Allegro moderato, con speranza

O sorriso, por enquanto, sai meio forçado
by Oskar Weiss (1944-), artista suíço

José Horta Manzano

O dia amanheceu carrancudo em Genebra. A garoa fina e a temperatura baixa não convidavam a passeio nenhum. Mas é dia em que todos os brasileiros têm, mais que a obrigação, o dever de exprimir suas escolhas políticas. Os mais jovens não imaginam a falta que nos fez essa liberdade durante os anos mais sombrios da ditadura.

Quando cheguei para votar, no fim da manhã, o tempo já estava dando sinal de que ia abrir. Somos muitos conterrâneos atualmente por aqui. As dependências do consulado não comportam tanta gente. O voto de desenrola num vasto pavilhão do salão de exposições da cidade. São 12 seções eleitorais num mesmo salão, separadas por cordinhas como a fila do check-in do aeroporto.

Quem conhecia o número da seção podia entrar diretamente; quem não conhecia tinha de entrar numa fila formada em frente ao guichê de informações. O problema é que a fila de informações era tão comprida, que virava à esquerda, entrava num outro corredor, de onde não se via o guichê. De bobeira, entrei na fila e lá passei uma boa meia hora até que me avisaram que, visto que eu conhecia o número de minha seção, podia entrar direto.

Enquanto esperava, admirei a paisagem. Faz muito tempo que não via tanto brasileiro junto. Nem imaginava que fôssemos tantos patrícios por aqui. Jovens, velhos, crianças, uns de pele alvinha, outros de pele bronzeada, todos falando em voz relativamente baixa – acho que é influência do país em que estamos.

Eu diria que 95% dos eleitores estavam vestidos “normalmente”, ou seja, com roupas comuns do dia a dia, de acordo com a temperatura externa. Já uns 5% vieram de amarelo ou de vermelho.

Os de amarelo eram mais espalhafatosos, falavam mais alto que os demais, alguns chegavam a se enrolar na bandeira nacional, os que tinham músculos para mostrar desafiaram o frio, vieram de camiseta e arregaçavam a manga.

Os de vermelho eram mais discretos. A uniformização da ala colorada é menos rigorosa. O vermelho podia estar no cachecol, no sapato, num lenço comprido displicentemente pousado sobre o ombro ou amarrado em volta da cintura. Alguns jovens carregavam o vermelho no boné.

Fico a matutar o que leva certas pessoas a declararem publicamente suas preferências políticas.

Será um desafio petulante lançado aos circunstantes, como se dissessem: “Eu já tomei minha decisão. E você? Não gostou? Vai encarar?”

Será o orgulho de se sentir do lado certo da história, diferentemente dos infelizes que não pensam igual?

Será uma marca de pertencimento, como quem arbora um distintivo com o logo de seu time de futebol?

Não tenho a resposta. O que sei é que, cada vez que vejo esse pessoal fantasiado, sou invadido pela mesma sensação de quando encontro uma mensagem publicitária não solicitada (spam) na caixa de cartas. Dá vontade de perguntar: “Que é que você está fazendo aqui? Eu te perguntei alguma coisa? Não estou interessado em saber pra quem você torce.”.

Enfim, enquanto a violência se limita a mostrar os músculos, falar mais alto ou usar sapatos vermelhos, dá pra aguentar sem problemas.

Quando saí do palácio de exposições, o céu estava azul e o sol brilhava.

Esperemos que a situação não degenere. Eu disse “esperemos”? Espero eu! Tem um certo capitão que ficaria muito feliz se degenerasse. Te esconjuro!

De uniforme ou sem?

by Alberto Benett (1974), desenhista paranaense

José Horta Manzano

Não sei como anda a moda vestimentária da juventude no Brasil. Aqui onde vivo, as cores desapareceram: todos (ou quase todos) os jovens se vestem de preto. Dos pés à cabeça. Minto – é só das canelas à cabeça. O calçado escapa à ditadura do luto. É a única peça que dá um pouco de cor à silhueta.

Quando este escriba era jovem, o uso era o inverso do que é hoje. O sapato é que era obrigatoriamente preto, enquanto a roupa era livre. Era uma época mais colorida, com camisas estampadas, calças de todas as cores imagináveis. Só o calçado era uniformizado. Não usar sapato preto era pecado tão grave quanto ir a um baile de formatura de smoking e sandália de dedo.

Não sei de onde terá vindo essa ideia de cada um tentar afirmar a própria personalidade vestindo-se todos de urubu.

Enfim, se estão felizes assim, melhor pra eles.

O dia do voto está chegando. Os eleitores sairão de casa e, se não forem incomodados por algum assalto ou bala perdida, entrarão na cabine de votação. Cabine, daquelas de cortininha, é modo de dizer; nestes tempos de penúria, a cabine é virtual. Virou um minibiombo de papelão.

Aos que, distantes de corpo e alma da pátria-mãe, vêm me pedir orientação sobre os candidatos, dou meu conselho. E não esqueço de acrescentar um ponto primordial: o cuidado com a indumentária.

O risco não é grande, mas no exterior também há grupelhos exaltados e até violentos. São, em geral, pupilos do capitão – veja-se o que aconteceu em Londres, diante da residência do embaixador, quando da estada de Bolsonaro. Aquela gente mostrou aos ingleses o grau de incivilidade que a passagem do capitão pela Presidência provocou.

Aconselho a todos evitar vestir-se de vermelho no dia de votar. Touros selvagens se excitam com essa cor e podem tentar dar chifrada. Por seu lado, é bom evitar também a cor amarela. Ninguém é santo, e não é impossível que algum apóstolo inflamado do demiurgo de Garanhuns saque a peixeira.

Nesta época do ano, em que camisetas já foram lavadas, dobradas e empilhadas no fundo do armário, estamos todos de agasalho pesado, que costuma ter cores menos vibrantes. É raro ver capote vermelhão; mais raro ainda é ver abrigo amarelo. Assim mesmo, todo cuidado é pouco.

A gente se espanta e se solidariza com as infelizes mulheres iranianas que estão sendo massacradas por saírem de casa sem o véu islâmico. Ao mesmo tempo, não nos damos conta de que em nosso país, a sinistra função de Polícia de Costumes foi delegada a todos os cidadãos. Os mais desvairados estão sempre prontos a despachar para o Pronto Socorro os que não rezam pela sua cartilha. Para o Pronto Socorro ou para o outro mundo.

Veja quanto regredimos!

Voto desparelhado

Golden Gate Bridge, San Francisco (California)

José Horta Manzano


De quatro em quatro anos volto ao assunto na época das presidenciais. Mas vamos começar pelo começo.


No Brasil, a colonização europeia chegou pela costa marítima. No primeiro século, com a notável exceção do vilarejo de São Paulo, os numerosos estabelecimentos portugueses estavam à beira-mar, de norte a sul do território.

Diferentemente dos EUA e do México, países com duas faces costeiras, o Brasil só pode contar com a costa atlântica. Sem a atratividade de uma outra face marítima, nosso povoamento demorou a penetrar fundo no território. A construção da nova capital federal, Brasília, e os incentivos dados nos anos 1970 à internalização do “progresso” não provocaram caudalosa marcha para o Oeste. O grosso da população e das atividades do país continuaram concentradas numa faixa de poucas centenas de quilômetros ao longo da faixa costeira.

Assim é até hoje. Veja um exemplo flagrante. Nosso país, com seus 4.400 km de extensão leste-oeste, cobre 4 fusos horários. No entanto, quando o locutor de alguma estação de rádio de projeção nacional ouvida em todo o território proclama, com voz empolada, que são 10 horas, está dando somente a hora da costa atlântica.

É verdade que cerca de 90% dos brasileiros se encontram dentro desse fuso, mas não deixa de ser injusto para com os demais. O relógio de mato-grossenses, amazonenses e vizinhos ainda está marcando 9 horas. Devem sentir-se cidadãos de segunda zona. Pior ainda são os acrianos, para os quais são ainda 8 horas. Ah, e tem o caso dos habitantes de Fernando de Noronha. São poucos, mas merecem atenção como os demais. Os relógios do arquipélago estão marcando 11 horas.

Até aqui, tratei de uma indelicadeza para com parte da população. Fica feio, mas não é ilegal. Já o que vem a seguir resvala para terreno pantanoso.

