31 de agosto, 1960

Eduardo Affonso (*)

– Você vai à parada do dia 7 tocando bumbo – garantiu o obstetra à minha mãe.

Não deu.

E ela gostava tanto de setembro. Casou-se em setembro. Um de seus filmes favoritos – ao lado de “As neves do Kilimanjaro” e “Candelabro italiano” – era “Quanto setembro vier”.

Quando setembro viesse, viria o segundo filho. De preferência, uma filha.

Esperara um ano antes pela Rita de Cássia, e vim eu. Desta vez, em setembro, Rita de Cássia haveria de vir.

Mas no dia 31 do mês do agouro, dos ventos e dos cachorros loucos, sentiu que o tempo virava – lá fora e dentro de si.

Entrou em trabalho de parto enquanto o céu começava a desabar – ou o céu desabou quando ela começou a sentir as dores, não é mais possível saber, e não faz diferença, pois não há relação de causa e efeito. Ou há?

Imaginemos que à primeira contração correspondeu um relâmpago, à segunda um trovão, às seguintes as janelas fechadas às pressas, e então as telhas voaram, e a água desceu pelas paredes, pelo bocal da lâmpada, até que se pôde ver o céu faiscando por entre as frestas do forro de madeira, e o quarto foi inundado.

Minha vó acudiu com rezas e panos. Meu avô abriu um guarda-chuva sobre a cama, para proteger a parturiente – avô, avó, cama, todos com água já pelas canelas.

Minha mãe queria que tudo acabasse logo – o vendaval, as dores – mas queria também que desse logo meia-noite e fosse setembro. E nem setembro chegava, nem o temporal se ia.

Às 11 e tanto, ainda sob a tempestade e o guarda-chuva, envolvida pelas ave-marias e salve-rainhas que tentavam subir aos céus se esgueirando por entre os raios e trovões, foi mãe de novo.

No quarto inundado, fez ela mesma o batismo com o resto de água benta guardada no armário, antes que o teto viesse a desabar e o bebê morresse pagão.

E o batizou de novo, para o caso de os estrondos terem abafado sua voz; e uma terceira vez, por garantia, e talvez porque ainda tivesse forças e houvesse água benta – ou quem sabe já fosse água da bica.

Sobreviveram todos – ela, o bebê, meus avós, os móveis, eu (possivelmente aos berros no colo de alguém), as tesouras do telhado, parte das telhas, o teto.

Ela queria tanto uma menina, que viria quando setembro viesse.

Foi mais um menino.

E ainda era agosto.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

As eleições na mídia internacional

José Horta Manzano

As primárias e os debates que precedem a eleição presidencial nos EUA costumam ser acompanhados com atenção pelo mundo todo. Mas por acaso o distinto leitor já viu, na mídia nacional, relatos sobre debates eleitorais de algum outro país exceto os EUA? A resposta é provavelmente não.

É natural. Pelo peso mastodôntico da economia dos EUA, suas eleições interessam ao mundo inteiro. Já campanhas de outros países dão, no máximo, nota de rodapé. Mas isso não é particularidade da imprensa brasileira: por toda parte é igual. A política dos países vizinhos sempre interessa um pouco; já, de países distantes, pouco ou nada se fala.

Mas exceções acontecem. De uns 2 ou 3 anos para cá – e não exatamente pelas melhores razões –, a política brasileira entrou no foco dos holofotes. Meio divertido, meio assustado, o mundo inteiro acompanha a singular batalha presidencial que se travam dois típicos políticos nacionais: um admirador de Hugo Chávez que já passou pela casa prisão contra um admirador de Hugo Chávez que ainda há de estacionar na mesma casa.

A mídia internacional não perdeu o festival de insultos ao qual o baixo nível dos dois candidatos reduziu um momento que deveria ter sido dedicado a uma civilizada exposição de argumentos.

Foi mais uma prova de que os dois protagonistas são carentes de ideias. São ambos reativos (quando reagem…), raramente propositivos. Incapazes de traçar um programa de governo, navegam em modo visual, sem instrumentos, ao léu, ao deus-dará. Como se diz popularmente, só pegam no tranco. Isso, quando pegam.

Aqui está um florilégio de reações da mídia internacional ao debate da Band. A repercussão chegou à Turquia. E até à longínqua Lituânia, país que não é qualquer um que conseguiria apontar num mapa.

 

 

“A temperatura sobe quando Lula e Bolsonaro se encontram”
Upsala Nya Tidning, Suécia

 

 

“Bolsonaro descontrolado, Lula exausto e candidatos alternativos vitoriosos”
El Mundo, Espanha

 

 

“A senhora decerto sonha comigo à noite”
Süddeutsche Zeitung, Alemanha

 

 

“Bolsonaro e Lula se enfrentam”
Le Figaro, França

 

 

“No Brasil, corrida presidencial esquenta”
Sözcü, Turquia

 

 

“O primeiro duelo na tevê entre Bolsonaro e Lula foi uma tempestade de insultos”
Agenzia Italia, Itália

 

 

“Bolsonaro e Lula da Silva se enfrentam no debate nas eleições presidenciais brasileiras”
15min, Lituânia

 

A reação das minhas cachorras ao debate

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Confesso que me surpreendi com a apatia com que minhas cachorras assistiram ao debate entre presidenciáveis do domingo passado. Eu estava uma pilha de nervos desde a hora em que acordei, aguardando ansiosamente o início do que prometia ser uma sanguinolenta troca de acusações entre os candidatos, ao invés de focarem em seus respectivos programas de governo.

Temia que, nos momentos mais tensos, dois ou mais competidores acabassem perdendo as estribeiras e se engalfinhassem fisicamente, ou ainda que o estúdio fosse invadido por uma horda de apoiadores armados até os dentes para exigir a cabeça dos adversários. Já me preparava psicologicamente para contabilizar um ou dois mortos e vários feridos graves, inclusive entre os âncoras e os jornalistas convidados. Só fiquei um pouco mais tranquila quando soube que não haveria a presença de plateia e que somente os assessores, marqueteiros e políticos aliados seriam autorizados a ocupar uma sala atrás do estúdio. Mesmo assim, eu vigiava com angústia e preocupação a cada segundo a escalada de ofensas, golpes abaixo da cintura e ameaças mal disfarçadas.

