Barbaridade no aeroporto

José Horta Manzano

Desde que Putin lançou sua guerra de conquista sobre o território ucraniano, cerca de 5 milhões de habitantes abandonaram o país e fugiram direção à Europa. Nenhum país estava preparado para um afluxo tão caudaloso, mas em pouco tempo, organizou-se uma corrente de solidariedade.

Governos, ongs e simples cidadãos arregaçaram as mangas e cada um deu contribuição à altura de suas possibilidades. A Polônia, com seus parcos 38 milhões de habitantes, já deu abrigo a um milhão e trezentos mil refugiados. A Alemanha já acolheu um milhão. A pequenina Moldávia, país mais pobre da Europa, recebeu quase cem mil ucranianos.

Uma reportagem do Estadão informa que, neste momento, um grupo de 150 afegãos vive acampado num saguão do Aeroporto de Guarulhos (SP). Adultos, anciãos e famílias com crianças pequenas integram o conjunto. Sobrevivem com a caridade de funcionários e frequentadores do aeroporto. Há quem traga um cobertor, comida, um colchão. Além de famintos, os estrangeiros estão precisando de um banho e de roupa lavada. Faltam remédios para os mais idosos.

Um detalhe muito importante: esses afegãos não são clandestinos como aqueles que atravessam ilegalmente a fronteira do México para os EUA. Os migrantes de Guarulhos são titulares de um visto humanitário concedido por uma representação diplomática do Brasil no exterior.

O tratamento que estão recebendo é uma barbaridade. É desesperante constatar a desarticulação entre as instituições brasileiras. Conceder visto humanitário é uma coisa, mas a sequência da acolhida tem de estar concatenada: recepção dos imigrantes, fornecimento de ajuda de custo, um abrigo, alimentação, cuidados de saúde, escola para as crianças – enfim, o necessário para amparar quem tudo perdeu e aqui chegou só com a roupa do corpo.

Onde está o senso de acolhida do povo brasileiro? Nunca passou de ilusão ou foram o capitão e seus neandertais que instalaram essa revoltante aporofobia?(*)

(*) O termo aporofobia define o ódio e o repúdio à pobreza e aos pobres.

Darwinismo social

José Horta Manzano

Semana passada, o Estadão publicou editorial intitulado Darwinismo Social de Bolsonaro.  Me pareceu excelente definição do modo malvado e mesquinho com que o capitão espezinha as camadas mais humildes da população. É aporofobia(*) pura exercida por um indivíduo de espírito fundamentalmente escravagista.

O Darwinismo Social é doutrina impiedosa, que não cabe em nosso modelo ocidental de democracia. É parente próximo do Eugenismo, que preconiza o abandono – ou até a eliminação – dos elementos mais frágeis da sociedade.

A amputação de 60% da verba destinada ao programa Farmácia Popular está em perfeita sintonia com a ideologia bolsonárica: vence o mais forte, os fracotes que se lixem.

Na mesma linha está o veto presidencial do aumento da verba para a merenda escolar – que está congelada há 5 anos (1 ano de Temer mais 4 do governo atual).

Em numerosas ocasiões, especialmente nos momentos mais agudos da pandemia, Bolsonaro deixou claro seu desprezo pelos cidadãos que mostravam ter medo de apanhar a doença. Caçoou dos que morriam de falta de ar. Tratou de maricas os que se vacinavam. Exortou o bom povo a deixar de lado a vacina e optar pela cloroquina.

São gestos que casam com a doutrina do super-homem e da vitória dos mais fortes em detrimento dos mais fracos, exatamente como na selva de Tarzan. Não há pensamento mais tóxico e mais explosivo para tornar inviável a convivência num país tão desigual como o nosso. O “pensamento” bolsonárico é poderoso freio a nosso avanço no processo civilizatório.

Um dos sinais mais significativos da transformação de uma sociedade primitiva em uma sociedade avançada e democrática é justamente o cuidado dedicado a seus membros mais frágeis. No caso do Brasil, a franja vulnerável é constituída pelos miseráveis, pelos famintos, pelos menos favorecidos, pela infância, pelas minorias étnicas e raciais. São justamente os que precisam da merenda escolar e da Farmácia Popular.

Cortar verbas que deveriam ser dirigidas aos que vegetam nas bordas da nação equivale a arremessar esses indesejáveis ao mar e seguir o barco. Cada ato emanado desse governo vem encharcado de injustiça.

É inacreditável que um em cada três eleitores ainda apoiem a reeleição desse indivíduo. Me recuso a acreditar que um terço dos brasileiros concordem com esse Darwinismo Social. Acho que eles, principalmente os que se consideram cristãos, não entenderam o que está ocorrendo.

(*) O termo aporofobia define o ódio e o repúdio à pobreza e aos pobres.

République bananière

 

José Horta Manzano

“Mas… de onde saiu essa gente?” – é a pergunta que se faz desde que o capitão vestiu a faixa. De onde vem esse povo estranho que cerca o presidente, gente desprovida de inteligência, de bom senso e de lógica, sempre com quatro pedras no bolso e uma faca entre os dentes? Onde se escondiam antes? Como é que passaram despercebidos até chegar ao entorno de Seu Mestre?

Todos os jornais da França, sem exceção, reproduziram a inacreditável fala de Sua Excelência Guedes, ministro-chave desta República, que ousou apontar o dedo para a França e declarar que ela estava “ficando irrelevante para nós”.

O trecho do discurso em que o ministro chantageia o tradicional parceiro do Brasil e o ameaça de “irrelevância”caso não cessem as críticas sobre o desmatamento da Amazônia foi estampado em todos os jornais. Até o palavrão (coisa fina, Guedes!) sujou o papel. Fico aqui imaginando a incredulidade que marcou a expressão dos leitores, gente pouco habituada ao baixo nível da fala de Guedes. Talvez o ministro nem desconfie, mas francês é um povo que lê.

