Macron e a casca de banana

José Horta Manzano

A notícia passou meio despercebida na imprensa francesa, neste momento mais preocupada com as consequências das eleições europeias, com o interminável folhetim do Brexit e com os irritantes protestos dos derradeiros Coletes Amarelos. Vamos rebobinar o filme.

Dia 21 de abril, Volodimir Zelenski, jovem ator ucraniano de 41 anos, foi eleito presidente de seu país. Exemplo de ficção que se torna realidade, o moço tinha encarnado, numa minissérie televisiva, um professor de História que se tornava, por acaso, presidente do país. No auge da popularidade mas sem nenhuma experiência política, candidatou-se à Presidência assim como quem não quer nada. Com estonteantes 73% dos votos, venceu, no segundo turno, o presidente atual, que disputava a reeleição. Foi bem sucedido num desafio que nem nosso Tiririca ousou enfrentar!

Como acontece nessas horas, todos os dirigentes do planeta sentiram a necessidade de dar parabéns ao recém-eleito e desejar-lhe boa sorte. Dois humoristas russos, especialistas em dar trotes e pregar peças a personagens importantes, resolveram preparar uma pegadinha pra Monsieur Macron, presidente da França. Valendo-se do caminho mais simples, ligaram para o palácio presidencial francês e deixaram o número de celular do novo presidente. O número, naturalmente, era do celular deles.

Tranquilizados pela voz com sotaque carregado, os responsáveis pelo cerimonial da Presidência francesa não desconfiaram. Transmitiram o número a Emmanuel Macron. Pouco depois, o francês liga para o número que lhe haviam dado e, convencido de que estava a conversar com o novo presidente ucraniano, sente-se à vontade e solta as amarras.

 Do outro lado, a suposta voz do presidente recém-eleito provoca:

«– Veja, Monsieur Macron, com meus 73%, eu me sinto como meu vizinho Vladimir Putin, o presidente da Rússia.»

E Macron, que não perde a ocasião pra responder na lata:

«– É, mas eu tenho a impressão de que o sistema na Ucrânia ainda não está tão bem organizado como na Rússia. Você ainda não botou todos os seus oponentes na cadeia.»

Ai, ai, ai… Os humoristas russos, que tinham gravado tudo, puseram o áudio à disposição em sua conta no Twitter. Estavam à mesa todos os ingredientes de um sério incidente diplomático. Alguns poucos comentaristas franceses se mostraram surpresos pelo fato de o Palácio do Eliseu ter se deixado tapear com tanta facilidade. E também pela imprudência de Macron ao pronunciar palavras sarcásticas contra o presidente da Rússia, país importante e amigo.

Passado um mês, uma constrangida Presidência francesa segue firme na recusa de confirmar o fato. Tampouco emitiu desmentido, o que já é meia confissão. Por seu lado, a embaixada da Rússia em Paris informou não ter intenção de tecer comentários sobre o ocorrido.

Como se vê, não é só nosso presidente linguarudo que se mete em palpos de aranha ao dizer o que não deve a quem não convém. A diferença é que, enquanto outros escorregam na casca de banana que alguém lhes colocou no caminho, doutor Bolsonaro atravessa a rua pra escorregar na casca que avistou na outra calçada.

Outras máximas ― 48

José Horta Manzano

Justiça autoriza transferência do detento Eduardo Cunha de Curitiba a uma prisão carioca.

Furem fur cognoscit, et lupum lupus.
Ladrão reconhece ladrão e lobo reconhece lobo.
Máxima latina

Salsicha, salame e charque

José Horta Manzano

A gente pronunciava salsicha e achava muita graça em quem dizia salchicha. Foi só muitos anos mais tarde que descobri que os castelhanos só conhecem a segunda variante. E só juram por ela. Na língua deles, a palavra foi vítima de assimilação fonética, bem conhecida dos estudiosos.

Dada a lentidão dos órgãos da fala, esse fenômeno de relaxamento ocorre com frequência. De fato, a sequência chi + cha é mais fácil de pronunciar do que si + cha. Este último parzinho requer certa dose de ginástica bucal. Bom exemplo de quebra-língua é o desafio infantil de mandar pronunciar rapidamente «um tigre, dois tigres, três tigres». O exercício é perigoso – experimente. A gente se surpreende ao não ser capaz de pronunciar essas seis palavrinhas com velocidade.

Tanto nossa salsicha quanto a salchicha espanhola derivam do italiano salsiccia, onde o primeiro componente é sal. É da família do salame e de outras salgaduras. O salgamento é um dos métodos mais antigos de conservação de alimentos.

Charcuteria pertence a outra família. É a palavra usada pelos franceses para designar coletivamente os embutidos. O termo se decompõe em chair (=carne) e cuite (=cozida). É caso pouco comum em que o nome do estabelecimento (charcuterie) precede o nome do profissional (charcuitier). Charcuteria corresponde, grosso modo, a nossa salsicharia. Mas, convenhamos, é bem mais chique.

Nossos dicionários dizem da palavra charque (carne seca) que é de origem desconhecida. O dicionário da língua espanhola informa que charque (ou charqui) é palavra platina de origem desconhecida. Sem querer ser mais esperto que os estudiosos, a semelhança com a ‘carne cozida’ francesa (chaircuite) me parece sugestiva. Pode ser apenas coincidência.

