Festejar o 31 de Março?

José Horta Manzano

A história dos países é marcada por uma sucessão de deslealdades, golpes e revoluções. Não há outro meio de empurrar (ou emperrar…) a história de um povo. Se nunca tivessem ocorrido desvios da ordem estabelecida, ainda estaríamos nos cobrindo de peles e desenhando bichos na parede de acolhedoras cavernas úmidas. Talvez até estivéssemos engolindo comida crua, por não termos domado o fogo.

Todos os Estados carregam um histórico de cambalhotas. A meu conhecimento, nenhum escapou, nem menos nosso Brasil, apesar de ser visto como nação pacífica. Grandes passos da humanidade foram resultado de grandes golpes contra a ordem então vigente.

A Revolução Francesa, golpe pesado e magistral no sistema em vigor, foi um marco no processo civilizatório da humanidade. A Revolução de Outubro de 1917, que instaurou o regime comunista na Rússia, pautou a vida do planeta durante 70 anos.

Vamos agora ser cínicos (mas realistas). A partir de que momento um golpe contra a lei vigente se torna legal? Ou, em outra abordagem: Qual é o nome da lavanderia que aceita roupas manchadas de ilegalidade e, depois de lavar e passar, devolve as peças imaculadas, com virgindade refeita, prontas pra serem cultuadas?

A resposta é realista (mas cínica). Legal é a revolução que deu certo. Revolução que deu certo é o ponto inicial de nova etapa de uma civilização. Golpe que teve sucesso é marco de novo ordenamento de uma sociedade. Grandes fases de nossa história tiveram início como um ataque contra a ordem então vigente.

O 14 de Julho da Revolução Francesa é comemorado até hoje, enquanto que todas as datas da Revolução Russa desapareceram do calendário oficial daquele país. É a prova evidente do sucesso da primeira e do fracasso da segunda.

O Brasil-colônia tornou-se independente da metrópole em virtude de um golpe familiar, uma obscura deslealdade de filho pra pai, um golpe palaciano que reafirmou nosso sistema clânico de governança, já então em vigor. Tendo dado certo, o Dia da Independência é lembrado e festejado até hoje.

O Império do Brasil virou República em virtude de um golpe militar, uma desleal revolução de palácio. Tendo dado certo, também o Dia da República é lembrado e festejado até hoje.

A Revolução de 3 de Outubro de 1930 marcou o fim da República Velha e instaurou a ditadura de Getúlio Vargas. O novo regime durou 15 anos. Com a redemocratização do país, o movimento que levou Vargas ao poder perdeu o qualificativo de “revolução” e passou a ser chamado de “golpe”. É natural, visto que não se eternizou. Com o fim do regime, o 3 de Outubro deixou de ser comemorado e caiu no esquecimento.

A Revolução de 31 de Março de 1964 marcou o fim do período democrático que tinha tido início com a queda de Vargas, e instaurou nova ditadura – militar, desta feita. Durou 21 anos. Com a queda da ordem militar e a redemocratização do país, o 31 de Março deixou de ser comemorado. Pela ordem natural das coisas, seu destino deveria ser o esquecimento, que é o fim de todas as mudanças que não perduram. O que se costumava chamar de “revolução” passou a ser conhecido como “golpe”.

Curiosamente, no entanto, o finado regime continua sendo cultuado por uma franja estreita de sebastianistas barulhentos que parecem ter fixação num passado que muitos deles nem vivenciaram. Esse culto tem sido potencializado desde que a Presidência foi assumida por Bolsonaro, ele mesmo saudosista doentio.

Ainda esta semana, o general Braga Netto, ministro da Defesa, declarou que a ditadura imposta pelo regime militar “fortaleceu a democracia”(sic) e foi um “marco histórico da evolução da política brasileira”(sic sic).

Soou tão fora de esquadro quanto a declaração de Putin de que a invasão da Ucrânia visa a “desnazificar” o país. Coisa de manicômio.

Um ou outro político de segunda grandeza resmungou. E a imprensa, distraída e ainda fascinada com o estapeio do Oscar, publicou o resmungo como nota de pé de página.

E assim vamos banalizando o absurdo.

Ensaio geral?

arquivo pessoal deste blogueiro

José Horta Manzano

Este blogueiro, embora fosse bem jovem, já estava em idade de ouvir o zum-zum que correu a cidade na manhã de 1° de abril de 1964. Ouvir e escutar é uma coisa; entender é outra. Acho que, tirando os galardoados que tinham dado as ordens, ninguém entendia direito o que estava acontecendo. Nem mesmo – e principalmente – os que conduziam os brucutus.

Foi no fim da manhã que a voz correu e chegou até nós, povinho ignaro e sem importância. Falava-se em golpe de Estado. Como é que é? De novo? Mais um? Quem foi desta vez? (Sem ser corriqueiro, golpe de Estado não era algo que espantasse naqueles tempos.)

Numa época sem internet, sem redes sociais, com rádio transmitindo em cadeia única e com as raras tevês tocando música, as notícias se arrastavam a passo de tartaruga. Para nós, adolescentes, a novidade não fedia nem cheirava. A vida continuou, a escola pra quem estudava, o trabalho pra quem trabalhava.

Para os mais velhos, especialmente para os que se lembravam dos bombardeios sofridos pela cidade na Revolução de 1924, restou o temor de ver de novo gente sendo esmagada por bombas largadas por aeroplanos. Fora isso, como todos tinham na memória recente os movimentos de 1924, 1930, 1932, 1935, 1945 e 1955, esse não passava de um a mais.

Não foi senão algum tempo depois que nos ensinaram que aquilo não tinha sido um golpe de Estado, mas uma Revolução. Sei que, hoje em dia, pôr na mesma frase as expressões “31 de março” e “Revolução” causa frisson. Mas, na época, ninguém se abalou. Assim foi.

É claro que, “golpe” ou “revolução”, os acontecimentos da madrugada de 1° de abril de 1964 não surgiram do nada, resultado do mau humor de dois ou três generais que houvessem comido salada de pepino à meia-noite. O movimento estava fermentando fazia semanas, meses talvez. Naquela noite, amadureceu e estourou. Só que, como todo levante que se preze, germinou em silêncio, no escurinho dos quartéis, em conciliábulos para meia dúzia de iniciados. Para os demais, boca de siri.

Neste 2021, o capitão que imagina nos governar, sentindo que perde rapidamente o pouco apoio que tinha, determinou que manobras militares ostensivas se realizassem em Brasília, ao vivo e em cores, bem no dia em que o Congresso deve votar uma matéria ultrassensível. Todos interpretaram a exigência presidencial como expediente intimidatório sobre os parlamentares – e sobre a população. Uma espécie de “Quem manda no meu exército sou eu”.

Jair Bolsonaro ainda usava calça curta em 1964. Há de ser por isso que não se dá conta de uma verdade elementar: golpe de Estado não se anuncia de véspera, especialmente pondo brucutus no asfalto. Ele está assumindo um tremendo risco. Sem necessidade, está apostando no tudo ou nada antes da hora. Há dois caminhos possíveis. Só dois, não vejo mais nenhum.

Se os parlamentares se intimidarem com os canhões e votarem como deseja o capitão, ele vai conseguir alguns pontos. Não será o vencedor da guerra, mas terá ganhado uma batalha, o que lhe permitirá continuar no páreo.

Já se os parlamentares não ligarem a mínima para os canhões e derrubarem a medida tão desejada pelo capitão, este último terá perdido o pouco que lhe resta de moral. Todos vão ficar sabendo que o desprezo pelo presidente é tamanho, que nem brucutus no asfalto assustam mais ninguém.

Em matéria de golpe de Estado, não há ensaio nem ameaça – só a ação definitiva conta. E ela tem de ser única, imprevista, radical e certeira. Não há segunda chance.

Lula, Bolsonaro e a revolução

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 outubro 2019.

Uma revolução, pra dar certo, pede dois ingredientes essenciais: um líder e um programa. Se for complicado estruturar programa, que haja ao menos reivindicações consistentes. Pra puxar o trem, alguém terá sempre de assumir o papel de locomotiva, aquela que apita estrondosa e leva adiante o reclamo do populacho. Tem sido assim desde o tempo em que os bichos falavam.

Neste Brasil – que também é de todos os santos – revoluções andam capengas. Ora falta uma perna, ora falta a outra. Se há líder, falta programa; quando há programa, o que falta é o líder. Pra não espichar, vamos examinar o que ocorreu no vigor da atual Constituição, essa que já foi descrita como ‘cidadã’ mas hoje muitos olham de esguelha. Collor de Mello, por exemplo, trouxe, sim, boas ideias. Embora possa hoje parecer inacreditável, telefone e carro importado estavam fora de alcance do brasileiro médio. Se o trem andou, tributo seja prestado ao autoqualificado «caçador de marajás». Tirando a falta de jeito no trato da economia, até que havia ideias. Mesmo não revolucionárias, eram novas no Brasil. O que faltou foi liderança. Bem que o presidente tentou, mas, para ser locomotiva, não basta querer. Faltou lenha. Deu no que deu.