Faz uns vinte anos que os brasileiros do exterior temos direito de votar nas presidenciais. Vota-se somente para presidente, visto que, no Congresso, ainda não foram criadas vagas de deputados e senadores para defender especificamente os interesses dos expatriados.

Brasileiros da Nova Zelândia são os primeiros a apertar teclas na urna eletrônica. Em seguida, vêm os conterrâneos estabelecidos na Austrália, no Japão, na China, e assim por diante, até a Terra girar e o dia clarear em território nacional. Começam primeiro a votar os fernando-noronhenses, em seguida votam os da grande faixa que segue a hora de Brasília. Uma hora depois, abrem-se as urnas de amazonenses e mato-grossenses. Por último, vêm os acrianos.

Enquanto isso, continua o voto no exterior. A Terra vai girando – Ásia, África, Europa – e as urnas vão se abrindo. E chega a vez dos Estados Unidos. Consulados da costa atlântica são seguidos pelos do interior do país até chegar à costa do Pacífico.

No Brasil, cada estado encerra a votação às 17 horas locais. Os últimos a bloquear as maquinetas são os do Acre, que só terminam de votar duas horas depois do grosso da população do país. Fechadas as urnas do Acre, todos os veículos de informação anunciam a esperada estimativa geral colhida na boca de urna. Em seguida, vão pingando, um atrás do outro, resultados parciais daqui e dali. Em meia hora ou coisa assim, conhece-se o nome do(s) vencedor(es).

Até aí, beleza pura. Só que… nos EUA, na costa do Pacífico, as urnas ainda estão abertas e há gente esperando pra votar. Temos aí um grave problema. Em princípio, o horário de votação de todos os brasileiros tem de estar encerrado pra que se saiba dos resultados. Como é possível terem esquecido os que votam em Los Angeles ou em San Francisco? E não são poucos.

Chegamos assim à bizarra situação de ver eleitores que votam sabendo já do resultado, como se o voto deles não fizesse a menor diferença. Ou, pior ainda, podendo, sim, fazer diferença no caso de resultado apertadíssimo.

É uma anomalia que tem de ser sanada. Quem sabe para as próximas eleições, quando estará menos absorvido em se esquivar de ataques da extrema-direita belicosa, o TSE vai poder se debruçar sobre esse problema.

Como fazer então?
A França, que tem ilhas e pequenos territórios ao redor do planeta, já resolveu o problema faz tempo. Os eleitores do exterior não votam no domingo, mas um dia antes, no sábado. Assim, sem afobação, as seções eleitorais transmitem o resultado a Paris. Os votos do estrangeiro ficam armazenados no computador central à espera do fim do voto nacional.

Pra tudo tem remédio, basta querer.

Conselho de Direitos Humanos

Conselho de Direitos Humanos
Resultado do voto de 7 abr 22 sobre a permanência da Rússia
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José Horta Manzano

O Conselho de Direitos Humanos é o órgão da ONU encarregado de promover e proteger os direitos humanos no planeta. É formado por 47 países-membros eleitos pela Assembleia Geral. Ontem, 7 de abril, as Nações Unidas se reuniram em assembleia geral.

A questão do dia era a exclusão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

Por alguma razão, uma vintena de países preferiram ausentar-se da sessão na hora do voto. Abaixo está o detalhe da escolha dos 175 que votaram.

93 países votaram SIM (a favor da exclusão da Rússia)
24 países votaram NÃO (contra a exclusão da Rússia)
58 países se abstiveram

Agora vamos a um joguinho de adivinhação.

Pergunta
Cite 5 países que votaram para excluir a Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

Resposta
Ora, essa é fácil. Dá pra citar até mais. Basta olhar para os países mais civilizados – ou daqueles que aspiram a entrar para o clube dos civilizados. Entre outros, sem surpresa: Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, França, Dinamarca, Portugal, Itália, Suíça. Mas também latino-americanos, inclusive vizinhos próximos: Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Costa Rica, Peru, Colômbia, Equador.

Pergunta
Cite agora 5 países que votaram contra a exclusão, ou seja, que julgam que a Rússia merece permanecer no Conselho de Direitos Humanos.

Resposta
Cuba, China, Coreia do Norte, Irã, Síria, Nicarágua, Bolívia. E a Rússia, evidentemente. Entram ainda nesta categoria os países que orbitam em torno da antiga União Soviética e que dependem de Moscou: Quirguízia, Uzbequistão, Casaquistão, Tadjiquistão.

Pergunta
Cite, pra terminar, 5 países que ficaram em cima do muro. São os que se acovardaram e preferiram se abster mostrando tibieza de posicionamento numa hora grave da humanidade. (A meu ver, optaram pela pior atitude: o não pronunciamento. Os outros países pelo menos tiveram a honradez de exprimir a posição; já os da turma de cima do muro se furtaram à própria responsabilidade.)

Resposta
O Brasil! Mas não estamos sozinhos. Em nossa companhia, estão a Guiné-Bissau, o Bangladesh, o Egito, o Catar, a Arábia Saudita, o Paquistão, a Indonésia.

Diz o adágio que quem cala consente. A não-reprovação da Rússia de Putin equivale a uma aprovação. Ou, pior, à indiferença diante do modus operandi de um país que, se deu grandes nomes à humanidade no passado, está dominado há 20 anos por uma casta de selvagens. E não merece ser admitido entre nações decentes.

Ah, se o Barão do Rio Branco imaginasse que, um século após sua morte, teríamos regredido a um tal estágio de acovardamento!…

A Amazônia é nossa

Amazônia: um condomínio de 8 coproprietários

José Horta Manzano

Nosso capitão continua imerso em confusão mental. Não tem capacidade de entender o que se passa fora de sua bolha. Se o que acontece no Brasil já lhe escapa, o que ocorre na martirizada Ucrânia está totalmente fora de seu alcance.

Bolsonaro, que não lê e só se informa pelo que contam seus aduladores pelas redes sociais, não sabe os comos e os porquês do que se passa no mundo. Rússia, para ele, é aquele país muito grande, em que ele passou um frio danado ao descer do avião, por ter esquecido de perguntar qual era a temperatura externa.

Deve-se lembrar também que a Rússia é o país onde outro dia ele teve de dar as narinas cinco vezes ao teste anticovid, mas em seguida foi recebido como um rei por um baixinho de nome meio cômico que até parece palavrão. Deve saber ainda que seus amigos agrotrogloditas brasileiros importam fertilizantes da Rússia. Afora isso, não deve saber grande coisa. Pelo que se vê, seus áulicos também não.

Nem de longe ele consegue perceber que nosso planeta se encontra em uma daquelas esquinas cruciais da História, num daqueles momentos em que o futuro da humanidade nas próximas décadas está sendo equacionado.

Talvez não lhe tenham contado que, dois dias atrás, quando a assembleia geral da ONU aprovou uma moção exigindo a retirada imediata das tropas russas da Ucrânia, apenas 5 dos 193 países-membros se opuseram. O Brasil aprovou a moção, decerto à revelia do próprio Bolsonaro.

Reconheço que, ao escrever os parágrafos acima, forcei um pouco nas tintas. Pouco. O exagero é leve. A verdade não está muito longe. Acho até injusto espalhar a responsabilidade pelos membros do clã e da equipe do capitão. Se ele mostrasse interesse, tenho certeza de que encontraria rapidamente assessores bem informados e solícitos, prontos a esclarecer. O problema é que ele não quer. E ponto final, talquei?

O mundo está atento a cada fragmento de informação que chega do front. Noite passada, bombas caíram a alguns metros da maior central nuclear da Europa, no sul da Ucrânia, com 6 reatores e geração total de 6.000 megawatts (Angra 1 gera 640 megawatts). Mais de um milhão de cidadãos daquele país já encontraram refúgio nos países vizinhos, onde estão sendo acolhidos com carinho. Ontem, o presidente da França, depois de passar hora e meia (contadas no relógio) em conversa telefônica com Putin, fez comentário assustador: “O pior ainda está por vir”.

Enquanto isso, nosso esclarecido capitão continua firme em seu fascínio por Putin. Parece até que tem atração por homens poderosos – Trump, de estatura avantajada, e agora Putin, menos dotado pela natureza, com seu metro e setenta. Ainda ontem, fez declaração agradecida ao ditador russo. Confessou estar feliz pelo cala-boca que Putin teria dado ao mundo sobre uma suposta e irreal internacionalização da Amazônia brasileira.

