Os peixe

by Kleber Sales/CB/D.A Press

José Horta Manzano

Alguns anos atrás, o Ministério da Educação deu seu aval a uma publicação que reconhecia frases do tipo «os menino pega os peixe» como adequadas em certos contextos. Foi um deus nos acuda. Baldes de tinta foram gastos em aplausos entusiasmados e reclamações indignadas. Embora já não provoque tanto alvoroço, o assunto ressurge de tempo em tempo.

Na época, houve quem entendesse que o ensino da língua portuguesa, com a anuência do MEC, acelerava sua descida aos infernos. Artigos inflamados brotaram da pluma daqueles que, tendo-se esfalfado para aperfeiçoar seu conhecimento da língua, sentiam-se frustrados como se o esforço tivesse sido vão. Com que então, todo esse sacrifício não vale mais que dez réis de mel coado?

Houve quem aplaudisse a boa-nova. Afinal, já era hora de oficializar a existência de uma língua brasileira, distinta da matriz lusa. Muitos exultaram ao ver abolidos os grilhões que nos prendem a normas gramaticais exógenas. Ouviu-se, nas entrelinhas de alguns artigos, um grito de independência definitiva, eco e epílogo do brado de 1822.

Vejo exagero nos dois campos. Não é certo enxergar, nesse episódio, nem o prenúncio do banimento do português dito culto, nem a acessão da fala popular ao status de língua oficial. Quando há impasse, o bom-senso manda dar uma espiada no quintal de quem já enfrentou o mesmo problema. Por que reinventar a roda? Se uma solução dada funcionou lá, periga funcionar aqui também.

Qualquer conhecedor da língua alemã pode visitar qualquer lugarejo alemão, do Mar Báltico à Bavária, sem encontrar problema em se fazer entender. O mesmo fenômeno se repete na Itália, das Dolomitas até a ponta da Sicília. Nosso viajante constatará idêntica situação na Grã-Bretanha, na França, na Espanha e em inúmeros outros países. Imaginará até que isso é natural, que foi sempre assim. Pois equivoca-se.

Os falares regionais estão longe de desaparecer. A língua materna de um bávaro não é a mesma de um brandeburguês, embora os dois sejam alemães. A prosa coloquial de um siciliano não é a de um vêneto, não obstante serem ambos italianos. Um catalão, em família ou entre amigos, não usa o mesmo falar de um asturiano nas mesmas condições. Como é possível?

Faz tempo que esse fenômeno é estudado. Uma nação composta de populações que utilizam falares variados tem de recorrer a uma Dachsprache, uma língua-teto. Assim, numerosos povos vivem num universo até certo ponto bilíngue. No Brasil, vivemos uma situação esquizofrênica, uma diglossia em que as variantes populares são desvalorizadas, estigmatizadas, negadas até.

Imbuída do nobre objetivo de pacificar e unificar nosso imenso território, a autoridade central – imperial primeiro, republicana em seguida – usou de seu poder para atrofiar os falares regionais, chegando a negar-lhes a existência, a fim de sufocar no nascedouro quaisquer veleidades de regionalismos independentistas.

Fazia sentido. Politicamente, foi sucesso total. A América Portuguesa não se fragmentou, e faz quase um século que nosso país não é palco de conflitos separatistas. Mas essa história gerou um efeito colateral. Todo brasileiro aprendeu, desde criança, esta verdade incontestável: o Brasil não tem dialetos – afirmação ousada que acabou por criar em nós todos uma insegurança linguística. A doutrina oficial afirma que temos uma só língua. Ora, eu não falo como está escrito nos livros, portanto… eu falo errado! Todos os brasileiros sofrem desse complexo de «falar errado». Mas estão enganados.

Nenhum de nós jamais erra ao usar a própria língua materna, aquela que aprendeu desde criança, utilizada por seu grupo social. Se a palavra dialeto pode chocar, utilizemos o termo variante. O Brasil tem, sim, dezenas de variantes linguísticas que podem até, em casos extremos, dificultar a intercompreensão. É tolice abordar esse tema sob um viés nacionalista. Justamente por causa dessa grande variedade de falares, nós brasileiros temos necessidade absoluta de uma língua-teto estável e normatizada.

Cabe às autoridades encarregadas da instrução pública dissipar falsas crenças. A elas compete fazer que os brasileiros entendam que não «falam errado». Mas a elas cabe sobretudo ensinar a norma culta e esclarecer que tal aprendizado, longe de ser ato de submissão a uma remota ex-metrópole, é a chave da intercomunicação entre todos os compatriotas. A elas cumpre também incentivar a preservação e a valorização das variantes regionais.

Informalmente, «os menino pode pegar tudo os peixe». Na hora de escrever, convém saber que os meninos pegam os peixes. Cai melhor.

Novas palavras a ser proibidas por serem politicamente incorretas

Aldo L. Bizzocchi (*)

 

 

 


DISCLAIMER AOS DESAVISADOS
ESTE TEXTO TEM FORTES DOSES DE IRONIA


Como vocês sabem, a língua portuguesa, como de resto todas as línguas, é machista, racista, classista, homofóbica, transfóbica, aporofóbica, etc. etc. Portanto, precisamos urgentemente banir do nosso vernáculo todas as palavras e expressões que firam a suscetibilidade e os direitos das minorias. Aqui vai minha humilde contribuição a essa justa causa, apontando algumas palavras que até agora passaram despercebidas, mas que contêm uma grande carga de preconceito e desrespeito.