Falando nisso, muitos dados importantes sobre o comércio exterior brasileiro devem estar escapando a nosso bizarro ministro. Levantamento do Estadão mostra que, segundo dados fornecidos pela embaixada da França em Brasília, há 1.042 empresas francesas instaladas em nosso país, que dão emprego a 471.784 funcionários e atingem um volume anual de negócios de 66,1 bilhões de euros (R$ 350 bi).

No ano de 2020, com um volume de 32,3 bilhões de dólares (R$ 165.3 bi) a França foi o terceiro investidor estrangeiro no Brasil, atrás apenas dos EUA e da Espanha. Agora vem o dado mais interessante: enquanto a França ocupa o 11° lugar entre todos os países que vendem para o Brasil, o Brasil ocupa o 36° lugar entre todos os países que vendem para a França.

Tenho o dever de contradizer o ministro e informá-lo de que, no ponto em que estamos, é o Brasil que se está tornando irrelevante para a França, não o contrário. Sem as importações do Brasil, a França poderia continuar funcionando sem sobressaltos. Já sem as importações da França, o Brasil teria problemas.

É verdade que Paulo Guedes é reincidente. Já reclamou do horror que seria ter de viajar de avião ao lado de uma empregada doméstica; já deixou claro que lugar de filho de porteiro não é na faculdade; já insultou a primeira-dama da França ao dizer (em discurso público) que ela era feia mesmo. Tudo isso é verdade.

É verdade que ele é tolo, arrogante, boca-suja, inconsequente, imbuído da própria importância. Só que tem uma coisa: se seu chefe fosse um outro presidente que não Bolsonaro, sua soberba e essa sujeira que lhe sai pela boca ficariam quietinhas, guardadas no fundo de uma gaveta e trancadas a sete chaves. Se abre as asinhas e se comporta como se discursasse para bêbados num botequim, é porque se integrou no time presidencial e absorveu os princípios éticos e morais em vigor no Planalto.

Senhor Guedes acaba de dar excelente contribuição para cristalizar, aos olhos europeus, a imagem do Brasil como legítima república de bananas.

No Brasil, sua fala já saiu das manchetes e faz parte do passado; na França, há de marcar nossa imagem por décadas.

Presidente coisa fina

by Marian Kamensky, desenhista austríaco

José Horta Manzano

O linguajar de Bolsonaro é rico de palavras chulas, escarnecedoras e impiedosas. É tarefa quase impossível classificar suas frases e organizá-las em grau crescente de torpeza. Todas carregam tremendo potencial clivante, ofensivo e excludente.

Faz algum tempo, a Folha de São Paulo mergulhou na tarefa ingrata de selecionar as mais agressivas. Aqui está uma seleção com 20 das piores frases pronunciadas pelo capitão em 2021.

Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos.

Não vou dizer que sou um excelente presidente, mas tem muita gente querendo voltar o que eram os anteriores, reparou?

Não reclamo das dificuldades. Sofro ataques 24 horas por dia. Mas entre esses que atacam e vocês, vocês estão muito na frente. Não me vão fazer desistir porque, afinal de contas, eu sou imbrochável.

Tem idiota que a gente vê nas mídias sociais, na imprensa, né?… Vai comprar vacina. Só se for na casa da sua mãe.

Vou só dar um recado aqui: alguns querem que eu decrete lockdown. Não vou decretar. E pode ter certeza de uma coisa: o meu Exército não vai para a rua para obrigar o povo a ficar em casa.

Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir.

Daí, vou ter que sair na porrada com um bosta desses [senador Randolfe Rodrigues, da Rede-AP].

A gente continua trabalhando a todo vapor. Não estamos preocupados com essa CPI. Nós não estamos preocupados.

Engraçado, né? Se falar cloroquina é crime, falar em maconha é legal. Jesus também não pode falar, não pode falar em Jesus também não.

O agro realmente não parou. Tem uns idiotas aí, o ‘fique em casa’. Tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa. Se o campo tivesse ficado em casa, esse cara tinha morrido de fome, esse idiota tinha morrido de fome. Daí, ficam reclamando de tudo.

Estão inventando agora na CPI uma corrupção virtual. Uma vacina que não foi comprada, não chegou uma ampola aqui, não foi gasto um real. E o governo está envolvido em corrupção. É o desespero. Por Deus que está no céu, me policio o tempo todo. Só Deus me tira daqui. Tapetão por tapetão sou mais o meu.

Não tenho como saber [o que acontece nos ministério]. O da Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos], o da Justiça, o da Educação. Não tenho como saber o que acontece nos ministérios, vou na confiança em cima de ministro, e nada fizemos de errado.

Sabe qual a minha resposta? Caguei. Caguei para a CPI, não vou responder nada!

Eleições no ano que vem serão limpas. Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições.

Primeiro, eu entendo que a prevaricação se aplica a servidor público, não se aplicaria a mim. Mas qualquer denúncia de corrupção eu tomo providência.

Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai Alexandre de Moraes, deixa de ser canalha, deixa de oprimir o povo brasileiro.

Muitas [vítimas] tinham alguma comorbidade, então a Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas.

Há três anos não converso com o deputado [Fernando] Francischini. A cassação dele foi um estupro. Por ter feito uma live 12 minutos antes, não influenciou em nada. Ele era deputado federal. Foi uma violência (…) Aquela cassação foi uma violência contra a democracia.

Já fui do PP, já fui do PTB. É um nome pejorativo que deram. Prefiro estar no centrão do que no esquerdão, lá você não consegue nada de bom para o país.

Não tá havendo morte de criança que justifique algo emergencial [vacinação contra Covid-19].

O crime do Paraná

José Horta Manzano

Este blogueiro é cidadão brasileiro de nascença e de sangue. Houve tempos em que me orgulhei muito disso. Hoje, menos.

