argumentar diante de um homem que está há cinco anos lidando diariamente com esses temas. Não tem como.

Observação
A história dos “frangos do Brasil”, que Madame pôs à mesa, rendeu pano pra mangas e fez a alegria das redes sociais. Nos momentos seguintes, houve milhares de comentários, menções, tuítes, retuítes, likes & alia. A maioria dos comentaristas dizia não saber do que ela estava falando.

Le grand débat

José Horta Manzano

Nesta quarta-feira, os dois finalistas da eleição presidencial francesa se enfrentam no único debate televisivo a ser travado antes do segundo turno. Na França, o espaço entre o primeiro e o segundo turnos é de apenas 2 semanas. A votação final é domingo que vem.

Antes do primeiro turno, há alguns debates. No entanto, a grande quantidade de candidatos (12 ao total) transforma o ambiente em verdadeiro mercado persa. Todos falam e ninguém se entende. Aliás, o presidente Macron não quis participar de nenhum desses combates engalfinhados.

O debate organizado entre os dois turnos, unicamente com os dois finalistas, é um momento intenso na vida política do país. Entre 15 milhões e 20 milhões de eleitores devem escrutar com grande atenção o face a face entre o presidente Emmanuel Macron, candidato à reeleição, e Marine Le Pen, sua adversária de extrema-direita. Ninguém quer perder nem uma palavra.

O formato
O espetáculo tem duração de 150 minutos (2 horas e meia). A moderação é feita por dois apresentadores, um de cada um dos dois canais mais importantes do país. Até os dois campos chegarem a um consenso, diversos apresentadores foram descartados.

Os acertos prévios são negociados entre as equipes dos dois candidatos. Tudo é milimetrado e cada detalhe tem de ser aprovado pelas duas partes. Cada candidato vem com uma equipe de uma dúzia de pessoas. A quantidade de câmeras e o ângulo delas é discutido.

As duas equipes concordaram em regular a temperatura do estúdio em 19°C. A ordem dos temas é sorteada. É também a sorte que decide quem será o primeiro a falar. Cada equipe leva seu profissional experiente em direção de tevê, com a função de se instalar atrás do vidro e supervisionar as tomadas de cena. Nada é deixado ao acaso.

Não está provado que o debate defina o vencedor da eleição, mas, em anos como este, em que as sondagens preveem resultado apertado, todo cuidado é pouco. Um escorregão, um deslize, uma frase mal colocada, um gesto agressivo, um gaguejo, uma verdade aproximativa, uma gravata mal posicionada, uma maquiagem exagerada ou insuficiente podem ser fatais. O resultado das urnas será conhecido domingo às 20 horas em ponto.

Anti-europeísmo
Como muitos outros observadores, este blogueiro acredita que uma vitória de Madame Le Pen seria catastrófica para a Europa e, de tabela, para o resto do mundo. O nacionalismo da candidata é do tempo do Onça, cada país no seu canto, todos desconfiando de todos, todos com medo de todos. Seu anti-europeísmo é tão visceral que, se ela tomasse as rédeas da França, a Europa deixaria de existir tal como a conhecemos. Se isso acontecesse, os frágeis equilíbrios geopolíticos atuais estariam a perigo.

Não se sabe se essa senhora realmente acredita no que diz ou se procura apenas seduzir, com seu discurso populista, o maior número possível de descontentes. O fato é que ela defende valores anacrônicos, passadistas. Seu sonho final é ver a França fora da União Europeia. Ela não diz isso com todas as letras, mas as medidas que pretende tomar, se eleita, levam a esse desfecho.

Quer que a França abandone a moeda comum, o euro, e volte ao finado franco francês, uma absurdidade. Quer entravar a livre circulação dos cidadãos, uma conquista que levou décadas pra ser alcançada. Gostaria de ressuscitar fronteiras, cercar, murar, fechar, barrar, instalar postos alfandegários em torno do país. Outro de seus sonhos é implementar políticas de expulsão de estrangeiros. É bom lembrar que uma Europa sem a França vai ter dificuldade em seguir adiante, daí o abalo que o continente sentiria.