Comecemos pela palavra virtude. Sim, amigos, amigas e amigues, essa palavrinha aparentemente tão inocente e mesmo nobre veio do latim virtus, derivada de vir, “homem, ser humano do sexo masculino”, logo significa “qualidade de quem é homem, aquela que só o homem tem”. Como podem ver, é uma palavra pra lá de machista, visto que considera que só os machos da espécie têm a qualidade da virtude. Pelos mesmos motivos, devemos banir também viril, virilidade, varonil e másculo, pois todos esses termos remetem ao sexo masculino de forma positiva e elogiosa, desmerecendo as mulheres. Aliás, também é urgente proscrevermos hombridade (do espanhol hombre, “homem”) e homenagem (alguém até já propôs mulheragem em seu lugar, mas eu fico me perguntando se aí também não teríamos sexismo, só que em sentido oposto).

E por falar em mulheres, a própria palavra mulher é discriminatória, pois provém do latim mulier, “mulher casada, esposa”, como se só as casadas fossem mulheres de verdade. E o que dizer de senhor então? Essa palavra nos chegou do latim senior, que quer dizer “mais velho”, logo é um termo altamente ageísta. E jamais devemos dizer que um erro é crasso, pois crassus em latim é “gordo”, e nós evidentemente não somos gordofóbicos, né?

Por fim, jamais use a palavra atroz, que vem de ater, “negro” em latim, pois você estará associando a ideia nefasta de atrocidade às pessoas afrodescendentes. E tampouco use a palavra alvo no sentido de meta a ser atingida, já que esse vocábulo significa “branco”, e assim você estará elevando a raça branca ao status de superioridade, perfeição, de objetivo a que todos devem aspirar.

Bem, acho que por hoje já dei minha contribuição para tornar nosso idioma mais inclusivo e menos discriminatório. Em todo caso, se encontrar mais termos preconceituosos, darei prosseguimento ao meu index verborum prohibitorum, ok?

(*) Aldo L. Bizzocchi é doutor em Linguística, palestrante e blogueiro.

Primeiro teste

Chamada Estadão 20 abr 2023

José Horta Manzano

O foguete do bilionário decola direitinho mas, poucos minutos adiante, explode bonito. E o jornal ainda diz que ele “passa” por primeiro teste.

Não sei o que você acha. Quanto a mim, eu diria que ele “não passou” pelo primeiro teste. Foi reprovado.

Se o autor da chamada fizer questão de manter a formulação da frase, que diga que o foguete “enfrenta” primeiro teste. Diante de um fracasso, acho inadequado dizer que o foguete “passou”.

PS
Talvez o insucesso do lançamento seja resultado do olho gordo de milhões de usuários do Twitter, furiosos com o bilionário trapalhão que está destruindo seu brinquedinho e complicando a vida alheia. Hoje ele deve ter perdido uns bons milhões. Tanta miséria na Terra, e esse indivíduo queimando dinheiro para satisfazer a própria vaidade. Gente fina, não deve ser.

De trás pra diante

José Horta Manzano

Os fatos da vida costumam fluir numa direção dada. Em princípio, as coisas evoluem do começo em direção ao fim, não ao contrário.

Me lembro de um filme engraçado – O curioso caso de Benjamin Button –, estrelado por Brad Pitt e Kate Blanchett, lançado no Brasil em 2009. Contava a história de um indivíduo que nascia velhinho e, conforme passavam os anos, ia aos poucos rejuvenescendo até morrer sob a forma de um recém-nascido. Uma vida de trás pra diante, em suma.

No cinema, pode tudo. Na vida real, é mais usual os fatos fluírem do começo em direção ao fim.

O percurso das palavras não escapa a essa lógica. Diferentemente do que muita gente imagina, não são os dicionários que inventam ou dão vida a palavras novas. O caminho é exatamente inverso: é só depois de surgirem e de se popularizarem que as palavras entram para o dicionário. O “pai dos burros” não faz mais que registrar expressões e termos já consagrados pela fala popular.

Pois tem gente que acha que é possível inverter a lógica. Em vez de seguir o caminho habitual uso popular → dicionário, tentam arrevesar para dicionário → uso popular.

Explico melhor. Fiquei sabendo de uma campanha lançada por SporTV e Pelé Foundation. A intenção é pressionar os dicionários a registrarem Pelé como palavra comum (substantivo e adjetivo). Sem-cerimônias, os autores da petição dão até as acepções que gostariam de ver registradas:

1. Maior que todos os outros.
2. Referência de grandeza.
3. Inigualável.
4. Sinônimo de excelência.
5. Único.

E enumeram as razões que embasam a escolha de Pelé:

1. Maior de todos
2. É considerado o maior brasileiro de todos os tempos
3. Uma lenda e recordista de gols e títulos
4. Foi responsável por parar uma guerra na África
5. Possui títulos e medalhas além do futebol

Que Pelé foi um grande jogador, quiçá o melhor do mundo, ninguém discute. Que marcou gols e ganhou títulos e medalhas, me parece natural, visto que jogava como atacante. Agora, que tenha sido “o maior brasileiro de todos os tempos”, eu diria que a concorrência é rude. Com tantos heróis e heroínas que povoam nossa história, pode ser que haja alguma controvérsia.