Após um interregno em que o vice foi içado de supetão sem se dar conta do que ocorria, subiu FHC. Dizer que o Brasil foi mal administrado naqueles anos seria inexato. Dizer que o governo foi desastroso seria rematado exagero. Foram oito anos sem história. O país avançou, sem dúvida, em muitos pontos. Mas marcou passo em inúmeros outros. Nem chegamos ao Brasil potência, nem saímos do Brasil miséria. Com as armas e o prestígio de que dispunha, FHC podia ter feito melhor. Revolução, portanto, não houve. O governo foi assim assim. Não há que dizer: a prova de que o povo ansiava por agito maior foi a eleição de Lula da Silva.

E ele foi eleito com louvor, como antigamente se dizia de aluno que mostrasse desempenho acima da média. Sua liderança era incontestável, talvez a mais sólida que este país já conheceu. Lula tinha, na mão, a faca, o queijo, o prato e a embalagem. Ideias, até que havia, que o PT tinha sido, até àquela época, partido programático. O que aconteceu a partir da subida da (até então) virtuosa agremiação corresponde a conhecido dito popular: quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza. Lambuzaram-se todos. Em poucos meses, estavam todos besuntados, engordurados, obesos e emporcalhados. A liderança se manteve, mas as ideias se perderam. Pra que ideias, quando se está no bem-bom? Revolução, que é bom, não houve.

Com a chegada de uma turbulência de nome Dilma e de um susto de nome Temer, enfrentamos aventurosa travessia de um Mar dos Sargaços nacional, com armadilhas e enroscos. Melhor até nem lembrar desse intervalo que a história, sábia, vai acabar esquecendo. Passado o sobressalto, chegou a vez de Jair Bolsonaro, candidato eleito par défaut, como dizem os franceses – por falta de opção. Nas primeiras semanas da nova gestão, as decisões pareceram esquisitas. Mudança da embaixada do Brasil em Israel e exclusão da Argentina de visita presidencial pareceram apenas pontos fora da curva. Não eram. Estavam perfeitamente alinhados com a curva. O futuro viria rapidinho confirmar que esquisitice, no novo governo, não era exceção, mas regra. Doutor Bolsonaro deixou passar todas as oportunidades de mostrar liderança. Ainda recentemente, afrontando os fiéis da religião mais arraigada e (ainda) majoritária, ajoelhou-se à frente de bispo neopentecostal. Dias depois, fez questão de esnobar a caravana que reverenciou Irmã Dulce, a santa dos pobres. O presidente tem mostrado que prefere continuar a ser o «mito» apenas de um grupo que, se já não era grande, definha.

O Brasil hoje sabe que o atual governo é um descampado de ideias. Intrigas palacianas entravam o surgimento de um líder. Sem ideário e sem liderança, o governo enerva o eleitor esclarecido, mas não lhe mete medo. Se é verdade que o país vai continuar empacado, é também garantido que não haverá revolução.

Golpes e revoluções

José Horta Manzano

Todos os países ‒ uns mais, outros menos ‒ têm, na história, alguns sobressaltos. São tentativas ilegais de tomada do poder ou de implantação de mudança brusca de regime político. A história do Brasil está coalhada de episódios assim. Dos anos 1700 até hoje, já ocorreram muitas dezenas. Tais ‘episódios’ incluem golpes de Estado, revoltas, revoluções, insurreições, inconfidências, intentonas, levantes & outras manifestações do gênero. Alguns foram bem-sucedidos. Outros, menos.

Por razões que as particularidades de cada caso explicam, alguns desses acontecimentos entraram pela porta da frente, são oficialmente reconhecidos como glória da nação e podem ser louvados. Alguns deles tornaram-se até feriados oficiais. Eis alguns:

Golpe de 1822, um putsch palaciano, uma obscura traição familiar. As consequências foram pesadas: Portugal perdeu a colônia americana. É comemorado como feriado nacional em 7 de setembro.

arquivo pessoal deste blogueiro

Insurreição de 1789. Foi conspiração contra a ordem vigente, um golpe que não deu certo. Ficou na tentativa frustrada. Assim mesmo, é comemorado como feriado nacional em 21 de abril.

Golpe militar de 1889, traição cometida contra um imperador que estava longe de ser déspota ou tirânico. Em vez de ser condenada à vergonha nacional, a violência é comemorada a cada ano em 15 de novembro. Com festa e banda de música.

Levante militar de 1932. Inscreve-se numa época rica em sobressaltos. Foi uma revolta da força pública paulista contra o regime Vargas. O enfrentamento armado durou dois meses e meio. Apesar de fracassado, o movimento é louvado todos os anos, como feriado estadual em São Paulo, celebrado dia 9 de julho.

Já outros acontecimentos, expulsos pela porta de trás, caíram na sacola do esquecimento nacional. Não é de bom-tom celebrá-los. Eis alguns:

Revolta do Forte de Copacabana. Aconteceu em 1922 e durou apenas um dia. Foi uma das expressões do movimento conhecido como tenentista. Ocorreu num 5 de julho, mas não convém comemorar.

Revolta Paulista de 1924. Arrebentou na manhã de 5 de julho de 1924 e foi outra manifestação do tenentismo. Como a anterior, não deu certo. Durou menos de um mês. Não se deve comemorar.

arquivo pessoal deste blogueiro

Revolução de 1930. Foi o golpe militar que depôs o presidente Washington Luís e o substituiu por Getúlio Vargas. As datas mais significativas do movimento são o 3 de outubro e o 3 de novembro. Nenhuma delas é comemorada.

Intentona Comunista. Inspirado pela Internacional Comunista, foi golpe fracassado que visava a depor Getúlio Vargas. Aconteceu em 23 de novembro de 1935. Tampouco este deve ser comemorado.

The Stooges

José Horta Manzano

Assim como eu, o distinto leitor é, sem dúvida, jovem demais pra ter vibrado com as aventuras d’Os Três Patetas, um trio que começou a atuar no cinema mudo e continuou quando a voz revigorou as fitas de Hollywood. Isso foi no tempo em que ainda se traduziam expressões estrangeiras. Fosse hoje, diríamos bovinamente «Os Três Stooges», que era o nome original. Na época, o trio tinha muita graça. Hoje, o entusiasmo das plateias seria, certo, menor.

Ao observar, inquieto, as cabeçadas que anda dando nossa trupe governamental, não posso deixar de me lembrar das patacoadas dos patetas cinematográficos de um século atrás. Só que há uma diferença afligente. Os do cinema eram pagos pra fazer graça. Recebiam cachê e, baixado o pano, a vida retomava seu curso. A graça só continuava nas crianças encantadas que saíam do espetáculo com os olhos cheios de riso. As patetadas atuais são, ai!, mais profundas. E de engraçado não têm nada.

No cinema, o patetas eram só três. No Planalto nosso de cada dia, são muitos. Como numa orquestra sem maestro, cada um deles faz questão de dar contribuição para a palhaçada geral. Quanto mais desencontrada for a fala, melhor será o efeito. Com os primeiros-filhos menos salientes estes últimos dias, o vazio está sendo preenchido pelo presidente em pessoa, devidamente acolitado pelos assessores mais chegados.

Os Três Patetas

Temos um “presidente temático”, como definiu, com felicidade, a jornalista Vera Magalhães. Não tendo ainda vestido o terno presidencial, doutor Bolsonaro continua em cima do palanque a discursar pra convencidos. Sua última tirada é mexer no vespeiro dos acontecimentos de 31 de março de 1964. O presidente não atina com o fato de que nada de bom pode sair dessa cutucada irresponsável.

Saudosistas do regime militar estarão insatisfeitos, pois esperam de doutor Bolsonaro forte guinada autoritária ‒ que não virá. Quanto aos ressentidos da ditadura, também estarão incomodados com essa indisfarçada simpatia que o presidente nutre por aquele período. Entre mortos e feridos, todos estarão insatisfeitos. Só a uma mente inconsequente viria a ideia de fazer cosquinha na onça com vara curta.

Nosso governo é um imenso Titanic à busca desesperada de um iceberg.

1964 bis

José Horta Manzano

Chamada do Estadão, 4 abr 2018

E vosmicê acha que, em 1964, os fardados se preocuparam em perguntar antes se a reviravolta era “aceitável”?

Reviravoltas, golpes, rebeliões e revoluções nunca são aceitáveis, cara-pálida! Mas acontecem assim mesmo. Entram sem pedir licença.