Minhas cachorras, por sua vez, pareciam bem relaxadas: se aboletaram gostosamente no sofá em frente à televisão e fingiram prestar atenção aos confrontos do primeiro bloco, permanecendo em absoluto silêncio. No entanto, tão logo terminaram de jantar, logo na entrada do segundo bloco, não conseguiram disfarçar que estavam entediadas com tanto palavrório, tanta conversa mole para boi (também cachorro?) dormir, desconcentraram-se e se deixaram embalar pela monotonia dos discursos, logo caindo em sono profundo.

Sacudi-as no começo do terceiro bloco para questioná-las a respeito das razões para tanto desinteresse. Ainda sonolenta, a mais velha me lançou um olhar enviesado e respondeu: “Tá brincando? Pra um domingo à noite, com chuva e frio, tinha que ter alguma coisa mais empolgante para assistir. Até agora, só teve mais do mesmo. Qual é a novidade que está sendo trazida a público? Nadica de nada! Parece que todos acabaram de reinventar a roda e descobriram a solução definitiva para exterminar todos os males que assolam a população desde o descobrimento, em 1500. Por que ninguém tinha pensado em tudo isso antes?”.

Já a mais nova e ainda inexperiente nos empolados confrontos pátrios agitou-se por alguns minutos para reclamar quando o candidato Felipe D’Ávila fez referência desdenhosa ao complexo de vira-lata que caracteriza os brasileiros. Rosnou, um tanto indignada: “Dobra a língua para falar de nós, seu verme! Somos SRD, com muito orgulho! Isso significa que, assim como vocês, somos fruto de miscigenação e exigimos respeito por nossa condição. Somos mais resistentes a doenças, mais resilientes e mais safos para lidar com situações de penúria, além de mais valentes para encarar as inevitáveis batalhas com tantos pitbulls nas ruas”.

Tive de concordar. Parecia mesmo que todos os debatedores diziam ao apresentar suas propostas pseudograndiosas: “Pra quem é [povo brasileiro alienado], tá de bom tamanho”. Antes que elas voltassem a dormir, ainda tentei entender como elas avaliavam a repercussão do comportamento dos candidatos-líderes nas pesquisas sobre eventual mudança de intenção de voto. Para afastar o tédio, propus a elas um joguinho, perguntando: se os candidatos fossem bichos, como vocês enquadrariam o perfil psicológico de cada um? Tudo o que consegui reunir, entre muxoxos, foi o seguinte:

Bolsonaro, o escorpião e seus instintos irrefreáveis
Deve perder um bocado de votos entre as eleitoras ainda indecisas, até entre as evangélicas. Mesmo tomando extremo cuidado para não parecer exageradamente agressivo em suas colocações, acabou deixando implícito que, tão logo ele chegue à outra margem do rio, não resistirá ao impulso de dar uma ferroada mortal no cangote daqueles que o tiverem auxiliado na travessia – com provável exceção dos fardados. Se e quando, ainda em estado de choque, um dia a população confrontá-lo com sua promessa de respeitar os demais poderes, o estado democrático de direito e o resultado das eleições, ele responderá candidamente: “É da minha natureza, e vocês sabiam disso, tá ok?”

Lula, o bom cabrito
Também deve perder um bom percentual de votos entre os antibolsonaristas e bolsonaristas arrependidos pela aparente falta do tão estimado pulso firme. Esforçou-se o tempo todo para não berrar, sabedor que era de suas vulnerabilidades, mas acabou passando uma imagem envelhecida, de pouca força e ânimo para mudar o destino do rebanho. Apegou-se à imagem de valentia do passado, mas a falta de sangue nos olhos entregou seu cansaço. Perdeu-se de vez quando hesitou em assumir o compromisso de montar um ministério paritário, de homens e mulheres, quando tudo o que o mulherio ensandecido pelo desrespeito de Bolsonaro a Vera Magalhães esperava era que ele enterrasse seus chifres bem fundo no intestino misógino de seu principal adversário.

Ciro, o rato que incorporou o flautista de Hamelin
Deve ganhar mais alguns pontinhos nas pesquisas, mas para encostar nos mais bem votados seria preciso encarnar a credulidade de um doutor Pangloss. Apesar de extraordinariamente articulado intelectualmente, não consegue desfazer a imagem de velho coronel nordestino autoritário que se vê como único portador de todas as virtudes e não se cansa de vomitar todos os defeitos de seus concorrentes. Ele parece acreditar piamente que seu projeto de pacto nacional + plebiscito após 6 meses de mandato será suficiente para que 27 ratazanas que engordam às custas do erário dos estados, 513 ratos pequenos e 81 grandes que estraçalham o restante do tesouro público se rendam ao seu carisma e o sigam acriticamente até a beira do precipício. Se vão se jogar ou não, essa é outra estória. Aposta ainda que a população já terá condição efetiva de estimar o acerto de suas medidas econômicas após 180 dias de governo e votará em peso pela manutenção de seu “revolucionário” esquema de governança.

Simone, a galinha-mãe e professora
Deve ser a que mais vai ganhar votos do público nem-nem e dos que avaliam que “é tudo farinha do mesmo saco”. Embora corajosa, auto afirmativa e doce ao mesmo tempo, desculpou-se o tempo todo por não ter conseguido apoio incondicional e universal dos galos do seu partido e assumiu seu desconforto com o passado corrupto da maioria de seus aliados, o que pode pesar muito contra seu estilo “lírio no pântano”. De boas intenções o inferno está cheio parece ser seu lema de campanha.

