A madeira e a lenha

José Horta Manzano

O site Metrópoles, plataforma de informação, traz hoje notícia desnorteante. A história começa pelos anos 1980. Sob os céus cinzentos e pesados da Brasília de então, foram plantadas algumas centenas de hectares de pinheiros, espécie não nativa mas adaptável ao bioma da região.

De lá pra cá, as árvores cresceram bonito e formaram um bosque frondoso, sobressaindo da vegetação local como um espaço exótico que faz esquecer os calores do cerrado e se imaginar imerso no frescor das serras do Sul.

Durante quarenta anos foi assim. Mas tudo tem um fim, Seu Valentim. O Instituto Brasília Ambiental, uma espécie de Ibama local, é responsável pela manutenção da Floresta Distrital, que cresce naquele entorno do Lago Paranoá. Esse instituto, por razões que a razão tem dificuldade em explicar, decidiu que um bosque de pinheiros francamente não combina com o bioma local.

De fato, pinheiro destoa no meio da vegetação do cerrado. E daí? O pequeno pedaço de floresta de coníferas (473 hectares) não faz mal a ninguém, não atrapalha o crescimento de outras árvores em seu entorno, só encanta os olhos de quem o visita.

Nada feito. O Instituto responsável bateu pé firme na solução que lhe pareceu a melhor: derrubar aquela floresta de coníferas para extirpar as intrusas. E depois, como é que fica? Depois a gente vê o que faz.

E assim foi feito. Motosserras (daquelas com pneus da altura de um homem) foram chamadas e, em três tempos, botaram abaixo os pinheiros. A madeira? Parte vai para a serraria; o resto vai virar lenha(!).

Como se sabe, a queima de lenha é responsável pelo aumento dos gases de efeito estufa. Portanto, nossa floresta deixou de capturar e passou a emitir esses gases. Bonito!

Fico pensando (e, quando penso, há sempre o risco de brotar alguma ideia maquiavélica). A floresta de pinheiros tinha comemorado seus 40 aninhos. Brasília já fez 60. Todos hão de concordar que tampouco a nova capital da República faz parte do bioma do cerrado. Foi ali plantada como um corpo estranho, uma brotoeja trazida de fora, que significou a perda de hectares de vegetação logo substituída pelo concreto.

O distinto leitor e a encantadora leitora já entenderam aonde quero chegar. É isso mesmo. Está na hora de demolir a Brasília oficial, aquelas fieiras de prédios de estilo soviético tardio, que envelheceu mal. Que seja tudo varrido e que o espaço seja devolvido ao bioma originário, campestre, com flores e passarinhos. E, sobretudo, apolítico.

E para onde vamos mudar a Brasília oficial? Pois faremos como foi feito com os pinheiros: uma parte vai para a serraria, o resto vira lenha. Com tanta cara de pau que tem por ali, há de queimar com gosto.

Aproximação

José Horta Manzano

A chamada d’O Globo me chamou a atenção.


Em viagem, Lula busca aproximar Brasil dos países árabes


Dizem que a ordem dos fatores não altera o produto. Pois bem, se essa frase fosse uma continha de vezes, a inversão de fatores faria uma sutil diferença sim, senhor. Veja só.


Em viagem, Lula busca aproximar os países árabes do Brasil


Então, deu pra notar?

Dizer que o Lula está se abalando de Brasília até as Arábias para tentar aproximar o Brasil dos países do Médio Oriente me incomoda um pouco. Me faz pensar no conhecido “complexo de vira-lata”. Fica a impressão de estarmos batendo à porta dos milionários e pedindo pra nos aceitarem. “Você me aceita no seu grupo?”. Humilhante.

O que Lula deveria estar fazendo – e na certa é o que vai fazer – é marquetear o Brasil. Mostrar aos estrangeiros as vantagens que eles podem conseguir caso invistam aqui, mandem seus dólares, abram empresas, construam casas de veraneio aqui, paguem impostos aqui, comprem mais frango.

O fato de não haver pendências nem contencioso entre Brasil e países árabes é uma bênção. Lula tem de dar carona a uma equipe de camelôs de luxo, com prática em vender o que o cliente nem sempre quer comprar.

Vamos fazer com que os países árabes se aproximem do Brasil e descubram as vantagens que essa aproximação vai lhes trazer. É o que se quer.

Vaidade

José Horta Manzano

Os seguidores do “mito” são de uma ingenuidade comovente. Acreditam em qualquer coisa que se diga. Encampam qualquer notícia, desde que venha de fonte amiga, como grupo de zap-zap por exemplo. Se a origem lhes parecer confiável, engolem sem filtro, sem raciocinar, sem analisar.

Se circula no grupo a notícia de que convém apelar para extraterrestres, já vão fazendo sinais para o alto procurando um E.T. Se Seu Mestre disse que as urnas são viciadas, já espalham a informação como se fosse verdade bíblica. Esses indivíduos fazem jus à apelação “zumbis”. Embora sejam do gênero humano, comportam-se como irracionais.

Aderem ao “mito”, sim, mas não abandonam o mundo como quem entra para o convento. A par da devoção à seita, mantêm uma vida secular que os faz parecerem normais. Como todos os humanos, conservam qualidades e defeitos. A vaidade está entre essas características.

Será a vaidade uma qualidade? Um defeito? A pergunta é quase filosófica. Não me cabe definir. Na vida de todos os dias, a vaidade pode ser bem útil. É ela que faz o pesquisador se esforçar para apresentar um resultado fora de série, de olho nos louros. Serve também para incentivar um artista a dar o melhor de si em busca dos aplausos. Mas a vaidade tem seus limites.