Pouco inteirado da realidade, Bolsonaro acredita que as expressões Amazônia e Amazônia brasileira são sinônimas. Não são. A Amazônia – falo da floresta integral, ou do que resta dela – se estende por 8 países. O Brasil tem, portanto, 7 sócios nessa região. A internacionalização, seja lá o que isso possa significar, da Amazônia é irrealizável. Teria de expropriar parte do território de 8 países, um dos quais é a própria França (Guiana Francesa). Seria um quebra-cabeça impossível de resolver.

Embora a espoliação da Amazônia brasileira seja o pesadelo número 1 de muito general, e do próprio Bolsonaro, ela é inviável. Inviável não: ela acontece diariamente. A espoliação vem sendo praticada por garimpeiros, madeireiros e grileiros ilegais, nas barbas do andar de cima. Ou com sua cumplicidade.

Portanto, quem tiver contacto com o capitão faça a fineza de informá-lo que não precisa reverenciar Putin, visto que não é a Amazônia brasileira que está prestes a ser ocupada por sabe-se lá que exército. É o mundo que está diante de uma encruzilhada. O embate é entre a democracia e a autocracia oligárquica. Estamos decidindo em que mundo queremos viver.

Não convém confiar em autocratas. A Ucrânia também acreditava que os russos eram um país-irmão. Até que um dia os mísseis de Putin começaram a derrubar prédios e seus tanques de guerra invadiram o país.

No dia em que zunirem os mísseis de Putin, o que é que Bolsonaro vai fazer? Pedir ajuda a quem, se já se indispôs com todos?

A queda de Bolsonaro

José Horta Manzano

Grande estardalhaço se está fazendo em torno da queda de aprovação que castiga doutor Bolsonaro. O Instituto Datafolha, que vem fazendo esse tipo de levantamento desde os tempos de Collor de Mello, afirma que nenhum presidente em primeiro mandato sofreu, em tão pouco tempo, baixa de popularidade tão significativa. Para ser confiável, um levantamento tem de partir de bases concretas e comprovadas. Ora, no caso em questão, acredito que esses alicerces estejam faltando.

O Instituto diz que, aos três meses de mandato, FHC era aprovado por 39% da população, Lula da Silva chegava a 43% e a doutora atingia incríveis 47%. Na rabeira, doutor Bolsonaro não passa de 32%. À vista desses números, analistas afirmam que a queda de popularidade do atual presidente foi vertiginosa. Queda? Será mesmo? Tenho cá minhas dúvidas.

Para medir a queda, será preciso conhecer a aprovação do presidente no momento da eleição. A tarefa é impossível, dada a ausência de levantamento. Que fazem, então, os analistas? Partem da hipótese tácita de cada presidente, no momento da eleição, ter contado com aprovação plena. Visto que é virtualmente impossível alguém ser unanimemente aprovado, parte-se do pressuposto de todos os presidentes terem iniciado no mesmo patamar de aprovação, um número próximo da porcentagem de votos com que cada um foi eleito. É aí que reside o erro.

FHC, Lula e Dilma foram eleitos pelos méritos que o eleitor sabia que tinham ou supunha que tivessem. Portanto, pode-se considerar que seus eleitores ‒ que representam, grosso modo, metade do eleitorado ‒ votaram neles porque os aprovavam. Assim, esses três presidentes partem de um mesmo patamar de aprovação. A comparação entre a queda de cada um deles é válida. Já o caso de doutor Bolsonaro é diverso.

Parte considerável dos que votaram no atual presidente não o fez por convicção mas por exclusão. Votaram nele não por adesão à causa bolsonarista, mas para esconjurar o espectro da volta do petismo. Portanto, ainda que possa soar paradoxal, boa parte dos eleitores de Jair Messias não aprovava o personagem já àquela altura. Foram votar de nariz tapado, só pra afastar o mal maior. Já estavam de má vontade, preparados pra lançar um olhar pra lá de crítico ao novo governo.

É o que está ocorrendo. Acredito que os 32% que agora aprovam doutor Bolsonaro são o núcleo duro de seus eleitores, aqueles que o escolheram pelos méritos que tinha ou se supunha tivesse. A diferença entre esse patamar e os 55% ‒ sua votação total ‒ representa aquela porção do eleitorado que lhe deu ‘voto útil’. Não sendo bolsonaristas desde criancinhas e vendo que o perigo petista se afastou, esses cidadãos têm dificuldade em aprovar um presidente que, ainda por cima, não é lá essas coisas. Assim, aguçam suas críticas.

É o que me parece. A aprovação do presidente não “caiu”. O fato é que ela nunca esteve lá em cima. Portanto, não pode ter “caído” de uma altura onde nunca esteve.

Brasil de perto

José Horta Manzano

Hoje o BrasilDeLonge foi ver o Brasil de perto: fui votar. Volto com impressões contrastadas.

A organização
Só em Genebra são perto de 9 mil eleitores inscritos. Para acolher todo esse povaréu, o consulado alugou um espaço num centro de convenções e lá instalou numerosas secções eleitorais. Não sei por que razão, algumas tinham grande quantidade de gente esperando pra entrar enquanto outras não tinham ninguém. O contraste entre as secções concorridas e as demais era muito forte. Não atino a razão.

A espera
Com o voto no exterior, o Brasil exporta uma especialidade genuinamente nacional: a fila. Há muitos anos eu não fazia fila, coisa desconhecida por aqui. Pra começar, havia uma fila de uns 15 minutos na calçada só pra poder entrar no centro de convenções. Em seguida, outra fila mais rápida pra saber o número da secção, dado que o que está escrito no título não vale mais. Pra terminar, mais uma fila interminável, de hora e meia, pra entrar na secção. Deu um total de duas horas, tempo suficiente pra voltar com dor nas pernas.

Calor humano
Cáspite! Não imaginava que houvesse tantos compatriotas por aqui! Fila é sinônimo de proximidade. (Dependendo do espaço disponível, pode tornar-se sinônimo de contacto íntimo.) Proximidade + longo tempo de espera = conversa animada com o vizinho de fila.

Diferença de costumes
Por aqui, ninguém costuma se dirigir a estranhos. Hoje deu pra lembrar que no Brasil não é bem assim. Logo de cara, minha vizinha de fila me olhou no fundo dos olhos e tascou «‒ Desculpe perguntar, mas o senhor vai votar em quem?» Pausa pra um momento de estupor. É nessas horas que a gente se dá conta de que as diferenças culturais são ainda mais fortes que diferenças de nível econômico ou social. Por aqui, ninguém ousaria fazer uma pergunta dessas. Nunca, jamais, em tempo algum. Assim mesmo, respondi.

Razão do afluxo
Dirigi-me a um senhor de crachá, que fiscalizava o movimento. Perguntei a ele por que razão havia tanta gente a ponto de ser preciso fazer fila. Lembrei que, nas eleições anteriores, nunca houve espera. Responde ele que, desta vez, dada a polaridade da eleição, todos fazem questão de votar. Ninguém quer deixar a decisão na mão de outrem. O nível de abstenção baixou muito. Faz sentido.

O novo e o velho
Fiquei encantado com o tal de aplicativo que substitui o título de eleitor. Em vez de levar aquele papelzinho verde que a gente nunca sabe onde guardou, os que baixaram o programinha exibem o celular e lá está, na tela, o título com foto e todos os dados. E o número da secção se atualiza automaticamente. Coisa do outro mundo! No entanto, como nada é perfeito, todo esse automatismo cessa no momento em que o eleitor se aproxima da mesa. A partir daí, três figuras sorridentes começam a procurar seu nome em listas impressas. Igualzinho a como se fazia no século passado. Nem sempre encontram na primeira tentativa. Daí, o mesário passa para o colega. Se o colega falhar ‒ aconteceu, acreditem ‒ o presidente entra na dança. Encontrado finalmente o nome do cidadão, ele é autorizado a votar. Terminado o exercício, dão-lhe um papelzinho minúsculo. É o «comprovante», documento importantíssimo, que deverá ser guardado preciosamente. Um trapinho! É coisa do século 19!

Consideração final
Se estas eleições ‒ com segundo turno ou sem ele ‒ nos livrarem definitivamente da praga do lulopetismo, toda essa aventura terá valido a pena. Valha-nos, São Benedito!