Me lembro do dia em que o teatral (então) deputado Roberto Jefferson se virou para o (então) ministro José Dirceu e declamou: “Vossa Excelência desperta em mim os instintos mais primitivos”. Ninguém entendeu perfeitamente o sentido da frase. Não sei como terminou o affaire entre os dois figurões, se os instintos primitivos lograram satisfação. Pouco importa.

Em matéria de baixos instintos despertados em terceiros, Jair Bolsonaro ganha de lavada de qualquer figurão aparecido antes dele. Do futuro, ninguém sabe, mas até aqui, ele é campeão.

O assassinato perpetrado no Paraná por um de seus devotos é prova flagrante.

O assassino foi baleado de volta, mas, pelas últimas notícias, não morreu (ou não “veio a óbito”, pela linguagem policial). Ninguém esclarece de boa vontade, mas parece que foi ferido apenas levemente. A delegada que está conduzindo o inquérito é bolsonarista roxa, o que explica a ocultação de detalhes constrangedores.

Que país mais triste, minha gente. Com tanto para ser construído, dói ver que os baixos instintos levam gente a demolir, destruir, aniquilar.

O crime do Paraná tem dois autores. O primeiro é o que apertou o gatilho e que deveria ser enquadrado em uma série de crimes: intolerância, ódio, crime eleitoral, invasão de domicílio, uso desproporcionado de arma letal, perturbação da ordem pública e assassinato qualificado. O segundo autor não apertou o gatilho, mas deveria ser autuado como mandante. Vive num palácio em Brasília. Seu nome é fácil de encontrar no Google.

A notícia já deu a volta ao mundo. Em viagem, na fila dos passaportes, a gente procura esconder o nosso. Dá vergonha ser cidadão de um país violento e primitivo, onde querelas se resolvem à bala.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Povo com fome

José Horta Manzano

Enquanto o capitão passeia de jet ski e de motocicleta, o mundo observa o drama deste país em que boa parte da população passa fome.

Acredito que o distinto leitor nunca tenha passado por esse tipo de aperto, de não ter o que pôr no prato. Ou de não saber se vai poder comer amanhã. É muito difícil imaginar.

O grau de civilização de uma sociedade se mede pelo cuidado que ela dedica a seus membros mais frágeis. Analisado por esse prisma, nosso país ainda está a anos-luz do objetivo.

Enquanto isso, o capitão passeia de jet ski.

A Amazônia Legal, que representa 60% do território nacional, tem zonas imensas onde o Brasil não chega. São regiões onde a lei não vigora, e manda quem tem garrucha e pontaria. A situação não é nova, mas o problema se agravou exponencialmente na era bolsonárica.

Enquanto isso, o capitão passeia de jet ski.

Cidades importantes, como o Rio de Janeiro, também comportam zonas onde a lei não vigora, e manda o mais forte. É o reino da bandidagem.

Enquanto isso, o capitão passeia de jet ski.

A fila do Auxílio Brasil (novo nome da Bolsa Família) aumentou. É fato inacreditável e sem sentido. Em programas desse tipo, o que se espera é que haja cada vez menos clientes e que a fila encolha, não que se alongue. O foco do governo tinha de estar dirigido para resolver essa disfunção.

Mas o capitão não tem apetência para acudir aos infelizes que sofrem. Prefere passear de jet ski. E, pra espairecer, organizar uma motociata.

Agora chega!

José Horta Manzano

A graça concedida por Bolsonaro a Silveira, seu correligionário e deputado, condenado pelo STF a mais de 8 anos de cadeia, põe em pauta um problema cabeludo.

As leis que regem as instituições da República foram e continuam sendo elaboradas para situações normais. Partiram do pressuposto que postos de responsabilidade são ocupados por gente equilibrada e bem-intencionada. Não estava previsto que, um dia, um personagem desequilibrado e mal-intencionado ocupasse o cargo maior.

Faz três anos que as aspirações autocráticas do capitão vêm submetendo a nação a sobressaltos e a uma pressão cada dia mais insuportável. Anestesiados, seus devotos perderam a faculdade de pensar por si mesmos. Deles, não há nada a esperar.

Os demais brasileiros, moldados por séculos de regime autoritário, não se dão conta de que estamos resvalando para uma autocracia personalística, aberração que não se via por aqui desde os tempos de Getúlio Vargas, destituído 77 anos atrás.

Bolsonaro está conduzindo o Brasil em marcha forçada para um regime de tipo putiniano – autocrático e personalista, duzentos e tantos milhões de homens e mulheres tributários dos caprichos de um desatinado.

A inação das Forças Armadas já denota surpreendente cumplicidade. Exceto uma voz discordante aqui, outra acolá, o silêncio do generalato soa, se não como indiferença, como tácita anuência.

O Congresso – corroído por cooptação desabrida, onerosa e abjeta – perdeu a capacidade de exercer sua função de representar os interesses da população.

O Supremo Tribunal Federal é a última barreira, o derradeiro cinturão de segurança que ainda mantém, bem ou mal, a coesão das instituições da República do Brasil.


A hora é mais grave do que parece à primeira vista.


A Amazônia desaparece ao ritmo de um campo de futebol por minuto. A madeira extraída criminosamente é oferecida a amigos do clã para negócios escusos. Os manguezais são postos à disposição dos amigos do rei. A Instrução Pública, entregue a “pastores” que trocam bíblias por barras de ouro, vai sendo carcomida pelas bordas.

Observe-se que nem o Lula, que está longe de ser um santo, ousou graciar correligionários condenados no mensalão.

O capitão tem de ser parado antes que destrua tudo. Sua destituição tem de entrar na ordem do dia. Ou deixa o poder já, ou deixa o poder já. Não há outra opção.

Como fazer? Os do andar de cima, que perigam perder o que têm se não agirem imediatamente, sabem como fazer.