2018: um novo ciclo

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 30 dezembro 2017.

Fim de ano, não tem como escapar: é hora de balanço. Por imposição legal, cada empresa faz o seu. Por princípio e por hábito, cada indivíduo, ainda que não se dê conta, passa em revista os acontecimentos do ano findo e tenta projetar-se no futuro. Formulamos votos de que o pior tenha passado e de que os próximos 12 meses sejam radiantes. Se o ano tiver sido de privações, torcemos para que o próximo seja de abundância. Se o que passou tiver sido de excessos, fazemos votos ardentes para que o seguinte nos brinde com a bênção da sobriedade. Em resumo, que seja pra mais ou pra menos, temos o anseio e a esperança de que as coisas mudarão.

Os babilônios, desde que procuraram codificar o que viria a ser, bem mais tarde, a astronomia e a astrologia, constataram que a vida no planeta evolui balizada por ciclos. Por óbvio, os primeiros vaivéns observados foram a alternância do dia e da noite. O estudo do ritmo das estações viabilizou a agricultura. A relação entre as fases da Lua e o movimento das marés foi descoberta interessante. Períodos de penúria sempre alternaram com tempos de bonança. Guerra e paz, expansão e retração, glaciação e aquecimento, euforia e desânimo vêm se revezando na história da humanidade. Assim é ‒ e tudo indica que assim há de continuar.

E nosso país, nesse barulho todo, como é que fica? Dizem às vezes que perdemos o bonde da história. Não acredite. A frase é pomposa mas vazia. Que bonde? Que história? Cada povo apanha o veículo certo, na hora adequada. Se não for hora, pouco importa que passe toda a frota. O país só embarcará se (e quando) estiver preparado. Fruta amadurecida à força fica sem gosto e acaba apodrecendo por dentro. Só poremos o pé no estribo quando for chegada a hora. O Brasil não é a Suécia nem o Zimbábue. Nossos ciclos não são necessariamente os deles.

Nossa política nacional, por exemplo, vive um fim de ciclo. Só não enxerga quem não quer. Recapitulando, em poucas linhas, os últimos cem anos, temos a República velha, tempo de expansão. A grande liberdade levava a excessos. Levantes e revoluções se sucediam num ritmo caótico que acabava estorvando o progresso ordenado. Foi quando sobreveio a Revolução de 1930, instalando um regime autoritário, comedido, regrado, formatado, do tipo «ai de quem sair da linha!».

Em 1945, coincidindo com o fim da guerra mundial, o ditador foi despachado de volta à sua estância, e o regime se dilatou. Seguiu-se um ciclo de euforia desenvolvimentista em que, de novo, excessos passaram a fazer parte do dia a dia. O que tinha de acontecer aconteceu: o regime foi derrubado em 1964. De novo, a contração, o autoritarismo, o controle rigoroso, a contenção. De bom grado ou não, tivemos todos de andar na linha. Se desvios houve no andar de cima ‒ e deve ter havido, que ninguém é de ferro ‒, pouco se soube. A imagem que sobrou é de austeridade e repressão.

Pela lógica, a era seguinte havia de pender para o polo oposto. Assim foi. Construído sobre a Constituição de 1988, o novo período brindou os brasileiros com mimos com os quais eles não estavam mais habituados. De lá pra cá, multipartidarismo, eleições a granel, liberdade de expressão, euforia econômica, situação mundial favorável têm marcado o cenário. Nosso ciclo diastólico poderia até ter durado mais alguns anos. Mas a carne é fraca. Qui multum habet plus cupit ‒ quem tem muito sempre quer mais. A história sintetizará este período numa só palavra: corrupção. Corrupção de proporções bíblicas.

A rapina aos dinheiros públicos foi descarada, desenfreada, ilimitada, alucinada. O lado bom da evolução dos últimos anos ficou ensombrecido pela insolência dos que se serviram do dinheiro do contribuinte como se deles fosse. Esticada e esfiapada, a corda está a ponto de arrebentar. Partindo das premissas que vemos, as primícias do que vai ser já apontam no horizonte. Novo período de contração é inevitável.

Ainda é cedo pra discernir detalhes com acuidade, mas podemos apostar todas as fichas numa tendência oposta aos excessos atuais. O Brasil que sairá das urnas em 2018 ‒ posto que cheguemos até outubro sem turbulência maior ‒ será diferente do atual. É virtualmente impossível que um barra-suja seja alçado à presidência. Aliás, seria conveniente que, além de barra-limpa, o próximo inquilino do Planalto fosse também competente. Mas talvez isso já seja querer demais. Feliz ano-novo!

Reclamar do quê?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 31 dez° 2016

Os brasileiros vivem num país gigantesco. Para a maioria, fronteira não passa de conceito vago, um ponto perdido no meio da Amazônia, afundado no Pantanal ou açoitado pelo pampeiro nos pastos sulinos. Mal e mal, nos inteiramos do que se passa do lado de cá. Acompanhar o que acontece além-fronteira, então, já é pedir demais. No entanto, lá como cá, há mundo. Por toda parte, gente ama e briga, se entristece e se alegra, nasce e morre. Vale a pena dar uma espiada no que se passa do outro lado.

Fim de ano é momento de balanço. Neste finalzinho de 2016, tenho visto muito desencanto. «O ano que não terminou» é a tônica das análises. O gosto de inacabado, a apreensão com o que está por vir, a carestia e a perda de vigor da economia, os relatos sobre o aumento do desemprego, a recapitulação do nome dos figurões já encarcerados e dos que o serão em breve, o embate entre os Poderes da República ‒ eis os temas dominantes. Todos eles deprimentes, desacoroçoados e angustiantes. Ânimo, minha gente! Ou, como diriam os antigos: sus! Basta olhar em roda pra ver que, se nosso país atravessou um ano difícil, há quem esteja pior que nós. Não acredita?

tanque-de-guerra-1No Brasil, 2016 já começou com cara de golpe. Revolução à antiga, com obuses e trincheiras, anda meio «démodée» por aqui. Mas muita gente imaginava que meia dúzia de brucutus surgiriam a qualquer hora pra derrubar o governo e tomar o poder. Pois não aconteceu! A destituição da presidente e a consequente assunção do substituto legal se deram dentro da mais estrita ordem constitucional. Tirando pequenos engasgos, normais e desculpáveis em situações insólitas, o processo deslizou sem tropeços. Reclamar do quê?

Na primeira metade do ano, conforme iam se aproximando os Jogos Olímpicos, a ansiedade crescia. Até policiais, agentes e peritos do exterior foram convocados para reforçar o time nacional e garantir paz e segurança aos atletas e ao público. Bilhões de olhos ao redor do planeta se encantavam com as imagens do Rio de Janeiro. Cada um torcia por seus atletas. Tudo ao vivo. De novo, tirando escorregões de pouca monta, tudo deu certo, sem catástrofes. Reclamar do quê?

O povo da França, da Índia, do Egito, da Bélgica, de numerosos países africanos e até da Alemanha foi castigado por atentados que deixaram centenas de mortos, milhares de feridos e um cruel sentimento de impotência. Tanto os do andar de cima quanto os do porão se sentem igualmente desarmados, perdidos. No Brasil, tirando a violência à qual, de tão corriqueira, ninguém mais presta atenção, nenhum atentado aconteceu. Reclamar do quê?

Os que vivem na infeliz Venezuela, nossa vizinha de parede, esses, sim, têm do que se lamentar. A situação lá anda tão feia que impele cidadãos a escapar do país para conseguir alimento. Nem comida eles têm! Preferem tornar-se flanelinhas clandestinos em Roraima e dormir ao relento a passar fome no país de origem. Nas grandes cidades da república bolivariana, não há passeata ou manifestação popular que não deixe rastro de mortos e feridos. Do lado de cá da fronteira, não nadamos em dinheiro, é verdade. Mas, ao menos, não vivemos em penúria alimentar. Reclamar do quê?

flanelinha-1Na República Democrática do Congo ‒ país africano de 85 milhões de viventes ‒, o presidente foi batido nas urnas quando buscava reeleger-se. Em vez de passar o poder ao vencedor, como manda o figurino, agarrou-se ao trono. A confusão e a violência se instalaram no país. Pressões externas estão tentando conciliar os dois presidentes autoproclamados. Pra evitar mal maior, cogita-se dar o cargo de presidente a um deles e o de primeiro-ministro ao outro. No Brasil, faz uma pancada de décadas que passação de mando se tornou rotina sem surpresas. Reclamar do quê?