Mas o mais curioso nessa campanha é tentarem inverter a ordem natural das coisas. Não é comum a gente consultar o dicionário para, só em seguida, começar a usar uma palavra nova. É o contrário que costuma acontecer. Assim, me pergunto qual seria a utilidade de um verbete Pelé (pelé, na verdade).

No dia em que o termo entrar de verdade na linguagem corrente, pode deixar: dicionaristas hão de introduzi-lo na próxima edição. Não precisa nem de abaixo-assinado.

Quiroprata

Chamada do Estadão

José Horta Manzano

Se é seguro entregar o pescoço para um quiroprata manipular? Olhe, fosse o meu pescoço, não deixava de jeito nenhum. Sabe-se lá que formação tem esse camarada?

A primeira parte da palavra [quiro] é raiz grega que significa mão. Quanto à segunda, tudo indica que seja prata mesmo.

Logo quiroprata pode ser um garimpeiro que gira a bateia com as mãos pra encontrar prata.

Outra possibilidade é que seja um rei Midas pobre, que não consegue transformar em ouro o que toca com as mãos, por isso vai-se contentando com prata mesmo.

Pensei ainda num carregador de mochila presidencial que tivesse poderes especiais. Mas não bate; se fosse mochileiro do ex-presidente, não se diria quiroprata, mas quiro-ouro.

Deixando brincadeiras de lado, o termo utilizado na chamada do Estadão não está dicionarizado. Nem nunca ouvi.

Essa técnica de manipulação se chama quiropraxia ou quiroprática. Quanto ao terapeuta, descarte todo quiroprata. Prefira sempre um quiroprático. É mais seguro.

Salvo pelo gongo

José Horta Manzano

O culto leitor e a esforçada leitora já tevem ter ouvido a expressão “salvo pelo gongo”. O significado de ‘ser salvo pelo gongo’ é escapar, no último momento, a um perigo ou a uma situação delicada.

Mas… de onde vem essa frase feita? Procurei saber qual é a origem. Nenhuma das fontes tem certeza absoluta da explicação que dá. Mas vamos lá.

Uma das explicações é de arrepiar os cabelos. Recorda que um dos pavores ancestrais da humanidade é ser enterrado vivo. Houve tempos em que, para remediar situação tão sufocante, famílias atavam uma corda ao pulso do defunto, sendo que a outra extremidade era amarrada a um sino (um gongo). Em caso de desconforto, bastava ao enterrado fazer um leve movimento de braço pra tocar o sino, chamar a atenção e ser liberado de tão incômoda situação. De dar medo, não?

Há outras versões. Entre elas, a desventura de um guarda palaciano de Londres que, acusado de dormir em serviço, safou-se relatando que, naquela noite, tinha ouvido o sino desregulado da igreja ao lado soar 13 vezes em vez de 12. “He was saved by the bell” – foi salvo pelo sino (ou gongo).

Todas as explicações são divertidas, mas pouco convincentes. Fico com a que me parece menos fantasiosa. Veja como a edição de 4 agosto 1929 do jornal Folha da Manhã descrevia o final de uma luta de box. (Conservei a grafia e a pontuação do original).


Eugenio e Armandinho abrem a “soirée” com um movimentado combate em quatro assaltos e cuja victoria cabe ao segundo. Juiz foi Cesar. Em seguida sobe Savino e lógo após, Bozzato. Lucta violenta. No terceiro assalto, Bozzato cahe tres vezes por sete segundos cada, tendo sido salvo pelo “gong”.


Foi só nos anos 1920 que a expressão começou a aparecer na imprensa brasileira, sempre relacionada ao pugilismo. Isso parece excluir a medonha explicação medieval. Nas primeiras décadas do século 20, escrevia-se “gong”, grafia fiel à palavra javanesa, provavelmente de origem onomatopaica.

Já a partir da década de 1940, o “gong” foi abrasileirado para “gongo” – que passou a soar também em programas radiofônicos de calouros. Quando o âncora considerava que o candidato era muito ruim, não tinha piedade: tocava o gongo e mandava o infeliz embora.

Hoje em dia, usa-se a expressão pra indicar que um indivíduo escapou por um triz a uma situação cabeluda. O Lula, por exemplo. Com a sorte que o tem acompanhado a vida inteira, está escapando de fininha de um problema espinhoso. Se não, vejamos.

Juscelino dos Santos Rezende Filho, ministro das Comunicações, requisitou jato da FAB sob falso pretexto de comparecer a encontros oficiais quando, na verdade, passeou quatro dias num leilão de cavalos de raça. Recebeu as diárias pelos dias de viagem. Na última declaração, tinha ocultado alguns milhões de reais em patrimônio. Quando deputado, utilizou a verba do orçamento secreto para pavimentar a estrada que conduz a sua fazenda no Maranhão. Enfim, um primor de comportamento. De fazer revirar-se no túmulo o Juscelino original, um dos maiores presidentes que o Brasil já teve.