Recolha

José Horta Manzano

Uma das lembranças que guardo da infância é a dos ônibus que circulavam com o letreiro «Recolhe». Nem iam ao destino habitual, nem voltavam ao ponto de partida. Aquela palavrinha informal, pura expressão de português caseiro, ia direto ao que interessava. Sem floreios. Quem recolhia? Recolhia o quê? Não tinha importância. A informação era despretensiosa mas eficaz. De um relance, a gente entendia que aquele veículo não estava de brincadeira. Não ia parar. Acontecia, de raro em raro, que o motorista – que a gente chamava então de ‘chofer’ –, condoído da sorte de quem esperava no ponto, desse uma paradinha camarada e embarcasse algum passageiro. O homem atropelava o regulamento mas fazia a alegria de quem se dispusesse a compartilhar aquela viagem ao repousante destino. «Recolhe»…

Não sei se ainda se veem ônibus com convite tão explícito ao descanso e ao adeus às armas como aqueles da minha infância. Espero que sim. Afinal, ônibus também são seres humanos, como diria o outro, e têm direito a um descansozinho.

Li estes dias que a ideia de uma versão moderna de recolhimento perpassa o Congresso. Não visa a mandar veículos para o descanso. Bem mais ambicioso, o objetivo é aposentar o próprio presidente da República. Recolhida ou recolha há de ter soado jeca para os ouvidos de nossos sofisticados parlamentares. Vamos banir esse jeito primitivo de falar, que diabos! O projeto fala em «recall». A realidade é a mesma, mas a palavra estrangeira soa tão melhor. Fica muito chique.

O objetivo é deixar cair um grão de areia na engrenagem da Presidência. Dessacralizá-la. Fazer que o ocupante não se sinta onipotente e blindado contra vento de boreste ou tempestade de bombordo. Em princípio, tudo o que possa levar o presidente a refletir é bem-vindo. O projeto em tramitação, no entanto, parece-me de difícil aplicação. Para lançar um plebiscito revocatório, será preciso colher um número de assinaturas equivalente a 10% dos votantes na eleição precedente. Parece pouco, mas estamos falando de mais de dez milhões de peticionários, uma enormidade! Fica no ar um problema complementar: quem é que vai atestar a veracidade de cada assinatura? Com base em quê? Como evitar assinaturas repetidas?

Nosso país não tem tradição plebiscitária. Não há um órgão depositário da amostra da assinatura de cada cidadão. Não temos um registro de residência dos habitantes. Não vejo como um voto popular revocatório possa um dia ser implantado. O bom e velho impeachment – que já serviu um par de vezes – ainda me parece o único caminho viável. A recolha de presidente por iniciativa popular direta vai ficar pra uma próxima vez.

Cargos & encargos

José Horta Manzano

Ultimamente, os diagnósticos emitidos por gente que entende de política são convergentes quando apontam a causa da paralisia do governo Bolsonaro. Tirando as traquinagens dos bolsonarinhos, que atrapalham mas não paralisam, o motivo maior é o descontentamento de parlamentares. Suas Excelências não estariam sendo contemplados com os cargos que esperavam receber do governo.

Peço vênia para discordar. Suas Excelências não querem cargos. Vamos refletir um pouco.

A palavra cargo pentence a extensa família espalhada por todas as línguas latinas. Em italiano: carica, caricare, incarico, caricatura. Em francês: charge, charger, chargement, décharger. Em espanhol: carga, cargar, encargue, encargamiento. E em nossa língua: carga, carregar, encargo, encarregar, recarregar, descarregar, carregamento. Está também atestada a presença do termo medieval carcare.

Como pode o distinto leitor perceber, todas essas palavras, de perto ou de longe, têm a ver com peso, que lembra esforço, que lembra cansaço, que lembra deus me livre. Cargo é sinônimo de encargo, que é sinônimo de trabalho. Ora a distância que costuma separar nossos parlamentares da noção de esforço se mede em anos-luz. Quer um exemplo? No começo de maio, um dia feriado caiu numa quarta-feira. Foi a conta: a semana inteira foi praticamente enforcada no Congresso. Ninguém ficou em Brasília. Na caradura.

Agora diga-me com toda sinceridade: vosmicê acredita que Suas Excelências estejam buscando cargos? Nem aqui, nem na Lua! Os nobres parlamentares se contentam com as benesses que eventuais cargos lhes possam propiciar. Na verdade, dispensam os cargos. Bastam as benesses. Os governos petistas, especialistas no assunto, tinham entendido isso. Em vez de perder tempo com fachada, distribuíam diretamente as propinas.

Com o passar do tempo, talvez doutor Bolsonaro venha a ser obrigado a dobrar-se à realidade da mecânica parlamentar. Ou quem sabe encontrará a solução miraculosa na qual ninguém havia ainda pensado. Será?

Terremoto – 2

José Horta Manzano

Em nosso país, os terremotos mais frequentes são de natureza política – esses estouram dia sim, outro também. Tremores de terra no sentido original, daqueles que derrubam gentes e prédios, são fenômeno bem mais raro. Ocorrem, às vezes, mas em geral em zonas de escassa habitação, o que suaviza o problema. A gente só fica sabendo quando algum sismógrafo ultrassensível, montado a milhares de quilômetros dali, registra e publica o acontecido. Já nossos hermanos do Peru, do Chile, do Equador, da Colômbia estão muito mais expostos a esse tipo de ocorrência. Quando violentos, os terremotos podem causar perda de muitas vidas além de grande estrago material.

Terremoto de 26 maio 2019

No domingo 26 de maio, forte sismo de magnitude estimada em 7,5 graus na Escala Richter sacudiu a região do Alto Amazonas, no Peru. Foi sentido no país inteiro e até nos vizinhos Equador e Colômbia. É mais que provável que pudesse ter sido sentido também no Brasil, no oeste do Amazonas e no Acre, se essas regiões fossem mais densamente povoadas. Como há pouca gente por ali, só ficamos sabendo porque os sismógrafos peruanos registraram.