O impedimento do presidente me parece uma solução. Motivos, há de sobra. Para a argumentação, temos excelentes juristas.

Agora chega!

Brasil extraviado

José Horta Manzano

Saudades do tempo em que o Brasil atraía imigrantes em busca de recomeçar a vida num país pacífico e de futuro.

Saudades do tempo em que a simples menção do nome “Brasil” evocava imagens de gente feliz, sorridente, acolhedora, alegre, prestativa, solidária, dançante.

Saudades do tempo em que o mundo nos olhava com respeito e uma ponta de inveja.

O Brasil se extraviou. Os novos tempos são anunciados diariamente, ao mundo todo, em todas as línguas. Aqui está o exemplo mais recente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Muro da USP

José Horta Manzano

“O Brasil tornou-se um purgatório” – diz um amigo meu. Não tenho como contradizê-lo. Crimes e delitos (que alguns preferem chamar ‘malfeitos’) se tornaram tão corriqueiros, que a gente passa reto, sem se dar conta, como se a vida fosse assim mesmo.

Alguns anos atrás, foi construído um belíssimo muro de painéis de vidro transparente para substituir o antigo muro de concreto que separava a Universidade de São Paulo do mundo exterior. Segundo palavras do próprio reitor, a intenção era “integrar a USP na paisagem urbana”. A substituição do antigo pelo novo faria o efeito da derrubada de um simbólico “Muro de Berlim”.

O primeiro trecho, inaugurado há quatro anos, isolava a raia olímpica da ultramovimentada e superbarulhenta autoestrada urbana (dita marginal), que margeia o Rio Pinheiros. Feito parcialmente com doações, deve ter custado caro. Mas ficou bonito que só.

Bonito até demais aos olhos cavernosos dos neandertais que se multiplicam entre nós e que aceitamos que circulem soltos e que convivam com a parte civilizada da sociedade. Nem bem inaugurado esse primeiro trecho, o vandalismo gratuito mostrou sua face primitiva.

Um dia, um dos painéis amanheceu estilhaçado. Noutro dia, foi um segundo. A ação foi sempre noturna, que a covardia não permite fazer esse tipo de coisa à luz do sol. A derrubada continuou dia após dia, diante da inação complacente e quase cúmplice de todos. Não sobrou nada.

Nenhuma ação preventiva foi tomada pelas forças policiais, que são, afinal de contas, as autoridades encarregadas de defender a população e o bem público. Em terra de bandido, quem é que liga pra um vidro quebrado, não é mesmo?

Sob essa luz, dá pra entender a chamada da Folha, que aparece na entrada deste artigo. O jornalista, em tom de reclamação, constata que “os vidros continuam quebrados após 4 anos da inauguração”.

Num país normal, antes de pensar em consertar (ou em refazer inteiramente o trabalho, como é o caso), a população se preocuparia em descobrir quem cometeu esse crime contra o patrimônio de todos. Crime ou “malfeito”, como preferirem.

De fato, enquanto os autores estiverem correndo soltos por aí, será perda de tempo, de esforço e de dinheiro refazer o trabalho destruído. Antes, é preciso identificar e tirar de circulação os causadores do estrago; só depois é que se pode pensar em reconstruir.

Como era

O problema é que a selvageria se instalou de modo tão enraizado em nossas mentes, que já ninguém se dá conta da enormidade de uma ocorrência como a destruição voluntária desse muro. Fatos assim são admitidos e digeridos como se fossem parte integrante de nosso atual estágio de civilização. Não são. Isso é obra de criminosos. A desigualdade social e a carestia não levam hordas de famintos a levantar de madrugada pra destruir paredes de vidro. Não paga a pena. Saquear um supermercado daria mais futuro.

Além de estarmos nos acostumando com a baixaria onipresente (obrigado, capitão!), estamos banalizando e aceitando o crime. Isso é perigoso e pode terminar mal.

Pior que aqui

José Horta Manzano

Todos nós, os não-devotos, nos escandalizamos com a conduta que Jair Bolsonaro imprimiu a seu governo nos piores momentos da crise sanitária. Temos a impressão de que a maldade do capitão é impossível de ser superada. Desgraçadamente, como diz o outro, nada é tão ruim que não possa ser piorado. Há quem esteja fazendo pior que nosso presidente.

O distinto leitor há de se lembrar com horror da crise de oxigênio em Manaus, quando doentes morriam sufocados enquanto nosso presidente sonegava oxigênio, entregava cloroquina e aparecia nas redes arremedando a asfixia dos moribundos. Pois saiba que a ditadura militar da Birmânia (país que em inglês se chama hoje Myanmar) está superando a crueldade do capitão.

A Birmânia é daqueles países que nunca (ou quase nunca) souberam o que significa democracia. Em 2011, saíram de meio século de ditadura militar. Chegou a normalização, com eleições, como convém a todo país civilizado. Mas durou pouco. Dez anos mais tarde, em fevereiro deste ano, veio novo golpe militar. Seguiu-se novo mergulho nas trevas.

A variante Delta do covid-19 está se alastrando firme e fazendo estrago por lá. Como resposta, o governo ditatorial acaba de proibir a venda de balões de oxigênio às clínicas privadas, assim como a cidadãos comuns. A pena para quem desobedecer é a prisão imediata. Enquanto isso, soldados estão encarregados de confiscar todos os cilindros que encontrarem, visto que a posse deles se tornou “ilegal”. O oxigênio recolhido vai servir para acudir militares e seus familiares doentes de covid.

Apesar de estarem habituados a sobreviver sob ditadura militar, os birmaneses nunca haviam visto uma legislação que evidenciasse tanto a diferença entre a casta dos militares e o resto do povo. Os fardados e seus familiares têm todos os direitos, enquanto o povão é abandonado à própria sorte. Já faz meses que os cidadãos comuns saem em passeata para mostrar insatisfação, mas o regime continua firme e forte. Afinal, são os militares que têm os tanques e as armas.