Imaginem o distinto leitor e a graciosa leitora que o assalto ao centro do poder, que sacudiu Brasília domingo passado, tivesse ocorrido 20 anos atrás, numa época em que ninguém tirava foto com telefone celular. Tendo em mente que o quebra-quebra se desenrolou longe de repórteres e cinegrafistas, simplesmente não haveria imagens.

Sem imagens, seria praticamente impossível provar a presença de quem quer que seja. As autoridades encarregadas de estabelecer responsabilidades estariam de mãos atadas. Mas a vaidade – e a ingenuidade – dos participantes entregou o ouro.

Peito aberto e rosto descoberto, todos fizeram questão de se identificar. Acreditando nas ‘fake news’ que davam como certa a intervenção das Forças Armadas, desinibiram-se. Quebraram, arrebentaram e roubaram à farta.

Só que… deu errado. Em vez de Forças Armadas, quem agiu foram as Forças da Ordem. Confiscados, os telefones deduraram toda a patota. Se bem que nem precisava confiscar celular, que muita gente fez “laives” da destruição.

Antigamente, nenhum criminoso queria saber de publicidade. Quanto mais longe dos holofotes, mais seguro operava. Nossos “zumbis” devem imaginar que são estrelas do cinema. Ainda não entenderam que as coisas podem dar errado e, nesse caso, o melhor é fugir sem deixar rastro.

Por não terem entendido, estão agora sendo apanhados por terem sucumbido à vaidade de postar laives e selfies mostrando sua participação nos atos criminosos.

A agressão à democracia foi longe demais. Quem ajudou a espalhar o caos vai ter de responder. Colhido pela polícia, cada participante não vai nem precisar tirar foto na delegacia – selfies coloridos já circulam pelas redes.

Perdel mané

PERDEL MANÉ

José Horta Manzano

Muitos comparam a depredação de prédios públicos ocorrida ontem em Brasília com os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021, quando arruaceiros, agindo sob a égide de Trump, invadiram e devastaram o Capitólio de Washington. Estão errados.

Os pontos comuns entre os dois quebra-quebras são dois. Em primeiro lugar, não foram atos fortuitos nem espontâneos, mas orquestrados e dirigidos. Em segundo lugar, foram ambos montados “em defesa” de um ex-presidente que, embora derrotado nas urnas, se debatia para voltar ao poder. As semelhanças terminam aqui.

O ataque ao Capitólio tinha um objetivo definido. A ideia era impedir que o Congresso, reunido naquele momento, certificasse a eleição do presidente Biden. Já a agressão ao centro do Poderes de nossa capital federal não teve pretexto. Foi barbárie em seu estado puro, organizada por mentes malignas e executada por mercenários broncos.

Ninguém me convencerá de que os integrantes daquela turba – que já chegaram com paus, marretas e bombas de tinta spray – eram cidadãos tranquilos que estavam passeando com a família na Praça dos Três Poderes quando, de repente, largaram mulher e filhos e correram pra arrebentar o palácio mais próximo. Não. São mercenários a soldo de gente poderosa, que tem interesse em ver o circo pegar fogo.

Aos investigadores, resta perguntar “Cui bono?” – a quem interessa o crime. Com tantas pistas e tantas testemunhas, não há de ser difícil descobrir.

Aos planejadores, resta o exemplo de como não se deve agir. É verdade que as autoridades que cuidam da Segurança Pública atravessam um momento delicado, em que os titulares antigos já se foram, e os novos ainda estão em fase de instalação. Que se instalem rapidamente e que se organizem.

Os ataques de ontem fornecem um caminhão de informações preciosas. Que sejam utilizadas para evitar que tais ataques se repitam.

Arruaceiros de lá e de cá

José Horta Manzano

Aconteceu em maio de 2003. A Cúpula Anual do G8 estava para realizar-se na cidade francesa de Evian, estação de águas à beira do Lago Leman, localidade bastante turística. A reunião de líderes dos países mais importantes incluía a Rússia conduzida por um Putin que ainda não tinha mostrado seu lado B. Só depois da anexação da Crimeia é que a Rússia seria expulsa e o bloco passaria a chamar-se G7.

Durante os três dias da Cúpula, a cidadezinha de Evian estaria totalmente isolada do mundo, com entradas e saídas rigorosamente controladas por militares armados vindos da França inteira. Só habitantes e visitantes credenciados teriam o direito de entrar. Helicópteros e drones sobrevoariam a localidade. Afinal, eram figurões os que se reuniriam: Jacques Chirac, Vladimir Putin, Silvio Berlusconi, George W. Bush, Tony Blair & alia.

Grupos de jovens, que se autodefiniam como “anti G8”, preparavam manifestações pacíficas. A sabedoria popular, que não costuma falhar, afirma que “é conversando que a gente se entende”. É por isso que até hoje não consegui captar o objetivo daqueles manifestantes que viam com maus olhos o diálogo entre líderes. Será que preferiam que eles se estapeassem ou botassem tanques nas ruas?

Na impossibilidade de penetrar em Evian, onde se realizava a Cúpula, os jovens idealistas escolheram manifestar-se em Genebra (Suíça), cidade bem maior, situada a uns 50 km de distância, à beira do mesmo lago. Os manifestantes marcaram passeatas para os três dias de duração da cimeira. Eram marchas simbólicas com cartazes, megafone e palavras de ordem. Acreditavam que, quando aparecessem nas manchetes e no jornal da tevê, sua visão “anti G8” tocaria corações mundo afora.

Mas nenhuma felicidade é perfeita nem eterna. Grupos de arruaceiros, ao tomar conhecimento das passeatas, sentiram que era chegado o momento de armar um bom quebra-quebra em Genebra. Desordeiros vieram até do estrangeiro – havia alemães, franceses, austríacos, italianos – todos armados de tacos de beisebol e coquetéis Molotov. Um primor.