Em nota discreta, a notícia foi dada pela mídia brasileira. Como acontece a cada vez, escorregaram na hora de dar os detalhes. O Estadão, por exemplo, escreveu que o epicentro do tremor foi registrado a uma profundidade de 141km. Bobeou. Já falei nisso antes mas, como o erro se repete, repito eu também.

Estadão, 26 maio 2019

Epicentro é o ponto da superfície (da terra ou do mar) situado exatamente acima do lugar onde teve origem a ruptura que causou o terremoto. Portanto, é incorreto dizer que o epicentro está situado a tal profundidade. Está sempre na superfície. A palavra epicentro utiliza o prefixo grego epi = acima, na superfície. O hipocentro é o ponto onde se produziu a ruptura. Esse, sim, está sempre na profundidade.

O escorregão se explica. Pra terremoto político, estamos escolados. Já tremor de terra não é nossa praia. Cada qual com sua especialidade, ué.

Teoria dos conjuntos

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 maio 2019.

Na Itália do pós-guerra, a vida era dura. O longo conflito deixou um país exangue e uma economia desarticulada. Todos se davam conta de que a reconstrução ia exigir muito trabalho. Só de pensar, dava desânimo – o que é compreensível. Escaldados pelas estrepolias de um guia iluminado que só lhes havia trazido sangue e lágrimas, os italianos descartavam a ideia de recorrer de novo a um salvador da pátria. O terreno tornou-se então fértil para o florescimento do comunismo, doutrina que prometia progresso e felicidade para todos sem muito esforço. De fato, fundado nos anos 1920, o Partido Comunista Italiano conheceu expansão fenomenal a partir do fim da Segunda Guerra. Chegou a ser o maior partido comunista do mundo ocidental – uma façanha.

Quando da ascensão da agremiação, lá pelo fim dos anos 1950, corria uma anedota reveladora do estado de espírito dos afiliados. Numa cidadezinha recuada, discorria um comício. A certa altura, o orador dirigiu-se a um rapaz de jeitão humilde que assistia atento. Inflamado, perguntou-lhe em voz bem alta pra ser ouvido por todos:

– Se o camarada tivesse duas casas, o que é que faria?

– Ficaria com uma e daria a outra ao partido.

– Muito bem. E se tivesse duas vacas, o que é que faria?

– Ficaria com uma e daria a outra ao partido.

– É assim que se faz. E se tivesse duas bicicletas, o que é que faria?

– Ei! Mas… Duas bicicletas, eu tenho!

À época, não havia gravador de bolso, de modo que ninguém pode confirmar a veracidade do diálogo. Assim mesmo, ele é espelho de como o cidadão comum encara doutrinas e ideologias. Todo ideário é bom até o ponto em que me é favorável. A partir do momento em que começa a exigir de mim um esforço que não estou disposto a fornecer, já não presta. «It’s human nature – é a natureza humana.» O bom camponês de nossa historinha disse amém à cartilha comunista enquanto ela lhe prometia as delícias de viver, sem contrapartida, no mundo do ‘venha a nós’. Quando se deu conta de que o ‘dá cá’ implicava um ‘toma lá’, a coisa azedou.

É que, ao mencionar a partilha das bicicletas, o predicador mostrou como pode ser desestabilizante, na prática, a Teoria dos Conjuntos. De repente, o camponês percebeu que o conjunto de generosos doadores que abriam mão de metade do patrimônio em prol da sociedade incluía também o conjunto dos possuidores de bicicleta – ou seja, ele entrava na dança. Meio cismado, voltou pra casa pensativo. No dia seguinte, rasgou a carteirinha do partido. E nunca mais assistiu aos comícios dos camaradas.

Universal, a Teoria dos Conjuntos se aplica também ao Brasil. O lulopetismo em geral – e doutora Dilma Rousseff em particular – aprenderam essa verdade na marra. A dicotomia nós x eles valeu enquanto se manteve no campo abstrato. A partir do momento em que inteiros grupos sociais se deram conta de que se situavam numa intersecção de conjuntos que lhes era desfavorável, passaram a engrossar o time dos batedores de panela. E deu no que deu.

É de crer que doutor Bolsonaro nunca ouviu falar na fábula das bicicletas do camponês italiano. Devia, pelo menos, ter analisado a débâcle do lulopetismo, mormente por ter sido ela a alavanca maior do sucesso eleitoral que o levou à Presidência. De certeza, não analisou. Embora acredite estar longe do modelo anterior, está a repetir os erros dos predecessores. As falas e os atos cortantes e excludentes são a exata reprodução do famigerado nós x eles.

O trágico é que a política ao molho bolsonaresco acicata a Teoria dos Conjuntos. O governo tem lançado muito anátema estes últimos tempos. Sua metralhadora giratória está agredindo até apoiadores da primeira hora, gente que, por infelicidade, se encontra numa intersecção desfavorável. As recentes manifestações estudantis são produto de intersecções que incomodam muita gente fina. Cidadãos situados no ponto de encontro entre os que aplaudiam a atuação do governo e os que contam com uma escola pública rica de verbas estão como o italiano da bicicleta. Não apreciaram que a navalha venha ferir-lhes a carne. Vão acabar batendo panela.

Quem diz o que quer

José Horta Manzano

Tem gente que não aprende. Lula da Silva, considerado por alguns como dotado de superior inteligência e de fino faro político, não me parece tão esperto assim. Entra nessa categoria daqueles que têm certeza de que já nasceram sabendo tudo e que, portanto, não precisam aprender mais nada. Nem os quase quatorze meses passados na cadeia foram suficientes pra livrá-lo do torpor e pra afinar-lhe a astúcia.