A arma do povo

José Horta Manzano

Estava observando fotos dos comícios do interiorzão nos anos 1950. Aquilo, sim, é que era fervor popular! Candidatos espremiam o gogó para transmitir sua mensagem em linguagem que a plateia pudesse entender. E, ao final, saíam carregados nos ombros do povaréu.

Faixas ondulantes ameaçavam: «Voto, a arma do povo». Na época, passava batido, mas hoje, pelo ideário da democracia amadurecida que pretendemos ser, é fortemente recomendado banir esse tipo de vocabulário belicoso. Aliás, pensando bem, é mesmo incongruente chamar voto de arma.

O fato de eleições políticas serem evento maior mascara seu verdadeiro caráter. Não é forçado comparar eleição nacional a eleição de representante sindical. Ou de síndico de condomínio. Em todos esses casos, a operação se trava num grupo que escolhe um dos seus para representar a todos. Ou que vota pra designar o chefe. Trocando em miúdos, é isso aí. E pode guardar o troco.

Comício em 1955 ‒ Voto: a arma do povo

Quem escolhe dirigente ou representante não usa arma, mas exerce vontade própria. A escolha do vocabulário, no fundo, mostra se o povo entendeu o que quer dizer viver em democracia.

Em choque frontal contra essa evidência, candidatos destas eleições de 2018 ressuscitam vocabulário que deveria estar morto e enterrado. Ouvem-se, aqui e ali, discursos que conclamam a combater, destruir, aniquilar um adversário visto invariavelmente como inimigo.

Os que compartem essas ideias e usam vocabulário desse calibre não fazem um favor à democracia, essa mesma democracia que lhes permite discursar livremente. Dão tiro no pé.

A ponte e a Copa

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 agosto 2018.

Faz dez dias, uma ponte desabou na Itália. Foi um horror difícil de descrever. O tráfego era denso naquele dia. O desmoronamento arrastou carros e caminhões para o abismo, deixando dezenas de vítimas, entre mortos e estropiados. Na hora de alinhavar o balanço da tragédia, voaram acusações. Era imperativo designar culpados. Foram apontados os técnicos encarregados da inspeção permanente, a concessionária da estrada, o arquiteto idealizador da obra (falecido há uma eternidade), as autoridades provinciais, até o governo central. Sem sucesso. Assim como é ingênuo esperar de um solitário messias a redenção de um povo, impossível será atribuir a responsabilidade de tamanha catástrofe a um único fator.

O drama de Gênova, como toda calamidade, vem de longe e tem muitos pais. Errará quem se obstinar em eleger causa única. O mesmo raciocínio vale para a tragédia brasileira, que nos desaba sobre a cabeça quotidianamente. Desastre como o nosso não se arma em um dia. É obra de gerações. Nos tempos coloniais, a proscrição de cursos superiores já anunciava a ignorância que se havia de instalar e que acabaria sendo louvada (quem diria!), séculos mais tarde, por um figurão da República. Enquanto a América Espanhola inaugurava a primeira universidade nos anos 1550, a colônia lusa teve de se contentar, por três séculos, com mestres-escolas esforçados, mas de limitados recursos. Como nada fica sem consequência, pagamos hoje a conta atrasada. Com juros e correção.

E como dar cabo do atraso acumulado? Como chacoalhar o vidro pra fazer a emulsão? A essa pergunta, a resposta costuma ser: Educação. Sem dúvida. Boa escola pública e formação profissional de qualidade estão entre os ingredientes básicos do sucesso de um povo. Só que, no nosso caso, visto que partimos de patamar baixo, o caminho será longo, vai levar gerações. Supondo que, por milagre, a Instrução Pública adotasse novas diretivas agora, o Brasil não poderia esperar parado até que os guris, munidos de formação adequada, chegassem à idade produtiva. É imperativo encontrar um atalho que dê resultados já.

A cada quatro anos, tem Copa. Vêm aqueles meses de fervor popular durante os quais a pátria calça chuteiras e os olhares não desgrudam dos gramados e do entorno. Cidadãos comuns que, na vida normal, não costumam frequentar estádios nem vestir camisa de time, são capazes de recitar o nome dos integrantes da Seleção, reservas incluídos. Os fatos e gestos de cada jogador, o braço torcido deste, o mau-humor daquele, o dedinho quebrado de um terceiro, a nova namorada daqueloutro, nada escapa. Tudo o que concerne às estrelas do momento é de domínio público. Aqueles que nos representam no campo carregam nos pés a promessa de heroísmo que palpita na cabeça de todos nós.

Por coincidência, também a cada quatro anos, tem eleição das gordas, pra uma pancada de cargos. Na Copa, que o Brasil vença ou deixe de vencer, não muda grande coisa na vida de ninguém. Já os dirigentes e os representantes do povo que saírem das urnas vão, sim, determinar o destino da nação. No entanto, é esquisito que, a poucas semanas do dia da eleição, a maioria não tenha ainda escolhido candidato para os diversos cargos. Penso, principalmente, nos deputados e senadores que vão votar leis e reformas que balizarão a vida de todos nós.

E pensar que é justamente esse o (único) atalho susceptível de produzir, em prazo mais curto, as reformas pelas quais todos ansiamos. Votar em fichas sujas, trapaceiros, ladrões ou aventureiros é condenar o país a permanecer no atraso em que se encontra desde os tempos coloniais. Cada eleitor deveria se informar sobre o passado, a experiência, o programa (e a eventual folha corrida) do candidato que lhe parecer simpático. Hoje em dia, com as facilidades da rede e dos portais de transparência, é tarefa pra lá de simples. Só não faz quem não quer. Presidente é importante, mas deputado e senador têm mais força. Sem o apoio da Câmara e do Senado, o presidente pode muito pouco. É nossa escolha de representantes que desenhará o perfil do país até a próxima Copa.

A tentativa de colmatar uma brecha

José Horta Manzano

Em artigo de dois dias atrás, comentei uma fala de doutor Luís Roberto Barroso, ministro do STF, que detectou um «pacto oligárquico entre agentes públicos e privados para saquear os cofres públicos do Brasil».

Não só concordei com a afirmação de doutor Barroso como também expus, em algumas pinceladas, minha própria visão da oligarquia que dirige nossos destinos. Na minha avaliação, nossa elite dirigente é verdadeira nomenklatura(*), que não faria papelão se comparada com a que comandava o destino da extinta União Soviética.

A sessão de ontem do STF, em que se julgou o pedido de habeas corpus do cidadão Lula da Silva, deu mais uma prova da existência e da solidez dessa classe superior de cidadãos. A meu conhecimento, nenhum comentarista político se achegou ao detalhe para o qual vou apontar.

Não sei se o distinto leitor se terá dado conta, mas os ministros que votaram contra a concessão de HC ao Lula são justamente os que chegaram ao STF mais recentemente. De fato, os seis magistrados (Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia) são os últimos a terem sido nomeados.

Para ser exato, confirmo que, entre eles, se insere doutor Dias Toffoli, um estranho no ninho. Reprovado duas vezes em exame para a carreira de juiz e ex-advogado do PT, entrou ‘de penetra’ no seio das sumidades. Quem lhe abriu as portas foi justamente Lula da Silva, então presidente da República. Na época, a nomeação deixou um desagradável sabor de que o novo ministro era «elemento infiltrado». Isso explica por que não votou como os demais colegas recém-chegados.

by Yannick “Ygreck” Lemay, desenhista canadense

Os ministros mais antigos foram favoráveis ao livramento do acusado. Todos eles. Esse voto reforça a tese de uma nomenklatura(*) ameaçada que saca todas as armas para se defender. O cordão de isolamento que tentaram formar em torno do Lula não emana de fortuito sentimento humanitário para com um velhinho torturado. O problema maior é que, derrubado o demiurgo, uma brecha se abriria na corporação ‒ terrível ameaça para o clube! Caído ele, outros podem cair!

O Lula sempre funcionou como escudo. Primeiro, para o partido que ajudou a fundar. Em seguida, quando já na presidência, para a elite corrupta que se nutre dos dinheiros públicos. Enquanto resistisse de pé, ele era a garantia de que nenhum mal atingiria os demais sócios do grupo. Muita gente fina se aproveitou dos anos de domínio lulopetista para engordar o patrimônio.

Quando as artes do ex-metalúrgico o levaram a ser acusado, processado e condenado, a nomenklatura(*) se eriçou. Era imperativo deter o curso dos acontecimentos. Se ele fosse efetivamente preso, a solidez da corporação estaria em perigo.