Vários comerciantes genebrinos, sabedores de que estava para chegar uma horda de agitadores violentos, protegeram a vitrina com tapumes de madeira. Mas nem todos tomaram essa providência. Genebra é uma cidade grandinha, impossível de ser trancada. O fato é que os baderneiros se instalaram na cidade.

Já na véspera da abertura da Cúpula, os profissionais do quebra-quebra entraram em ação. Aproveitaram do escuro da noite para agir. Encapuzados e mascarados, quebraram vitrines, incendiaram lojas, destruíram mobiliário urbano. Foi uma noite de caos. A polícia não pôde fazer muito. Os arruaceiros sempre escolhem agir em campo descoberto, de onde possam escapar rapidamente; nunca se arriscam a jogar bomba em beco sem saída.

E assim continuaram pelas noites seguintes. Hotéis foram atacados e restaurantes McDonald’s, depredados. Os agressores são desocupados sem ideologia: vêm de longe e destroem pelo simples prazer de destruir. Assim que a reunião do G8 terminou, desapareceram. E nunca mais se ouviu falar deles.

Outro dia, em Brasília, quando nosso presidente eleito foi diplomado, arruaceiros tupiniquins decidiram agir. Aproveitando que um punhado de apóstolos do bolsonarismo ainda acampa nas ruas choramingando por um milagre, vestiram-se de amarelo e promoveram uma noite de horror.

Me fizeram lembrar de Genebra 2003 – com eficácia menor, porém. Agiram em campo aberto: posto de gasolina, viaduto, esplanada diante de instituições. São lugares de onde se pode escapar rápido, caso a situação aperte.

A população vê, nesses agressores, bolsonaristas enfurecidos. Já os bolsonaristas acreditam que os autores do quebra-quebra sejam petistas infiltrados.

É difícil dizer com certeza, mas não é impossível que tenham sido agitadores compulsivos, que não precisam necessariamente ser remunerados. Destroem pelo prazer de destruir – o que não os impede de ter preferências políticas. Quais são? Só Deus sabe.

Viva o Brazil!

Brasil em 1821, às vésperas de se tornar independente.
Repare que o nome do futuro país se escrevia com Z

José Horta Manzano

Já vi gente irritada por ter visto a palavra Brazil grafada com Z em textos escritos em inglês. Há quem reclame e quase se ofenda com isso. Se pudessem, exigiriam que o nome de nosso país fosse sempre escrito com S.

Sem ranzinzice nem histeria, vamos ao fundo da questão.

Foi no século 19 que as colônias espanholas e portuguesas da América alcançaram independência. Foi uma atrás da outra. Naquela altura, o resto do mundo teve de lidar com o nome de países novos: Argentina, México, Peru, Nicarágua e muitos outros.

Entre eles, estava o nosso. Só que tem uma coisa. Nossa grafia daquele tempo não era normatizada (engessada) como hoje. Eram poucos os que sabiam escrever, e cada um deles grafava como lhe parecia adequado.

Mas o nome do país era unanimidade: todos grafavam com Z (Brazil).

Nosso primeiro nome oficial por extenso foi Imperio do Brazil; em seguida, tivemos os Estados Unidos do Brazil. O mundo viu, anotou, copiou e escreve até hoje Brazil com Z.

Nos dois séculos que decorreram desde a independência, nós mexemos na ortografia oficial inúmeras vezes. Faz já algumas décadas que ficou combinado que o nome do país deve se escrever com S.

Mas como fazer para avisar ao resto do mundo que nossa ortografia mudou?

Pensando bem… será que vale a pena explicar que limpeza é com Z, mas despesa é com S?

Não é moleza… (Com Z)

Observação interessante
Em qualquer texto em inglês, o nome da capital, Brasília, aparece sempre com S. Por quê será?

A razão é simples: Brasília, que então tinha o apelido de Novacap, foi apresentada ao mundo em 1961 grafada com S. Cada língua adaptou o original a sua escrita própria. Muitas ficaram com o S mesmo; entre elas, o inglês.

Falta ensinar aos ingleses que nossas atuais regras mandam acentuar o i do meio. Ou quem sabe será melhor esperar até a próxima reforma ortográfica? Assim, evita-se ficar incomodando o tempo todo.

Cidades-irmãs

José Horta Manzano

Nós dizemos cidades-irmãs, enquanto os lusos preferem cidades gêmeas ou cidades geminadas. Mas a ideia é a mesma. A diferença aparece porque, no Brasil, traduzimos do inglês “sister cities”, ao passo que os portugueses se basearam no francês “villes jumelées”.

Embora haja menção de que algumas cidades, já na Idade Média, tenham concluído pacto de defesa mútua, o conceito só se difundiu a partir de meados do século 20.

De fato, a Segunda Guerra tinha deixado, entre outras desgraças, ressentimentos profundos. Num esforço para aplainar esses sentimentos negativos entre povos vizinhos, diferentes estratagemas foram bolados.

A partir dos anos 1960, assim que a tecnologia de tevê permitiu transmissões internacionais ao vivo, foram organizadas competições entre cidades de diferentes países. Eram brincadeiras ao estilo pastelão, com jogos realizados diante público entusiasta, cada um torcendo por sua cidade. O programa Intervilles, da televisão francesa, ficou 50 anos em cartaz.

Outra ideia posta em prática a partir dos anos 1970 foi a difusão do conceito de cidades-irmãs. Longe do propósito medieval de proteção mútua, a moderna geminação de cidades é um meio de aproximar cidades, geralmente de diferentes países. Acordos de trocas culturais, de promoção turística, de aprendizado de línguas, por exemplo, estão entre os objetivos desses acordos.