Putin sim, Bolsonaro não!
Madame é admiradora de Vladímir Putin. No passado, chegou a declarar que gostaria de ver a França fora da Otan, e aliada militarmente à Rússia – declaração que pega muito mal atualmente. É aliada do líder populista húngaro Viktor Orbán.

De Bolsonaro, porém, não quer ouvir falar; já declarou isso quando o capitão era ainda candidato à Presidência. Entrevistada naquela ocasião, Madame teve um raro momento de lucidez e desvencilhou-se da imagem de Bolsonaro. Quando lhe disseram que o então candidato à Presidência do Brasil era do mesmo campo político que ela, respondeu que não faz sentido etiquetar “de extrema direita” qualquer político que disser “coisas desagradáveis”.

Como se vê, a tradicional extrema direita não considera que o capitão faça parte de seu time. Já entenderam, lá atrás, que o homem é apenas rasteiro, oportunista, mal-educado e mal-intencionado. Muitas vezes quem está fora tem visão mais clara do que quem está dentro. Pra você ver.

São Benedito (Saint Benoît, em francês) é santo forte e não há de faltar. Nem a eles, nem a nós.

Escárnio

José Horta Manzano

CNews é um dos braços de um conglomerado francês de mídia fortemente orientado politicamente à extrema-direita. Volta e meia, seu canal de tevê de informação contínua é processado por parcialidade e tendenciosidade. É o equivalente francês do grupo americano Fox News, o favorito de Trump e dos ultradireitistas americanos.

Monsieur Eric Zemmour, atualmente candidato às eleições presidenciais francesas do mês que vem, foi comentarista desse canal por muitos anos. Abandonou as funções poucas semanas atrás para poder se candidatar. Zemmour promete que, se for eleito, expulsará todos os estrangeiros (a começar pelos árabes de confissão maometana), tirará a França da União Europeia e passará cadeado nas fronteiras. Se pudesse, recuperaria até as antigas colônias.

É importante notar que foi justamente esse canal que publicou a manchete que reproduzo acima. Em princípio, Bolsonaro – assim como Trump, Orbán, Putin e outros da mesma laia – formam um seleto grupo de “líderes” admirados por CNews.

Se os redatores do grupo se escandalizaram com a notícia vinda de Brasília, é sinal de que a indignação com a desfaçatez do capitão é considerada excessiva até para os padrões dos ultras da direita francesa. Percebe-se que até os da extrema-direita estão começando a se dar conta de que Bolsonaro se comporta como pária.

O título diz:
Indignações depois de Jair Bolsonaro ter mandado que lhe concedessem uma medalha do ‘mérito indigenista’. (as aspas estão no original)

E o subtítulo continua:
Durante seu mandato, Jair Bolsonaro tem sido muito criticado por sua ação contra o desmatamento e a espoliação das terras indígenas.

O restante do texto segue na mesma linha.

O escárnio bolsonárico é tão asqueroso, que escandaliza até a mídia vinculada à extrema-direita. Em resumo, qualquer vivente medianamente informado, seja de esquerda, seja de direita, não consegue deixar de se indignar com a insolência do chucro que ora ocupa a Presidência.

Passaporte vacinal falso

José Horta Manzano

Em resposta ao questionamento de parlamentares, Monsieur Olivier Véran, ministro da Saúde da França, revelou hoje que 1 em cada 20 pacientes internados por covid era portador de passaporte vacinal falso.

Lembrou que os titulares de um passaporte vacinal falso se expõem ao risco de serem condenados a até 5 anos de cadeia, além de serem “premiados” com multa de 75 mil euros (480 mil reais).

Os hospitalizados, se escaparem da infecção, não escaparão da justiça. Assim que estiverem recuperados, terão de responder ao processo.

Moral da história
Declarações falsas não protegem contra a epidemia e ainda podem custar (muito) caro. Fazendo bem as contas, não vale a pena trapacear.

Amigo da onça

José Horta Manzano

Nos anos 1940, não havia internet nem televisão. Nos jornais, tudo era impresso em preto e branco, até as fotos. Para desfrutar imagens que não fossem as da vida real, só indo ao cinema ou comprando uma revista. As décadas de 1940 e 1950 marcaram o período áureo da telona e das revistas semanais.