Outro dia, populares faziam fila em frente a uma fábrica de oxigênio na capital do país. Sob o pretexto de que se tratava de comércio ilegal, chefes militares deram ordem de atirar contra o povão. Com balas de verdade! Ainda não se tem notícia do número de mortos.

É pena que os devotos do capitão não tenham acesso a esse tipo de notícia. Falo dos fanáticos renitentes, aqueles que vivem dentro de uma bolha e que concordam com tudo o que seu mestre diz e faz. Se soubessem que estão sendo usados como massa de manobra e que um dia, no futuro, poderiam até ser metralhados numa fila “ilegal” qualquer, dariam um passo atrás. Mas… a Birmânia é tão longe, não é?

Sacrifício no altar

José Horta Manzano

Seitas e religiões antigas tinham sacrifícios rituais. O Antigo Testamento lembra a hebreus e cristãos a alegoria do quase-sacrifício de Isaac, interrompido in extremis pela chegada do anjo. Muçulmanos têm metáfora equivalente, representada pelo sacrifício de Ismael, irmão mais velho de Isaac.

Mais perto (geograficamente) de nós, temos os incas que, até a chegada dos europeus, entregavam moças adolescentes aos oficiantes para serem assassinadas e oferecidas aos deuses para que não castigassem o império com catástrofes naturais e outras pragas. Depois de escolhidas, as jovens eram, durante meses, preparadas para o grande dia do sacrifício.

Ao observar a sequência de imagens que reproduzo acima, não pude deixar de associar a cena brasiliense com os relatos sacrificiais. A simbologia está presente.

  • O menino, que ainda está longe de ter chegado à idade da razão, é ingênuo e inocente. Não tem condições de entender que sua imagem há de ficar para a posteridade como símbolo triste e involuntário da desvairada passagem do capitão pelo Planalto.
  • A maneira como o pequenino está paramentado indica que passou por preparação específica antes de ser levado ao altar – exatamente como as donzelas andinas.
  • A criança chega ainda mascarada, numa imagem que sugere a virgindade e a proteção contra todo mal externo que possa atacar o corpinho.
  • No momento supremo, o capitão age com a brutalidade que lhe é característica e arranca a proteção. É o defloramento simbólico praticado pelo Grande Sacerdote.
  • As mãos erguidas do que se supõe serem os pais do ‘sacrificado’ aparecem ocupadas em clicar freneticamente, no intuito de eternizar o instante sublime. A criança assiste, ingênua, à movimentação. Daqui a algumas décadas, quando for adulto, o menino por certo se envergonhará de ter sido um dia entregue como troféu a um miserável bufão.

A foto termina aqui. Não sei dizer se, assim que a criança voltou para o colo dos orgulhosos pais, a máscara voltou a ser instalada na posição de onde nunca devia ter sido retirada.

Tanto faz. De qualquer maneira, o mal estava feito. Se o pobrezinho não se tiver contaminado com o bafo pestilento do Grande Sacerdote, é porque tem corpo fechado e assim continuará pelo resto da vida. Pode jogar fora a máscara.

Kit covid

José Horta Manzano

As autoridades japonesas estão monitorando de perto tudo o que diz respeito à organização dos Jogos Olímpicos, que terão lugar no país daqui a um mês.

Neste domingo, apresentaram a Vila Olímpica à imprensa e anunciaram as mais recentes medidas de proteção dos atletas. Entre elas, estão a instalação de uma clínica especializada no estudo da febre, assim como a distribuição de um kit covid.

O estojo anticovid contém álcool em gel e sabonete medicinal. Pode parecer uma evidência, mas não há que esquecer que o país vai receber atletas de quase 200 países – e nem todos têm hábitos de higiene suficientes para protegê-los nestes tempos de pandemia.

Se nosso capitão, em vez de investir tempo, esforço e dinheiro em remédios milagrosos, tivesse, desde o começo, mandado distribuir sabonete e álcool em gel a toda a população – jovens e velhos, ricos e pobres, urbanos e rurais –, certamente não estaríamos hoje chorando a morte do quingentésimo milésimo(*) brasileiro.

Num país de pobres, só mandar lavar as mãos não funciona – o cidadão às vezes não tem dinheiro nem pra comer. Precisa dar o sabão. É mais eficaz que cloroquina.

(*) = 500.000°

Influenciador

José Horta Manzano

Se covardia fosse crime, muita gente estaria na cadeia, condenada à perpetuidade. Aliás, nosso capitão, legítimo integrante dessa turma, já faz tempo que teria sido defenestrado e encarcerado. Infelizmente, covardia não é crime. É atitude baixa, feia, reprovável, indigna, odiosa, mas, a rigor, crime não é.

Outro dia, os jornais deram notícia de um brasileiro que, em viagem turística ao Cairo, deu mostra de baixeza de caráter. Ofendeu uma vendedora jovem e ingênua. Ridicularizou-a usando expressões de botequim pronunciadas em português, língua que a moça desconhecia. Orgulhoso da proeza, documentou a cena em som e imagem. E publicou nas redes.

O vídeo circulou, saiu de controle, acabou chegando às mãos das autoridades egípcias – que não apreciaram nadinha o episódio. Chamaram o rapaz para investigação. Enquanto corriam as averiguações, ele ficou detido. Com medo, desmanchou-se em desculpas, declarou-se arrependido. Magnânima, a vendedora ofendida perdoou publicamente o ofensor. Ao cabo de uma semana, as autoridades soltaram o rapaz.

Estranhei a duração da prisão. Uma semana por uma molecagem digna de adolescente retardado me pareceu muita coisa. Dizem os jornais que o indivíduo é médico. Dizem também que é “influenciador”, seja lá o que isso significar. Acrescentam que ele faz parte do círculo de devotos de nosso capitão. Quando li isso, entendi.