E isso é tudo. Minhas cachorras se recusaram a elaborar o perfil dos demais candidatos, seja por falta de informações confiáveis quanto aos seus reais interesses na candidatura e na política, seja por lembrarem do passado bolsonarista de uma e o perfil agressivamente desestatizador de outro.

Para encerrar logo a conversa e poderem voltar a dormir, elas avaliaram em uníssono que faltou abordar durante todo o debate um fato indesmentível e preocupante, ao qual a imensa maioria do eleitorado finge não prestar maior importância: qualquer que seja o resultado das eleições, estamos condenados a sermos governados por um tchutchuca do Centrão, velho ou novo, mais ou menos jeitosinho com seus pares homens e sempre tigrão com as mulheres, especialmente as mais pobres e as mais críticas/incisivas. Quem ousaria discordar?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Nem tudo está perdido

“Quem é que quer saber do passado, agora que o Brasil está voltado para o futuro?”
by Patrick Chappatte (1966), desenhista suíço

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 27 agosto 2022

Afeganistão
Em 2001, na precipitação que resultou dos atentados perpetrados pelos terroristas da Al-Qaeda, o governo dos EUA tomou a decisão de cortar o mal pela raiz. Mandou tropas à região onde se presumia estivesse localizado o esconderijo dos cabeças da organização e deu início à Guerra do Afeganistão.

Relativamente modesta no começo, a força militar engrossou com o passar dos anos. No auge da intervenção, a coalizão encabeçada pelos EUA chegou a contar com um efetivo de 150 mil militares, oriundos de 48 países diferentes.

O objetivo perseguido era, na expressão do presidente Bush Jr., promover uma “guerra ao terrorismo”. Analistas militares botaram olho crítico na expressão e fizeram observar que, numa guerra, há que escolher o inimigo. Terrorismo não é o inimigo, mas apenas o método utilizado por ele. Ninguém faz guerra contra o esquema de combate do adversário. Assim mesmo, a descrição oficial permaneceu bastante vaga na hora de apontar o verdadeiro inimigo.

Em 2021, após duas décadas de ocupação e combates, as forças deixaram o território afegão. Apesar da permanência de vinte anos, foram incapazes de organizar a sucessão e de prever o que ocorreria. Aconteceu um desastre. No dia seguinte ao da partida do último soldado, os Talibãs voltaram, e o país deu um tremendo passo atrás. Foram tempos de morte, sofrimento, medo e privações que não serviram para nada. Em 20 anos ocupando o país, os invasores não aprenderam.

Ucrânia
Em fevereiro deste ano, um ultraconfiante Putin lançou sua versão 2.0 do Exército Vermelho contra a vizinha Ucrânia – país de superfície 28 vezes menor que a da Rússia. Ressalte-se que, desde os tempos da extinta União Soviética, os serviços de espionagem russos estão no topo da excelência. Na Ucrânia, para preparar a invasão, hão de ter tido grande liberdade de ação. Religião, costumes, clima, alfabeto, línguas são comparáveis, quando não idênticos. Um agente russo pode se perder em meio à massa humana de Kiev, por exemplo, sem que ninguém note a presença de um estrangeiro, visto que parte da população ucraniana tem o russo como língua materna.

Apesar dessa evidente vantagem, as boas informações não chegaram ao ditador em Moscou. Não está claro se por ineficiência dos agentes, traição, sabotagem ou algum outro motivo. É até possível que os russos, imaginando que seriam recebidos de braços abertos, tenham contratado espiões ucranianos, que se revelaram ser agentes duplos. A Rússia não levou em conta o patriotismo dos ucranianos.

Nessa guerra, que já dura seis meses, a Rússia vem sofrendo imensos reveses. Seu exército registra extensas perdas humanas e materiais; sua economia levou um baque que a fará recuar vários degraus; a fuga de cérebros jovens e promissores vai fazer falta no futuro; com a adesão da Finlândia e da Suécia, a Otan se aproximou mais ainda de suas fronteiras. Ao final, vê-se que os vinte anos de permanência de Putin no topo do poder não lhe ensinaram grande coisa. Apostou mal, arriscou demais e perdeu tudo.

Brasil
Quem assiste à constante multiplicação de desvios de conduta do presidente da República e a sua bizarra preferência por caminhos desviantes tem o direito de ficar intrigado. E assustado. São quase quatro anos sem um dia de trégua. Insultou dirigentes estrangeiros, ofendeu mulheres e negros, descambou para a homofobia, liberou armamento para todos, respaldou garimpo e desmate ilegais, exerceu o charlatanismo, louvou a cloroquina, vingou-se de servidores probos, menosprezou índios, desprezou a ciência, vilipendiou a cultura, fechou os olhos às milícias, minou a confiança de meio Brasil no sistema eleitoral.

Ao ver um currículo – que digo! – ao ver um prontuário dessa magnitude, a população brasileira tem razão em viver na angústia de um golpe de Estado ao aproximar das eleições. No entanto, recentes declarações do capitão de que aceitará o resultado do voto seja ele qual for tranquilizam. Vão no bom sentido. É um bálsamo saber que, diferentemente de estrategistas americanos e russos, ele parece estar se dando conta a tempo de que sua aventura não teria final feliz. Speremus, fratres!

Machismo linguístico

José Horta Manzano

Cão              animal de companhia.
Cadela           prostituta.

Vagabundo        homem que não trabalha.
Vagabunda        prostituta.

Touro            homem forte.
Vaca             prostituta.

Pistoleiro       homem que mata por encomenda.
Pistoleira       prostituta.

Aventureiro      homem que aceita o risco.
Aventureira      prostituta.

Garoto de rua    menino pobre que vive na rua.
Garota de rua    prostituta.

Homem da vida    pessoa de grande saber.
Mulher da vida   prostituta.

Galinhão         o ‘bonzão’ que traça todas.
Galinhona        prostituta.

Tiozinho         irmão do pai ou da mãe.
Tiazinha         prostituta.

Feiticeiro       praticante de magia.
Feiticeira       prostituta.