Existe até um site especializado no assunto – uma espécie de Tinder de cidades, vilas e vilarejos que buscam um par. O site, financiado pela União Europeia, está disponível em 20 línguas.

Hoje existem centenas de cidades-irmãs ao redor do globo. É comum ver um “casamento” entre cidades de importância equivalente (São Paulo + Milão). Há também cidades irmanadas por terem nome igual ou semelhante (Osasco/SP + Osasco/Itália). Outras se sentem próximas por causa de origem comum. É o caso de Pomerode (SC), colonizada por imigrantes da região da Pomerânia (Alemanha); a cidade catarinense firmou acordo de geminação com a cidade de Torgelow, que fica na Pomerânia.

A China, que não perde ocasião para parecer menos distante, menos exótica e mais amada, tem concluído pactos de geminação com muitas cidades do planeta todo. Só no Brasil, a lista de cidades-irmãs que juntam uma chinesa com uma brasileira já se aproxima de 50 “casamentos”.

No Brasil, no concurso “Quem tem mais irmãs?”, o Rio de Janeiro ganha de lavada. Já firmou 56 parcerias internacionais, sem contar as nacionais. O placar de Brasília é bem mais modesto; tem acordos com uma dezena de parceiras. Mas uma peculiaridade é comum tanto à atual capital (Brasília) quanto à antiga (Rio de Janeiro): ambas são cidades-irmãs de Kiev, capital da Ucrânia.(*)

Curiosamente, o Rio e Brasília não somente são irmanadas por terem ambas sido capitais do Brasil; dado que têm uma irmã em comum (Kiev), são irmãs duas vezes.

Neste momento, a Ucrânia está passando um mau bocado. Estava quietinha no seu canto, quando se viu invadida por um inimigo poderoso, que foi entrando sem pedir licença. Não se pode dizer que a Rússia tenha comportamento cavalheiro. Ataca escolas, destrói hospitais, derruba prédios de apartamentos. Está utilizando a Ucrânia até como campo de teste de mísseis de última geração.

Nessa briga de gente grante, o Brasil não tem força bélica nem peso econômico capazes de fazer cócegas no agressor. Apesar de nosso estúpido presidente ter declarado, às vésperas da invasão, sua “solidariedade à Rússia”(sic), o povo brasileiro está assistindo com horror ao suplício que Putin vem infligindo à população do país invadido. Solidariedade, hein? Xô!

Quando se assina acordo de geminação, não é para ter mais um diploma pra pendurar na parede da prefeitura. É nas horas ruins que se conhecem os verdadeiros amigos. Assim que as coisas se acalmarem, seria ótima ideia as autoridades municipais do Rio e de Brasília entrarem em contacto com a prefeitura de Kiev. Se não souberem o que dizer, que pelo menos ofereçam seus préstimos. Devastada, a infeliz Ucrânia precisa de tudo. Toda colaboração será bem-vinda.

Quando isso tudo terminar, vai sobrar um país a ser recontruído. Kiev é uma cidade-irmã à qual o Rio e Brasília têm de estender a mão.

(*) Kiev é transliteração (transposição para caracteres latinos) do nome da cidade tal como é escrito em russo. Os ucranianos ficam felizes quando veem o nome de sua capital transposto da forma ucraniana, que dá Kyiv. Só que, no Brasil, a forma Kiev já está demais cristalizada. Mudar agora fica complicado. Então, vamos de Kiev mesmo.

Lista das cidades-irmãs do Brasil.

Neologismo

José Horta Manzano

“Trumptruppen”

Neologismo surgido na imprensa italiana em janeiro passado, logo em seguida ao assalto que os apoiadores incondicionais do presidente em fim de mandato deram ao Capitólio de Washington.

A formação da palavra é deliciosamente híbrida. O primeiro elemento (Trump), evidentemente, é o sobrenome do presidente americano. Já a segunda parte (truppen) não vem da língua inglesa, tampouco da italiana. Vem do alemão. Truppen é o plural de Truppe, que significa tropa.

Portanto, “Trumptruppen” dá nome àquela horda de gente fina que tomou de assalto o Congresso dos EUA em 6 de janeiro passado. São as tropas de Trump. Essa repetição de “tr” torna o som da expressão cortante como rajada de metralhadora. Combina com Trump, um personagem pesadão.

Além de provocar uma onomatopeia estimulante, o alemão Truppen soa mais belicoso que o inglês troops.

O sonho de nosso capitão tupiniquim é incentivar a criação de um similar nacional que possa repetir, em Brasília, a façanha da tropa original americana. Não será fácil.

Forjados pelo clima rude e pelo vento cortante das grandes pradarias, os integrantes das “Trumptruppen” são aguerridos. Já nossos devotos, moldados pelo mormaço tropical, são menos convictos que os originais.

Não precisa ter bola de cristal. Pode-se apostar que não veremos nunca as “Bolsonarotruppen” em ação.

Loucura?

José Horta Manzano

Cafonice não dá cadeia. Burrice não dá impeachment. Mas os dois pecados juntos dão mistura explosiva. Ostentação dá inveja. Sinais exteriores de riqueza incompatível com as posses podem render processo.

O senador Bolsonarinho deveria ter pensado nisso antes de cometer a imprudência que talvez fique na história como o Fiat Elba do clã – aquela gota d’água que faltava pra fazer transbordar um pote até aqui de mágoa.