O voto individual de cada ministro no julgamento de ontem deu resultado apertado mas mostrou um lado positivo: os últimos que chegaram ainda não foram contaminados pelos miasmas da corporação.

O Brasil teve muita sorte. Se a decisão de livrar ou não o demiurgo tivesse sido postergada de alguns anos, talvez o contágio já se tivesse alastrado e atingido a maioria dos ministros. Escapamos de boa.

(*) Nota para os mais jovens
A palavra nomenklatura era muito usada no tempo em que existia a URSS ‒ União Soviética. Designava a classe superior, a elite do país. Era um seleto clube de cidadãos mais iguais que os outros. Tinham acesso a bens e favores que eram negados aos demais. Tinham permissão para viajar ao estrangeiro e para fazer compras em lojas que ofereciam produtos ocidentais. Podiam possuir automóvel e desfrutar de casa de campo. E tinham direito a muitos favores mais, tudo por conta da princesa.

Em alguns aspectos, a elite que transita em certos corredores de Brasília guarda forte semelhança com a nomenklatura soviética.

Pagar pra ver novela ‒ 2

José Horta Manzano

Você sabia?

Na Suíça, a chamada democracia direta não é total e absoluta. Não implica que as decisões das autoridades sejam sistematicamente submetidas a plebiscito para checar se o povo está de acordo. Fosse assim, o sistema viveria travado e nenhuma decisão vingaria. Se toda lei tivesse de passar por esse processo, só entraria em vigor ‒ se entrasse ‒ anos depois de votada. Autobloqueante, o sistema seria inexequível.

A democracia direta helvética se distingue das democracias comuns pelo fato de outorgar a qualquer cidadão o direito de lançar uma proposta de emenda constitucional. Só a Constituição pode ser modificada por esse sistema, não a lei comum. Esse processo, chamado «iniciativa popular», equivale ao que dizemos PEC no Brasil. Com algumas particularidades.

No Brasil, a proposta de emenda constitucional é recurso pesado. Só pode ser lançado por um punhado de altas autoridades (OAB, senadores, deputados). E será votada no Congresso, sem participação direta do eleitor. Na Suíça, em teoria, qualquer um pode lançar uma iniciativa. Dado que a campanha comporta um certo custo ‒ outdoors, anúncio em jornais, comícios, impressão de santinhos ‒ as «iniciativas populares» costumam ser promovidas por um grupo de cidadãos, uma associação ou mesmo um partido político.

Antes de coletar as assinaturas, o comitê de «iniciadores» deve obter o aval das autoridades federais, para ter certeza de que a proposta não fere a Constituição. Caso o teor da iniciativa seja aprovado, as autoridades fixarão um prazo (algo em torno de três meses) para que seja colhido o número necessário de assinaturas. Os iniciadores vão, então, à luta. Visitam feiras, mercados, centros comerciais, porta de igrejas. Se conseguirem quantidade suficiente de adesões dentro do prazo determinado, a iniciativa terá tido sucesso. Todas as assinaturas são enviadas a Berna para serem validadas. Se tudo der certo, as autoridades federais são obrigadas a programar um plebiscito a ocorrer dentro de um prazo razoável.

Neste domingo 4 de março, o povo foi chamado a votar. Tinham de se pronunciar sobre uma iniciativa popular que pedia o fim da taxa obrigatória para ouvir rádio e ver tevê. Os iniciadores, como se pode imaginar, eram jovens que, habituados a viver dependurados num smartphone, não consideram importante a existência de emissoras de rádio e tevê públicas.

Acontece que a Suíça é um país peculiar. No que tange à língua materna, os cidadãos se dividem em segmentos de tamanho desigual. Enquanto 70% são de língua alemã, apenas 20% falam francês e parcos 10% têm o italiano como língua materna. Desde sempre, as emissoras públicas favoreceram os falantes de línguas minoritárias. Todos os grupos linguísticos recebem programas de qualidade, o que não seria possível se as estações regionais dependessem unicamente de receitas de publicidade. Em resumo, ao pagar as taxas, os falantes da língua majoritária financiam os minoritários. É sustentáculo ultraimportante da coesão nacional.

Bom, chega de suspense. Abertas as urnas e contados os votos, constatou-se que a iniciativa popular que reclamava a abolição da taxa audiovisual tinha sido varrida do mapa. Nada menos que 72% dos votantes rejeitou a abolição. Foi um belo exemplo de solidariedade nacional.

Um estrangeiro pode até se surpreender com o resultado e achar que o país é habitado por bobões que preferem continuar pagando taxa de 1500 reais por ano quando poderiam tê-la eliminado. É verdade que o preço é salgado. Mas, assim como não existe almoço grátis, a concórdia e a coesão nacional têm seu custo. A radio-televisão pública nacional é um dos seus pilares. Os suíços entenderam isso.

Assunto requentado

José Horta Manzano

Dizem que vale a pena requentar certos pratos: o gosto fica ainda melhor. Já as más línguas murmuram que isso não passa de desculpa de cozinheira atrapalhada. Enfim, quem não se conformar, que vista o avental, arregace as mangas e ponha as mãos na massa.

O voto eletrônico, apresentado anos atrás como conquista nacional digna de suscitar orgulho em todos os brasileiros, não pára de voltar às manchetes. É assunto requentado com frequência. É verdade que, quando se generalizou, a urna eletrônica (que lembra vagamente uma calculadora) nos pareceu um progresso extraordinário. Nosso país se tornou o primeiro no mundo(!) onde todos os votantes tinham acesso à engenhoca. Brasiiiiil!

Passados alguns anos, a poeira baixou e as suspeitas cresceram. Testado em outras terras, o sistema acabou descartado por se revelar opaco e de difícil controle. A possibilidade de fraude em grande escala existe. E, caso ocorra, será trambique praticamente impossível de ser comprovado. O crime perfeito. Muitos se perguntam ‒ eu, inclusive ‒ por que estranha razão o Brasil continua a ser o único a utilizar esse método.

Em vista das incertezas, as democracias mais ricas e mais civilizadas aferram-se ao velho e bom sistema de voto escrito. É tão mais simples e próximo do eleitor. Antes de entrar na cabine, o votante apanha a(s) cédula(s) oficial(is). Em seguida, escreve o número de seu candidato a cada cargo. Ao sair, enfia o voto na urna transparente. Se quiser, vale levar cola de casa.

Terminada a votação, os mesários de cada secção eleitoral são encarregados de apurar as próprias urnas, num escrutínio feito em público e diante de fiscais dos diferentes partidos. Em poucos minutos, a urna terá sido apurada. Anotam-se os resultados numa planilha que será despachada ao TSE. E pronto. Caso haja contestação, as cédulas poderão ser recontadas a qualquer tempo. O sistema é transparente.

Em vez disso, torramos o dinheiro do contribuinte na compra de 600 mil urnas (seiscentas mil!). Em consequência da desconfiança de muitos, um arremedo de voto escrito foi alinhavado. Cinco porcento das urnas contarão com um puxadinho, uma impressora que reproduz, em princípio, o voto emitido pelo cidadão. Pode acrescentar o custo da impressora ao da urna, que quem paga é a viúva.

Ora, diabos, não seria mais simples que o próprio cidadão depositasse na urna o voto em papel? O que é que justifica essa intermediação obrigatória da engenhoca que lembra uma calculadora? Sei não. Vejo duas explicações. A primeira é a recusa das autoridades que instituíram o voto eletrônico de admitir que se enganaram. A segunda… é bem mais tenebrosa. Melhor nem pensar nisso.

Integração furada

José Horta Manzano

Pela 51a. vez, os líderes do Mercosul se encontraram em reunião de cúpula. Realizada desta vez em Brasília, a cimeira se propunha a avaliar o balanço do período de gestão temporária exercida pelo Brasil e para entregar a batuta ao presidente paraguaio, cujo país presidirá o bloco pela próxima temporada.

Engana-se quem imaginar que esses encontros se realizem em comitê restrito, a portas fechadas, com a presença apenas dos quatro presidentes mais um ou dois assessores. Membros do Mercosul e Estados associados se fazem acompanhar por alentada comitiva. A enorme sala de reuniões do Itamaraty dá justinho pra acomodar a tropa toda.