A prudência é qualidade supimpa. Quanto mais um indivíduo se encontra em situação delicada, mais deve medir o alcance dos próprios atos e gestos. Não convém destratar aqueles de quem se pode vir a precisar no futuro. Atropelar essa regra é tolice pura.

Chico Buarque – que é amigo do peito de Lula da Silva, batalhou contra a destituição de Dilma e defendeu a fracassada candidatura de Haddad à Presidência – foi agraciado com o Prêmio Camões. Nada mais justo, que o moço é verdadeiro ourives da língua pátria. Concorde-se ou não com suas posições políticas, há que reconhecer sua excelência no trato das palavras.

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Lula da Silva resolveu escrever uma cartinha ao amigo Chico. Não satisfeito em apenas dar-lhe os parabéns, aproveitou a carta aberta pra alfinetar a rede Globo de rádio e televisão. Contou ter ficado muito feliz porque «a Globo teve que colocar você no ar em horário nobre, pela primeira vez vi sua cara na Globo (sic)».

Magnânimo, o conglomerado carioca de mídia teve a clemência de responder. Retrucou que, nos últimos nove anos, Chico Buarque já apareceu 28 vezes no horário nobre da televisão. O Lula, que, em matéria de tevê, já confessou interessar-se unicamente por novela, certamente perdeu as aparições do amigo. Quem diz o que quer acaba ouvindo o que não quer.

Não é inteligente alfinetar a maior empresa de televisão do país. Quem tem esperança de um dia voltar à política não deveria fazer isso. Não digo que o demiurgo devesse ter-se prostrado diante da emissora – bastava ter mantido recato. O silêncio, que não pede esforço nenhum, nessas horas vale ouro.

Desde que o velho Tancredo saiu de cena, a política brasileira tem sentido muita falta de um presidente sagaz. Perspicácia é artigo que há décadas anda em falta no Planalto.

Maiúsculas e minúsculas: quando usar

Dad Squarisi (*)

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) manda grafar com inicial grandona:

1. Nomes próprios
Rafael, Renascimento, Avenida Atlântida, Presidência da República, Poder Judiciário, Região Sul, o Sul do Brasil, Região Centro-Oeste, o Centro-Oeste, o Nordeste, Oriente, Ocidente, Antiguidade, Idade Moderna, Renascimento, Belle Époque, Seleção Brasileira, Seleção Chinesa de Vôlei Feminino, Campeonato Nacional, Copa do Mundo, Olimpíadas, Medalha do Pacificador.

2. Nome de disciplinas
Marcos levou pau em Português e Matemática. Mas safou-se em Inglês.

3. Nomes de impostos e taxas
Imposto de Renda, Imposto Predial Urbano, Taxa do Lixo.

4. Atos de autoridades quando especificado o número ou o nome
Lei 2.346; Medida Provisória 242; Decreto 945; Lei Antitruste.

O ato perde a majestade em dois casos

Um: depois da 1ª referência.
A medida provisória mencionada trata do Plano Real.

O outro: na ausência do número
O presidente vetou a lei.

5. Os pontos cardeais
Norte, Sul, Leste, Oeste.

Se o ponto cardeal define direção ou limite geográfico, usa-se a inicial minúscula
O carro avançava na direção sul. Cruzou o Brasil de norte a sul, de leste a oeste.

6. As palavras Estado (país), União e Federação (associação de estados)
A sociedade controla o Estado. A Constituição enumera as competências da União. Impõe-se preservar a Federação.

7. Datas comemorativas e nome de festas religiosas
Sete de Setembro, Proclamação da República, Natal, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Namorados, Dia da Árvore.

Atenção, gente fina. As festas pagãs se escrevem com a inicial pequenina: carnaval, ano-novo. Também: quaresma, semana santa, quarta-feira de cinzas, sábado de aleluia.

8. Nomes científicos de famílias animais e vegetais (o segundo elemento com minúscula)
Coffea arabica, Hevea brasiliensis, Ranitomeya vanzolinii.

9. Oração incluída dentro de parênteses quando constitui oração à parte, completa, precedida de ponto. No caso, começa com letra maiúscula e termina por ponto
Na praça, o sentimento geral era de grande frustração. (Nenhum candidato se dignara comparecer ao comício.)

10. Citação
Quando vem depois de dois pontos, a citação começa com letra maiúscula. Caso contrário, com minúscula:
Fernando Pessoa escreveu: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Segundo Fernando Pessoa, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

Curiosidade
Na língua dos Césares, majusculus quer dizer um tanto maior. Maioral, maioria, maioridade, major, majoritário, majorar pertencem à mesma família. Todos são aparentados com maior. Por isso, têm complexo de Deus. Se deixar, ocupam um senhor espaço. Manda o bom senso pôr-lhes o pé no freio. Para dar-lhes um chega pra lá, dois princípios se impõem. Um deles: só as use nos casos obrigatórios. O outro: não as empregue para valorizar ou destacar ideias. Maiúsculas devem ser as ideias, não as letras.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. Edita o Blog da Dad.

Dirceu e Cunha juntos

José Horta Manzano

Saiu estes dias a inacreditável notícia de que os arquiconhecidos grão-criminosos José Dirceu e Eduardo Cunha compartilham a mesma cela no Complexo Médico-Penal de Curitiba. E não é tudo. Instalados mesmo espaço, estão ainda João Vaccari (ex-tesoureiro do PT) e o ex-senador Gim Argello. Três outros presos menos midiáticos completam o septeto. A turma é do barulho, como se dizia antigamente.

Com esse povo, todo cuidado é pouco. São daqueles que, quando vêm vindo na calçada, a gente atravessa a rua rapidinho. Vale também segurar firme a carteira. Coisa do outro mundo! É absolutamente inconcebível trancafiar uma turminha dessas no mesmo espaço. Aquilo é uma verdadeira universidade do crime de colarinho branco! Imaginem as informações que se podem trocar, as dicas que se podem fornecer, o planejamento de golpes futuros, as maldades que se podem tramar.