O distinto leitor já deve estar a par da enormidade que veio a público hoje: a mansão de 6 milhões comprada pelo primogênito do presidente. Tudo já foi dito sobre o caso. Sabe-se que, com o salário que recebe, não tem como aguentar a prestação mensal do empréstimo. Sabe-se que a casa fica no bairro mais caro de Brasília e tem 1.100m2 construídos num terreno de 2.400m2. Sabe-se que, embora o imóvel esteja em Brasília, a escritura não foi passada lá, mas em Brazlândia, uma cidadezinha do cinturão agrícola da capital. Sabe-se que colegas do senador, quando informados, mostraram-se incrédulos; não podiam acreditar que o Bolsonarinho tivesse cometido aquela ‘loucura’ justo na hora em que ele tenta reverter sua situação na Justiça.

O caso dá margem a algumas reflexões.

  • Comprova a inesgotável capacidade do clã Bolsonaro de criar armadilhas para si mesmo.
  • Demonstra que, assim como o pai, o senador também vive numa bolha, desconectado da realidade, insensível à insatisfação que fermenta no país real.
  • Deixa claro que debaixo desse angu tem carne. Quando se compra um imóvel de 6 milhões sem ter dinheiro declarado é porque há dinheiro escondido.
  • O fato de o caríssimo imóvel estar em Brasília informa que o senador, que não tem raízes na capital do país, conta com a permanência do pai na presidência por longo tempo.
  • O fato de os investimentos do clã se limitarem a compra de imóveis no Brasil é indicação da falta de imaginação dessa gente.
  • Há hipótese mais dramática. Os membros do clã parecem resignados a passar o resto da existência em território nacional. De fato, todos eles – mas principalmente o pai – terão de tomar muitíssimo cuidado ao pisar solo estrangeiro. Pode(m) ter de aparecer enjaulado(s) num tribunal de Haia, a enfrentar processo por crime contra a humanidade.

Vistas essas considerações, não dá pra entender por que o Bolsonarinho escolheu Brasília pra empatar sua fortuna.

ou também

Vistas essas considerações, pra entender por que o Bolsonarinho escolheu Brasília pra empatar sua fortuna.

Seja qual for a hipótese verdadeira, a conclusão final é sempre a mesma: a família Bolsonaro dá a prova definitiva de que todos eles padecem profundo déficit de inteligência.

Cada um procura sua turma

José Horta Manzano

Monsieur Nicolas Dupont-Aignan, deputado francês, já se candidatou duas vezes à Presidência de seu país. É candidato nanico, mas continua insistindo. Segue a linha política dita «soberanista», doutrina que pleiteia a saída da França da União Europeia, o abandono do euro e o retorno ao franco, o controle rigoroso das fronteiras nacionais, o isolacionismo. Em resumo, o receituário completo da extrema-direita, um belo programa.

As regras eleitorais francesas impõem que cada candidato à Presidência financie os próprios gastos de campanha. Em seguida, somente os que obtiverem pelo menos 5% dos votos válidos serão reembolsados com dinheiro público. Quanto aos outros, ficam chupando dedo. Monsieur Dupont-Aignan nunca atingiu a marca mínima; portanto, nunca foi ressarcido. Parece-me uma boa regra, na medida que inibe a multiplicação de candidaturas nanicas – aquele pessoal que só se candidata de olho no financiamento.

No primeiro turno das eleições de 2017, o deputado ficou em 6° lugar entre 11 concorrentes. No segundo turno, apoiou Madame Le Pen, candidata que também adota o ideário nacionalista e isolacionista característico da extrema-direita. No confronto final, de cada 3 eleitores, 2 votaram em Macron enquanto só 1 preferiu Madame.

A próxima presidencial francesa será, como a nossa, em 2022. Com bastante adiantamento, Dupont-Aignan se prepara para a terceira tentativa. Com esse propósito, esteve ontem de visita a Brasília, onde teve uma audiência de 15 minutos com doutor Bolsonaro. Aproveitou a ocasião para se encontrar com um dos bolsonarinhos, aquele mais deslumbrado, que um dia chegou a imaginar-se embaixador em Washington.

Já se sabe que, com covid ou sem ela, nenhum estrangeiro importante quer ser visto ao lado de Bolsonaro. Nenhuma personalidade de destaque visita mais Brasília. Nosso presidente, por seu lado, não recebe mais convite para visitar país nenhum. O encontro com o deputado francês deixa no ar um gosto meio amargo de reunião de segunda classe, do tipo «quem não tem cão caça com gato».

O salário do prefeito

José Horta Manzano

Levantamento do Estadão informa que um terço dos municípios brasileiros não gera receita suficiente para pagar o salário do prefeito e dos vereadores. E como sobrevive a administração dessas unidades? Ora, de repasses vindos da União.

Essa incapacidade de gerar receita atinge cidades pequenas, de menos de 20 mil habitantes. Muitas delas foram criadas nos últimos 30 anos, por desmembramento de municípios maiores.

A criação de municípios por fragmentação raramente responde a demanda social ou econômica. Os interesses em jogo costumam ser políticos. Novo município corresponde a novos cargos: prefeito, vereadores, secretários, pessoal administrativo. É o trenzinho da alegria que se põe em marcha. Se faltar dinheiro, não faz mal: Brasília manda. E nós todos pagamos a conta.

E assim segue a vida em nossa República de bananas e trenzinhos. Agora mesmo, está em tramitação no Congresso um projeto para criação de 400 municípios(!). O assunto tinha sido enterrado no governo Rousseff, mas voltou agora. E periga ser transformado em lei.

Câmara Municipal de Ouro Preto, vista por Carl Hermann Conrad Burmeister (1807-1892), multifacetado naturalista, viajante e desenhista alemão, que visitou o Brasil nos anos 1850.