Cúpula do Mercosul, 20-21 dez° 2017

Como sói acontecer, o volumoso número de participantes está na razão inversa dos resultados. Trocam-se amabilidades, tiram-se fotos de família, assinam-se documentos preparados com grande antecedência, e vamos ficando por aí. Resoluções, no duro, não se tomam. Querem a prova?

A cúpula se desenrolou dias 20 e 21 de dezembro. Por coincidência, a ONU tinha marcado para 21 de dezembro o voto de uma resolução de repúdio à decisão dos EUA de reconhecer em Jerusalém a capital de Israel. Embora o resultado do voto não tenha o poder de fazer os EUA voltarem atrás, reveste-se de alto simbolismo. Evidencia a rejeição a uma decisão que contraria jurisprudência da própria ONU.

Como eu, o distinto leitor há de ter imaginado que a data não podia cair melhor. O fato de os quatro presidentes do Mercosul estarem reunidos ‒ e rodeados de dezenas de assessores ‒ favoreceu um entendimento a fim de todos votarem uniformemente, certo? Errado!

Mostrando mais uma vez que não tem vocação para se inserir nos negócios do mundo, o Mercosul fez cara de paisagem. Não ocorreu a ninguém combinar um voto homogêneo. A debandada foi vexaminosa: Brasil e Uruguai votaram a favor da moção, enquanto Argentina e Paraguai se abstiveram.

Pega mal. Um bloco que não consegue nem pôr os próprios membros de acordo num voto simbólico na ONU não pode ser levado a sério pelo resto do planeta. Quem é que lhe vai dar crédito?

Se nem isso conseguem, por que insistir em levar adiante esse arremedo de organização regional? Depois de um quarto de século e 51 reuniões de cúpula, o que é que sobra? Se espremer, não sai muito caldo. Melhor seria que acabassem com esse circo e que cada um seguisse seu caminho. Daria mais certo.

Nota
Só para constar, o resultado final do voto de condenação à atitude americana de reconhecer Jerusalém como capital de Israel foi o seguinte:

A favor:    128 países
Contra:       9 países
Abstenções:  35 países

O voto do Conselho de Segurança

José Horta Manzano

A ONU, fundada em 1945, é retrato do mundo político daquele momento. A antiga Sociedade das Nações, criada logo após o primeiro conflito mundial, não tinha sido capaz de evitar o segundo. A ONU foi pensada como anteparo a futuras guerras. Embora não tenha conseguido evitar todas, contribuiu para impedir a catástrofe nuclear que se temia nos tempos da Guerra Fria.

Quando da fundação, havia duas condições para fazer parte do clube. A primeira era ser Estado independente. A segunda, ter declarado guerra à Alemanha pelo menos três meses antes do fim do conflito. Os membros fundadores não foram muitos: resumiram-se a 51. Os perdedores da guerra só foram admitidos anos mais tarde, e não todos ao mesmo tempo. Hungria e Itália entraram em 1955. No ano seguinte, foi a vez do Japão. A Alemanha só se tornou membro em 1973.

ONU ‒ sede de Nova York

Prevendo que, em casa onde vive muita gente, todos falam e ninguém se entende, os idealizadores criaram o Conselho de Segurança, órgão que, de facto, toma as decisões importantes. O CS, como é conhecido, compõe-se de 15 membros. Cinco deles são permanentes e os demais, temporários.

Os membros permanentes são justamente os maiores e mais fortes aliados que haviam vencido a Segunda Guerra. Por acaso, todos eles acabaram se tornando potências nucleares, ainda que não o fossem em 1945. São eles: EUA, Rússia (antes URSS), China, Reino Unido e França. Os dez membros rotativos são eleitos com mandato de dois anos. A cada ano, renova-se metade das dez cadeiras.

Os não-permanentes são Estados distribuídos equitativamente pelos continentes. A América Latina tem direito a duas cadeiras. Entre os membros não-permanentes, o Japão é o que já foi eleito mais vezes: está cumprindo o 11° biênio. Em segundo lugar, vem o Brasil, que já ocupou uma cadeira no CS durante 10 biênios. Em seguida, está a Argentina, eleita 9 vezes. Por razões que a razão desconhece, o Brasil não se tem candidatado a uma vaga rotativa estes últimos anos. Pelo mecanismo de funcionamento da ONU, terá de esperar até 2022 ou 2023 para postular de novo.

Atualmente, o Uruguai (biênio 2016-2017) e a Bolívia (biênio 2017-2018) ocupam as cadeiras do CS reservadas para a América Latina. O Japão, membro ativo e assíduo, tem lugar garantido até o fim de 2017. As regras da ONU não permitem a eleição de um membro não-permanente para dois biênios consecutivos.

ONU ‒ sede de Genebra

Para ser bem sucedida, uma proposição submetida ao CS terá de ser aceita pela maioria simples dos 15 membros, ou seja, se obtiver 8 votos a favor, entra em vigor. Mas há um senão: o voto contrário de um dos membros permanentes tem valor de veto.

O bombardeio com armas químicas orquestrado pelo ditador da Síria contra um vilarejo, que matou dezenas de civis e horrorizou o mundo, foi objeto de pedido de resolução de reprovação apresentado ao CS por EUA, França e Reino Unido. Submetido ao voto, o pedido obteve 10 votos a favor, 3 abstenções e 2 votos contrários.

Embora a maioria dos membros tenha votado a favor, um dos que se opuseram era a Rússia, cujo voto contrário tem valor de veto. Assim, a resolução não pôde ser  adotada. Sabe o distinto leitor qual foi o país que acompanhou a Rússia? Pois foi nossa vizinha e hermana, a Bolívia.

Surpreendente, não? Nenhuma decisão governamental é inocente ‒ há sempre algum interesse por detrás, ainda que não seja claro à primeira vista. Não acredito em legames ideológicos entre a Bolívia e o sanguinário ditador sírio que justifiquem voto tão bizarro. O buraco é mais embaixo.

Com o “projeto criminoso de poder” fora de cena, o Brasil volta ao caminho da civilização. Banidos os Kirchner, a Argentina também se afasta da esfera bolivariana. A aproximação entre Cuba e EUA, inaugurada por Obama, tende a apartar a ilha caribenha da influência de Caracas. Por fim, a orientação bolivariana da própria Venezuela está em acelerada decomposição. O alinhamento da Bolívia à Rússia parece ser sinal desesperado de busca de apoio, de procura de novo padrinho, em virtude de crescente isolamento. Não acredito que Moscou se deixe enternecer pelo olhar langoroso de La Paz.

O exemplo de nossos guias

Lula caricatura 2Ricardo Noblat (*)

Nada, ontem, esteve mais impregnado de simbolismo do que a decisão dos ex-presidentes da República Lula e de Dilma Rousseff de se absterem de votar.

Lula estava em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e por lá ficou. Dilma voou de Porto Alegre a Belo Horizonte para visitar a mãe doente. Chegou ao hospital em um helicóptero.

by Lezio Jr, desenhista paulista

by Lezio Jr, desenhista paulista

Os dois não votaram porque seus candidatos às prefeituras de São Bernardo e de Porto Alegre foram derrotados ainda no primeiro turno da eleição.

Deram um mau exemplo. Daqueles que foram autoridades máximas da República, eleitos pelo voto popular, esperam-se sempre gestos que reforcem o compromisso coletivo com a democracia.

Se não quisessem nenhum dos candidatos, Lula e Dilma poderiam ter anulado o voto ou votado em branco. A abstenção simplesmente desvaloriza o ato de votar.

(*) Ricardo Noblat é jornalista. O texto é excerto de artigo publicado no jornal O Globo, 31 out° 2016.

Eleições gerais?

José Horta Manzano

Um senador baiano acaba de propor que a Constituição seja emendada a fim de fazer coincidir o mandato de todos os eleitos. Fosse aprovada, a PEC eliminaria as eleições a cada dois anos, como ocorre atualmente. Suprapartidária, a proposta arregimentou, logo de cara, 34 senadores a favor, distribuídos num amplo espectro que vai do PSDB ao PT.

A justificativa maior é a diminuição de gastos de campanha, uma economia de escala. Cem mil santinhos impressos não custam o dobro de cinquenta mil. Num mesmo palanque, há lugar para candidatos a diferentes níveis. Coligações partidárias ficariam mais claras ‒ de fato, não faria sentido que coalizões federais e municipais divergissem.