Colhido por aí.

Da Silva

José Horta Manzano

Você sabia?

Até fins do século 19, a Suíça era um pais de emigração. Populações pobres de regiões desfavorecidas partiam, com armas e bagagens, em busca de oportunidades numa terra que lhes abrisse os braços.

Os destinos do imigrante suíço foram variados. Muitos foram para os EUA. Houve quem preferisse se estabelecer nalgum país da Europa, até na Rússia. Colônias se formaram em países da América Latina, como no Brasil, no Uruguai e na Argentina.

O tempo passou e o sentido da transumância se inverteu. Já faz um século que, de emissor de migrantes, a Suíça passou a ser receptor – um importante receptor, diga-se. Atualmente, a população estrangeira com residência permanente no país atinge a marca de 25%, ou seja, de cada quatro habitantes, um tem cidadania estrangeira.

Níveis tão altos só se encontram em países do Golfo Pérsico (emirados), onde a população operária é numerosa e inteiramente estrangeira. Ou também em microestados, como Luxemburgo ou Mônaco. Nem o Brasil, que teve, um século atrás, seu período de desembarque contínuo de imigrantes, chegou a contar com um quarto de estrangeiros.

Metade dos estrangeiros vivendo na Suíça são originários de quatro países europeus. Na ordem: Itália, Alemanha, Portugal e França. Essa população estrangeira não é distribuída uniformemente pelo território nacional. Por afinidade linguística, imigrantes vindo de determinado país se concentram numa determinada região.

A imensa maioria dos 328 mil italianos está estabelecida no Cantão do Ticino (Lugano, Locarno), região de língua italiana. Os 311 mil alemães preferem a grande região de expressão alemã (Zurique, Berna, Basileia). Os 151 mil franceses, por seu lado, estão quase todos estabelecidos nos cantões francofalantes (Genebra, Lausanne, Neuchâtel). Já os 255 mil portugueses são menos exclusivistas, embora se note certa preferência pela região de fala francesa.

O Instituto Federal de Estatística (equivalente a nosso IBGE) acaba de publicar rica edição de estatísticas da população. Entre outros pontos interessantes, informam a distribuição dos estrangeiros por região linguística, por cantão e até por município. Constata-se que, na região de língua francesa, o sobrenome Da Silva é o mais difundido. Chega bem à frente de todos os nomes de família tradicionais.

E isso não é nada. Os primeiros lugares, do primeiro ao quinto, são todos ocupados por sobrenomes portugueses. Veja:

 1 Da Silva
 2 Ferreira
 3 Pereira
 4 Dos Santos
 5 Rodrigues

Pensa que é só isso? Pois não é. A lista continua. Vamos continuar até o 20° lugar:

 6 Favre
 7 Gomes
 8 Martin
 9 Fernandes
10 Lopes
11 Martins
12 Müller
13 Oliveira
14 Alves
15 Pinto
16 Marques
17 da Costa
18 Ribeiro
19 Silva
20 Gonçalves

Não é impressionante? Entre os 20 nomes mais comuns na Suíça de expressão francesa, 17 são de origem portuguesa, 1 é de origem alemã, e somente 2 são locais.

Mas não se assuste. Todos convivem em paz e harmonia, exatamente como costumava ser em nosso país até a virada do século. Quem sabe um dia volta, quando a tempestade passar.

Aporofobia

José Horta Manzano


Doutora Adela Cortina (1947-) é uma filósofa espanhola. Na década de 1990, cunhou o conceito de aporofobia para referir-se ao ódio e repúdio à pobreza e aos pobres.


A aporofobia inclui ainda a animosidade, hostilidade e aversão a todos os indicadores de pobreza: bairros carentes, pessoas sem-teto, refugiados, migrantes.

Em sociedades em que diferenças socio-econômicas são quase imperceptíveis, a aporofobia não costuma vicejar. Por seu lado, sociedades como a nossa, com abissais desigualdades, são terreno fértil para a germinação desse ódio.

Nosso desequilíbrio social é tão fecundo que a aporofobia aqui se aclimata e se alastra. O conceito se amplia e se exprime através do ódio racial, religioso e até político.

Foi esse terreno fértil que permitiu o surgimento de um Bolsonaro – aporófobo de primeira – que soube desinibir parte da população e dar a seus devotos a oportunidade de exprimir publicamente suas aversões. Em linguagem clara, aporófobos que costumavam reprimir sua tendência soltaram a franga. Romperam as amarras.

O capitão, que hoje defende a ampliação de benefícios sociais, é o mesmo que, no ano 2000, declarou ter orgulho de se opor a programas de redistribuição de renda, argumentando que deveriam estar associados ao controle da natalidade. Uma visão eugenista da sociedade, com relentos de esterilização forçada. “Se a população pobre deixar de procriar, em breve desaparecerá” – é a lógica que sua mente simplória lhe permitiu conceber.

O empresário periquito
Aquele conhecido empresário amigo do presidente, um baixinho de coco rapado que sempre aparece fantasiado de Zé Carioca, acaba de perder um processo. No mês de maio passado, andou fazendo comentários públicos contra o padre Júlio Lancellotti, ao vê-lo distribuir alimento a moradores de rua que tinham de enfrentar as noites geladas de São Paulo.

“É da turma do Lula. Hipocrisia pura. Temos que ensinar a pescar, e não dar o peixe. Cada dia que passa é mais malandro vivendo nas costas de quem trabalha”, foi o que o periquito escreveu. E continuou: “Quem defende bandido, bandido é”.

Ferido em sua dignidade diante de tamanha petulância, o religioso moveu um processo pedindo reparação. Venceu a causa.

Esse é o tipo de personagem a quem o capitão abriu a porteira. Como esse periquito, há milhões de papagaios que se sentem alforriados para exprimir seus baixos sentimentos.