E os apuros dos pobres 80 milhões de turcos? Depois de mal explicada tentativa de golpe de Estado, milhares de cidadãos foram encarcerados. Ninguém sabe o total, mas fontes confiáveis estimam que cem mil estejam presos. Com vocação para ditador, o presidente aproveitou para expurgar o país dos cidadãos que o incomodavam. Fechou jornais e prendeu multidão de jornalistas. Semana passada, na esteira do assassinato do embaixador da Rússia em Âncara, mais 17 mil turcos foram enjaulados. Dezessete mil! Na aprazível Terra de Santa Cruz, abençoada por Deus e bonita por natureza, não temos nada disso. Reclamar do quê?

Feliz ano-novo, brava gente!

De revoluções

Sebastião Nery (*)

Antes
Em 1952, Gaia Gomes era diretor artístico da Rádio América de São Paulo. O saudoso David Raw trabalhava com ele. Uma tarde, entrou lá um rapaz de cabelos negros, olhos grandes e esbugalhados, bigode ralo e barbicha fina.

Argentino, trazia para Gaia uma carta de apresentação de Alberto Castillo, médico e cantor de tango em Buenos Aires. Não queria emprego. Também era médico e estava precisando de uma passagem para a Guatemala, onde queria ajudar o governo revolucionário de Jacobo Arbenz.

Gaia e David fizeram uma “vaquinha” na rádio e compraram a passagem. Nos dias que passou em São Paulo, o rapaz de bigode ralo conheceu o deputado Coutinho Cavalcanti, paulista adotivo de São José do Rio Preto, autor do segundo projeto de reforma agrária apresentado no Congresso (o primeiro tinha sido o do baiano Nestor Duarte).

guatemala-1Com a passagem e o projeto, o rapaz de barbicha fina embarcou para a Guatemala. Lá, acabou trabalhando no Instituto Nacional de Reforma Agrária e aplicando os ideais do deputado Coutinho. Em 1954, um golpe militar montado nos Estados Unidos e dirigido pelo coronel Castillo Armas derrubou o governo de Arbenz. O rapaz de cabelos negros fugiu para o México.

Em 1958, reapareceu em Cuba, na Sierra Maestra, ao lado de Fidel Castro e Camilo Cienfuegos. Derrubado o ditador Batista, o rapaz de olhos grandes e esbugalhados implantou a reforma agrária em Cuba, baseada no projeto do deputado Coutinho, o paulista adotivo de Rio Preto.

O rapaz chamava-se Ernesto “Che” Guevara. Ia encontrar-se com Fidel Castro em Sierra Maestra.

charuto-1Depois
Vitorioso em Cuba, em 1959 Fidel Castro esteve no Rio. O embaixador Vasco Leitão da Cunha ofereceu-lhe um banquete. Estava lá todo o society carioca, deslumbrado com o charuto enorme e a engomada farda de Fidel. De repente, aproxima-se dele um homem gordo e vermelho:

– Senhor primeiro-ministro, só não lhe perdoo os fuzilamentos em Cuba.

– Pois posso assegurar ao senhor que só fuzilei os ladrões dos dinheiros públicos.

O homem gordo e vermelho ficou ainda mais vermelho. Era Adhemar de Barros.

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(*) Sebastião Nery, jornalista, é editor do site SebastiãoNery.com.

Murió el comandante

José Horta Manzano

Os que conheceram um mundo sem Fidel Castro já se aposentaram. Nove entre dez cubanos não conheceram a ilha sem o líder máximo. Os poucos que chegaram a passar a infância antes da revolução já não se lembram mais de como era. Afinal, são quase sessenta anos ‒ é muita coisa.

A ilha de Cuba antes da tomada do poder pelos revolucionários castristas ‒ que se diga sem firulas ‒ era, com o perdão da palavra, um bordel. Os cassinos, a luxúria, a tropicalidade e a permissividade faziam de Havana um destino recreativo barato e accessível. A ultracorrupta ditadura de Fulgencio Batista atiçava as brasas e exaltava a libido. A proximidade geográfica dos EUA cuidava de fornecer os turistas. Alguns vinham em família, mas a maioria dos visitantes eram homens em busca de aventura fugaz regada a rum e embalada por rumbas e mambos.

Fidel Castro e Juscelino Kubitschek

Fidel Castro e Juscelino Kubitschek, 1959

Todo exagero acaba mal. O desequilíbrio alimentado pela ditadura decadente de Batista foi perfeito estopim para a aventura libertária de um grupo de jovens. Valeram-se da «guerrilha», termo criado pela língua espanhola justamente para designar a «guerrinha», esse estado permanente de tensão bem diferente da guerra tradicional, feita de aviões e de tanques. Na guerrilha, todas as pequenas ações acontecem de surpresa. Vive-se em alerta constante sem saber de onde virá o ataque.

Responsável por um regime apodrecido, sanguinário e sem sustentação popular, Fulgencio Batista caiu. Assim que o bando de Fidel Castro se aproximou de Havana, o ditador fugiu para o exterior, peregrinou por um tempo e acabou encontrando exílio na Espanha, onde ficou até o fim de seus dias.

No começo, até que não foi mal. Em busca de apoio internacional, Fidel percorreu mundo. Até no Brasil esteve em 1959, quando se encontrou com o presidente Juscelino Kubitschek. Dois anos mais tarde, chegou a receber visita de nosso folclórico presidente Jânio Quadros.

Fidel Castro e Jânio Quadros

Fidel Castro e Jânio Quadros, 1961

Quanto à ideologia, o bando revolucionário cubano hesitava. Embora, mais tarde, tenham jurado ter sido comunistas desde a infância, a coisa é mais complicada. Despachado o velho ditador, chegou a hora de procurar sustento e reconhecimento internacional. Os Estados Unidos, dados os laços históricos e a proximidade geográfica, foram procurados em primeiro lugar.

O governo americano cometeu então um erro estratégico. Não deu grande importância aos jovens barbudos. Naqueles tempos de Guerra Fria foi atitude fatal. Não restou aos revolucionários senão buscar o apoio da União Soviética, que aceitou agradecida. Daí pra frente, deu no que deu. Cuba tornou-se bastião do comunismo fincado a 150km das costas americanas. Cara feia, embargo e ostracismo não resolveram o problema: o mal estava feito. O regime antigo foi substituído por nova ditadura, tão sanguinária quanto a anterior.

Dizem que o bem é mais poderoso que o mal. Pode ser. Mas tem uma coisa. Ainda que você tenha andado na linha a vida inteira ‒ respeitoso, bondoso, correto, direito ‒, basta dar um mau passo, unzinho só, e será grande o risco de pôr tudo a perder. Leva-se muito tempo para construir uma reputação, mas, para destruí-la, basta muito pouco.

Fidel Castro e o Lula

Fidel Castro e o Lula

Fidel Castro terá tido seus méritos, principalmente no início da gestão. Aliviou a miséria dos concidadãos, melhorou o acesso à alfabetização e à saúde. Por seu lado, as liberdades individuais sofreram um baque. Julgamentos sumários e execuções secretas, cidadãos vigiados e fichados, desconfiança disseminada, prisão de dissidentes, proibição de viagens internacionais, pobreza generalizada, escassez de alimentos, partido único, ausência de debate, bloqueio de acesso à informação ‒ os cubanos conheceram tudo o que um Estado policial, onipresente e onipotente pode oferecer.

Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Hoje foi-se o comandante. Antes dele, tantíssimas outras personagens controversas já conheceram glória e decadência. Hitler, Mussolini, Stalin, Berlusconi e até nosso genial guia, o Lula, seguiram a mesma trilha. Subiram, foram incensados, e, inexoravelmente, acabaram caindo. Uns desabaram fragorosamente, outros foram resvalando aos poucos, mas ninguém escapou.

Assim é a vida. A História, cruel, costuma esquecer os momentos de glória. O que acaba ficando para sempre é a decadência, que é mais «sexy» e vende mais. Tremei, ó grandes do mundo!

A dimensão humana da revolução

Myrthes Suplicy Vieira (*)

“Quando termina a revolução?”

É com essa pergunta que, no belíssimo filme “Danton – O Processo da Revolução” dirigido por Andrzej Wajda, em uma das cenas de maior tensão dramática da historiografia do cinema, Danton confronta Robespierre, na tentativa de induzi-lo a dar fim à perseguição dos dissidentes e interromper a grotesca sequência de decapitações ocorridas nos dias turbulentos da França pós-monarquia.

O questionamento, ainda que ingênuo na aparência, não tem caráter retórico. O que ele implicitamente conota é que, cedo ou tarde, toda revolução terá que se ver às voltas com um momento especialmente delicado de sua história: o de decidir pela manutenção ou flexibilização de sua pureza ideológica.