Urna 7Sob um ar de bondade, no entanto, uma armadilha está sendo montada. Suas excelências estão-se aproveitando do atual clamor popular para ajeitar o sistema em benefício próprio. Estão misturando estações. Todos sabem que as finanças nacionais não foram arruinadas por campanhas milionárias, mas pela incompetência no trato da coisa pública e, acima de tudo, pelo extraordinário assalto ao erário.

A proposta do senador, qual emplastro em perna de pau, não vai curar o doente. Reforma bem mais profunda terá de ser feita. A criação de partidos tem de ser de alguma maneira refreada. A representação proporcional dos Estados na Câmara, atualmente distorcida, tem de ser corrigida. As regras de financiamento público de partidos ‒ o famigerado Fundo Partidário ‒ têm de ser repensadas.

Urna transparente

Urna transparente

O vigor de uma democracia mede-se, entre outros parâmetros, pela frequência de eleições e outras votações. Dependesse de mim, faria o inverso: aumentaria a periodicidade das votações.

Instituiria, para começo de conversa, o voto distrital. Acabaria com as bizarras figuras de vices e de suplentes. Quando um eleito ‒ fosse ele vereador, prefeito, deputado, senador, governador ou presidente ‒ não pudesse mais exercer a função, eleição parcial seria convocada.

Urna 2Numa democracia sólida e vigorosa como a França, é assim que se procede. Acreditem, eleição regional não causa trauma nacional. Pelo contrário: quantas mais há, melhor fica. Se, por fatalidade, um deputado falece, organizam-se novas eleições unicamente no distrito que ele representava.

Voto 1Na Suíça, o povo é consultado, em média, quatro vezes por ano. A cada consulta, três, quatro, cinco assuntos costumam ser tratados. Algumas consultas são meramente locais, enquanto outras abrangem o país inteiro. O voto, naturalmente, não é obrigatório. Vota-se majoritariamente por correspondência, duas ou três semanas antes do dia D. De voto eletrônico, ninguém quer ouvir falar.

Num país como o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, há de ser possível organizar, sem tropeços, votos parciais e nacionais. É questão de hábito. De todo modo, o preço a pagar pelo vigor democrático é a multiplicação de votos, eleições e consultas ao povo.

Dinheiro para todos

José Horta Manzano

Você sabia?

Faz uma eternidade que o antigo senador paulista Suplicy batalha por uma ideia fixa: instaurar um rendimento mínimo de base destinado aos mais necessitados. A bolsa família, concebida com objetivos mais eleitoralistas que altruístas, não satisfez o anseio do homem político.

Arca 1Desde que dona Dilma assumiu, o antigo senador ‒ que alguns consideram desprovido do senso do vexame ‒ vem tentando marcar encontro com a mandatária. Múltiplos pedidos foram sistematicamente repelidos pela arrogante «gerentona». Agora, depois de suspensa, com o vazio em torno de si se acentuando, dignou-se a conceder-lhe entrevista. Ele foi. A mídia pouco se interessou, visto que a presidente, posta de molho, já não manda.

Conceder benefício mínimo automaticamente a todos os cidadãos não é ideia de Suplicy. Em vários países, a discussão tem aparecido, aqui e ali, sem nunca prosperar. A Suíça foi mais longe. Dado que qualquer cidadão pode pedir a convocação de plebiscito nacional ‒ desde que consiga colher o necessário número de assinaturas no prazo estipulado ‒ um passo importante está sendo dado neste domingo 5 de junho.

Entre outras matérias federais e cantonais, os cidadãos deste país deverão se pronunciar sobre a inclusão ou não na Constituição Federal de novo artigo. É o seguinte:

Art. 110a ‒ Rendimento de base incondicional

1. A Confederação instaura um rendimento de base incondicional.

2. O rendimento de base deve permitir a cada um levar existência digna e participar da vida pública.

3. Lei posterior estipulará o financiamento e o montante do rendimento de base.

Pronto, mais simples, impossível. O que se busca é inscrever o princípio na Constituição. O detalhe virá depois. O artigo posto em votação não estipula montante. Diz só que o benefício é incondicional. Todo habitante do território faz jus, seja rico ou pobre, velho ou jovem, nacional ou estrangeiro, patrão, assalariado ou desempregado.

Dinheiro 1Olhando assim, em primeira leitura, é atraente. Em teoria, a pobreza acabaria e o desemprego deixaria de assustar. No entanto, a iniciativa não é apoiada por nenhum partido político. Por algo será, como dizem os espanhóis ‒ alguma razão tem de haver.

Os oponentes argumentam que a medida acarretaria peso insuportável para a economia nacional. Novos impostos teriam de ser criados. Cidadãos que ganham pequeno salário tenderiam a abandonar o emprego para viver unicamente da alocação caída do céu. A oferta de empregos explodiria e acarretaria o desmoronamento da economia e o resultado seria, ironicamente, a impossibilidade de financiar o rendimento incondicional.

Dinheiro voadorUma desigualdade seria instaurada entre cidadãos ativos e inativos. O aumento de impostos empurraria empresas nacionais a fechar as portas e instalar-se no estrangeiro. Por detrás de tudo isso, a iniciativa sacode um dos princípios sagrados da sociedade suíça: o valor do trabalho. Dinheiro que pinga todos os meses sem ser fruto de trabalho não combina com o espírito nacional. No momento em que escrevo, os votos ainda estão sendo apurados. Mas já se configura uma vitória estrondosa do «não».

Talvez, no imaginário romântico do senador brasileiro, um mundo ideal em que dinheiro nasce em árvore seja possível. O povo suíço não compartilha essa opinião.

Sistema eleitoral (mal) copiado

Urna 5José Horta Manzano

Ricardo Noblat comentava ontem, no portal que mantém n’O Globo, o afastamento do deputado Cunha determinado pelo Supremo Tribunal Federal. Constatou que o STF fez «o que a Câmara, por fraqueza e corporativismo, se arrastava para fazer, e tudo indicava que nunca faria: extirpar um mal que envergonhava o país embora não envergonhasse a maioria dos deputados».

Está aí resumida a aberração da representatividade política à brasileira. Uma arquitetura eleitoral (mal) copiada de outras culturas e (mal) adaptada a nossa realidade gerou um fosso entre representantes e representados. Tem de ser relativizada a afirmação do populismo mercenário dos últimos anos segundo a qual o Brasil é uma grande democracia.

Eleições, por si só, não caracterizam uma democracia. Votava-se durante a mais recente ditadura militar brasileira assim como na extinta URSS. Sempre se votou em Cuba. Para que reine a vontade popular, a democracia exige outros fatores.

Na democracia representativa, como indica o nome, a população é representada por pequeno grupo de eleitos. O sistema em vigor no Brasil gira em falso. Perversão inerente ao voto proporcional faz que o cidadão vote num candidato e, sem se dar conta, acabe elegendo outro.

Urna 7Pergunte a qualquer de seus conhecidos: ‒ Qual é o SEU deputado federal? Na melhor das hipóteses, ele dirá em quem votou, se ainda se lembrar. E vai parar por aí. O sistema eleitoral brasileiro impede a formação de todo vínculo entre representante e representado. Deputados e vereadores, livres e descompromissados, não sentem dever contas a quem quer que seja.

O cidadão, privado de representante claro e definido, não tem a quem se dirigir nem de quem cobrar. Nem sonhe em interpelar seu deputado para reclamar cumprimento de alguma promessa de campanha. Você será ignorado como se recém-chegado de Marte fosse.

Eleição 1A solução é uma só: aposentar o sistema atual e instaurar o voto distrital puro, sem mistura. É simples. Divide-se o país em tantos distritos quantos forem os deputados federais ‒ atualmente 513. Cada distrito elegerá, em dois turnos, SEU próprio deputado. Só assim cada brasileiro terá seu representante e saberá quem ele é. Assim se estabelecerá o vínculo entre eleitos e eleitores, que tanta falta tem feito.

Esse é o único caminho para evitar que frases como a do primeiro parágrafo continuem assolando o país. É o único modo de fazer que o que envergonha o país envergonhe também os deputados.

O veto do voto

José Horta Manzano

Voto 1Fala-se muito, estes dias, em acoplar ao voto eletrônico uma espécie de recibo impresso, um comprovante. Aprova-se a lei, não se aprova. Veta-se a lei, não se veta. Derruba-se o veto, não se derruba. Depois de caminho longo, parece que a lei não sai e o recibo não vem.