Eu só entenderia que essa quadrilha fosse encarcerada na mesma cela se câmeras e microfones fossem instalados para ajudar a PF a recolher informações preciosas que pudessem levar ao esclarecimento de crimes que ninguém desconfia tenham sido cometidos. Fora isso, deixá-los juntos é inconsciência. Equivale a deixar conviver no mesmo cômodo o Marcola, o Fernandinho Beira-Mar, o Compensa e o ‘G’ Carnaúba.

Tanto estes últimos quanto os que citei anteriormente são chefes de organizações criminosas. Por que é que uns têm de ser apartados enquanto os outros podem seguir em convivência íntima? Manter bandidos desse jaez juntos é a melhor maneira de deixá-los recompor uma organização criminal pra ninguém botar defeito.

Manicômio geral

José Horta Manzano

Primeiro, foi o bolsonarinho senador. Começaram a aparecer uns podres sobre o rapaz, uma história meio sórdida de exploração do homem pelo homem. Circulou a notícia de que ele confiscava, em benefício próprio, parte do salário de cada colaborador. Aproveitar-se da fragilidade alheia, tsk, tsk, que coisa mais feia! Daí veio o pai e disse algo como: «Se ele errou, tem de pagar e consertar o que fez». E todo o mundo se tranquilizou ao imaginar que, se o filho era malandro, pelo menos o pai era equilibrado.

Em seguida, veio o bolsonarinho vereador. Começou aboletando-se no coche presidencial na hora do desfile inicial – coisa esquisita. Em seguida, sempre atendendo pelo doce apelido de ‘pit bull’, desembestou a metralhar conhecidos e desconhecidos pelas redes sociais – redes essas que, sob seus dedos ágeis, estão mais pra associais. A primeira façanha foi derrubar um ministro. De lá pra cá, não parou mais. Daí veio o pai e explicou que ‘pit bull’ era só um apelido, que o moço era mais manso que gatinho miúdo. E todo o mundo se tranquilizou ao imaginar que, se o filho era perturbado, pelo menos o pai era equilibrado.

Bolsonaro & bolsonarinhos
Crédito: vespeiro.com

Na continuação, veio o bolsonarinho deputado. Começou forte: apareceu logo nos EUA, de boné «Trump 2020» enfiado no cocuruto. E continuou na mesma linha. Organizou jantar para homenagear Steve Bannon (um desafeto de Trump) e, dia seguinte, sentou-se no salão oval com Trump. Sua façanha mais recente foi preconizar um Brasil membro do clube atômico. Daí veio o pai e explicou que não havia por que se preocupar porque, no fim das contas, é sempre ele – o presidente – a dar a última palavra. E todo o mundo se tranquilizou ao imaginar que, se o filho era destrambelhado, pelo menos o pai era equilibrado.

Esgotados os bolsonarinhos, chegou a vez do pai. Já faz algumas semanas que o presidente vinha emitindo sinais confusos, mordendo e assoprando, espalhando o calor e o frio. Faz dois dias, desandou de vez. Doutor Bolsonaro deu mostras de que não é fiel nem mesmo ao guru que o ajudou a eleger-se (segundo seu próprio diagnóstico). Abandonando o astrólogo boca-suja, jogou-se para o lado de outro iluminado, um residente francês de pai congolês e mãe angolana. O esclarecido personagem, que se considera milagreiro, declarou que doutor Bolsonaro é ungido pelos deuses e foi por eles designado para conduzir o povo brasileiro. E nosso presidente, babando de satisfação, repicou a mensagem!

Conclusão
O primeiro filho é malandro. O segundo é perturbado e o terceiro, destrambelhado. Quem achava que a sensatez do pai fosse salvar o cenário, pode perder a esperança. Era de desconfiar. Fruto não costuma cair muito longe da árvore.

Rabicho
Acaba de sair a notícia de que, pela segunda vez desde que assumiu o trono, doutor Bolsonaro atribuiu uma medalha nacional de mérito aos filhos. Desta vez, foi a medalha do Mérito Naval, concedida a dois bolsonarinhos. Como? Eles não têm mérito? Ora, que bobagem! Quem está ligando pra esses detalhes? Distribuição de medalha em família sempre reforça o sentimento de clã. Um dos dois bolsonarinhos medalhados é justamente o senador, aquele que está enrolado até o pescoço com a Justiça.

Bolsonaro & Bannon no mesmo saco

José Horta Manzano

Nascido no início dos anos 1970, o Front National (Frente Nacional), partido francês de extrema-direita, foi presidido durante décadas por Jean-Marie Le Pen, um dos fundadores. Polemista e provocador por natureza, o patriarca imprimiu ao partido a marca da pópria personalidade. O dirigente nunca se preocupou em disfarçar o caráter extremista da agremiação. No fundo, não acalentava ambições presidenciais. Contentava-se com ser um partido destoante e livre de amarras que lhe tolhessem a liberdade de permanecer ad æternum na oposição.

Com a velhice batendo à porta, o velho dirigente concordou que era hora de passar o bastão. Em 2011, fez o que se costuma fazer em organizações de vocação autoritária e dinástica: passou a coroa à própria filha. Exatamente como costuma ocorrer em Cuba ou na Coreia do Norte. Madame Le Pen, a filha, tinha outras ambições para o partido. Não se conformava em continuar à margem do tabuleiro político. Queria tornar sua legenda respeitável e capaz de guindá-la um dia à Presidência da República.