Revolution 2É curioso observar como, em suas etapas iniciais, toda revolução se assemelha ao florescimento de uma nova religião. A mobilização dos combatentes é embasada na promessa de surgimento de um mundo novo, onde as regras serão outras e onde a bem-aventurança será eterna. Um código doutrinário é estabelecido e dogmas são criados, em especial o da infalibilidade de seu líder máximo. Como caberá a ele zelar para que a revolução se perenize e não brotem dissidências internas, sua autoridade técnica e moral não pode jamais ser contestada. Qualquer tentativa de introduzir mudança para se adequar a novas demandas externas pode ser entendida como conspiração e, como tal, será imediatamente rechaçada.

Se, para a racionalidade fria e calculista de Robespierre, perseguição e morte de tantos potenciais revisionistas era preço aceitável, para o iluminista Danton era um contrassenso inaceitável continuar lutando pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade em meio a um banho de sangue permanente. Não há, portanto, como responder a seu questionamento fazendo uso de generalizações, argumentando teoricamente a respeito da dificuldade de fixação de prazos e limites ou alegando motivos nobres para dar continuidade às perseguições.

Nesse sentido, a pergunta não se limita a época específica, cultura, país ou liderança. Aplica-se igualmente a todo processo revolucionário, desde lutas tribais dos tempos da caverna, passando por conflitos medievais e guerras coloniais, até os mais significativos movimentos libertários do século 20, como a Revolução Russa, a guerra contra o nazifascismo, a Revolução Cubana, a Revolução Iraniana, as lutas para derrubada de ditaduras na África e na América Latina. Se pensarmos bem, concluiremos que, do ponto de vista lógico, a única resposta possível à questão de Danton é que uma revolução só termina quando outra, em franca oposição, eclode e a supera. Tese → antítese → síntese, como ensina a dialética.

Jean-Paul Marat e Charlotte Corday Crédito: Steve Breslow

Jean-Paul Marat e Charlotte Corday
Crédito: Steve Breslow

Assistindo ao julgamento final do impeachment à brasileira, a emoção que experimentei ao ouvir a pergunta pela primeira vez naquele filme voltou forte. Depois de longos meses de exasperação com o infindável embate que destemperou o ânimo dos brasileiros, eu sentia enfim estar preparada para encarar a ira verborrágica dos contendores sem qualquer forma de resistência intelectual ou emocional. Tornava-se claro para mim naquele instante que, travestida de suas implicações econômicas e financeiras, a pergunta estava sendo reeditada: Quando termina a revolução do lulopetismo?

Difícil responder neste momento em que os ânimos ainda estão acirrados e nem todas as emoções foram devidamente processadas. O espetáculo farsesco da decapitação de Dilma não parece poder ser equiparado ao término do sonho de uma sociedade de iguais. Não é só isso. O clima econômico caótico, a crise universal da democracia representativa e a sensação de estarmos mergulhados até o pescoço num oceano de dejetos éticos parecem indicar a necessidade de reformulação da pergunta. Talvez fosse mais sábio questionar: Quando termina a revolução dos costumes políticos?

Seja como for, o que emerge diante dos olhos de uma população desesperançada é um fato esmagadoramente óbvio: toda revolução tem uma face humana. Não são apenas as teses que são falhas ou incompletas. Não há como nenhum agrupamento ideológico proclamar a própria superioridade moral, nem defender que sua interpretação dos fatos históricos é a única legítima. Continuaremos a conviver ad æternum com todos os vícios inerentes à condição humana, como a hipocrisia, o apego ao poder, a desfaçatez, a miopia social, o partidarismo fundamentalista e o analfabetismo político de muitos dos comandados. Para cada Danton que se apresentar como salvador da pátria um Robespierre se erguerá tentando barrar seus avanços.

Hoje, em plena ressaca do ‘day after’, o delírio voltou a tomar conta de mim. Na tela de minha mente, as cenas do filme eram reencenadas num cenário tropical com os personagens da Revolução Francesa interpretados por atores políticos tupiniquins. Lá está o fanfarrão Danton/Lula, abraçado aos amigos numa mesa de bar, cabelo e roupas em desalinho, discursando como última esperança dos “sans-culotte” para recuperar a glória de seu ideário político-social. Na cena seguinte, a enlouquecida Charlotte Corday/Dilma tenta entregar a lista que preparou com o nome de todos aqueles a quem chama de conspiradores, golpistas e algozes. Seu comportamento errático não comove e não empresta credibilidade a suas palavras. Num último gesto desesperado, ela grita que é imprescindível extirpar o “pecado original” enquanto esfaqueia o corpo sarnento de Marat/Cunha ainda mergulhado na banheira.

Crédito: Art Puff Delphine

Crédito: Art Puff Delphine

Na sequência, num gabinete estreito do palácio, o impoluto e insensível Robespierre assume a chefia do governo afiançando que somente ele poderá capitanear com eficácia o processo de inclusão social e recuperação do prestígio nacional. Na cena final, o populacho em fúria invade praças e ruas exigindo a cabeça dos integrantes da elite “canaille”. Aqui e ali, pequenos grupos de desempregados entoam timidamente a cantiga-símbolo da resistência:

       “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia…
        Ainda pago pra ver esse dia nascer qual você não queriiaaa…”

A praça se esvazia, a fumaça das fogueiras se extingue. A quarta-feira de cinzas termina melancólica e todos voltam cabisbaixos para suas casas.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Minuto de silêncio

José Horta Manzano

Você sabia?

Minuto de silencio 1Minuto de silêncio é o nome que se dá a um momento solene, observado em ocasiões especiais, aquele instante em que todos se calam e cada um é convidado a uma reflexão sobre a importância da celebração. Pode-se tratar de comemoração de vitória ou de derrota, pode-se estar homenageando a memória de pessoa ou de acontecimento.

Forças republicanas, Lisboa 1910

Forças republicanas, Lisboa 1910

É momento grave e profundo. Embora costume durar bem menos de um minuto, o nome está consagrado. Sua universalidade se prende ao fato de não evocar nenhuma religião, nenhuma corrente política, nenhum regime, nenhuma figura histórica. Eis por que é aceito aqui e na Cochinchina, por pretos, brancos, azuis e verdes.

De onde vem essa tradição? Como em toda velha história, as versões variam, embora o registro mais antigo seja atribuído à Assembleia Portuguesa. O relato é curiosíssimo e merece ser repetido aqui.

Hermes da Fonseca

Hermes da Fonseca

Em 1910, recém-eleito presidente da República brasileira, o marechal Hermes da Fonseca empreendeu viagem à Europa. Embarcou no encouraçado São Paulo, que ostentava pavilhão brasileiro e fazia sua viagem inaugural. Já no caminho de volta, aportou em Lisboa dia 1° de outubro de 1910 para encontrar-se com o rei e cumprir visita oficial de 8 dias.

À sua chegada, já percebeu movimento atípico, tropas à vista, cheiro de revolta no ar. O país vivia dias febris. Fato é que, quando o marechal chegou, Portugal era uma monarquia. Quando partiu, dias depois, o país havia-se transformado em República. Se tivessem combinado antes, não teria dado tão certo. Sem querer, o visitante transformou-se em testemunha ocular da História.

Semanas mais tarde, ao assumir a presidência da República, o marechal Hermes determinou que o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, comunicasse oficialmente que o Brasil reconhecia o novo regime português. Foi o primeiro país a dar legitimação ao novo governo. De fato, as nações europeias, dominadas por monarquias, não tinham visto com bons olhos a destituição de um rei. Fizeram corpo mole e tardaram a reconhecer a República Portuguesa.

Encouraçado São Paulo

Encouraçado São Paulo

Quando o barão do Rio Branco faleceu, dois anos mais tarde, a Assembleia Portuguesa fez questão de manifestar-lhe, uma derradeira vez, o agradecimento da nação. Foi proposta ‒ e cumprida! ‒ uma hora de silêncio. Há de ter sido interminável. Dias mais tarde, o Senado lusitano repetiu a dose, encurtando para dez minutos.

Não demorou muito para o costume ser adotado pelos britânicos, que o espalharam pelo mundo. Os horrores da Primeira Guerra mundial se encarregaram de dar motivos de sobra para comemorações ‒ que, aliás, se prolongam até hoje.

Barao Rio Branco 1É isso aí. Da próxima vez que lhe propuserem um minuto de silêncio, tome o distinto leitor como homenagem indireta ao barão do Rio Branco, herói de um tempo em que relações exteriores eram levadas a sério e, em vez de se amoldar aos interesses de um partido político, serviam ao interesse maior do Estado brasileiro.

Impeachment

José Horta Manzano

O termo impeachment ‒ já sacramentado pela Academia ‒ percorreu longo caminho antes de chegar à nossa língua. O latim clássico se servia da palavra pes/pedis para designar o pé.

Na Idade Média, para expressar a ideia de entravar, obstar, emperrar, a solução foi utilizar essa raiz sob a forma impedicare. A nova palavra evoluiu para empechier em francês medieval.