Ódio, repúdio, hostilidade, aversão, antipatia, enjeitamento, repelência, repulsão, ojeriza & sentimentos afins não precisam mais ser guardados na gaveta. Podem ser expressos por escrito e à luz do dia. Ninguém mais parece se escandalizar.

O mal que Bolsonaro tem feito ao país ainda está para ser contabilizado. Vai ser difícil fechar a porteira que ele escancarou.

Deus, dinheiro e mentiras

José Horta Manzano


Deus, dinheiro e mentiras no Brasil

Jair Bolsonaro vs. Lula da Silva: a campanha eleitoral entre dois políticos predominantes já começou. Para o presidente Bolsonaro, as chances de reeleição são escassas.


O jornal Wiener Zeitung, de Viena (Áustria), sintetizou em três palavras a campanha presidencial brasileira deste ano: Gott, Geld und Lügen Deus, dinheiro e mentiras.

Note-se que discussões, debates, argumentações, ideias, projetos e outros tópicos que costumam frequentar as campanhas em países mais adiantados estão ausentes da nossa. A democracia brasileira está se aproximando perigosamente do padrão do Zimbábue ou do Mali.

Tudo o que é demais…

José Horta Manzano

Estava observando o número de seguidores de certas personalidades da internet. É pra lá de impressionante: chega a ser estonteante. Tem gente – artistas, influenciadores, políticos, esportistas – que exibe incontáveis seguidores. São 60 milhões para fulano, 95 milhões para sicrano, 130 milhões para beltrano.

De repente, a gente pára e faz as contas. Adicionando todas essas centenas de milhões de fãs, chega-se a um total que equivale a muitíssimas vezes a população do país, incluindo recém-nascidos e anciãos. Conclusão: cada seguidor está inscrito em mais de um, quiçá em dezenas de canais.

Agora vem a pergunta: será que cada um desses fãs lê, sem falta, todas as postagens de todos os canais em que está inscrito?

A meu ver, é praticamente impossível. Passar o dia (e a noite) olhos grudados na telinha não seria suficiente pra ler tudo de verdade, sem deixar escapar nada.

Ao fim e ao cabo, conclui-se que tomar como base o número de seguidores de cada personalidade é uma informação que deve ser estudada com grande precaução. Cada postagem daquele que tem 70 milhões de fãs não será necessariamente lida por 70 milhões de assinantes. O número de verdadeiros seguidores assíduos é infinitamente mais baixo.

E isso significa o quê? Significa que o alcance verdadeiro da influência deste ou daquele artista (ou esportista, ou político) é certamente bem mais modesto do que pode parecer à primeira vista.

Além disso, a influência de cada personalidade se dilui no caldeirão onde borbulham tantas influências vindas de tantas bocas. O balanço final das diversas influências periga se anular.

O bombardeio de opiniões é superior à capacidade de absorção dos seguidores. Tudo o que é demais enjoa.

Fetichismo

A Folha de São Paulo esqueceu que a cidade do Porto pede artigo. Sempre. Não se deve dizer “em Porto”, mas no Porto”. Quanto à Irmandade, ela não é “vunerável”, mas venerável.

 

José Horta Manzano

Um miocárdio que passou dois séculos mergulhado em formol há de interessar médicos-legistas e estudantes de medicina. Talvez biólogos e estudiosos de paleomedicina também encontrem nele algum encanto. Já para o distinto público leigo, é outra coisa. Eu me pergunto o que move um cidadão que decide sair de casa e fazer fila pra admirar o coração de D. Pedro I, o defensor perpétuo do Brasil, morto há 188 anos.

A prática de arrancar o coração de um cadáver antes de enterrá-lo já me parece um atentado ao respeito que se deve aos mortos, uma idéia estrambótica digna de filme de terror. Ao organizar uma viagem transatlântica dos despojos do imperador – com o único objetivo de animar a festa dos 200 anos de independência –, atingimos os píncaros de um fetichismo doentio.

O costume de prestar reverência a objetos que tenham sido um dia tocados pelas augustas mãos de Sua Majestade Imperial já me incomoda. Pasmar diante de um resto de seu cadáver me parece o fim da picada. Enlouqueceram todos: os que tiveram a ideia de trazer a “relíquia”, os que anuíram em cedê-la e os que vão se abalar a admirá-la.

Guardar as tripas do falecido durante dois séculos e fazê-las atravessar o oceano para exibição aos plebeus? Que fizessem vir a pluma com que D. Pedro escreveu ao pai anunciando que a pátria-mãe acabava de perder as colônias sul-americanas. Isso, sim, seria simbólico. Mas… o coração?

Bolsonaro se engana ao tentar fazer uso político dos destroços do imperador para afagar sua galera neopentecostal. Escapulários, relíquias, ex-votos e quetais são exclusividade da Igreja Católica. Os evangélicos, menos apegados a genuflexões e a práticas fetichistas, perigam não apreciar.

Pedras da fome

José Horta Manzano

Você sabia?

As mudanças climáticas, que enfrentam o negacionismo de gente desinformada ou de má-fé, têm se acelerado neste século. Situações que se previa fossem ocorrer por volta do ano 2050 estão ocorrendo agora.

O Hemisfério Norte, que concentra 2/3 das terras emersas, tem sofrido particularmente nesse sentido. Episódios climáticos extremos, que costumavam aparecer de raro em raro, têm-se tornado frequentes, quase corriqueiros. Chuvas de proporções bíblicas, calores saarianos, furacões, gigantescos incêndios florestais e secas catastróficas se sucedem.

Este ano, o calor e a seca têm castigado a Europa Ocidental. Paris, Berlim, Milão e até a brumosa Londres tiveram seus dias de 40° de temperatura. Em toda a região, a seca começou em junho e dura até agora. Não tem praticamente chovido, a não ser uma garoinha aqui, outra ali.