Seria o escândalo do momento se não tivesse surgido outro de dimensões internacionais: a crise dos diamantes de Bolsonaro. Um escândalo suplanta outro, e o dos brilhantes venceu. A mídia tem se dedicado tanto a escarafunchar o “presente” das Arábias pela frente e pelo avesso, que acabou esquecendo os cavalos árabes do nobre ministro.

Lula foi salvo pelo gongo.

Novilíngua ‒ 6

José Horta Manzano

A obra maior (magnum opus) do festejado escritor Fernando Sabino (1923-2004) é o romance O encontro marcado, lançado em 1956.

Fosse escrito hoje, o título teria de ser adaptado para os usos atuais. É que a expressão “encontro marcado” não se usa mais, entrou para a arqueologia da língua.

Atualizado para os usos modernos, o título seria traduzido para: “O encontro agendado”.

Hitou e flopou

Do jornal O Globo, 20 fev° 2023

José Horta Manzano

Confesso que precisei de alguns segundos de reflexão para entender o significado da chamada. É que este blogueiro é do tempo em que, em vez desses modismos estranhos, se dizia “o que foi sucesso e o que foi fiasco”.

Free flow

Prepare-se: o Free Flow vem aí!

José Horta Manzano

Alguns chamam esta tendência de “complexo de vira-lata”, expressão que prefiro não utilizar por me parecer pesada e injuriosa. Seria até bom encontrar opção menos agressiva. Estou falando do fascínio que tudo o que vem do estrangeiro exerce sobre nossa população.

Deve ser fenômeno antigo, visto que, de memória, recordo que sempre foi assim. Artigo estrangeiro sempre foi valorizado. Mas a lógica nos ensina que, logo nas primeiras décadas do descobrimento, os produtos desta terra é que devem ter sido valorizados na Europa. Imagine o pasmo de um europeu dos anos 1500 diante de um abacate, de um abacaxi ou de um animal desconhecido no Velho Continente. Não sei quando é que o encanto mudou de mão.

“Nacional ou importado?” – é pergunta que se pode ouvir em comércios do Brasil, tanto de alimentos como de roupas, de azulejos, de relógios, e de inúmeros outros artigos. Pressupõe-se que o importado é necessariamente de melhor qualidade, o que justifica preço bem superior.

Mas não pense que é assim por toda parte. Me lembro de um dia, muitas décadas atrás, em que eu fazia umas comprinhas numa feira-livre aqui na Suíça. Numa banca de legumes e verduras, vi duas caixas de tomates muito parecidos, mas com preços diferentes. Apontei para os mais caros e perguntei a razão do preço. A resposta veio natural: “Ah, estes custam mais caro porque são tomates suíços! Os outros são importados.”.

Com o tempo fui aprendendo que aqui, em princípio, artigo nacional custa mais caro que o estrangeiro. No começo, deve ter me parecido uma estranha tendência, nem lembro mais. Com o tempo, me acostumei.

Por que é que contei essa história? Foi justamente para mostrar que o que ocorre no Brasil não é tendência universal. Talvez nossa admiração por artigos importados venha do período colonial, do tempo em que nosso território era isolado do mundo, longe de tudo, sem fábricas, sem jornais, sem escolas superiores. Naquela época, o importado era necessariamente melhor, visto que nacional não havia.

Hoje essa admiração sistemática pelo que vem de fora – cujo efeito perverso é a depreciação sistemática de tudo o que é nacional – não tem mais razão de ser. O mundo mudou, o Brasil já não é uma província isolada, situada quase fora do mapa. Aqui há coisas boas e más, como em toda parte. Ainda bem que é assim, se não a Embraer não seria uma das grandes construtoras mundiais de aviões.

Enquanto nossa estranha tendência não arrefece, é bom irmos nos acostumando com o mais recente barbarismo. É o recém-anunciado “free flow”, sistema que permite passar pelo pedágio rodoviário sem parar. Não sei como funciona, mas pouco importa porque não é esse o objetivo deste artigo. Acho simplesmente que importar a expressão em língua inglesa e servi-la assim – crua, sem cozinhar, sem ao menos descascar – é um despropósito.

Sem cancela”, “Passa rápido”, “Vamos em frente”, “Cuca fria”, “Sinal verde”, “Passe livre”, “Sem problema”, “Sai da frente”, “Pedágio simples”, “Via livre – seriam nomes possíveis para substituir o barbarismo. Rápida sondagem entre futuros usuários daria mais centenas de opções. Mas foi mais simples pegar a expressão estrangeira tal e qual. É uma tremenda falta de criatividade.

Fica tão mais sofisticado quando a expressão vem de fora, não é mesmo?

De Paris

José Horta Manzano

Num passado distante, o latim foi responsável pelo fornecimento da maior parte de nossos vocábulos. Já na atualidade, os empréstimos vêm principalmente da língua inglesa. Entre o latim e o inglês, houve um período, entre os séculos 17 e 19, em que o grande provedor de palavras novas era o francês.