Quando o pai se tornou incômodo, com suas declarações insolentes e provocadoras, madame não teve dúvida: expulsou-o do partido. No ano passado, dando continuação ao saneamento da imagem, mudou o nome da agremiação. Em manobra bastante utilizada no Brasil – e bastante eficaz, diga-se – o Front National tornou-se Rassemblement National (Agrupamento Nacional).

Marine Le Pen e Steve Bannon
Em 2018, ao tempo em que andavam aos beijos e abraços

No ano passado, quando doutor Bolsonaro ainda fazia campanha para a Presidência, madame foi entrevistada na televisão francesa. O assunto eram as relações entre seu partido e signor Salvini, vice-primeiro-ministro da Itália. A entrevistadora quis saber o que madame Le Pen achava do então candidato a presidente do Brasil. Sabedora de que Bolsonaro, já à época, dizia muita besteira e ofendia muita gente, ela tirou o corpo fora. «A cada vez que alguém diz coisas desagradáveis, é logo etiquetado como de extrema direita» – foi o que disse. E continuou, sutil, a insinuar que maus modos são coisa de gente subdesenvolvida. E que não compactuava com esse tipo de indivído. E tome!

Marine Le Pen deu surpreendente demonstração de coerência e de lucidez estes dias. Ela está envolvida até o pescoço na atual campanha de eleição de deputados ao Parlamento europeu. Steve Bannon – aquele teórico de extrema-direita que foi homenageado com um jantar por doutor Bolsonaro quando de sua primeira visita aos EUA – andou metendo o bedelho na campanha. Insinuou estar envolvido na luta para eleger deputados do partido de madame. Como já tinha feito com doutor Bolsonaro, madame Le Pen afastou esse cálice. Declarou, a quem quis ouvir, que Steve Bannon «não é seu conselheiro político». E tome de novo!

Como se vê, a dirigente de um dos principais partidos de extrema-direita da Europa (e do mundo) rejeita, com gesto decidido, tanto Bolsonaro quanto Bannon. Mostra que não os considera dignos de sentar-se à mesa com ela. Enquanto isso, os dois rejeitados se encontram, confraternizam e elevam o cálice à saúde. Saúde de quem mesmo?

Formar

José Horta Manzano

Forma é voz amplamente difundida nas línguas latinas. Com pequenas diferenças de grafia, aparece em todas elas. Em nossa língua, é responsável por centenas de palavras derivadas. Entre muitas outras, temos: formal, formoso, formulário, formação, formalidade, formatura, reforma, informe, transformação, uniforme, deformação, conformidade. E muitas mais.

Essa raiz nos legou boa coleção de verbos: enformar (botar na fôrma), informar, reformar, uniformizar, conformar, pré-formar, deformar, transformar, disformar. Sem contar, naturalmente, com o mais simples deles, que é formar.

O verbo formar é sempre transitivo ou pronominal. Há um único caso, bastante raro, em que é usado com valor intransitivo. É quando indica alinhar, enfileirar, dispor em certa ordem: o batalhão formou para homenagear o visitante ilustre. O uso intransitivo raramente estravasa da área militar.

Chamada d’O Globo, 17 maio 2019

A esse propósito, um cartaz revelador foi levantado por um manifestante quando dos protestos estudantis de alguns dias atrás. Está reproduzido acima destas letras. Diz lá: «Eu formei, tu formaste, mas eles não formarão se a universidade parar». O rapaz que segura o papel mostra semblante bastante convicto da justeza do próprio protesto. Pelo uso da primeira pessoa (‘eu formei’), deduz-se que ele ostenta na parede de casa um diploma universitário.

Pois é, pode até ser que nosso protestatário tenha obtido o diploma, mas fica claro que faltou a algumas aulas de Português. É de crer que o cartaz não se esteja referindo a formação de fila, mas a formação universitária. Nesse caso, o verbo formar não pode ser usado intransitivamente. No sentido de terminar o curso e diplomar-se, o verbo é reflexivo: eu me formei, tu te formaste, eles se formarão.

Parece simples pra quem sabe. Pra quem não sabe, é mistério insondável. Quando foi mesmo que a obtenção de diploma se divorciou da vontade de aprender pra se tornar um fim em si? Quando foi mesmo que formação deixou de significar construção intelectual para ser só sinônimo de diploma pendurado na parede? Algumas peças da engrenagem se perderam pelo caminho, e a máquina parou de funcionar.

Tudo ou nada já?

Vera Magalhães (*)

Num intervalo de sete dias, o presidente:

1) disse que fez um acordo com Sérgio Moro para nomeá-lo para o STF, para em seguida recuar;

2) previu um tsunami;

3) viu as investigações sobre o filho Flávio avançarem substancialmente e atingirem o resto do clã político, e reagiu a isso na base da valentia de pai;

4) minimizou os protestos contra a Educação e xingou seus participantes;

5) se enfiou numa viagem caricata a uma cidade desimportante para uma agenda irrelevante para a qual não havia sido convidado;

6) terminou a semana compartilhando corrente pelo WhatsApp com um texto que diz que sua própria pauta fracassou e que o País é ingovernável.

É preciso um talento muito específico para gastar tanta energia assim em um conjunto tão desastroso de ações.

(*) Vera Magalhães é jornalista. O texto integral foi publicado no Estadão de 19 maio 2019.

Pra estrangeiro ver

José Horta Manzano

Quem está no estrangeiro sabe a importância que o passaporte tem. Com maior razão, aqueles que vivem fora do país, como este blogueiro, conhecem o valor dessa cadernetinha agora azul (era verde). É o único documento brasileiro reconhecido em qualquer parte do planeta.