Agricultores estão perdendo a colheita, o gado já não tem o que comer. Lagos estão secos. Numerosos rios estão com um filete d’água. O Rio Reno, importante via de transporte fluvial, está com restrições de navegação devido à altura da água, que não dá calado. Até a nascente do Rio Tâmisa, atração turística da Inglaterra, secou. Na França, muitas cidadezinhas estão sendo abastecidas por caminhão pipa, pois água não há. Na Suíça, diversos lagos completamente secos se transformaram num gramado.

Tirando o dramático da coisa, aparece o lado pitoresco. “Pedras da fome”, surgidas do passado, estão reemergindo. Essa curiosa expressão designa pedras de beira de rio que, em tempos normais, ficam invisíveis, abaixo do nível da água. Nos anos de grande seca, apareciam. Os antigos então esculpiam e traçavam uma linha para mostrar o nível mínimo a que as águas chegaram. É que, na Idade Média (e até não faz muito tempo), falta d’água era sinônimo de colheitas perdidas e, no final, de morte por inanição. Naquele tempo, não dava pra importar alimento por via aérea do outro lado do mundo. Não havia meio de transporte. Cada vilarejo tinha de se virar com o que a terra dava.

Já se conheciam algumas “pedras da fome”. Este ano, com a baixa de nível dos rios, numerosas outras vêm sendo descobertas. A pedra mais antiga que se conhece foi esculpida em 1417. Outras são mais recentes. Muitas estão sendo gravadas este ano. Assim que o nível das águas faz surgir nova pedra, o ano de 2022 é esculpido.

Na pedra da fome que aparece na ilustração, gravada séculos atrás, está escrito: “Wenn du mich siehst, dann weine” – se você me vir, chore!

Não há ateus na política

Eduardo Affonso (*)

Demonstrações oportunistas de fé no Altíssimo e apreço à baixa gastronomia são tão tradicionais nas campanhas políticas quanto a troca de ofensas entre os novos adversários e de afagos entre os ofendidos na eleição passada.

Deus é testemunha de que, no Estado laico em que vivemos, campanha que se preze tem de ter candidato comendo pastel de feira e/ou em pose contrita – sempre de joelhos, se possível de mãos postas –, invocando a intercessão divina para ganhar mais voto do que peso. Pode até haver ateus em aviões que despencam – na propaganda eleitoral, jamais.

Tecnicamente, Estado e Igreja estão separados no Brasil desde 1891. Mas a atual Constituição foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Nas cédulas, há a recomendação de que “Deus seja louvado”. O presidente de turno chegou ao poder com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. É um Deus nos acuda em tempo integral.

Para fazer jus à cidadania brasileira, o Todo-Poderoso teve de se licenciar de suas inefáveis funções e virar cabo eleitoral na peleja de 2022. Ele se sentirá em casa por estar, desde a queda de Lúcifer, engajado nessa luta do Bem contra o Mal. A diferença é que, aqui, o Mal tem o dom da bilocação – está ao mesmo tempo nos dois cantos do ringue.

Michelle Bolsonaro tem dito que “o Brasil é do Senhor”, que “Deus tem promessas para o Brasil”, que “aquele lugar [o Palácio do Planalto] era consagrado a demônios”. Como o inferno são os outros, para Lula, “se há alguém possuído pelo demônio, é esse Bolsonaro”.

O petista atacou o uso da religião por parte de seu oponente: “É heresia falar o nome de Deus em vão como fala esse cidadão (…) que está mais para fariseu que para cristão”. Contudo se permitiu pregar: “A gente tem que olhar a Bíblia e ela tem que ser cumprida”. A que preceitos bíblicos estará se referindo? Aos que punem a homossexualidade e mandam apedrejar mulheres que não chegam virgens ao casamento? Aos mandamentos que condenam o roubo, o falso testemunho? Deve-se obediência coletiva a livros sagrados apenas nas teocracias – o que não é o caso. Porém levantamento feito pelo GLOBO revela que são 902 os candidatos que se declararam sacerdotes ou integrantes de ordem ou seita religiosa – um quarto a mais que em 2018. Majoritariamente evangélicos, vêm reforçar a bancada do dízimo – conservadora e pouco sensível a questões ligadas à laicidade do Estado ou à tolerância para com a fé alheia.

Rezam as feiquenius difundidas por bolsonaristas que, em caso de vitória do PT, “brasileiros serão impedidos de falar em Deus” (restrição que viria a calhar em relação aos que exercem cargos públicos) e que “templos serão fechados”. Interditar estabelecimentos caça-níqueis, que enriquecem os empresários da fé com “doações” obtidas mediante fraude, venda de caneta ungida (para passar em concurso) e de grão de feijão que cura Covid-19 seria uma ação legítima contra o estelionato. Mas, para dar cabo dos vendilhões do templo, só Jesus na causa.

Quando se faz o diabo para conseguir votos, lambuzar-se na gordurama do pastel de feira por puro populismo chega a ser um pecado menor.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Vias de fato

Sempre alerta, a mídia europeia não deixou passar a refrega

José Horta Manzano

“Vagabundo”, “covarde”, “canalha” e “tchutchuca do Centrão” – foram as palavras amáveis dirigidas ao capitão por um “youtuber de direita”, seja lá o que isso queira dizer. Na atualidade, todo cidadão faz obrigatoriamente jus a uma etiqueta a especificar se ele é do bem ou do mal, de Jesus ou de Belzebu.

Em tempos mais gentis que o atual, os epítetos lançados ao presidente seriam inadmissíveis, inconcebíveis. No entanto, desde que Bolsonaro vestiu a faixa, a civilidade foi pro espaço. Hoje em dia, nem aqueles palavrões cabeludos que a gente tinha vergonha de pronunciar chocam mais. Que saiam da boca de um cidadão qualquer ou até do presidente da República(!), o efeito é nulo. Nenhum frisson. Expressões de calão entraram para a conversa corriqueira.

Assim mesmo, é menos comum assistir-se à cena de um presidente se atracar fisicamente com um cidadão pelo motivo de ter escutado qualificativos que não lhe agradaram. Já fiquei sabendo de coronéis e deputados que se comportaram assim. De um presidente, principalmente quando está em campanha de reeleição, é mais raro.