A revista O Cruzeiro, publicada desde os anos 1920, era a mais importante. Toda semana, estava nas bancas um novo número com variedades, análise dos fatos do momento, seções assinadas por escritores de peso como Rachel de Queiroz.

E havia a tradicional página com um quadrinho (um quadrão, na verdade) do Amigo da Onça, personagem criado pelo desenhista pernambucano Péricles Maranhão (1924-1961). Figurinha um tanto sádica, o Amigo da Onça trajava sempre um impecável dinner jacket branco e azedava a vida de todos. Adorava pôr os outros em situação difícil – em saia justa, como se diz.

Não sei se é implicância minha, mas desde a primeira vez que vi Monsieur Zemmour, atual candidato da extrema-direita à Presidência da França, achei que ele se parecia com o Amigo da Onça. Não falo de semelhança de caráter (ainda que…), falo de parecença física. Dê uma olhada na ilustração que botei lá na entrada.

Ontem foi o primeiro grande comício do candidato, com vistas às eleições presidenciais de abril próximo. Desenrolou-se num miniestádio coberto, nas cercanias de Paris. Calcula-se que umas 15 mil pessoas tenham estado presentes. A gente se pergunta como é que é possível alguém sair de casa e viajar quilômetros para assistir ao discurso de um Zemmour. Enfim, cada cabeça, uma sentença.

O comício foi perturbado por diversos acontecimentos violentos. Os repórteres e cinegrafistas de um canal de tevê que costuma mostrar antipatia pelo candidato foram ameaçados por militantes e tiveram de ser evacuados pelos seguranças. O mesmo destino coube aos jornalistas de Mediapart, um jornal de esquerda. Francamente, os da extrema-direita não apreciam a imprensa. Dependesse deles, todos os jornais podiam fechar – com exceção dos que só publicam reportagens elogiosas.

Quando se encaminhava ao palco para discursar, Monsieur Zemmour foi agarrado pelo pescoço por um jovem desconhecido e, na confusão, acabou torcendo o pulso. O rapaz foi detido para averiguações e o candidato encontrou um médico camarada que lhe prescreveu 9 dias de licença médica.

Digo que o médico foi camarada porque, apesar de estar de licença médica por quase dez dias, o candidato não parecia estar sofrendo durante o discurso. Frise-se que, na França, toda agressão que acarretar mais de 8 dias de licença médica é considerada delito grave, com pena de até 3 anos de prisão mais 45 mil euros de multa. Nesta segunda-feira, o agressor continuava sendo interrogado nas dependências da delegacia. Ele alegou ser fã de Zemmour, mas os investigadores não parecem estar convencidos.

Um pouco mais tarde, um grupo de militantes de uma ONG de combate ao racismo, chamada SOS Racisme, foi reconhecido por devotos mais exaltados. Os integrantes do grupo foram então agredidos fisicamente, sangue correu, gritaria subiu, e a explicação terminou na rua, longe do recinto.

Resumo da ópera: gente gritou, o povo correu, cadeiras voaram. Hoje em dia, todos filmam tudo; as imagens falam mais que mil palavras. Ao final da festa, 62 pessoas tinham sido detidas para averiguações.

Acredito (e espero) que o eleitorado francês não desça ao ponto de eleger essa figura para a Presidência da pátria dos direitos humanos. Seria o cúmulo. Mas isso mostra que os simpatizantes da direita extrema não são gente tranquila, disposta a dialogar nem a debater.

A invasão do Capitólio de Washington, os buscapés atirados contra o STF em Brasília, as cadeiras voando em Paris são faces de um mesmo poliedro. Os devotos não são muitos (felizmente!), mas são barulhentos. Todo cuidado tem de ser tomado para não acreditar que sejam majoritários. Não são.

Pesquisa demais faz mal?

José Horta Manzano


“Para quê consultar os cidadãos, se é tão mais simples aguardar as pesquisas? Por que quebrar a cabeça bolando um programa político, se, em troca de pequeno investimento, as pesquisas vão lhe dizer o que a população espera? Por que se aborrecer com debates entre militantes e primárias para designar um candidato, se as pesquisas podem se encarregar disso?”