Capa do Estadão, 14 mar 2016

Capa do Estadão, 14 mar 2016

Na bagagem dos invasores franceses, a palavra desembarcou na Inglaterra. A fonética anglo-saxônica a transformou no verbo to impeach, com o sentido de entravar, impedir. Com o passar dos séculos, to impeach foi-se restringindo ao campo político. Já no século XVI, tinha assumido o sentido de acusar um funcionário de mal conduzir-se ‒ que se mantém até hoje.

Portanto, atrás do reclamo de conseguir o impeachment da presidente, está o anseio de entravar-lhe os pés (e as mãos) antes que cause mal maior.

Interligne 28a

Repercussão
Bigode 1«Dis donc, ça n’a pas l’air de s’arranger au Brésil avec l’équipe de bras cassés que vous avez mis au pouvoir et qui se comporte comme à la belle époque des révolutions légendaires sud-américaines. Ne nous décourageons pas et mettons dehors tous ces voleurs!»

«Então, pelo jeito, as coisas não dão sinal de entrar nos eixos no Brasil, com a equipe de incapazes que vocês puseram no poder e que se comporta como nos velhos tempos das legendárias revoluções sul-americanas. Não nos desencoragemos ‒ vamos botar fora todos esses ladrões!»

Trecho de mensagem que recebi esta manhã de uma amiga francesa. Como o distinto leitor se pode dar conta, Oropa, França e Bahia já estão começando a entender que o atual nó brasileiro não se enquadra no formato esquerda x direita. Será mais bem traduzido pela imagem de honestos cidadãos x malta de ladrões.

O fim do amém

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jul 2015

Revolution 1O dicionário ensina que revolução, no contexto político, é rebelião contra o poder vigente, com vista a implantar mudanças profundas. Diz ainda que pode ocorrer de maneira progressiva ou repentina. Quanto maior for a rudeza, mais caracterizada estará a reviravolta.

A transição do regime militar para a democracia plena, que os manuais situam em 1985, não pode ser catalogada como revolução. Na verdade, a eleição presidencial daquele ano marcou o desfecho de um processo paulatino, gradual e sobretudo consentido. A mudança pode não ter agradado aos mandatários da época, contudo não ocorreu à revelia deles. Tendo sido autorizada, revolução não era.

Já a ruptura havida em 1964, dado o grau de brusquidão, encaixa-se melhor, stricto sensu, no conceito de revolução. Aliás, foi assim qualificada nos primeiros anos, embora seja hoje mais usual designá-la como golpe.

Dilma e Lula 4Nossos pais e nossos avós – esses, sim – conheceram tempos bem mais turbulentos. Na primeira metade do século XX, revoluções e golpes (bem sucedidos ou não) sobrevinham a cada par de anos. Por um sim, por um não, entrincheiravam-se cidadãos, desembainhavam-se espadas, granadas explodiam, casernas eram sitiadas. Visto com óculos atuais, esse rebuliço nos parece longínquo, intangível, empoeirado, perdido nos livros de história.

Os brasileiros que assistiram, já em idade de entender, ao golpe de 1964 já estão todos, há anos, agasalhados sob o manto do Estatuto do Idoso. Mais velhos ainda estão os que viveram uma revolução de verdade, daquelas boas, com canhão e tropa nas ruas. São hoje anciãos.

Os tempos mudaram. Não se pega mais em armas pra impor ideias, que isso está completamente démodé. Armas, hoje, são muito mais numerosas que antigamente, circulam bem mais rápido, estão em mãos de muito mais gente, mas servem pra outros fins.

Revolution 2No que diz respeito à política, os jovens adultos brasileiros, aqueles que entram agora na casa dos vinte e poucos anos, andam desencantados. Levantamento recente do TSE informa que, no espaço de sete anos, nossos cinco maiores partidos perderam dois terços dos afiliados menores de 25 anos. O desinteresse da banda jovem é flagrante e inquietante: são precisamente eles que, daqui a vinte anos, conduzirão o País.

Quais serão as razões desse desamor? Poderíamos culpar internet, redes sociais, materialismo, facilidades do mundo moderno. Será? Se assim fosse, o desinteresse dos jovens pelas coisas da política seria planetário, o que está longe de ser verdade. As causas são domésticas.

Pra começo de conversa, os que chegam hoje aos vinte aninhos só conheceram, no topo do Executivo, a dupla Lula & Dilma. Não nos esqueçamos que o presidente anterior, ao impor a sucessora, fez questão de apregoar que ela era ele e que ele era ela. Ou seja, ficou claro que eram angu da mesma tigela.

Dilma e Lula 5Tem mais. Desde que se conhecem por gente, os jovens de hoje vêm sendo diariamente bombardeados com escândalos, roubalheiras, prisão de medalhões. E mais roubos, e mais escândalos, e falcatruas, e mentiras, e caraduras. Convenhamos: é muita água pra pouco pote. Compreende-se que se sintam enfastiados e que menosprezem política e políticos.

O que anda fazendo falta é o debate de ideias, a troca de argumentos, o empenho pelo bem comum, a demarcação rigorosa entre o público e o privado. O Executivo onipresente destes últimos dez anos tem relegado o Legislativo a papel de figurante de opereta.

A crise de governança gerada pela ação desastrada da presidência da República está mostrando corolário positivo: o fortalecimento do parlamento. Deputados e senadores, desacostumados que estavam de fazer aquilo para que foram eleitos, andam meio aturdidos. O momento parece confuso, mas o tempo se encarregará de pôr ordem na casa.

Senado federal 1Suas excelências já dão mostras de que a era do amém chegou ao fim. Não é revolução de tanque e canhão, mas é como se fosse: as consequências serão notáveis.

No Brasil, a prática costuma contradizer a teoria. Nosso presidencialismo está-se transmutando em parlamentarismo de facto. Após tantos anos de um Executivo onipotente acolitado por congresso submisso, a virada é notícia animadora.

Aperfeiçoamentos terão de vir, ressalte-se. Para viabilizar o novo modelo, é imperioso implantar voto distrital e cláusula de barreira. Mas há um tempo pra tudo. Por ora, festejemos a revolução que se desenrola diante de nossos olhos e façamos votos para que o reequilíbrio entre poderes seja duradouro. Será bom para todos nós. Que os anjos digam amém.

Paredón

José Horta Manzano

Cuba 1Muita gente se entusiasmou quando, naquele final dos anos 50, o ditador cubano Fulgencio Batista foi posto pra correr pela revolución liderada por um bando de jovens. Indivíduos vinculados ao regime deposto foram sumariamente executados diante do paredón, mas isso foi posto na conta dos inevitáveis excessos engendrados por toda mudança política brusca.

Desde que o colonizador espanhol se retirara, no alvorecer do século XX, a ilha se tinha tornado colônia informal dos EUA. O clima tropical, os costumes permissivos, a proximidade das costas americanas faziam que endinheirados escolhessem Havana para um fim de semana descontraído, de jogo, diversão e bebedeira. Alguns chegavam a apelidar Cuba de “bordel dos Estados Unidos”.

Fato é que o regime ditatorial se assentava na corrupção. Mal comparando, assemelhava-se a um Brasil atual com menor liberdade de expressão. Aos amigos do rei, tudo era permitido. Para os outros, sobrava a lei.

A revolución que derrubou o sistema deixou muita gente animada. Finalmente, a distribuição das futuras riquezas prometia ser justa e equilibrada. Havia de trazer bem-estar a todos.

Cuba 2Acontece que o ansiado futuro não veio tão radioso como se esperava. A gangue, que tinha chegado ao poder carregada nos braços do povo, tomou gosto pelas benesses. É próprio da natureza humana. O resultado foi a cristalização do país, que estagnou e parou no tempo. Até hoje, passados quase 60 anos, o povo ainda vive em estado de insegurança alimentar. Não têm dinheiro, nem autorização, nem esperança de viajar para o exterior.

Mas as coisas mudam. A reaproximação que ora se inicia entre EUA e Cuba, inconcebível até poucos anos atrás, prenuncia um desgelo acelerado. Não vai demorar muito para que o atual regime dos bondosos irmãos Castro seja varrido pela história e morra de morte morrida.

Lula e Fidel 2

Muita gente acredita que Cuba se transformará num Estado de tipo chinês, comunista de direito mas capitalista de facto. Eu não tenho essa ilusão. A ilha é pequena. A proximidade geográfica do grande irmão do norte é fator importante. A diáspora cubana, baseada na vizinha Florida, tem poder financeiro suficiente para influenciar a política da pátria mãe. Não vão permitir que a nomenklatura cozinhe o galo em água fria por décadas.