Numa época em que a hora de glória de Espanha e Portugal já havia passado, e a ascensão da Inglaterra ainda não se havia firmado, o “centro do mundo” ocidental era Paris. De lá vinham descobertas científicas, novas teorias políticas, invenções práticas – e, com isso, muitos vocábulos novos.

Essas palavras costumavam dar nome a objetos novos, ou àqueles que ainda não tinham nome definido. Foram adotados por inúmeras línguas da Europa e do resto do mundo. Eis alguns exemplos.

Em sueco
Calçada é trottoar (=trottoir) e evento é evenemang (évènement)

Em italiano
Mamadeira é biberon (=biberon)  e sobremesa é dessert (=dessert)

Em inglês
Terça-feira de carnaval é mardi gras (=terça-feira gorda) e beco sem saída é cul-de-sac

Em turco
Cadeira de praia é şezlong (=chaise longue) e enxaqueca é migren (=migraine)

Em alemão
Escritório é Büro (=bureau) e beringela é Aubergine (=aubergine)

Em espanhol
Estreia de um artista é debut (=début) e o papel que ele representa é rol (=rôle)

Em dinamarquês
Motorista é chauffør (chauffeur) e guarda-chuva é paraply (=parapluie)

Em russo
Concreto armado é Бетон (=béton) e estribilho é Куплет (=couplet)

Em nossa língua temos uma grande coleção de importações daquela época. São palavras científicas, vocábulos técnicos e termos de todos os dias, que utilizamos sem nos dar conta.

Penhoar (peignoir)
Gravata (cravate)
Caçarola (casserole)
Virabrequim (vilebrequin)
Capô (capot)
Paletó (paletot)
Embreagem (embrayage)
Sabonete (savonnette)

E milhares de outras.

Cretinice

José Horta Manzano


Em matéria de futebol, a catástrofe está sempre à espreita. Ontem foi o dia da Suíça, que perdeu para Portugal com placar caudaloso: 6 x 1. O choque equivale ao ‘mineiraço’ brasileiro de 2014. Vou aproveitar para publicar um artigo que escrevi anos atrás. Traz curiosidades do país alpino.


Você sabia?

Todo país, por menor que seja, sempre dá uma contribuiçãozinha à humanidade. É natural que países maiores e mais populosos sejam responsáveis pela criação de maior número de palavras internacionais, produtos, conceitos, invenções. Mas os pequenos também têm vez.

A Suíça, por exemplo, apesar do território exíguo e da população diminuta, está por trás de ideias, objetos e conceitos que se espalharam pelo mundo. Vamos fazer um teste pra ver se você sabe.

Interligne 18h

Gruyère
É queijo tipicamente suíço conhecido por ser cheio de buracos. Ingrediente indispensável em qualquer fondue. Certo?

Depende. Produzido na região de Gruyère, é tipicamente suíço, sem dúvida. É o ingrediente chave de toda boa fundue. No entanto, diferentemente do que muitos acham, o queijo Gruyère não tem furos. É lisinho, lisinho. Quem tem furos é o emental, produzido no Emmenthal (Vale do Rio Emmen).Queijo 1

Interligne 18h

Swatch
É criação suíça. Certo?

Certo. Foi bolado pelo grupo relojoeiro que hoje leva o nome do modelo: Swatch.

Interligne 18h

Velcro
É invenção suíça. Certo?

Certo. Foi inventado pelo engenheiro suíço George de Mestral (1907-1990).

Interligne 18h

Relogio Swatch 1

Albert Einstein
Era cidadão suíço. Certo?

Certo. Nasceu no Império Alemão, mas naturalizou-se suíço aos 22 anos. Adquiriu outras nacionalidades ao longo da vida, mas conservou a suíça até o fim.

Interligne 18h

Cuco
O relógio de pêndulo conhecido como cuco é antiga invenção suíça. Certo?

Errado. O cuco foi criado na Alemanha ‒ mais especificamente na Floresta Negra ‒ no século 18.

Interligne 18h

Polilinguismo
Todos os suíços são poliglotas ou, pelo menos, bilíngues. Certo?

Errado. O país é composto de cantões. Cada um deles tem sua língua oficial. Alguns têm até duas. A maioria dos suíços, no entanto, fala uma única língua. Mais curioso ainda é o fato de a língua inglesa estar-se impondo, cada vez mais nitidamente, como segunda língua. Hoje em dia, é comum ver dois suíços de língua materna diferente se comunicarem em inglês.

Interligne 18h

Relogio cuco 1.jpg

Cretinismo
A palavra cretino é de origem suíça. Certo?

Certíssimo. O distúrbio conhecido como cretinismo, que perturba fortemente o desenvolvimento físico e mental, é causado principalmente por carência de iodo. Nos tempos de antigamente, os habitantes de aldeias de montanha salgavam os alimentos com sal gema (não marinho), pobre em iodo. A incidência de distúrbios ligados ao cretinismo era elevada.