É com essas palavras que o jornalista François-Xavier Lefranc, redator-chefe do Ouest France (3° maior quotidiano francês), abriu o editorial do jornal faz alguns dias. É que, exatamente como ocorre entre nós, o país de Monsieur Lefranc anda “viciado” em pesquisas na área política.

Imagino que seja fenômeno mundial. Não sei se é impressão minha, mas, no lugar do velho Ibope, que era um e único, temos hoje numerosos institutos de pesquisa. Alguns já se tornaram referência, como o Datafolha ou o Ipsos, mas outros aparecem sem que a gente saiba de onde saíram. Todos analisam uma eleição 11 meses antes do dia de votar. Já estão todos no segundo turno, num momento em que o eleitorado sequer sabe quem serão os candidatos.

Nas eleições, a população está cada vez mais acostumada a conhecer o resultado antes mesmo de ir votar. Pesquisadores lembram sempre que seu trabalho apenas reflete uma imagem do momento, com margem de erro e todas as precauções de hábito. Mas não adianta: o eleitor vê o resultado da pesquisa como se fosse cash, dinheiro na mão. E sabemos que dinheiro na mão é vendaval.

O editorialista francês acredita que, em vez de esclarecer o eleitorado, as pesquisas ultrafrequentes tendem a confundir. Na melhor das hipóteses, têm efeito nulo, não interferindo no voto de eleitores cujo propósito é firme e inabalável. Na hipótese mais tóxica, tendem a distorcer o pensamento dos hesitantes e dos indecisos, e a incitá-los a votar no candidato A em vez do candidato B pelo simples fato de aparecer melhor nas pesquisas. O chamado “voto útil“, aquele que se dá a um para evitar a vitória de outro, entra nessa categoria. Se não fossem as pesquisas, essa modalidade distorcida de voto praticamente desapareceria.

Por meu lado, acredito que, as pesquisas contribuíram fortemente para a eleição do capitão. Foi efeito bola de neve. Cada nova pesquisa que mostrasse um avanço de seu nome era seguida de novas adesões, o que acabava fazendo o candidato subir nas pesquisas. Foi essa espiral ascendente que o elegeu e não uma base ideológica – que era minúscula e assim continua até hoje.

Fechando o editorial, o Ouest France informa aos leitores sua nova (e drástica) política para as eleições presidenciais francesas, marcadas para daqui a 6 meses: diferentemente de como costumavam proceder no passado, nenhuma pesquisa será encomendada pelo jornal desta vez.

Confesso que a atitude tem seus atrativos. A população tem, sim, o direito de ser informada. Mas até que ponto a informação “do que poderia ser” – entendida como “o que certamente vai ser” – não atrapalha mais do que ajuda? Propaganda, debates, discussões, mesas redondas, análises, sim. Mas números, às vezes até com decimais(!), podem representar aquele excesso de democracia que resulta em desserviço a ela.

A arte de redigir nota de falecimento

José Horta Manzano

Com o falecimento de Nélson Freire, ocorrido semana passada, o Brasil perdeu seu mais importante intérprete de música erudita, o único conhecido e reconhecido universalmente. Muitos anos hão de se passar até que outro filho desta terra entre no rol dos maiores do mundo.

Em horas assim, quando falece um grande nome da música nacional, é praxe haver manifestação imediata da Secretaria da Cultura, da Presidência da República e do Ministério das Relações Exteriores.

Como já mencionei alguns dias atrás, doutor Frias, secretário nacional de Cultura não deu um pio. Por certo, nunca tinha ouvido falar de um dos maiores pianistas do mundo. Mais inquietante ainda é ver que falta, no staff, um encarregado de seguir o que acontece fora da bolha em que todos eles vivem.

O presidente Bolsonaro, grosseiro como de costume, nem falou nem disse nada. Silêncio absoluto. Não sabia, não sabe e nunca saberá quem foi Nélson Freire. Talvez achasse que, como todo artista, “esse daí” também era comunista. Vai ver até que votou no PT. “Pô.”

O Itamaraty, que ainda guarda algum resquício do que costumava ser a diplomacia brasileira, manifestou-se. Soltou um comunicado formal, protocolar, que não chega a 1000 toques, com 155 palavras. Descrever em 155 palavras a carreira de um artista maior é complicado. Não dá.

