José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 julho 2018.
A história é antiguinha, mas vale a pena recordar. É possível até que os mais jovens nunca tenham ouvido. Corria o ano de 1987. Jânio Quadros, então prefeito de São Paulo, concedia entrevista coletiva. A certa altura, uma jovem repórter dirige-se, atabalhoada, ao prefeito e faz-lhe uma pergunta. Mas comete o imperdoável: trata o septuagenário por você. Com tarimba de raposa política, Jânio lança, fulminante: «Intimidade gera aborrecimentos e filhos. Com a senhora, não quero ter aborrecimentos e muito menos filhos. Portanto, exijo que me respeite.» Eram tempos em que toda palavra tinha peso e valor. Em política, não se arremessava verbo pela janela.
Menos susceptíveis que o velho Jânio, governantes, parlamentares e magistrados falam hoje pelos cotovelos. Sem se preocupar com o peso das próprias palavras, proferem barbaridades. Dão entrevistas ad nauseam. Quem fala muito, sabe-se, dá bom-dia a cavalo. No cenário político brasileiro, é o que se vê dia sim, outro também. Em setembro de 2010, no auge da campanha eleitoral, Lula da Silva e Dilma Rousseff martelavam o nós x eles. Estavam inquietos com as sondagens. A roubalheira comia solta na Petrobrás, embora o escândalo ainda não tivesse estourado. O mensalão, por seu lado, já estava na praça e lançava uma sombra sobre a continuidade do projeto de poder. Era preciso a todo custo garantir a perenidade do esquema lulopetista.

Em Campinas, na tarde de 18 de setembro, Lula da Silva subiu ao palanque da pupila, então candidata. Deitaram ambos falatório violento. Com palavras agressivas, criticaram a imprensa, a oposição, os jornalistas. Vociferaram, ameaçaram, ridicularizaram os opositores, desclassificaram os que não pensavam como eles. Pouco ‒ quase nada ‒ foi dito sobre propostas de governo. O propósito maior era demolir tudo e todos que estivessem do outro lado da imaginária linha do nós x eles. Lá pelas tantas, Lula da Silva ousou: «Nós não precisamos de formadores de opinião. Nós somos a opinião pública!». Um atrevimento! Era a confirmação explícita do totalitarismo embutido na ideologia lulopetista, ancorada na verdade revelada e única. Deu no que deu. A República quase foi pro espaço. Felizmente, socorridos pela absoluta incapacidade da presidente, conseguimos estancar a obstinada rapina e a bolivarização do Estado brasileiro.
Oito anos se passaram desde a irada agitação de Campinas. Comícios como os do tempo de Jânio Quadros, com palanque, faixa, banda de música e alto-falante, estão rareando. Plugado e antenado, o mundo de hoje não se anima a permanecer horas de pé na praça a ouvir falatório seja de quem for. É muito mais cômodo ficar no sofá da sala. A informação chega do mesmo jeito e ainda pode ser sopesada, comentada e compartilhada. Como os demais candidatos às presidenciais deste ano, Jair Bolsonaro aderiu à modernidade: manifesta-se por tuítes. Na busca por alianças, tem encontrado certa resistência. São poucas as legendas dispostas a apoiá-lo, o que periga reduzir-lhe o tempo de exposição na tevê. Agastado com a reticência partidária, doutor Bolsonaro atreveu-se outro dia num tuíte: «Nosso partido é o povo!» Frisson garantido.

Ao repreender a jornalista atrevida, Jânio Quadros mostrou-se autoritário. Mas o pito se restringia a preservar sua esfera privada contra irrupções, nada mais. Já a amostra de autoritarismo revelada tanto pela arenga de Lula da Silva quanto pelo tuíte de Bolsonaro dá arrepio. Os dois pronunciamentos são irmãos gêmeos. O vão que separa o «nós somos a opinião pública» do «nosso partido é o povo» é tão apertado que não deixa passar nem uma folha de papel de seda. Ambas as falas testemunham pura e perigosa prepotência, que transborda da esfera privada para derramar-se sobre o entorno. Desvario será confiar as chaves da República a personagem imbuído de visão absolutista.
Nesse particular, esquerda e direita se confundem. Guinada autoritária, venha ela de que bordo político vier, está fadada a terminar em desastre. O Brasil e o mundo já assistiram a esse filme. Não convém dizer que Lula da Silva e Jair Bolsonaro sejam farinha do mesmo saco. No entanto, ainda que sejam farinhas diferentes, desaguam no mesmo pão. Populismo autoritário nunca dá certo. E costuma acabar mal.
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