No Valais, cantão montanhoso e então pouco desenvolvido, a patologia ocorria com frequência. O povo chamava os infelizes doentes de “pauv’ crétin”pobre cristão, no dialeto local. Descoberta a origem da doença, iodo passou a ser adicionado ao sal. O distúrbio desapareceu, mas o nome ficou. Não só ficou, como se instalou em grande número de línguas. Assim:

Português: cretino
Russo:     кретин (kretin)
Inglês:    cretin
Sueco:     kretin
Polonês:   kretyn
Lituano:   kretinas
Húngaro:   kretén
Francês:   crétin
Finlandês: kretiini

Interligne 18h

Curiosidade final
Corrupção, corrupto & derivados não são de origem suíça. Nem brasileira, diga-se logo. Corrupção é mais velha que o rascunho da Bíblia. A raiz rup vem de longe. Encontrada já no sânscrito, passou às línguas europeias. Traduz qualidade violenta, súbita ou negativa, como romper, despedaçar, irromper, roubar.

Publicado originalmente em 23 jun° 2016.

Frasista

José Horta Manzano

A maior parte dos dicionários online de língua portuguesa anotam que a palavra “frasista” designa o indivíduo que aprecia fazer frases rebuscadas mas vazias de sentido. Dos que consultei, o Caldas Aulete é o único que amplia o significado do termo, ao conceder que são frasistas todos os que costumam fazer frases de efeito com ou sem conteúdo significativo.

Quero lembrar hoje aqui um grande frasista brasileiro, desaparecido há mais de meio século. Trata-se do carioca Sérgio Marcus Rangel Porto (Sérgio Porto), que também assinava com um heterônimo: Stanislaw Ponte Preta.

Verdadeiro homem de sete instrumentos, Sérgio Porto exercia como jornalista, compositor, escritor, cronista, teatrólogo, radialista. Tinha fértil veia humorística que ressurgia a cada esquina de sua obra. Bom exemplo são os livros de crítica sutil que escreveu sobre o fenômeno que ele nomeou Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País).

Porto foi abatido pelo terceiro infarto que sofreu. Tinha 45 anos.

Em sua curta existência, mostrou ser fino observador dos costumes de sua época. Sua avaliação está registrada em frases que nos chegam como uma fotografia dos anos 1950 e 1960.

Surpreendentemente, frases que ele criou há mais de meio século continuam atuais como se tivessem sido pronunciadas semana passada. Umas delas é:


“No Brasil as coisas acontecem, mas depois, com um simples desmentido, deixaram de acontecer.”


Foi inspirada na ditadura, mas convenhamos que continua combinando perfeitamente com os dias atuais.

Outra frase de Sérgio Porto vem a calhar para o comportamento abestalhado de nosso presidente sainte (que sai):


“Ninguém se conforma de já ter sido.”


 

Tampar x tapar

José Horta Manzano

Já devo ter falado deste assunto mas não custa repetir. Na linguagem descontraída de todos os dias, uns tampam os ouvidos, outros tampam a panela, há ainda quem tampe a boca, como na chamada do jornal.

Na língua culta, que os jornais deveriam respeitar, precisa tomar cuidado. Tampa-se o que tem tampa. Tapa-se o que não tem.

Portanto:

Tampar a panela
Tampar a caixa de bombons
Tampar a lata de lixo
Tampar o vidro de geleia

mas

Tapar os ouvidos
Tapar um buraco
Tapar o Sol com a peneira
Tapar a boca.

Foi o que fez o time alemão na hora da foto do jogo: todos taparam a boca.

Deu zebra

Jogo do bicho

José Horta Manzano

Nesta terça-feira, surgiu a primeira zebra da Copa 22: a Argentina, forte candidata ao título, foi derrotada pela Arábia Saudita, uma das equipes mais fracas do campeonato.

Jornais argentinos online estão arrasados. São páginas e páginas de desconsolo, com entrevistas, análises, comentários, lamúrias. Dá pra entender.

Mas é bom não tripudiar em cima dos hermanos. De criança, a gente já tinha a sabedoria de dizer que quem cospe para cima recebe o cuspe de volta na cabeça. Vai que o Brasil pega a República dos Camarões ou a Sérvia em dia inspirado – como é que fica? Pode dar zebra pra nós também.

Falando em “dar zebra”, sabe de onde vem essa expressão? Pois vem do jogo do bicho. O sistema é baseado num quadro de 25 animais, que vão da avestruz à vaca. A zebra não aparece entre esses bichos.

Quando Dona Maricotinha procura a vizinha pra saber o resultado do sorteio de hoje, pode ouvir em resposta: “Deu gato na cabeça”, “Deu águia”, “Deu o burro”. Mas jamais ouvirá “Deu zebra”, porque esse simpático animal listrado não faz parte do jogo.

Portanto, utiliza-se a expressão “dar zebra” quando algo não dá certo, quando o resultado é inesperado, imprevisto, difícil de acreditar, completamente fora de eixo.

Espaguetes flutuantes

Gregório Duvivier (*)


Tenho muito orgulho dos espaguetes flutuantes que içamos como um toldo sobre algumas vogais


Tenho, ainda hoje, uma tristeza irremediável por termos perdido o trema. Não durmo tranquilo desde que linguistas sequestraram cinquenta tremas sem pensar nas consequências.