Ainda que viesse a ser implantado, o comprovante impresso já viria com pecado original. Se ele mencionar o nome do candidato escolhido pelo eleitor, o segredo do voto estará irremediavelmente comprometido. Se não mencionar, não terá utilidade nenhuma em eventual controle da veracidade da apuração. Em resumo, não resolve o problema.

Urna 5Até os anos 70-80, a indústria brasileira contava com um escudo de proteção contra toda concorrência estrangeira. Naqueles tempos, era muito difícil conseguir licença para importar o que fosse. Quem quisesse trazer um produto de fora tinha de provar a absoluta inexistência de «similar» nacional. A significação de «similar» nunca foi bem definida. Ficava, o mais das vezes, a cargo do funcionário da Cacex, órgão do Banco do Brasil que cuidava do assunto.

Se a política de restrição de importação teve consequências positivas, teve também sua face sombria. Do lado positivo, a dificuldade em obter componentes e produtos estrangeiros desenvolveu capacidade industrial nacional que, sem isso, teria ficado adormecida. Do lado negativo, alguns ramos da indústria, na certeza de que nenhum concorrente estrangeiro viria perturbar-lhes o sossego, afrouxaram, deixaram de investir e pararam no tempo.

Urna 2A indústria eletrônica fazia parte destes últimos. Enquanto a fabricação de componentes fervilhava lá fora preparando a revolução informática que os PCs trariam, os fabricantes nacionais cochilavam tranquilos.

Com os anos 90, veio a liberação das importações e, consequentemente, o sucateamento do que se vinha fazendo no Brasil nesse campo. Pouco habituado à automação, o brasileiro recebeu as primeiras máquinas de votar com o fervor dos principiantes. Em poucas horas, chegava-se ao resultado final da apuração, quando o costume era esperar dias e dias! Foi argumento avassalador. Em poucos anos, as maquinetas se espalharam pelo país, numa prova evidente de modernidade.

urna 4O brasileiro de hoje está habituado ao manejo de engenhocas eletrônicas e sabe que o uso delas pode ser facilmente desvirtuado. Depois de descobrir tanta falcatrua nas altas esferas, é natural que fique com um pé atrás. Por que, raios, o Brasil é o único país a adotar esse sistema? Acaso somos mais ricos, mais espertos ou mais avançados que Alemanha, Japão, EUA, Suécia, França e os demais?

Na Suíça, país que conheço bem, vota-se geralmente por correspondência, semanas antes da data final. Quem não quiser gastar dinheiro com selo, pode depositar o envelope com o voto na caixa de cartas que fica na entrada da prefeitura de cada município. Os mais tradicionalistas vão pessoalmente até o local de votação no dia final, que é sempre um domingo. Podem depositar a cédula na urna até o meio-dia. Voto eletrônico? Jamais se ouviu falar disso por aqui.

O voto escrito no papel permite contagem, recontagem, verificação. Os próprios mesários do local de votação são encarregados da apuração. Fiscais de todos os partidos são bem-vindos para acompanhar. Tudo é feito às claras, sem risco de vírus, desvio, extravio ou transvio.

by Jacques Sardat (aka Cled'12), desenhista francês

by Jacques Sardat (aka Cled’12), desenhista francês

É difícil entender a razão pela qual o Brasil persiste em negar a realidade. Comprovadamente, voto em papel é mais seguro. Quem atravanca a reintrodução do voto em papel? Será o lobby dos fabricantes de maquinetas? Ou serão – Deus nos livre! – interesses inconfessáveis? Se algum distinto leitor souber, que se manifeste.

Proposta de reforma na jurisprudência

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que é necessário repensar com urgência a figura legal do suicídio.

Justiça desequilibradaEsclareço melhor minhas motivações. Há muitos anos, um amigo advogado contou-me que o suicídio é, em princípio, um atentado contra o Estado, na própria medida em que este é legalmente responsável pela manutenção da vida e do bem-estar de seus cidadãos. Em tese, portanto, segundo a lei, qualquer pessoa que atente contra a própria vida poderia ser processada e punida pelo Estado. Contudo, considerando que o único atingido pelas consequências dessa forma de atentado é a própria pessoa, os juízes responsáveis pelo julgamento do caso ver-se-iam na obrigação de oferecer o perdão legal à vítima/ao réu.

Refletindo sobre essa conjuntura, pareceu-me inapropriado alocar todos os casos em uma só categoria genérica de suicídio. Conhecemos todos exemplos de pessoas que morreram – ou tentaram morrer – por simples descuido, vítimas de infelizes circunstâncias momentâneas, enganos, por puro acaso ou simplesmente por não terem percebido a tempo que haviam extrapolado. Sabemos também que há uma parcela de pessoas que buscam ativamente provocar a própria morte, estimuladas por fatores como desesperança, desencanto com a vida, perda de alguém querido, perda de status profissional ou social, doença grave, etc.

TribunalProponho, assim, que o enquadramento legal do suicídio seja subdividido em duas categorias: a do suicídio culposo e a do suicídio doloso. Talvez juristas mais zelosos da precisão queiram contemplar ainda a categoria de suicídio por dolo eventual.

Na categoria suicídio culposo seriam, então, enquadrados todos os casos de aderência da pessoa a maus hábitos que, a longo prazo, podem implicar lesões importantes à capacidade de seu organismo de manter uma vida longa e saudável. Os exemplos mais comuns que me ocorrem são os de pessoas que abusaram por muito tempo do consumo de alimentos gordurosos, açúcares, bebidas alcoólicas, cigarros ou drogas – não porque tencionavam causar danos a si mesmos, mas simplesmente por estarem em busca de prazer ou alívio de alguma tensão.

Acredito que maus hábitos anímicos também precisariam ser considerados nessa categoria, como os de deixar-se levar por uma vida profissional estressante, a eleição do dinheiro como principal fonte de motivação, a alienação quanto às próprias necessidades e limites, e o abandono consentido de outras formas proativas de experiências prazerosas com a família, com os amigos e com possíveis amores. Uma vida sexual desfocada da capacidade de entrega, desconexão com o plano emocional, além da inconsequente busca do prazer pelo prazer seriam ainda outras possibilidades no plano individual.

Depression 1No plano corporativo, outros maus hábitos poderiam ser elencados para justificar o enquadramento na categoria do suicídio culposo: lançamento de produtos de qualidade duvidosa e a preços extorsivos, sustentados por campanhas mercadológicas luxuosas, ainda que intencionalmente enganosas; incompetência e desatenção dos serviços de atendimento ao consumidor; desrespeito às políticas trabalhistas e aos justos anseios dos funcionários de crescerem e compartilharem dos lucros obtidos.

Já no plano político, a discriminação entre as diferentes categorias de suicídio parece ser bastante mais complexa e delicada, na medida em que o cidadão que aspira a chegar ao poder (ou a manter-se nele) tende a adotar estratagemas que, muitas vezes, sua própria consciência ética recusa. Embalados pela crença de que, uma vez alcançado o objetivo sonhado, ser-lhes-á possível redimir-se de desvios comportamentais, muitos aderem de bom grado a maus hábitos, como elencar promessas que sabidamente não serão cumpridas, cambalacho de votos, adesão à ideologia do partido que lhes abriu as portas mesmo que esta contrarie o próprio rol de crenças políticas, etc. Parece-me assim que, na maioria dos casos, o enquadramento legal mais provável seria o de suicídio político por dolo eventual.

Eduardo SuplicyO único exemplo que me ocorre de suicídio político culposo é o do ex-senador Eduardo Suplicy. Acreditando que o passado de defesa dos direitos humanos e a postura ética irretocável ao longo de mandatos anteriores bastariam para guindá-lo novamente ao posto de senador da República, ele optou por manter um silêncio obsequioso diante dos malfeitos de seus colegas de partido. Deu no que deu.

Por outro lado, os exemplos de suicídio político doloso abundam por estas plagas. Não é preciso dar muitos tratos à bola para identificar em poucos segundos o nome das principais vítimas: Jânio Quadros, Leonel Brizola, Roberto Jefferson, Paulo Maluf, José Serra, Marta Suplicy, etc.

Politica 2Talvez suas listas não coincidam com as minhas, mas tenho certeza de que, com um pouco de tempo, fé em sua intuição e sensibilidade, você será capaz de rapidamente encontrar outros exemplos.

Então, que outros nomes do quadro político atual você apontaria em cada uma das categorias?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.