Quanto à gestão dos municípios, seria boa ideia adotar, no Brasil, um preceito que vigora em outras terras. Parte-se do conceito de que as funções de prefeito e de vereador ‒ em municípios pequenos, naturalmente ‒ não são cargos de tempo integral. São tarefas de que se pode dar conta a tempo parcial. E sem remuneração.

Essas funções administrativas são exercidas por cidadãos de boa vontade, que desejam sinceramente doar parte de seu tempo à coletividade. Falo de voluntários dispostos a pôr-se a serviço dos comunícipes pelo prazer de servir.

Por um lado, tal sistema afasta cidadãos que buscassem somente um cabide de emprego; por outro, atrai gente bem-intencionada. O prefeito dá expediente durante um par de horas, duas ou três vezes por semana. A Câmara Municipal só se reúne à noite, depois que todos já terminaram a jornada de trabalho, com frequência de uma ou duas sessões por mês. Para gerir um pequeno município, esse ritmo é suficiente.

A adoção dessa prática permite que os repasses de Brasília, se ainda necessários, sejam dirigidos a cobrir as reais necessidades do município. É finalidade mais nobre do que engordar o bolso de suas excelências.

Massagem no tribunal

José Horta Manzano

Desigualdade é marca distintiva do Brasil. Quando se fala nela, vem logo à mente a imagem da sociedade segmentada entre ricos e pobres. Mas a disparidade não se limita a isso. O mal é muito mais amplo. Diferenças de tratamento, de direitos, de oportunidades se infiltram pelos recônditos do corpo social e atigem a medula da nação. Não acompanham necessariamente a linha divisória entre ricos e pobres. O buraco é bem mais profundo.

Isonomia é palavra bonita. Mas permanece na esfera da teoria. Serve pra enfeitar um discurso aqui, uma lei ali. Não tem tradução na prática. Estamos tão habituados ‒ tão viciados, eu diria ‒ a conviver com privilégios, que nem mais nos damos conta deles. Sabe aquele infeliz dormindo na calçada coberto com pedaços de papelão, aquele que ninguém vê? Pois o que acontece com privilégios segue pelo mesmo caminho. Ninguém se impressiona com eles.

Surpreso, fiquei ontem sabendo que tribunais superiores de Brasília contam com instalações de fisioterapia postas à disposição de ministros e funcionários. A notícia que li não contestava o fato em si, mas o valor dos equipamentos, que pareceu elevado ao articulista. O princípio não pareceu escandaloso; o custo, sim.

É curioso. Fico aqui a imaginar se o tribunal de Currupira da Serra conta com essa facilidade. Se os magistrados currupirenses e os funcionários do fórum, quando amanhecem com dor nas costas, têm direito a massagem grátis num ginásio do subsolo.

Percebe o distinto leitor a quebra da isonomia? Se aqueles têm direito a cuidados gratuitos, por que não estes? Oferecer instalações para fisioterapia não me parece função de tribunal. Essa liberalidade só seria aceitável se pudesse ser proposta por todos os tribunais do país. Não é justo que juízes e funcionários de determinados tribunais gozem de privilégios negados a outros colegas.

Não é o pior exemplo de desigualdade no país. É apenas mais um.

Reflexões sobre a greve

José Horta Manzano

Toda decisão governamental, correta ou equivocada, acaba por acarretar efeito a longo prazo. Estamos sentindo hoje a repercussão de escolhas feitas semana passada. Mas estão aí também as consequências de decisões antigas. Alguns desastres atuais são resultado de bombas-relógio armadas meio século atrás.

Os anos em que a República foi presidida por Juscelino Kubitschek foram de grandes transformações. Com euforia, os brasileiros vislumbravam um Brasil novo, de progresso e bem-estar. Brasília foi construída em prazo curtíssimo ‒ um assombro. O futuro parecia estar chegando e se apresentava brilhante.

A indústria automobilística se instalou em território nacional. Nas cidades e nas toscas estradas, começaram a rodar dekavês que estalavam feito pipoca, fusquinhas esquisitos com motor atrás, simcas elegantes e cobiçados. E os caminhões fenemê, então! Um dos símbolos fortes da pujança da terra descoberta por Cabral!

Com orgulho, o Brasil se jogou de corpo e alma no transporte rodoviário, deixando pra trás os caminhos de ferro. Que coisa mais antiquada, gente! Trem de ferro, trenzinho do caipira, maria-fumaça ‒ a etiqueta de meio de transporte ultrapassado colou na ferrovia. Ninguém reclamou quando, em poucos anos, a rede ferroviária foi desmantelada. O mato cresceu entre os trilhos e as estações viraram ruína.

Essa visão maniqueísta, que opõe rodovia a ferrovia, foi muito nociva. Passados cinquenta anos, o Brasil sofre as consequências de uma decisão desastrada, tomada sob forte pressão do lobby das montadoras. É verdade que ninguém podia prever as crises petroleiras nem os reclamos da ecologia, que estavam por vir. São elementos que entraram em nossa vida sem pedir licença. Que fazer?

No fundo, o trem não era tão antiquado como pareceu aos governantes dos anos 1960. Países mais atinados continuaram a investir no aperfeiçoamento das estradas de ferro. Vieram trens de superior desempenho, com boa velocidade, climatização, vedação sonora. As linhas foram totalmente eletrificadas. Apareceu o trem-bala, que, em percursos de até 500-700km, faz concorrência ao avião.

Chamada Estadão, 28 maio 2018

Com o perdão da expressão, o Brasil perdeu o bonde. Dormiu no ponto. Mas nunca é tarde demais pra consertar. Quem sabe um governo mais alerta dê os incentivos necessários pra retomar a implantação de ferrovias. Embora não venham imediatamente, os resultados serão pra lá de benéficos. Nossos netos não verão um país paralisado por greve de caminhoneiros.