A linguiça, por preguiça, passou a soar como que enguiçada. Os pinguins hoje parecem sequelados sem seus pinguinhos. Perceba que coincide: desde 2009 temos delinquido com mais frequência. Perdoem se estou monotremático.

Torço pra que nunca tirem de nós o til – patrimônio imaterial da nossa língua. Sei que os hispânicos põem o til sobre o N, mas podem passar uma vida inteira em terra lusa sem dizer um simples não. Conseguem, no máximo, um “náo”.

Os franceses tentam e sai “non”, os americanos emitem um “nawm”. Me enche de orgulho saber que o mais poliglota dos alemães ou o mais empedernido dos britânicos jamais alcançará o fonema que qualquer criança brasileira de dois anos de idade pronuncia, de boca cheia, 30 vezes por dia em sua palavra predileta: não.

O til, não sei se já perceberam, já foi um N que passou pra outro plano, e hoje está no céu. É sério. O português matou muitos N intravocálicos do espanhol, mas o fantasma continua ali. Antes de “hermano” virar “irmão”, virou “irmano”, com o N grafado acima das outras letras, flutuando entre o A e o O. Com a pressa na grafia, o N foi virando uma minhoca, um topete, uma onda, uma assombração.

Podemos ter esquecido mas ele está lá, levitando, como uma potência na matemática, elevando vogais à potência N. Daí a dificuldade dos gringos em compreendê-lo. Nosso til evoca uma letra que ao mesmo tempo está e não está. É quântico, como o gato (ou o cão) de Schrödinger (esse trema não caiu).

Me orgulho muito desses espaguetes flutuantes que içamos como um toldo sobre algumas vogais, mudando drasticamente o significado das palavras. O estrangeiro que pedir um “páo” com queijo pode ter uma péssima surpresa – da mesma forma que não recomendo que ele peça pra pôr seu “páo” na chapa.

As palavras com til têm a magia das coisas imensas, irresistíveis ou temerárias. Avião, feijão, paixão, revolução, dragão, coração. Basta tirar o “ão” e elas ficam banais. Perdem seus poderes. Ninguém teria medo de andar de “ávio”. Não dá água na boca um caldinho de “feijo”. Não são demais os perigos desta vida pra quem tem “paixa”. Ninguém sai de casa pra fazer uma “revoluça”. Um “drago” não cospe fogo algum. Um “vulco” não cospe lava. Imagina que tristeza ter, no fundo do peito, um “coracinho”.

(*) Gregório Duvivier é ator e escritor.

Lembra do “brienfing”?

José Horta Manzano

Parece que faz um século, mas aconteceu quatro meses atrás. Foi quando um desesperado capitão convocou o corpo diplomático acreditado em Brasília para revelar-lhe que nosso elogiado sistema eleitoral era disfuncional e fraudulento.

Todos hão de ter duvidado da sanidade mental do presidente. Disfuncional mesmo é um sujeito que venceu todas as nove eleições de que participou dizer que o sistema é aberto a fraudes. Coisa de desequilibrado.

Presidentes ignorantes, corruptos, populistas, mentirosos, incapazes, já tivemos. Mas a história não assinala nenhum que tenha convocado o corpo diplomático acreditado em Brasília para falar mal do Brasil. Fico imaginando os termos que cada embaixador utilizou no relatório enviado a seu respectivo governo. É melhor nem ficar sabendo. De vergonha, basta o que o capitão disse em público.

Na ocasião da palestra oferecida por Bolsonaro aos embaixadores, o telão erguido ao lado do orador dizia que a palestra era um “brienfing”. A palavra utilizada me pareceu ofensiva e presunçosa. No original, designa uma reunião em que o discursante dá instruções aos que assistem. Para coroar, foi mal grafada. Por ignorância ou desleixo, enfiaram um “n” onde não devia estar. O correto é “briefing”.

Francamente, ignorância e desleixo parecem estar incrustadas no universo bolsonarista. A foto acima foi tirada num desses acampamentos organizados diante de quartéis. De novo, maltrataram uma palavra da língua inglesa. “Freedom” (=liberdade) aparece mal grafada.

Quem bolou o texto julgou que palavra terminada em “m” parece brasileira, não inglesa. Deve ser por isso que tascou um “n” no fim. Fica com ar mais estrangeiro. É como alguns “Willian” que há por aí.

Antigamente se dizia que “quem não tem competência, não se estabelece”. Parece que o ditado já não vale.

Língua complicada

José Horta Manzano

Você sabia?

Por razões históricas, a representação gráfica dos diferentes falares humanos não é uniforme. Há línguas que se valem de ideogramas, como o chinês. O japonês usa um sistema complexo, com silabário e ideogramas. (Silabário é um sistema de escrita com um sinal gráfico para cada sílaba.)

A maioria das línguas escritas utilizam um alfabeto. Há dezenas deles. Em alguns casos, o alfabeto reflete os sons e as nuances da língua para a qual foi especialmente criado. Não é nosso caso.