Faz um ano e meio que Bolsonaro, logo no comecinho de sua desastrada aventura presidencial, declarou ter intenção de transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. De lá pra cá, as barbaridades presidenciais foram tantas que, no Brasil, poucos se lembram disso. A memória acaba se perdendo diante do fluxo contínuo de horrores que emanam do Planalto. Só que, no mundo árabe, ainda está vivíssimo o trauma que o anúncio causou.

No episódio do turista ofensor, as autoridades egípcias hão de ter sido informadas de que o engraçadinho, além de brasileiro, era devoto do capitão. Foi a conta. Cadeia nele! Não fosse o perdão concedido pela vendedora, era bem capaz de ainda estar mofando nas masmorras egípcias.

A desconfiança e a má vontade com que brasileiros são recebidos no exterior é “efeito colateral” da política externa do capitão. Sofremos todos, mas bolsonaristas sofrem ainda mais.

Fico pensando nos seguidores desse “influenciador”. Imagino que tenha um séquito de “influenciados”. Francamente, já não se fazem gurus como antigamente. Pobres seguidores!

Traição

Manchete da Folha, 3 junho 2021

José Horta Manzano

É inacreditável observar trem de subúrbio: por mais cheio que esteja, sempre cabe mais um. É também impressionante observar a corda dos caprichos de Bolsonaro: por mais que ele estique, ela não se rompe e continua, galharda, à espera de mais um puxão. Mas nada é eterno, nem a corda, nem muito menos Bolsonaro. Mais dia, menos dia, um deles vai ter de ceder: ou o presidente pula fora, ou a corda arrebenta. O que acaba dando no mesmo.

Pelas minhas contas (a não ser que nova barbaridade tenha surgido hoje de manhã), o puxão mais recente que ele deu na corda foi ontem. Ao representar o tradicional papel de desaforado, que os devotos tanto apreciam, ele se saiu com a pérola que está aí na manchete da Folha.

Depois de 30 anos pendurado nas tetas da República, o capitão está de tal modo distante da vida real que já não se dá conta de que o Brasil está habitado por um povo – por sinal, aquele que o elegeu. E que esse povo é constituído, em imensa maioria, de famílias pobres, para as quais um real é um real.

Bolsonaro passou três décadas auferindo polpudos vencimentos de parlamentar (sem falar dos extras, ‘rachados’ ou não). Promovido a presidente, faz dois anos e meio que não precisa mais nem fazer conta. À sua passagem, as portas se abrem, os serviçais se inclinam, automóveis e aviões estão sempre à espera para conduzi-lo aonde desejar. Já não tem contas a pagar – luz, água, combustível, restaurante, feira, supermercado, empregados, secretárias, seguranças. Tornou-se o habitante mais poderoso e mais privilegiado do território.

Se, para um indivíduo com a cabeça medianamente no lugar, esse estilo de vida pode dar vertigem, imagine para um mequetrefe como o capitão. É perdição na certa. O infeliz, cuja formação mental e moral já não era lá essas coisas, perdeu todo contacto com a vida real.

Daí a impossibilidade de reconectar-se com o povo a quem jurou servir. Ele se refere a “essa gente” como se se referisse a habitantes do planeta Marte. Não consegue ligar uma coisa à outra, ou seja, aqueles que imploram por uns caraminguás para poderem se alimentar são os mesmos que lhe deram o voto em 2018.

Se trair cônjuge já é feio, trair os milhões de pessoas que se jurou servir é o quê?

Saltitante

José Horta Manzano

Leio no jornal que nosso valoroso capitão, em sua laive de ontem, apostrofou um senador da República. Tratou-o como se mulher fosse – numa evidente ofensa homofóbica. Referindo-se à comissão que toca a CPI da Cloroquina, disse: “Agora, tem uma saltitante na comissão que queria me convocar. É brincadeira, né? Ô, saltitante, está de brincadeira. Não tem o que fazer não, saltitante?”.

A comissão é composta unicamente de senadores, à exclusão de toda senadora. Portanto, ficou claro que a afronta era dirigida a um homem, donde a conclusão que se tratava de insulto homofóbico. Até aí, todos foram.

Só que a imprensa foi mais longe. Chegou à conclusão de que o insultado era Randolfe Rodrigues, senador pelo Amapá. É possível que seja, mas, a meu ver, a imprensa errou. Errou ao dar uma mãozinha ao presidente. Explico.

Bolsonaro é um sujeito covarde. Valentão quando está cercado de seguranças ou quando se exprime através das lentes de uma câmera, o homem se péla de medo de ter de responder por seus atos. Aliás, todo esse inferno que os brasileiros estão tendo de aturar há dois anos decorre do pavor que ele tem de chegar ao fim do mandato, não ser reeleito, e ser um dia despertado pela chegada do japonês da Federal. (É por isso que sonha com manter o poder até o fim de seus dias.)

O capitão imagina que, ao não dar nome ao boi, estará a salvo de toda acusação de injúria. É por isso que eu digo que a imprensa erra ao dar-lhe uma ajudazinha. Em vez de facilitar a vida do ofensor rasteiro, deviam mais é contar o episódio do jeitinho que ocorreu: sem mencionar nome de ninguém. Se assim tivessem procedido, teriam alcançado três objetivos: 1) teriam mantido fidelidade aos fatos; 2) o senador em questão não teria visto seu nome associado a uma ofensa de pinguço; 3) o presidente teria ficado falando sozinho.

Acredito que os jornalistas de bom senso deviam redobrar a atenção. É importante ter sempre em mente que estão reportando atos e fatos de um sujeito traiçoeiro. É indispensável refletir antes de facilitar os desvarios do capitão. Ele não passa de um ser covarde, um indivíduo que se oculta por detrás de escudos que ele julga intransponíveis.