Para o expatriado, pouco interessa se a validade da carteira de motorista será prolongada. Ou se o número do documento de identidade ganhou um dígito no final. O que interessa, de verdade, é estar com o passaporte em dia. Esse é que conta.

Modelo antigo

Em artigo que escrevi sete anos atrás para o Correio Braziliense, registrei minha reclamação contra o layout da capa do novo documento. Acabava de renovar meu passaporte. Contei o susto que tinha levado ao descobrir que a palavra Mercosul aparecia na capa, antes do nome do país e em letras maiores. Reclamei do fato de me sentir brasileiro, não mercossulino. E pedi meu país de volta. Argumentei que o acordo entre vizinhos do Cone Sul era meramente alfandegário, não político.

Portanto, não fazia sentido estender a validade do bloco ao campo político. Não sei se, pelos lados do Itamaraty, alguém de bom senso escutou meu lamento. Fato é que, algum tempo depois, o layout mudou. As letras do nome ‘BRASIL’ cresceram. Apareceram até algumas estrelinhas. Mas… a menção ao bendito bloco econômico continua lá.

Modelo novo

Nos tempos do lulopetismo, com a ilusão de integração do Brasil com a vizinhança bolivariana, não valia a pena pedir que mudassem. A chance de ser atendido era nula. Agora, porém, que doutora Dilma se foi, que a Venezuela derreteu e que uma Argentina de chapéu na mão se prepara a atirar-se em braços kirchnerianos, talvez seja chegada a hora.

Repito, então, aos doutores que têm a caneta na mão. Mercosul (que, para se conformar com nossa ortografia, deveria estar escrito Mersossul, com dois esses) é agrupamento com fins comerciais. Em outra praia está a União Europeia que, como verdadeira união política, é mencionada no passaporte de todos os Estados-membros.

Não é nosso caso. Portanto, está passando da hora de modificar a capa de nosso passaporte. Que se elimine Mercosul. Não reclamarei se aproveitarem a ocasião pra tirar também ‘república’ e ‘federativa’. O nome do país é Brasil, como é conhecido no mundo todo. Passaporte é pra ser visto no estrangeiro, detalhe que, curiosamente, parece não vir à mente dos que concebem a capa do documento brasileiro.

Chicanas de lá e de cá

José Horta Manzano

Cesare Battisti – lembra dele? É aquele italiano que, escapando à Justiça de seu país, tinha conseguido abrigo e asilo no Brasil de Lula, apesar de condenado à prisão perpétua por envolvimento em quatro homicídios. É aquele cidadão que, ao ver que o lulopetismo estava prestes a cair, sentiu que a coisa estava ficando complicada e tratou de correr do Brasil pra refugiar-se na Bolívia.

Pouco adiantou o expediente. O homem foi descoberto em Santa Cruz de la Sierra por policiais italianos que o denunciaram às autoridades locais. Em três tempos, a Justiça boliviana tomou decisão radical. Em vez de devolver Battisti ao Brasil, entregou-o diretamente aos italianos que, rapidinho, o carregaram para a Itália sem ao menos fazer escala no Brasil. A entrega do hóspede indesejado foi oficialmente registrada como expulsão.

Ficou claro que tanto Roma quanto La Paz tinham entendido que seria um risco enorme e desnecessário fazer Battisti transitar pelo Brasil. O perigo era de que a lei brasileira, permissiva e rica de sinuosas chicanas, se interpusesse. A novela da entrega do fugitivo às autoridades italianas podia, nesse caso, arrastar-se por anos. E no final, com o STF que temos, o risco de o terrorista ser de novo solto era real. Pra fugir desse perigo, os italianos convenceram a Bolívia a entregar-lhes o prisioneiro em mãos. E assim ocorreu. Se Roma ofereceu alguma contrapartida a La Paz, ninguém ficou sabendo.

Desde janeiro, Battisti está encarcerado numa prisão de segurança máxima na ilha da Sardenha. Seus advogados italianos apresentaram um pedido de recálculo da pena. Alegam que, para o cálculo, o que tem de valer é o acordo firmado entre a Itália e o Brasil pelo qual a pena do criminoso seria comutada de prisão perpétua para trinta anos de reclusão. Já fizeram até as contas. Adicionando o tempo em que signor Battisti esteve preso preventivamente – na Itália, na França e no Brasil – chegam a quase dez anos.

Abatendo esses dez anos dos trinta combinados entre a Justiça brasileira e a italiana, a pena residual é de meros vinte anos. Sexta-feira passada, 17 de maio, a defesa de Battisti foi convocada para uma audiência na Procuradoria-Geral de Milão. Expuseram sua tese de fazer valer o acordo de extradição firmado entre Brasil e Itália. O procurador-geral, no entanto, não acolheu a argumentação. Retrucou que, no momento da prisão, o condenado estava na Bolívia e não no Brasil. O acordo de extradição só poderia valer se o interessado estivesse no território do país signatário. Dado que não estava, o Brasil passou a ser, nesse episódio, apenas um «terzo osservatore estraneo – um observador externo estranho ao caso».

A decisão final ainda está pendente, mas tudo indica que a defesa de Battisti vai perder a causa. Se assim for, o condenado deverá cumprir a pena de prisão perpétua. Pensando bem, signor Battisti fez tudo errado. Tivesse ficado no Brasil, tranquilo em casa à espera da PF, sua defesa poderia ter acionado o cipoal de chicanas de que a lei brasileira dispõe. A batalha judicial podia se arrastar por algum tempo, com boas chances de o processo ser sorteado pra ser julgado por aquela turma do STF que gosta de soltar bandidos. Ainda que tudo desse errado e ele fosse despachado à Itália, seu tempo de encarceramento não poderia exceder 30 anos, em acatamento do acordo de extradição. Aí, sim, o pedido de recálculo de tempo teria boas chances de ser acolhido.