Pensando bem, as palavras utilizadas pelo rapaz refletem a pura verdade. Nua, crua e sem retoques. “Vagabundo”, “covarde”, “canalha” e “tchutchuca do Centrão” é excelente resumo da personalidade presidencial. Ou não?

Mas dá pra entender a razão pela qual o capitão se sentiu tão à vontade pra rodar a baiana no meio da rua. Em primeiro lugar, o interlocutor era baixo e franzino. Em seguida, Bolsonaro estava rodeado daqueles agentes tamanho leão de chácara. Nessas condições, até eu me aventuraria a abordar fisicamente o “ofensor”.

Queria ver se a macheza seria a mesma caso os seguranças não estivessem ali e o “youtuber de direita” fosse do tamanho daquele deputado anabolizado, aquele que foi condenado à masmorra e salvo pela graça presidencial. Não tenho certeza de que Sua Excelência encararia, peito aberto.

Se eu fosse o youtuber agredido, não hesitaria em dar parte na polícia por ter sido vítima de vias de fato – em reação desproporcionada a mera interpelação verbal.

Mudança de alvo

José Horta Manzano

Nós, os brasileiros menos fanáticos e mais esclarecidos, estamos torcendo para que as eleições de outubro devolvam o capitão de volta ao lar de onde nunca deveria ter saído. Isso é ponto pacífico.

Se dependesse de mim, o substituto na Presidência não seria Lula nem Ciro. Boto mais fé na Simone Tebet. Me parece a mais equilibrada e bem intencionada de todos. Mas o resultado não depende de mim, portanto o jeito é continuar torcendo.

Do jeito que as coisas vão, o páreo será decidido entre Lula e o capitão. Há que ser realista: os demais candidatos não parecem ter estofo nem fôlego para aguentar até a meta de chegada.

Nós, que frequentemente comentamos a vida nacional – com ênfase naqueles que nos governam –, temos um motivo a mais para torcer pela derrota do presidente atual. Estou farto de malhar o capitão! E acredito que muitos escribas também estejam.

Afinal, são quatro anos de observação desse horror. No começo, a gente imaginava que o homem fosse apenas um desequilibrado inofensivo, o que se dizia antigamente um “louco manso”. O tempo nos fez entender que, por detrás do desequilíbrio, havia um projeto pra valer. Não vejo a hora que a apuração indique a vitória de outro candidato – que, com grande possibilidade, será o Lula.

Estive fazendo um rápido levantamento dos 5.300 posts que já publiquei neste blogue. Contei o número de artigos em que o nome do Lula foi mencionado nestes últimos anos. No período de 4 anos que corre de 2018 a 2022, seu nome apareceu em 20 artigos, o que dá uma média de 5 vezes por ano.

Em seguida, contei quantas vezes o nome do mesmo Lula foi mencionado unicamente no ano de 2013 (quando já nem mais presidente era). Deu 72 vezes, num ano só, numa média de 6 artigos por mês. Uma festa!

Cansado de malhar o capitão, torço para que o Lula tome seu lugar. As críticas contra o novo presidente vão continuar fluindo, mas uma mudança de alvo é sempre bem-vinda.

A torcida

José Horta Manzano

Fora dos EUA, o antigo presidente Donald Trump era visto como uma espécie de palhaço. Seu comportamento de elefante em loja de cristais incomodava. Só que tem uma coisa: ele era palhaço, mas um palhaço com exército e bomba atômica. São argumentos fortes que impõem respeito.

Em nosso triste Brasil, temos um presidente que tenta, há quase quatro anos, seguir a cartilha de Trump. Como se sabe, as mesmas causas costumam produzir os mesmos efeitos. Assim, não deu outra: no exterior, Bolsonaro também é visto como palhaço. Só que… um palhaço sem bomba atômica, fato que deixa todo o mundo à vontade, língua destravada.

Em meio século de vivência no exterior, acompanhei numerosas campanhas eleitorais e eleições presidenciais. Naqueles tempos pré-internet, pra saber como iam as coisas em Pindorama, o único jeito era pedir a alguém que mandasse uma revista ou um jornal pelo correio. Com quinze dias de atraso, a gente se atualizava.

Hoje, com internet, a informação circula com a velocidade do raio. No entanto, vale contar que, mesmo que não tivessem inventado a rede, não haveria mais necessidade de encomendar revista. De fato, a mídia europeia passou a se interessar de perto pelas peripécias eleitorais do Brasil.

Dado que, até poucos anos atrás, havia pouquíssimo interesse pelos acontecimentos brasileiros, acredito que o fervor atual seja um “efeito Bolsonaro”. Os estrangeiros, que não dependem de auxílio nem de cesta básica, são mais propensos a ver as coisas como elas são, despojadas da cosmética eleitoreira.

Ainda hoje, o rádio informou do início oficial da campanha eleitoral no Brasil. Contaram até como foi o primeiro dia de cada um dos integrantes da dupla mais cotada – Lula e Bolsonaro. Com ênfase neste último, naturalmente. Até uma parte do discurso do capitão foi transmitida, com tradução simultânea, veja só.

Em outros tempos, a gente se sentiria até orgulhoso – veja como nosso país ficou importante! Só campanha eleitoral nos EUA e nos países da Europa Ocidental costumavam atrair a atenção. Infelizmente, sabe-se que o Brasil não ficou importante de repente. O mal é a ameaça representada por Bolsonaro, estranho dirigente que trabalha contra seu país e seu povo. Vem daí o interesse internacional.

Não são só os brasileiros decentes que não veem a hora de se livrar do Capitão Tragédia. Não estamos sós. O mundo decente está ao nosso lado, na torcida. Infelizmente, essa massa de gente de boa vontade não vota no Brasil. Mas sabe fazer pressão. A ameaça de golpe vai arrefecendo. No final, que vença o que tiver mais votos. Mas sem golpe.