Ele é o exemplo cuspido e escarrado do tradicional dito português: “Feito de vilão – atira a pedra e esconde a mão”.

Vacinação diferenciada

Chamada Estadão, 7 abril 2021

José Horta Manzano

Dos países civilizados que conheço, nenhum pensou, até agora, em privatizar a vacinação contra a covid. A lógica é a mesma das vacinas tradicionais – poliomielite, tuberculose, varíola, febre amarela, hepatite. Cabe ao governo cuidar da imunização da população.

Só o fato de haver cogitado essa possibilidade já mostra que algo continua torto em nosso país. Se o projeto for realmente posto em prática, será passado atestado de nossa fé inabalável na desigualdade social.

Não respondo pelos laboratórios situados, digamos assim, em países menos tradicionais – Rússia, Índia. Mas me surpreenderia que empresas farmacêuticas sérias acatassem um pedido de compra de vacina vindo de particulares brasileiros, enquanto os demais cidadãos continuam fazendo novena pra Santa Genoveva pra conseguirem ser imunizados logo. Sem muita esperança.

Se, no Brasil, esse projeto não causa escândalo, além-fronteiras não é bem assim. Num momento em que o mundo corre atrás de imunizantes, cairia mal fornecer imunizante para abastados enquanto o povão continua ao deus-dará.

Parece mentira

José Horta Manzano

Nem bem acabei de escrever o post anterior, sobre o confinamento na França, abri o Estadão online. Logo na primeira página, dou de cara com estas duas chamadas, ironicamente colocadas lado a lado:

Chamada Estadão, 19 março 2021

Doria sobretaxa esporte e cultura
Num país de iletrados, onde 1/3 da população se mostra ignorante a ponto de achar que Bolsonaro está fazendo bom governo, sobretaxar a cultura é crime maior. Governador que faz isso merece ser impichado ao término de processo expeditivo.

Bolsonaro combate toque de recolher
Num país onde a pandemia corre solta e ceifa a vida de jovens e velhos, combater medidas de contenção da hecatombe é crime maior. Presidente que faz isso merece ser impichado em processo relâmpago.

As excelências e o quadrilhão

José Horta Manzano

Tantas são as barbaridades protagonizadas pelas excelências da República, que a vista do cidadão comum não consegue alcançar todas. De fato, algumas passam ao largo dos holofotes. E nem sempre são coisa pouca.

O escândalo provocado por um energúmeno – falo do deputado que insultou e ameaçou o STF – está servindo de cortina de fumaça para encobrir coisas muito feias.

Doutor Dias Toffoli, aquele mesmo que já foi doutor Toninho do PT e hoje se pavoneia togado no STF, interrompeu a sessão onde se decidia a sequência a ser dada ao processo contra o dito «Quadrilhão do MDB». Doutor Fachin, o relator, já havia dado seu voto favorável ao recebimento da denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República.

Eis senão quando, doutor Toffoli ‘pediu destaque’, um eufemismo jurídico que significa interromper o voto sine die (=sem prazo). Agora, se ele decidir manter seu ‘destaque’ até o dia de São Nunca, pode fazê-lo em plena legalidade. Trata-se de flagrante anomalia de nosso sistema jurídico, por meio da qual um solitário indivíduo tem o poder de sustar e mandar para as calendas um processo crucial para a nação. Mas assim são as coisas.

O interessante vem agora. Os integrantes do tal ‘Quadrilhão do MDB’ que são acusados no processo são seis senadores ou ex-senadores: Renan Calheiros, Jader Barbalho, Edison Lobão, Romero Jucá e Valdir Raupp; José Sarney fazia parte do bando, mas já escapou do julgamento. Completa o quadrilhão um ex-presidente da Transpetro.

Estes sete indivíduos são acusados de roubar, sob forma de propinas recebidas, nada menos que 864 milhões de reais. A ladroagem se estendeu por 8 anos de rapina contínua, de 2004 a 2012. Não precisa nem fazer cálculo muito requintado pra perceber que, em valores atualizados, dá por volta de 2 bilhões. Dois bi!

São nada mais que 7 quadrilheiros, o que representa perto de 300 milhões por cabeça. Ao fim e ao cabo, é dinheiro saído do bolso do distinto leitor. Enquanto isso, dezenas de milhões de conterrâneos continuam em estado de angústia alimentar, abandonados pelo poder público, sem saber sequer se vão ter o que comer hoje. Só pode imaginar isso quem já passou por essa situação, o que não é o caso de suas excelências. Nem se, por golpe de má sorte, acabarem presos um dia, enfrentarão esse problema: na cadeia, se come; de quentinha, mas se come.

Com o magote de 2 bilhões, os nobres representantes do populacho estão blindados: têm reservas suficientes para pagar os melhores advogados e subornar, se for o caso, muitas autoridades por aí. Atenção, doutor Toninho! Não estou aqui a afirmar que tenha acontecido; conjecturo, no abstrato, que até poderia ter ocorrido ou que possa vir a ocorrer.

Sabe quanta vacina poderia ser comprada com esse valor? Ou quanto oxigênio? Ou quanta cloroquina – fica ao gosto do freguês.

Observação
Segundo doutor Bolsonaro, a Operação Lava a Jato foi encerrada porque, desde que ele assumiu a Presidência, a corrupção desapareceu. Não precisava nem dizer, mas é bom que ele tenha dito. Brasileiros, durmam tranquilos!

O palavreado do deputado

José Horta Manzano

Parece que o nobre deputado que insultou os ministros do STF não é novato na matéria. De tão cabeluda, a notícia me deixou um tanto incrédulo. Será que não estão exagerando? – pensei. Não podia acreditar que um deputado tivesse tido a ousadia de soltar essa enxurrada de palavrões ao vivo e em cores, e ainda publicar nas redes. Pra conferir, fui dar uma espiada no vídeo.