Fico aqui a perguntar-me: como será conhecido, no futuro, este meio século em que direitos básicos dos cidadãos da ilha ficaram entre parênteses? Hoje, o nome oficial do movimento é Revolución Cubana. Como se referirão a ela os cidadãos do século 22?

Não me espantaria que a denominação oficial tivesse o mesmo fim de nosso movimento militar de 1964. É mais que provável que, de revolución, seja degradada a mero golpe.

Expurgo seletivo

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 7 fev° 2015

Placa 6A Batalha de Verdun, travada entre tropas francesas e alemãs, estendeu-se por dez meses. Enfrentamento mais sangrento e desastroso da Primeira Guerra, durou todo o ano de 1916 e deixou 700 mil vítimas. Ainda assim, alçou o nome do General Philippe Pétain ao panteão da história francesa. O líder tornou-se ícone. Nos anos que se seguiram, pencas de homenagens lhe foram prestadas. Por toda a França, edifícios e logradouros foram rebatizados com seu nome.

Um quarto de século mais tarde, quando estourou nova guerra, a França, de uma só voz, chamou de novo o herói para salvar a nação. Deu tudo errado. Pétain, já octogenário, determinou rendição incondicional e consentiu que o inimigo ocupasse o país.

Placa 5Finda a guerra e expulsos os invasores, o velho general teve de prestar conta de seus atos. Foi julgado e condenado por traição. Ato contínuo, ruas e praças que tinham recebido seu nome foram desbatizadas. A história oficial preferiu apagar o herói e guardar o traidor. Não mais que três ou quatro povoados têm hoje alguma ruela com o nome do militar.

E nós com isso? Pois temos, nós também, figura similar: Getúlio Vargas. Num primeiro momento, tomou o país de golpe e fez carreira de ditador impiedoso e longevo. Mais tarde, foi presidente eleito democraticamente e incensado por meio Brasil.

É justamente a cronologia dos fatos que diferencia Vargas de Pétain. O general francês primeiro foi herói, em seguida traidor. Já nosso Vargas nacional usurpou primeiro, para terminar como presidente bem-amado. Em casos assim, a ordem dos fatores altera o produto. O Getúlio democrático redimiu o ditador ilegítimo. Sua memória é perpetuada em ruas, praças, avenidas, edifícios, escolas.

Placa 4Entre as recomendações preconizadas pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade, está o banimento de tudo que faça alusão à memória de personagens ligados ao regime instaurado em 1964. Considerando – com acerto – que o golpe militar tomou de assalto e desmantelou a ordem então vigente, a comissão aconselha que se altere a «denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza» que lembrem todo indivíduo acumpliciado ou comprometido com a ruptura.

Se posta em prática, a obra será monumental. De fato, entre generais presidentes, governadores nomeados, senadores biônicos, empresários coniventes e que tais, há muita placa de rua a ser trocada. Mas sejamos complacentes. Admitamos a justeza da recomendação. Vamos abraçar a ideia de que não cai bem homenagear indivíduos que tenham participado de infração à legalidade de seu tempo.

Placa 3Façamos um rapidíssimo sobrevoo da história do Brasil. Para não complicar, passemos por cima do fato de o Estado português ter-se apoderado de um território que não lhe pertencia. Como hipótese de trabalho, consideremos que, a partir de 1500, Lisboa era proprietária destas terras.

Um belo dia, trezentos anos depois da descoberta, um grupo de súditos descontentes urdiu golpe contra a coroa. Pretendiam subverter a ordem legítima e mandar o dono da terra às favas. Fracassada, a tentativa deixou uma vítima: o Tiradentes.

Trinta anos depois, num obscuro cenário de briga em família, um fogoso jovem de 23 anos renegou pai e mãe e atropelou o ordenamento em vigor havia já três séculos. Seria o futuro Dom Pedro I. Apoderou-se do imenso território e, julgando-se imortal, autonomeou-se defensor perpétuo do Brasil. Quanta imodéstia!

Placa 2Quase sete décadas mais tarde, numa manhã nevoenta, um general cometeu a afronta de anunciar ao imperador que o regime estava derrubado. Agindo como porta-voz de fardados amotinados, injungiu o monarca a abandonar trono e pátria. Deodoro da Fonseca era o nome do homem.

Houve outras tentativas de derrubada do regime e de reviravolta da ordem vigente – todas malsucedidas.

Se é justo que se purifiquem ruas e praças expurgando o nome daqueles que embarcaram no golpe de 64 ou dele se beneficiaram, justo também será aplicar o princípio a todos os que atentaram contra a ordem vigente. Seja em que tempo for.

Placa 1Que nossas ruas e praças sejam, pois, depuradas do nome de Tiradentes, de Dom Pedro I, do Marechal Deodoro da Fonseca. Que seja desnomeado todo logradouro que lembre gente ligada ao golpe de 1822 ou ao de 1889. Pau que dá em Chico também dá em Francisco – é questão de coerência.

Em seguida, como solução para erradicar o problema, que se proíba dar nome de gente a logradouros. Que se organize concurso nacional para escolher nomes novos. Há trabalho pela frente.

Diplomacia chinfrim

José Horta Manzano

A economia brasileira e a importância do País no tabuleiro internacional vêm-se deteriorando ano após ano. Analistas concordam. O distinto público, no entanto, nem sempre se dá conta do peso que nossa diplomacia representa nesse processo. Pelas escolhas que fez de seguir certos caminhos e esquivar-se de outros.

Aquarela do artista inglês William Smyth Porto do Rio de Janeiro visto de um navio - 1832

Aquarela do artista inglês William Smyth
Porto do Rio de Janeiro visto de um navio – 1832

O caráter fechado da economia brasileira já vem de tempos coloniais. Durante os trezentos anos seguintes ao descobrimento, navios estrangeiros estavam proibidos de atracar em portos brasileiros. Só receberam autorização depois da chegada de D. João VI, em 1808. E olhe lá: os portos só foram abertos porque a corte, que tinha vindo a contragosto fugindo das tropas de Napoleão, sentia falta de bens e mercadorias que não encontravam na carente colônia.

O governo Collor ensaiou tímida abertura. Os dez anos que se seguiram foram promissores. Parecia que nosso País, finalmente, despertava, pronto a ingressar no bazar mundial. E olhe que o momento era favorável, pouco antes do crescimento exponencial da China, quando ainda havia nichos de mercado por conquistar.

by Ernani Diniz Lucas, desenhista mineiro

by Ernani Diniz Lucas, desenhista mineiro

Isso foi até 2003, 2004. Já em meados do primeiro ano de governo do Lula, nosso País deu mostra de desinteresse por trocas internacionais. Inventou uma bobagem chamada Sul-Sul, uma espécie de clube dos pobres – que ideia insana… A formulação da política comercial externa apoiou-se no conceito dos «gigantes nacionais», deu corda (e dinheiro) aos eikes da vida e descansou. Deu no que deu.

E pensar que o governo companheiro tinha certeza de que, gigante por natureza, essepaiz seria forçosamente reconhecido como líder natural da região e, por consequência, como potência planetária. Assim, por inércia, sem mais nem menos, como se evidente fosse, à força de propaganda. Imaginaram que pudéssemos chegar lá por obra e graça do divino, não obstante tremenda desigualdade social, falta de poderio militar, PIB per capita subdesenvolvido e população semiletrada e inculta.

Sob a influência nefasta de um certo senhor Garcia, há doze anos eminência parda de nossa política externa, renegamos a imagem que havíamos levado séculos para forjar. O país cordial, acolhedor, pacífico, tolerante, simpático e esperançoso escorreu pelo ralo. Em seu lugar, surgir um Brasil esquisito, defensor de ditaduras sanguinárias, simpático a revoluções protagonizadas por narcotraficantes, amigo de regimes que apedrejam mulheres, deferente a sistemas autoritários – um Brasil que acolhe condenados pela justiça e repele perseguidos políticos.

É frustrante constatar que, em consequência de opções ideológicas empacadas num mundo que já acabou, nosso País se tenha apequenado. Nossa economia avassalou-se à China e atrelou-se às diretivas de Pequim. O Mercosul, criado para ser o motor de nossa inserção no circuito comercial planetário, tornou-se tribuna política onde tiranetes e postulantes se reúnem para maldizer os loiros de olhos azuis. Uma tristeza. A gente se pergunta como é possível ser tão dogmático e tão primitivo.

Dilma e Garcia 2O Estadão de 17 out° publicou uma comparação interessante entre duas visões da diplomacia política e comercial brasileira. O diplomata de carreira Rubens Barbosa e o «assessor» Garcia revelam suas convicções. O senhor Barbosa foi embaixador em Londres (1994-1999) e em Washington (1999-2004), o topo da carreira, sonho de todo diplomata brasileiro. O senhor Garcia, como já mencionei, é a eminência parda por detrás do desastre diplomático brasileiro destes últimos doze anos.