Em francês

Em inglês

Em italiano

Em sueco

Em espanhol

Em alemão

Mundo

José Horta Manzano

Veio ao mundo numa família pra lá de modesta. Esforçado, conseguiu superar as dificuldades. Ao fim da adolescência, ganhou o mundo. Com trabalho e boa dose de sorte, chegou a poupar um pouco. Não era um mundo de dinheiro, mas dava pro gasto. Afinal, economizar um pouquinho não é nada do outro mundo.

Em momentos de folga, enquanto outros deixavam o espírito vagar no mundo da lua, ele sonhava em viajar, correr mundo. Para concretizar o sonho, havia de mover mundos e fundos sem se deixar distrair. E seguiu a boa receita: sempre correto, passou ao largo de toda tentação do baixo mundo.

Assim que a poupança atingiu o montante necessário, comprou uma passagem de avião e caiu no mundo. Pra deixar amigos e conhecidos com água na boca, contou a novidade pra meio mundo. Em suas viagens, o que mais apreciou foi o Velho Mundo. Não se sentia atraído por países do Terceiro Mundo – sempre preferiu os do Primeiro Mundo.

Mesmo assim, ladrão há por toda parte. Um dia, foi assaltado. Levaram-lhe dinheiro vivo, cartões de crédito, passaporte e toda a bagagem – perda total. Seu mundo veio abaixo.

Precisou pedir asilo na embaixada, que o acolheu gelidamente. Com muita vergonha, foi obrigado a aceitar a passagem de retorno que lhe ofereciam. Voltou com uma mão na frente, outra nas costas. O pior mesmo foi quando todo o mundo ficou sabendo. O final da aventura foi melancólico. No aeroporto, em vez de um mundaréu de gente, não havia um gato pingado pra abraçá-lo. Mundo cruel…

Brincando de candidato

José Horta Manzano

Na hora de votar, paulistas e paulistanos são gente pouco preconceituosa. Não costumam ser mesquinhos. A capital já elegeu prefeitos cariocas (Faria Lima, Celso Pitta), uma prefeita vinda da Paraíba (Luíza Erundina), um mato-grossense (Jânio Quadros). Este último, aliás, antes de chegar à Presidência da República, foi governador dos paulistas durante quatro anos, eleito pelo voto direto. Lembremos que Fernando Henrique, o carioca que viria mais tarde a presidir o Brasil, também foi senador por São Paulo durante oito anos.

Paulistas não gostam é de ver gente que só conhece o estado de ouvir falar se apresentando como “profundo conhecedor” da terra dos bandeirantes. Vez por outra, aparece algum político que, não se sabe por que razão, se recusa a subir um degrau após o outro e prefere ser lançado de paraquedas pra pousar logo no topo da escala.

Não faz muito tempo, o paranaense Sergio Moro arrumou um endereço fantasma e, numa burla às regras, tentou inscrever-se como candidato ao Senado pelo estado de São Paulo. Foi apanhado e caiu do cavalo. Conhecia pouco ou quase nada do estado.

Temos agora o caso do doutor Tarcísio de Freitas, candidato do bolsonarismo ao governo paulista. Nascido do Rio e tendo passado boa parte de sua vida em Brasília, ele tem tanta intimidade com o estado de SP quanto você, distinto leitor, tem com a Mongólia. Pra quem nunca ouviu falar desse senhor, foi diretor de autarquia nomeado no governo Dilma, em seguida ministro nomeado por Bolsonaro. Costumava aparecer na garupa do presidente em alguns passeios de moto à la Mussolini.

A jornalista Bela Megale relata, em artigo d’O Globo, que senhor Freitas caminhava outro dia pelas ruas de Osasco (grande SP), quando um popular lhe perguntou se conhecia o estado. “Conheço mais que paulista” – foi a resposta, petulante e grosseira, ao melhor estilo bolsonarista.

O artigo nos informa também que, antes de bater o martelo, senhor Freitas relutava em aceitar a candidatura à governança de São Paulo, como lhe exigia o capitão. Em vez de candidatar-se a governador por um estado que não conhece, teria preferido representar o estado de Goiás no Congresso, o que lhe permitiria levar vida tranquila e continuar residindo em Brasília. No final, a pressão presidencial foi tamanha que, bom devoto, cedeu.

Agora chegamos ao ponto. Como eu dizia na entrada, não é questão de mesquinharia nem de rejeição ao forasteiro. O que os paulistas teriam preferido era um candidato com raízes no estado, pouco importando seu lugar de nascimento. Afinal, os 46 milhões de habitantes de São Paulo equivalem à inteira população da Espanha ou da Argentina. Se o estado fosse uma nação independente, seu PIB a situaria entre as 20 maiores economias do planeta.

Diga-me agora se é normal que a governança de uma massa de gente e de bens de tal magnitude seja entregue nas mãos de um indivíduo que, além de mal conhecer o estado, carece totalmente de experiência política? E que, ainda por cima, se candidatou de má vontade, só porque Seu Mestre mandou.

Governar o estado mais importante da União não é função para indivíduos desmotivados, que lá estão só porque o chefe insistiu.

Essa clique que se aglutina em torno da Presidência está tratando cargos políticos como bibelôs, que a gente escolhe na prateleira pensando em combinar com a cor da cortina da sala, manda embrulhar e leva embora. Os brasileiros merecem maior consideração.

11 de agosto

Ascânio Seleme (*)

Não adianta Bolsonaro e bolsonaristas reagirem com deboche ou ódio, o 11 de agosto entrou para a História como data nacional de repúdio à ditadura. Será comemorado daqui para sempre. Será lembrado como o dia do basta, o dia em que a sociedade civil tomou a si a defesa da democracia como bem maior da nação.

Os brasileiros fizeram o que seus representantes no Congresso não fazem por interesses privados e escusos: disseram não ao golpe e ao golpista.

(*) Ascânio Seleme é jornalista. Trecho de artigo publicado no jornal O Globo.