Campos no cerrado

Cláudio Humberto (*)

Hoje Brasília é cosmopolita, com todos os encantos de uma grande capital. Mas nos primeiros tempos era uma cidade árida, um canteiro de obras com pouca diversão, poucas crianças e poucos velhos.

Muitos se queixavam da falta de mar (e de ar, nos períodos de baixa umidade), da ausência de montanhas e de esquinas, de solidão e de tédio.

Um dia, perguntaram ao senador mineiro Milton Campos o que ele achava de Brasília:

‒ É um bocejo de 180 graus.

Ele não viveu para constatar a extraordinária transformação da cidade.

(*) Cláudio Humberto é jornalista. Publica coluna diária no Diário do Poder.

Falam de nós – 25

0-Falam de nósJosé Horta Manzano

Como os demais veículos da mídia mundial, o quotidiano italiano Il Giornale publicou o relato da apreensão do passaporte do Lula. A notícia foi dada em termos bastantes sugestivos.

Dou aqui abaixo um trecho. Vai primeiro na língua original ‒ traduzo em seguida.

Lula era pronto a scappare in Etiopia: il giudice gli fa sequestrare il passaporto

Lo aspettava a braccia aperte il segretario generale dell’Onu, António Guterres, ad Addis Abeba, la capitale dell’Etiopia dove oggi, dalle 15 alle 18, su invito dell’Unione Africana doveva parlare su come «vincere la fame nel mondo» a un evento ‒ non ridete ‒ tutto incentrato «su come combattere la corruzione».

Invece Lula ha suo malgrado deluso le attese del vecchio amico portoghese Guterres – compagno di socialismo anche se non tanto come l’ex premier lusitano, ex carcerato ed inquisito, José Socrates. Ha dovuto farlo perché, dopo la condanna a 12 anni e un mese di martedì per riciclaggio e corruzione, l’altroieri notte il giudice Ricardo Leite, di Brasilia, ha ordinato il ritiro del passaporto all’uomo che Barack Obama aveva definito «il miglior politico del mondo»: un acume obamiano invidiabile.

Minacciare di «mettere a ferro e fuoco il Paese» con discorsi eversivi che somigliano tanto a quelli dei gruppi chavisti più violenti controllati dal dittatore venezuelano Maduro – il solo leader latinoamericano col cubano Raúl Castro ad avere attaccato frontalmente la «giustizia fascista brasiliana» di certo non aiuta a frenare l’arresto di Lula.

Lula estava pronto para fugir para a Etiópia: o juiz ordena apreensão do passaporte

Esperava-o de braços abertos o secretário-geral da ONU, António Guterres, em Adis Abeba, capital da Etiópia onde hoje, das 15h às 18h, convidado pela União Africana, devia falar sobre como «vencer a fome no mundo» num evento ‒ sem piada ‒ focado em «como combater a corrupção».

No entanto, embora a contragosto, Lula decepcionou o velho amigo português Guterres, companheiro de socialismo ‒ amigo não tão chegado como o ex-primeiro-ministro lusitano José Sócrates, ex-encarcerado e inculpado. Lula não teve outra saída porque, na esteira da condenação a 12 anos e um mês por lavagem de dinheiro e corrupção, o juiz Ricardo Leite, de Brasília, ordenou a apreensão do passaporte daquele que Barack Obama tinha qualificado como «o melhor político do mundo» ‒ numa invejável perspicácia obamiana.

Ameaçar de «incendiar o país» com pronunciamentos subversivos tão parecidos com os dos mais violentos grupos chavistas controlados pelo ditador venezuelano Maduro ‒ o único líder latino-americano, com o cubano Raúl Castro, a ter atacado frontalmente a «justiça fascista brasileira» ‒ por certo não contribui para evitar a prisão de Lula.

Que clique aqui quem tiver interesse em ler na íntegra.

E o deserto se povoou

José Horta Manzano

«Não tenhamos dúvida de que o maior perigo de Brasília, situada em zona despovoada, será a ausência de opinião pública como elemento de orientação dos governantes. Sem vigilância, ou apenas vigiados de longe, governantes e legisladores vão pensar de preferência em si mesmos, nos seus bons negócios, em tirar rapidamente o máximo de vantagens em seu exílio no deserto.»

Austregésilo de Athayde (1898-1994), escritor e jornalista pernambucano.

A frase premonitória foi publicada num jornal carioca em janeiro de 1957. Nascido no longínquo século 19, o acadêmico sabia das coisas. Naquela segunda metade da década de 1950, o Brasil estava em efervescência. Com a morte de Getúlio e a ascensão ‒ pelo voto ‒ de Juscelino Kubitschek, o caminho da democracia e do progresso parecia aberto. O país olhava pra frente e uma vida melhor parecia ao alcance de todos.

A construção de Brasília tinha sido decidida. Os primeiros candangos respiravam nuvens de poeira vermelha no inóspito Planalto Central. Poucos pressentiram, como o acadêmico pernambucano, que o afastamento do centro do poder acabaria abrindo um fosso entre governantes e governados. Poucos ligaram uma coisa à outra. «De toda maneira» ‒ imaginava-se ‒ «o Rio de Janeiro vai estar a uma hora de viagem da nova capital. É pouca coisa.»

De fato, é pouca coisa para quem viaja. Mas é distância suficiente para a cúpula do poder se afastar do quotidiano e da vida real. Dito e feito. Durante meio século, enquanto Brasília se espalhava além do Plano Piloto e crescia desordenadamente, o Brasil real continuava longe do poder. O pessoal do andar de cima, dispensado de dar satisfações, deitou e rolou. Como previra Athayde, os que lá estavam pensaram «de preferência em si mesmos, nos seus bons negócios, em tirar rapidamente o máximo de vantagens».