Nossa língua herdou um alfabeto concebido para outra língua. Os escribas medievais foram obrigados a inventar letras, sinais e combinações para representar sons que não existiam no latim e para os quais não havia letras específicas.

Essa é a razão pela qual nossa escrita nem sempre bate com a fala. Escrevemos de um jeito e lemos de outro. A mesma letra pode ter mais de um som. Ao contrário, um único som pode ser representado de maneiras diferentes.

No português atual, uma única letra pode indicar até cinco(!) pronúncias diferentes. A letra ‘x’ é o exemplo maior. Soará como ‘ch’ em enxurrada, como ‘z’ em exame, como ‘s’ em excluir, como ‘ks’ em fixo. E será muda em excelente.

Por outro lado, o som ‘ch’ pode ser representado de três diferentes maneiras. Em acho, é indicado por ‘ch’. Em eixo, por ‘x’. E em este (na pronúncia carioca e nordestina), é representado por ‘s’.

Embora nem sempre nos demos conta, há numerosos casos de sons múltiplos representados por uma única letra. Cada um dos dois ‘aa’ de cama indica um som diferente. O ‘e’ de chover não se pronuncia como o ‘e’ de mulher. O mesmo se dá com o ‘o’ de moça e o ‘o’ de roça.

Tem mais. O primeiro e o segundo ‘d’ de dedinho não soam da mesma maneira. O mesmo vale para os dois ‘d’ de cidade e para os dois ‘t’ de tomate. O ‘u’ de muito é nasal, enquanto o de cuido não é.

Não nos atrapalha ver a nasalização de vogais assinalada pela letra que vem a seguir ― geralmente um ‘m’ ou um ‘n’. Assim, o ‘a’ de cano, o ‘e’ de então, o ‘u’ de mundo têm som nasal.

Por razões alheias à gramática, não nos importa que a pronúncia de certas letras seja contrariada. Ao ler a palavra Mercosul, por exemplo, ninguém respeita o que está escrito (Mercozul); dizemos todos Mercossul. Fica criada mais uma função para o ‘s’ intervocálico.

Que fazer? A cavalo dado, não se olha o dente. O alfabeto que temos nos foi legado. Temos de usá-lo como é.

Escrita khmer

Escrita khmer

A língua khmer, da família das austro-asiáticas, é falada por 13 milhões de indivíduos distribuídos entre Camboja, Vietnam e Tailândia. Sua particularidade é ter o alfabeto mais sortido do planeta: são 72 letras. Entre elas, 32 vogais. Dá três vezes nosso abecedário! Em compensação, parece que a gramática é bastante simples. Uff! Melhor assim.

Só para apimentar: acaba de me ocorrer que a língua francesa tem por volta de quarenta maneiras de escrever o singelo som ‘o’. O, ot, od, hau, au, eau, ho, aux, aud são algumas delas. Há mais algumas dezenas.

Pensando bem, não podemos reclamar. Até que tivemos sorte.

Publicado originalmente em 20 jul° 2014.

Doa a quem doer

José Horta Manzano

A expressão “doa a quem doer” me traz à memória a gafe histórica perpetrada por Fernando Collor, então presidente do Brasil. Há exatos 30 anos, em entrevista à televisão argentina, Collor afirmou que estava preparado para punir os culpados por quaisquer irregularidades em seu governo. Em refinado portunhol, acrescentou: “duela a quién duela”, que lhe pareceu ser a melhor tradução para “doa a quem doer”.

Expressões idiomáticas não devem ser traduzidas ao pé da letra porque, em geral, dá linha cruzada (essa é do tempo do Onça). Por exemplo, se você pegar a expressão “ao pé da letra” e traduzir para o inglês – ao pé da letra –, fica “to the foot of the letter” – sequência de palavras incompreensível para ouvidos anglófonos.

Dando de ombros a toda prudência, Collor ousou. E se estrepou. Naquela circunstância, um ouvido hispanofônico esperaria algo do tipo “no importa a quién le duela”.

Só ouvintes muito espertos devem ter entendido o “duela a quién duela”. Mas Collor não era esperto.

Cortes de orçamento

José Horta Manzano

Foi amplamente divulgado que, para o Orçamento 2023, Bolsonaro cortou drasticamente verbas que deviam ter sido destinadas à cultura e à ciência.

Faz milênios que a humanidade aprendeu o valor das ciências e das artes para o progresso da sociedade, só que alguns ainda não entenderam.

Aqui abaixo está um punhado de máximas antigas, algumas com dois mil anos, sobre o assunto.

Latim
Ars non habet inimicum nisi ignorantem.
A arte não tem outro inimigo senão o ignorante.

Italiano
L’arte non ha maggior nemico dell’ignorante.
A arte não tem inimigo maior que o ignorante.

Francês medieval
Science n’a ennemis que les ignorants.
Ciência não tem inimigos que não sejam os ignorantes.

Alemão
Wissenschaft und Kunst
haben nie der Toren Gunst.
Ciência e arte
nunca são apreciadas pelos tolos.

Inglês antigo
Art hath an enemy called ignorance.
A arte tem um inimigo chamado ignorância.

Os trogloditas que nos governam ainda estão na Idade Média.