Apesar da exiguidade do comunicado, o Itamaraty ainda encontrou jeito de encaixar a seguinte frase: “Muitas de suas apresentações internacionais contaram com apoio do Itamaraty”. Jogar flores em si mesmo pode cair bem em outras ocasiões; em nota de falecimento, pega mal pra caramba. Além de prepotente, é o cúmulo da deselegância. Nélson Freire não dependou do “apoio” do Itamaraty para correr mundo e firmar seu renome em 70 anos de carreira.

No dia seguinte ao do anúncio da morte do artista, o Palácio do Eliseu soltou nota de falecimento, assinada pelo presidente Emmanuel Macron. Como todos sabem, o palácio presidencial francês não é agência funerária. Comunicados da Presidência francesa são poucos, caem a conta-gotas.

A nota de falecimento francesa traz uma minibiografia do homenageado, com 437 palavras espalhadas por 2800 toques (quase três vezes a extensão do bilhetinho do Itamaraty). Vê-se que foi escrita por quem é do ramo. Dá um apanhado preciso da obra do artista, cita sua discografia, relembra seus compositores favoritos, menciona as peculiaridades de seu toque e da sonoridade que conseguia extrair do instrumento.

Não esquece a velha amizade que unia o brasileiro a Martha Argerich, considerada a maior pianista viva. E termina declarando: “o presidente da República e esposa saúdam o excepcional intérprete de Debussy, que nos brindou frequentemente com sua presença, e dirigem suas condolências sinceras aos que lhe eram próximos, assim como a todos os que se emocionavam com a poesia de seu toque”.

Se Bolsonaro, logo no início do mandato, não tivesse insultado a primeira-dama francesa, até que podia mandar um ou dois emissários para um estágio no Eliseu, a fim de serem iniciados nas artes de redigir um elogio fúnebre digno de país civilizado.

O encargo fica para o sucessor do capitão.

Para saber mais:

O original da nota do Itamaraty

O original da nota do Palácio do Eliseu

O polemista francês

Eric Zemmour

José Horta Manzano

Monsieur Eric Zemmour é um francês pra lá de especial. Apesar da aparência física pouco graciosa, faz anos que surge aqui e ali, nalgum programa televisivo, sempre com a mesma obsessão. Para ele, os imigrantes são a causa de todos os males da França.

Mas, atenção! Quando fala em imigrantes, leia-se: os árabes originários da Argélia, da Tunísia e do Marrocos, antigas colônias e/ou protetorados franceses). Estrangeiros provindos da Alemanha, da Espanha, da Lituânia ou da Quirguízia não entram na mira do polemista.

Polemista – é essa a palavra. Se são figuras um tanto raras no Brasil, os polemistas existem aos montes na França. Não sei se a origem desse fenômeno é a própria lingua, que se presta a debates metafísicos. Talvez seja simplesmente a tradição, a educação que cada um recebe. Os jovens já entram na adolescência ensaiando os primeiros passos no mundo da polêmica.

Discute-se por um sim ou por um não. Cada um faz questão de dar sua opinião. Atenção: as discussões são animadas, mas a agressividade costuma limitar-se às palavras, sem consequências físicas.

Monsieur Zemmour, jornalista e escritor, fez da troca de ideias sua marca de fábrica. Seja qual for o tema da conversa, não tem jeito: ele sempre acaba acusando seus “imigrantes” de todos os males. É o que alguns chamam de monomania, um defeito que incomoda.

Ele tem dado sinais de que será candidato à Presidência do país, nas eleições de abril do ano que vem. Por enquanto, não confirma, deixa que as especulações borbulhem. Mas é bem provável que, qualquer hora, se declare candidato oficial.

Entrevistado pela Folha de São Paulo(*), mandou respostas por escrito. Naturalmente, foi instado a dizer o que pensa de Bolsonaro, Trump, Marine Le Pen, Macron – uma armadilha atrás da outra. Não deixou nenhuma pergunta sem resposta. No entanto, escorreguento feito peixe ensaboado, limitou-se ao politicamente correto, sem jamais se comprometer.

Segundo Zemmour, o Brasil é exemplo de multiculturalismo que deu certo. Ele parece achar que o simples fato de todos falarem a mesma língua é fator suficiente para atestar que a noção de bem comum está arraigada na alma do brasileiro.