O desfecho do caso Battisti deixou um bocado de gente com gosto amargo na boca. Por um lado, o próprio terrorista, que pulou da panela direto para o fogo. Por outro, doutor Bolsonaro, que viu escapar-se-lhe das mãos a ocasião de aparecer como aquele que entregou o bandido à Itália. Até o STF recebeu uns respingos. Pra bom entendedor, ficou claro que a Itália organizou resgate do prisioneiro sem fazer escala no Brasil justamente pra evitar as chicanas brasileiras e a exagerada brandura com que nosso tribunal maior às vezes trata bandidos.

O patinete e o capacete

José Horta Manzano

Uma jovem carioca resolveu dar uma volta de patinete, desses de aluguel. Era a primeira vez que subia naquela geringonça. Meio insegura, bobeou, bambeou, bamboleou e se esborrachou no chão. Caiu feio. Quebrou dois dentes e ficou dias de beiço inchado. A aventura deixou-a com uma raiva danada. «– Como é que permitem não só chegar perto, mas subir num veículo tão perigoso?» Fosse a moça uma cidadã comum, a conversa teria morrido ali, assim que tivesse passado a raiva. Acontece que ela é deputada estadual, uma eleita do povo.

Assim sendo, deixou-se levar pela onda legislatória que assola o país e teve a ideia de regulamentar, por conta própria, o uso de patinete no seu estado. Pra bem legislar, nada melhor que criar gargalos e entraves. A parlamentar arquitetou as normas que lhe pareceram indispensáveis e apresentou projeto de lei tornando obrigatório o uso de capacete pra passear de patinete. No entanto, a lei imaginada pela moça contém um detalhe curioso: no caso de veículo de aluguel, caberá ao proprietário fornecer o equipamento. Assim, na prática, patinete de aluguel terá de ser alugado com capacete. Os dois juntos.

No Rio de Janeiro, os empresários do ramo estão inquietos. Se a proposição da deputada passar, o negócio de alugar patinete pode se tornar inviável. De fato, como fazer para acoplar um capacete a cada veículo sem risco de furto? Não parece, mas o investimento, desproporcional ao valor do negócio, periga inviabilizar a operação. Além disso, um perigo está embutido. Dado que o projeto de lei não detalha as características técnicas do equipamento, quem impede o dono do negócio de fornecer capacetes de baixa resistência ou até de papelão?

Acredito, sim, que patinete pode ser perigoso. Não só para o patinetista, mas principalmente para incautos pedestres que lhe possam surgir pelo caminho. Acredito, sim, que o capacete obrigatório é medida de bom senso. O que me incomoda no projeto da deputada é a obrigatoriedade feita ao dono do equipamento. Por que raios caberia a ele – e não ao usuário – tomar essa precaução?

Sabe-se que, em caso de acidente com esse tipo de veículo, muita fratura exposta poderia ser evitada com o simples uso de protetores de perna, tipo botas altas de cano duro. Caberia, porventura, ao fornecedor do patinete deixar botas à disposição do usuário?

Sabe-se também que tomar chuva fria com o corpo transpirado é perigoso e pode causar resfriado, gripe e pneumonia. Caberia, porventura, ao fornecedor do patinete deixar guarda-chuvas à disposição do usuário?

Convenhamos, minha gente: há limite pra tudo. Espero que os parlamentares do Rio se abstenham de aprovar a proposta. Em princípio, cada um tem de cuidar da própria segurança. Não é boa prática empurrar sistematicamente a terceiros a obrigação de nos proteger.

Chute nos aliados

Ruy Castro (*)

Os aliados de Jair Bolsonaro na campanha eleitoral deviam ter desconfiado quando, assim que foi empossado, ele jogou no mar seu amigo, seguidor e devoto Magno Malta. Todos se lembram da importância de Magno Malta, então senador pelo Espírito Santo, na vida do candidato. Quando Bolsonaro levou a facada em Juiz de Fora, foi Magno Malta quem se debruçou sobre ele no leito do hospital, quase o asfixiando, e fez uma reza braba – digo, oração – pela sua recuperação. O país inteiro assistiu. Magno Malta olhou para o teto em busca de Deus e, com seus poderes de pastor evangélico e cantor de pagode gospel, só faltou ordenar a Bolsonaro: “Levanta-te e anda! Levanta-te e anda!”.

Seja como for, deu certo. Bolsonaro levantou-se, andou e, um ou dois dias depois da posse, chutou Magno Malta de volta para o limbo de onde ele nunca deveria ter saído – sem mandato, por não ter sido reeleito senador por seu estado, e sem o ministério que esperava ganhar por sua devoção. Dura perda para quem, um dia, sonhara até ser o vice de Bolsonaro.

Para Bolsonaro, aliado de campanha é uma coisa e, no governo, outra. E isso vale para todos os escalões. Sergio Moro e Paulo Guedes, por exemplo, eram decisivos para elegê-lo, daí os epítetos de superministro para o primeiro e de Posto Ipiranga para o segundo. Na prática, Bolsonaro tem se dedicado, com sucesso, a sabotar um e outro, com declarações que atrapalham que realizem seus projetos. Bolsonaro não vê a hora em que eles, tristinhos, peçam demissão.

Bolsonaro parece trabalhar contra si próprio, ao deixar que o Congresso derrube seus decretos, o Judiciário lhe faça cara feia e os militares se magoem com os insultos que recebem. Mas só parece. O que ele quer é que todos saiam da sua frente para que, dizendo-se incompreendido, possa governar com os filhos e “com o povo”, através das redes sociais.

Resta ver se combinou com o povo.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.