Se tiver curiosidade de ler o artigo do Estadão, clique aqui. Se você tiver mais o que fazer, tem problema não. Basta saber que Barbosa é artífice do projeto de Aécio Neves para o Itamaraty. E que Garcia está há 12 anos por detrás das decisões diplomáticas do Brasil e tudo indica que continuará lá em caso de vitória de dona Dilma.

Você escolhe.

O meu primeiro de abril

José Horta Manzano

Folhinha 1964-1Podem dizer o que quiserem do Grito do Ipiranga, da Guerra do Paraguai ou da Revolução de 1930. Desses acontecimentos antigos, só tive notícia pelos livros de História. A visão que tenho deles terá sido obrigatoriamente filtrada pelas lentes de outrem.

Os eventos de 1964 são outros quinhentos. Fazendo eco ao bordão do velho Repórter Esso, fui «testemunha ocular da História». Quem viveu os fatos não depende de relatos.

O golpe de 1889, que despachou a família imperial para o exílio e instaurou um regime republicano, inaugurou uma era de instabilidade política. Entre golpes, revoluções e tentativas, fica difícil nomear todos. O nome que se dava a golpes de Estado bem-sucedidos era revolução. Do verbo revolver, virar de ponta-cabeça.Folhinha 1964-2

De memória familiar, todos já tínhamos ouvido falar nas revoluções de 1924, de 1930, de 1932. A intentona de 1935 estava na memória de nossos pais, assim como os putsches de 1937, 1945, 1955. O último movimento insurrecional, a Revolta de Jacareacanga, tinha acontecido fazia apenas 8 anos. Revolução e golpe de Estado não costumavam assustar ninguém.

Naquele fim de março, embora não fosse ainda adulto, eu já era bem crescidinho. Frequentava o último ano do ensino médio e já me preparava para prestar vestibular no fim do ano.

Dia 1° de abril caiu numa quarta-feira. Era um dia fresquinho, de pouco sol, um antegosto do inverno. Lá pelo meio-dia, voltando da escola de ônibus, alguém veio espalhar a notícia:

Interligne vertical 14― Você soube da revolução?

― Revolução? Não. Como é que foi?

― Parece que o exército derrubou o presidente da República.

― Ah, é? Mas aqui está tudo tão calmo. Será que vai ter confusão?

― Acho que não.

Pronto, encerrado o assunto. Confusão, não houve. Cada um voltou pra casa e a vida continuou, como tinha sempre continuado após cada golpe e cada revolução. Logo de cara, a mudança de regime não teve particular incidência na vida da imensa maioria do povo do Brasil. Não me lembro de multidões que tenham saído às ruas na sequência da destituição do presidente ― nem para aplaudir, nem para amaldiçoar. As preocupações eram outras. O golpe de 1964 foi apenas mais um.

Assim foi o 1° de abril que eu vi.

Nunca mais “nessepaíz”

José Horta Manzano

O Brasil está no caminho de se tornar um país normal. Não vai chegar lá amanhã, é certeza, mas encontrou uma boa estrada. Tudo está acontecendo de supetão, meio atabalhoadamente, uma característica nacional. Se confuso está, confuso ainda vai continuar durante um tempo. Mas não descambaremos para um processo revolucionário, estejam tranquilos.

Passeata

Passeata

As manifestações populares começaram difusas, nevoentas, sem propósito nítido. Reclamava-se por uma vida melhor, por transporte mais digno, por melhor acesso a atendimento sanitário, por mais escolas, coisas assim.

Estas últimas semanas, o foco, que andava impreciso, começa a se ajustar. Os protestatários, que gritavam indistintamente contra tudo e contra todos, inauguram uma segunda fase: passam a designar responsáveis pelos males. Em vez de apresentá-las a entidades vagas e impessoais, estão levando suas reivindicações às pessoas que dirigem ou que encarnam essas instituições. E fazem isso visível, explícita e diretamente. É um grande passo.

Dona Dilma foi a primeira vítima. Até há poucas semanas alvo da admiração de multidões, a tsarina levou um baque. Pode até ser que se levante, mas não será fácil, que ela não leva jeito pra essas coisas. Falta-lhe jogo de cintura, qualidade que se possui ou não se possui ― não está à venda em supermercado.

O governador do Rio de Janeiro foi a segunda vítima. Se o homem deitou, rolou e abusou durante anos faustos, agora chegou a hora de acertar a conta. O infeliz tem tido até dificuldade para entrar na própria casa ou dela sair. Desde sempre, os cariocas foram expansivos e demonstrativos. No caso do senhor Cabral, a tradição não mentiu.

Estes últimos dias, atropelam-se as notícias de que, no sulco de Dilma e de Cabral, outras personalidades começam a aparecer com nitidez no visor dos ressuscitados caçadores de marajás. Renan Calheiros, José Sarney, Eduardo Pais já estão na linha de tiro. Vão ter de pular miudinho estes próximos tempos.

E isso não é senão o começo. A fila de celebridades políticas de percurso duvidoso é de dobrar quarteirão.

Passeata de protesto

Passeata de protesto

Os eleitos em nível federal ― deputados, senadores e até, quem sabe, a presidente da República ― não precisam temer por sua reeleição. Os integrantes da massa de manobra, aqueles que dão seu apoio em troca de um prato de lentilha, continuarão a votar nos de sempre.

Agora, eleger-se é uma coisa, aguentar quatro ou oito anos de mandato é outra. Não terão vida fácil. Ser guindado pela voz dos grotões não é tão difícil. Enfrentar a cobrança diária dos estratos mais esclarecidos da sociedade é bem mais complicado.

Acabou-se a vida mansa de suas excelências. Grades e tropas de choque dispostas em redor de palácios podem proteger seus ocupantes contra assalto de vândalos, mas não hão de anestesiar a consciência dos brasileiros que já despertaram.

O Brasil pode melhorar ou pode até piorar. Tudo dependerá da habilidade de nossos mandachuvas de transmitir à população a sensação de que sinceramente se converteram ao bom caminho. Os brasileiros não são rancorosos, o que deixa aos políticos uma chance. Que não a desperdicem.

Neste momento, uma só certeza: «essepaíz» nunca mais será como antes.

Interligne 18e

Golpe

José Horta Manzano

Um dos senadores pelo Estado de Minas Gerais, Aécio Neves, participou de uma reunião, um congresso político na cidade de Santos (SP) no dia 4 de abril.

Num dado momento, escapou-lhe a palavra revolução para designar os acontecimentos de 31 de março de 1964. Foi um deus nos acuda. Foi pior do que se tivesse dado um chute na santa.

Jornalistas excitados vieram tomar satisfação. O senador virou-se como pôde para se safar da saia justa. Veja o que noticiaram o Estadão e a Folha de São Paulo.

Em 1964, fui «testemunha ocular da história» ― como rezava o chavão do falecido Repórter Esso, o jornal televisivo da época. Posso garantir-lhes que todos, sem exceção, chamaram o movimento militar de revolução. Não me lembro de ter lido ou ouvido, naqueles dias, que uma ditadura havia sido instalada no Brasil. Ela se enraizou depois.

Marechal Deodoro

Curiosamente, um outro trecho da fala do senador passou despercebido. Como aprendemos todos, convém dizer que, em 15 de novembro de 1889, Deodoro da Fonseca proclamou a República. Qualquer aluno da escola elementar sabe disso. E repetirá a expressão pelo resto da vida.

Não precisa ser nenhum profundo conhecedor da História pátria para se dar conta de que o termo proclamação, de aparência inocente, disfarça uma verdade bem menos gloriosa. Naquela manhã de 1889, Deodoro foi a ponta de lança de um golpe traiçoeiro. O Marechal foi o braço armado de uma insurreição urdida e apoiada por militares e civis.

O regime monárquico foi derrubado, e a família imperial, banida. Anos se passaram antes que um civil voltasse a tomar as rédeas do País.

.:oOo:.

Qual é a razão de tudo isso? É simples: a História é escrita pelos vencedores.

Enquanto durou o regime instaurado em 64, fomos ensinados a chamar os acontecimentos de 31 de março de revolução. Não foi senão depois que o regime se extinguiu que passamos a falar em golpe de estado.

Dado que a monarquia nunca mais foi restaurada, continuamos a escamotear o termo golpe e a nos valer do eufemístico proclamação.

Deveríamos deixar a hipocrisia de lado e dar aos bois seus verdadeiros nomes. Tanto em 1889 quanto em 1964, o que aconteceu foi a derrubada de um regime. Na marra, pela força. Portanto, ambos fazem plenamente jus à denominação de golpe de estado.

Mas cada um é, evidentemente, livre de usar a palavra que lhe parecer mais adequada.