Se vê que o Monsieur não conhece bem nosso país. Os brasileiros têm uma baciada de qualidades, mas a noção de bem comum não está entre elas. E faz uma falta danada. A noção de bem comum anda de mãos dadas com o sentimento de pertencimento, o grande ausente da alma nacional.

Pertencimento não se resume a enrolar-se na bandeira e cantar o Hino. Vai bem mais longe que isso. Começa no respeito ao vilarejo (ou à cidade, ou à metrópole) onde se vive. Continua no comportamento civilizado, em que cada cidadão respeita o próximo e paga seu “dízimo” – sob forma de imposto –, como contribuição para o funcionamento da sociedade.

Estamos a anos-luz da noção de bem comum mencionada pelo polemista francês. No fundo, o país dele, apesar dos mal-amados “imigrantes”, está bem mais próximo da meta do que nós.

(*) Se alguém estiver interessado em ler a longa entrevista concedida por Monsieur Zemmour à Folha, faça-me saber por email.

Quem inventou a baguete?

José Horta Manzano

Você sabia?

Aquele pão comprido, crocante e de pouco miolo, que os franceses chamam “baguette” (baguete), está tão ligado ao patrimônio cultural da França, que a gente imagina que deva ser tradição antiga, velha de muitos séculos. Engano. A baguete é criação relativamente recente. As primeiras foram assadas faz 100 anos.

A baguete nasceu com o inchaço das cidades, que se verificou a partir do fim do século 19. A multiplicação das indústrias, geralmente localizadas na periferia das cidades maiores, fez surgir uma nova casta de cidadãos enriquecidos: os donos das fábricas.

Essa classe de novos-ricos já não se satisfazia com o pão tal como era feito tradicionalmente, em formato redondo, denso, cada bolota pesando de um quilo e meio a dois quilos. Durava uma semana, mas perdia o viço, amolecia por fora e secava por dentro. Já que tinham dinheiro e podiam pagar, os membros das classes urbanas enricadas queriam pão fresco e crocante no almoço e, de novo, no jantar.(*)

Uma lei de 1919, querendo proteger os padeiros, proibiu o trabalho noturno na profissão. Ora, o pão sempre foi amassado durante a noite e assado de madrugada para ser posto à venda de manhã logo cedo. Além disso, a panificação era tradicionalmente feita com fermento natural – que dá sabor especial ao pão, mas demanda trabalho e muita paciência.

Para resolver o problema, os padeiros parisienses decidiram abandonar o fermento natural e substitui-lo pelo fermento que conhecemos como biológico (ou Fleischmann), aquele de tabletinho que se guarda na geladeira, ou que também se encontra granulado, em sachê. O gosto e a textura do produto final mudavam bastante; em compensação a crosta ficava mais crocante, e o principal: a preparação era bem mais rápida e dispensava o trabalho noturno.

Para diminuir ainda mais o tempo de cozimento, a forma (ó) redonda foi abandonada e deu lugar ao formato comprido que conhecemos. O sucesso foi imediato.

Só que os tempos eram duros. Não é qualquer francês que podia se dar ao luxo de comprar pão duas vezes por dia. As classes menos favorecidas continuaram privilegiando o tradicional pão redondo, pesadão e de tamanho familiar.

Foi preciso esperar que o tempo passasse. Em 1945, terminada a guerra, a produção foi se regularizando e o racionamento de gêneros alimentícios foi pouco a pouco desaparecendo. Só então a baguete ganhou impulso, se popularizou e se espalhou pela França inteira.

No Brasil da minha infância, não se usava o termo baguete – isso é novidade das últimas décadas. A gente dizia “um filão” para designar um pão comprido, porém de diâmetro mais gordo. E “uma bengala” pra indicar aquele mais fininho. Não sei se alguém ainda fala assim.

(*) Até hoje, boa parte das famílias francesas não come, no jantar, o pão do almoço. Compram duas vezes por dia. Quem vive em cidade, vai até a padaria. Quem vive em vilarejo, compra do padeiro itinerante, que passa duas vezes por dia. Famílias pequenas compram meia baguete ao meio-dia e, de novo, meia baguette ao entardecer. Curioso costume, não?