Jesus, Maria, Josef! – como se exclamam os vienenses. Era pior do que eu imaginava. De onde está saindo essa gente? E quem é que vota num sujeito desse naipe? A resposta me parece simples: são eleitores que sentem afinidade com ele. Será que todos os parlamentares se exprimem assim?

Esse rapaz é exemplo flagrante de pessoa errada no lugar errado. Ele é membro do parlamento, palavra que deriva do latim medieval parabolare e carrega o sentido de conversar, discutir, argumentar. Nosso nobre deputado não foi feito para a função que exerce. Além do palavreado de várzea, seu discurso injurioso transpira intolerância. Não é homem aberto ao diálogo. Exige que sua vontade prevaleça sobre a dos demais.

Faz muito tempo que não vou ao Brasil. Da última vez em que passei por aí, ainda no século 20, não tive a impressão de que o povo se exprimisse com palavreado tão descomposto. Será que o brasileiro do século 21 proseia assim? A julgar pela assombrosa reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, aquela que ficou famosa pelo inacreditável vídeo tornado público, o modo de expressão passa obrigatoriamente pela linguagem chula.

A mim, choca. Venho de um tempo em que éramos ensinados a fazer distinção entre diferentes contextos. Na frente de senhoras não se falava da mesma maneira que à mesa de um bar; com uma criança pequena não se usavam as mesmas palavras que se usariam com um adulto; ninguém se dirigia ao diretor da firma do mesmo modo como conversava com um colega. As situações eram compartimentadas. Parece que éramos mais flexíveis, habituados a amoldar nossa fala ao ambiente em que estivéssemos.

Fico com a impressão de que o brasileiro está perdendo essa agilidade mental. Eu gostaria de acreditar que o nobre deputado é caso isolado de um infeliz que não recebeu educação. Quando vejo, no entanto, que o mesmo comportamento se espalha desde o presidente da República até o mais obscuro assessor, tenho minhas dúvidas: acho que o caso dele não é tão isolado assim.

A rigidez não é boa arma pra alimentar o processo civilizatório. Indivíduos monoglotas, de pensamento único, de visão obtusa e, agora constato, de linguajar angustiantemente rasteiro compõem um povo monolítico, incapaz de entender o mundo e de se abrir a ele. É realmente uma pena.

A floresta e a vacina

José Horta Manzano

A destruição patrocinada por Bolsonaro vai além da floresta amazônica. Os lampejos de delírio que se podem ler em seus olhos atingem outros tesouros da nação.

A floresta até que nem deu trabalho pra plantar. Em 1541, quando o espanhol Francisco de Orellana subiu o Rio Amazonas inteiro, atravessou a América do Sul e chegou ao Pacífico, a floresta já estava lá, prontinha.

Já outras conquistas brasileiras custaram tempo, dinheiro e trabalho. A vacinação em massa, por exemplo, entra nessa categoria.  Desde os tempos de Oswaldo Cruz, foi um século de trabalho duro, mas o esforço de gerações de autoridades conscienciosas acabou elevando o Brasil ao invejável patamar de referência mundial, de modelo planetário.

Até outro dia, era difícil encontrar outro país que fizesse tão bem quanto nós. Sólidas campanhas cobriam todo o território nacional e conseguiram erradicar a varíola, a poliomielite e uma coleção de doenças infantis que por séculos tinham castigado populações.

Mas isso foi antes da chegada do destruidor-mor. Com a arrogância que só a ignorância lhe permite, nosso presidente decidiu dar um basta a essa excelência. Sua campanha antivacina tem sido a antítese do que se espera de um governante que regule bem da cabeça.

Não preciso descrever aqui as barbaridades que Bolsonaro tem cometido em sua sede de eliminar as conquistas do país – o distinto leitor está cansado de saber. Ele deve estar feliz em ver o estrago que fez mas, para gente civilizada, o resultado é muito triste.

Ao olhar para a floresta amazônica, o presidente só enxerga árvores que precisam ser extirpadas pra dar lugar a uma savana semiárida; sabe-se lá por que absconsa razão, ele aprecia a caatinga. Ao olhar para a expertise brasileira no campo vacinal, não sei o que ele enxerga. Mas não deve ser nada bom, tanto que seu ímpeto é destruir. Será o medo da agulha? A raiva de ter sido criança num tempo em que não havia vacinação em massa? Só Deus sabe.

Journal de Montréal, Canadá

A notícia da destruição vai longe. No canadense Journal de Montréal, leio hoje um artigo. O título já diz tudo: «Au Brésil, un mois de vaccination poussive contre le coronavirus – No Brasil, um mês de vacinação ofegante contra o coronavírus».

Na sequência, informa que em nosso país, que era até aqui um modelo para a vacinação em massa, não mais que 2% dos habitantes receberam uma dose contra a covid. Nesse ritmo, fazendo as contas, serão necessários 42 meses (3 anos e meio) para cobrir toda a população. Preparem-se os que estiverem em grupo não prioritário. Com sorte, lá pelo início de 2024 vai chegar sua vez – se der tudo certo naturalmente. E pode agradecer a doutor Bolsonaro.

Preparei uma lista atualizada com 88 países e a situação da vacinação anticovid em cada um deles. O Brasil, antigo modelo de eficiência nesse campo, só aparece no fim da fila, num obscuro 58° lugar. É interessante notar que os EUA e o Reino Unido, países cujos respectivos dirigentes (Donald Trump e Boris Johnson) desdenharam da pandemia no começo, se redimiram. Deram uma guinada de bom senso e hoje se encontram lá em cima, entre os que mais vacinam. O Brasil, infelizmente, continua patinando, sem vacina e sem esperança. Também, com um presidente desses, o que é que você esperava?