Não há mal que sempre dure. Diante das imagens violentas e chocantes tomadas ontem na capital federal, o Brasil se horrorizou. Mas nem tudo é tão negativo. Embora estejamos perplexos com a cinquentena de manifestantes feridos, que nos fazem lembrar do desastre venezuelano, temos de reconhecer que algo mudou.

A zona «despovoada e desprovida de opinião pública» perdeu-se na poeira vermelha do passado. Parlamentares, ministros e todos os figurões que se refestelevam tranquilos nos ermos da Novacap até há poucos anos perderam definitivamente o sossego. Foram alcançados pelo Brasil. Ao pôr os pés fora de sua mansão à beira do lago, encontram gente que os reconhece, que os aplaude ou, o mais das vezes, que os hostiliza.

Pouco importa o mérito da questão, pouco importa se doutor Temer deve ficar ou sair. Que ele continue mais alguns dias, semanas ou meses, tanto faz. O ponto é outro. A boa notícia é que Brasília deixou de ser refúgio tranquilo e afastado do populacho. Os políticos não vivem mais debaixo de uma redoma. Brasília provou que entrou para o circuito de capitais onde o coração do Brasil palpita. O deserto se povoou.

Vem guerra por aí?

José Horta Manzano

Alianças militares e acordos de socorro mútuo em caso de ataque externo são velhos como o mundo. A formação do Brasil serve de exemplo: alianças militares entre portugueses e habitantes primitivos da Terra de Santa Cruz garantiram aos lusos a posse integral do território. De fato, ingleses, holandeses, espanhóis e franceses bem que tentaram, em diversas ocasiões, fundar estabelecimentos permanentes nas novas terras. Portugueses ‒ aliados a guerreiros indígenas ‒ deram cabo do que consideravam ‘invasão’ das terras que lhes haviam sido concedidas por bula papal. A colaboração militar foi determinante para botar os estrangeiros a correr.

Não fossem alianças militares em vigor em 1939, a Segunda Guerra poderia ter tido um desenrolar e um desfecho bem diferentes. Quando a Polônia foi invadida pelas tropas nazistas, França e Reino Unido viram-se obrigados a declarar guerra à Alemanha, em virtude dos acordos que haviam assinado com o Estado polonês. Foi o estopim da hecatombe.

Venezuela: fronteiras internacionalmente reconhecidas

Venezuela: fronteiras internacionalmente reconhecidas

Desde os primeiros séculos da colonização da América do Sul, houve disputa de fronteira entre Espanha e Reino Unido na região equatorial. Desde o século XVII, diversos acordos e tratados foram assinados e, em seguida, renegados. Em consequência da independência das colônias, iniciada no início do século 18, surgiu uma dúzia de países. Desinteressadas, as potências coloniais se retiraram, lavaram as mãos e deixaram os litígios para as novas nações.

Faz um século que o Brasil, com ativa participação do Barão do Rio Branco, resolveu todos os seus diferendos fronteiriços. Não é o caso de outros países sul-americanos. O contencioso equatorial hispano-britânico continua pendente. A Venezuela e a Guiana, vizinhos de parede, herdaram a pendenga.

Assim como a Argentina reclama a posse das ilhas Falkland (Malvinas), a Venezuela reivindica soberania sobre um pedaço de chão que representa mais da metade do território da vizinha Guiana. Trata-se da região do Essequibo, com superfície equivalente à do Ceará, rica em ouro, diamantes, manganês, bauxita, ferro e outros minerais.

Venezuela: em hachurado, a região contestada

Venezuela: em hachurado, a região contestada

A «Guayana Esequiba», como é chamada por Caracas, é escassamente povoada e praticamente inexplorada. Voltada essencialmente para a extração do petróleo, a Venezuela nunca levou a disputa territorial a ferro e a fogo. No entanto, os tempos estão mudando. Estrangulado pela gestão desastrosa e pela baixa do preço do petróleo, o governo está contra a parede, acuado por uma população cujo padrão de vida baixa a cada dia.

Na hora do aperto, nada como um inimigo externo para unir a população e desviar a atenção do problema maior. Costuma ser tiro e queda. Pela enésima vez, o governo venezuelano pôs na ordem do dia a questão do Essequibo. Para mostrar os músculos, anda aumentando o contingente de homens armados junto à fronteira. Faz também voos «de reconhecimento» com modernos caças russos, comprados no tempo de señor Chávez.

A tensão tem aumentado e começa a incomodar Brasília. Em 2009, Brasil e Guiana firmaram um acordo sobre cooperação em matéria de defesa. Embora não caracterize aliança militar nem tenha a força de um tratado, tem dado dor de cabeça à alta cúpula militar brasileira.

Venezuela: alguns mapas incorporam, sem cerimônia, o Essequibo

Venezuela: alguns mapas patrióticos incorporam, sem cerimônia, o Essequibo

Señor Maduro não é flor que se cheire. Caso decida seguir os passos dos ditadores argentinos ‒ que tentaram retomar manu militari as ilhas Falkland em 1982 ‒ encasquete de atacar a Guiana, como deve reagir o Brasil? Nada fazer equivaleria a ignorar compromisso assumido, atitude vergonhosa e desonrosa. Para defender a Guiana, restaria a via militar.

Nossa prioridade é a reconstrução de nosso país, destruído por anos de rapina e incompetência gerencial. Não sobra lugar para uma guerra sem sentido. Antes que o pior aconteça, cabe ao Itamaraty agir rápido. Mais vale intervir como mediador do que como combatente.