O que se leva desta vida

Dr. Oswaldo Cruz e a vacina
charge de Arthur ‘Bambino’ Lucas (?-1929), desenhista carioca

 

José Horta Manzano

No começo do século 20, surtos frequentes de varíola assolavam o Rio de Janeiro. Embora a vacina antivariólica tivesse sido criada cem anos antes, o governo nunca havia organizado nenhuma campanha de imunização em massa. Em 1904, a Saúde Pública instituiu a vacinação obrigatória contra a varíola, fato que acendeu o estopim de uma rebelião popular que ficou conhecida como Revolta da Vacina.

É interessante notar que não foram as estatísticas de doentes que ficaram na história, mas a Revolta da Vacina. A varíola causou certamente mais sofrimento e perdas humanas do que a revolta, mas a história guardou o fato mais espetaculoso, aquele que botou mais medo que a doença.

Neste começo de século 21, os humanos estão tendo de encarar assalto de doença nova: a covid-19. Dado que o mal é recente demais, no ano passado ainda não havia nem vacina pronta pra ser usada.  Dezenas de laboratórios trabalharam com afinco e, para surpresa de todos, vários deles conseguiram oferecer imunizantes, menos de um ano depois da notificação do primeiro caso. Uma façanha!

O mundo se jogou em cima dessas novas vacinas. Israel, por exemplo, foi ainda mais rápido que os outros; contratou, recebeu, aplicou antes dos demais. Hoje está com quase todos os habitantes vacinados.

O Brasil de Bolsonaro desviou da rota do bom senso e seguiu em direção oposta. O presidente fez (e continua fazendo) campanha contra a vacinação. Sem se dar conta do mal que já causou e que continua a causar, não perde ocasião pra mostrar animosidade contra tudo o que possa limitar o alastramento da epidemia: máscaras, confinamento, distanciação social e, naturalmente, vacinas. Esta não presta porque é chinesa; aquela não compro porque não me ofereceram; aqueloutra nem pensar porque te transforma em jacaré. No fundo, a gente fica desconfiado que, na verdade, ele deve ter medo de injeção.

É difícil prever, especialmente o futuro – como diz o outro. Mas fazer previsões a longuíssimo prazo é moleza e não compromete; de qualquer maneira, quando chegar o tempo previsto, nenhum de nós vai mais estar aqui pra conferir. Então, vamos lá.

Daqui a cem anos, quando tivermos virado pó, os livros de história vão mencionar o turbulento período 2020-2021. Creio que o comportamento de Bolsonaro vai ser mais comentado do que a epidemia em si. A passagem do tempo vai escancarar cada vez mais a responsabilidade do doutor.

Assim como falamos hoje da Revolta da Vacina de 1904 mas esquecemos de contar as vítimas da varíola, nossos descendentes crucificarão Bolsonaro como o responsável pela ausência da vacina que teria estancado o morticínio.

Ele será um Joaquim Silvério dos Reis do século 21, o homem que traiu a confiança que nele haviam depositado os cidadãos. A história das nações está recheada de mitos que simbolizam tanto episódios gloriosos, quanto momentos execráveis. Bolsonaro vai entrar para a galeria de “mitos” brasileiros, a representar o papel de traidor dos ideais da nação. Será o símbolo de tudo o que o Brasil não quer.

O jornal que nos abraça

Ruy Castro (*)

Um amigo meu, a respeito de um artigo na Folha, referiu-se ao fato de tê-lo lido “no impresso”. Queria dizer, claro, que o lera no jornal de papel. Ao ouvir isso, ocorreu-me que cada vez mais pessoas chamam de “impresso” o jornal que se compra na banca ou se recolhe pela manhã na porta do apartamento, para diferenciá-lo do online. E me ocorreu também que, mais uma vez, a substituição de um formato por outro fará com que o antigo é que tenha de mudar de nome para dar lugar ao novo.

Foi o que aconteceu quando o CD começou a se impor sobre o LP, nome pelo qual o disco de vinil foi chamado durante os seus cerca de 50 anos (1948-98) no mercado. Pois, com a chegada do CD, que era um disco metálico, o LP passou a ser chamado de “vinil” —quando, se fosse o caso, o CD, como novidade, é que devia ser chamado de “metal”. O que, com atraso, ainda pode acontecer, agora que o CD também foi reduzido a peça de museu pelas novas tecnologias.

Ninguém na Idade Média (500-1500) dizia que estava vivendo na Idade Média, e muito menos era xingado de medieval. A pecha só se estabeleceu quando veio o Renascimento. Também se diz sem pensar que dom João 6º trouxe a família real para o Brasil em 1808. Mas quem fez isto foi o príncipe-regente dom João, que só se tornou dom João 6º ao ser coroado rei, em 1816.

O advento da Segunda Guerra (1939-1945) transformou em Primeira Guerra o que até então se conhecia como a Grande Guerra (1914-1918). No Brasil, a Revolução de 1930 não derrubou a República Velha. Derrubou a República de 1889 e, para indicar a ruptura, passou a chamá-la de Velha. E o sanfoneiro Luiz Gonzaga sempre foi Luiz Gonzaga, até ser eclipsado por seu filho Gonzaguinha e tornar-se, retroativamente, Gonzagão. Etc.

Donde parece inevitável que este nosso velho amigo matinal, que nos abraça ao ser aberto, em breve se torne “o impresso”, e estaremos conversados.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Ode ao ódio

Odeon – Teatro da Grécia antiga

José Horta Manzano

Ode
A ode nasceu na Grécia antiga. Era o nome que se dava a um poema lírico destinado a ser cantado ou recitado com acompanhamento musical. Através do latim, o termo se espalhou por praticamente todas as línguas europeias, do finlandês ao português, com os devidos ajustes ortográficos.

Da mesma raiz grega, vêm outros parentes: paródia, melodia, prosódia, rapsódia, comédia, tragédia, odeon. Na origem, são termos técnicos ligados ao teatro antigo.

Com a evolução das artes cênicas, a palavra ode praticamente deixou de ser usada no sentido próprio; sobrevive no sentido figurado. Dizemos hoje que uma manifestação exaltada de elogio ou de apreço por algo ou por alguém é uma ode. Ex: “Este seu texto é uma verdadeira ode à Bahia!”

Ódio
Apesar da semelhança sonora, o ódio tem significado oposto. É antônimo de amor. Derivada de raiz indoeuropeia com sentido de repulsão, a palavra nos veio pelo latim. Portanto, ode e ódio são termos que traduzem estados de espírito antagônicos.

Fiz uma rápida pesquisa no Google. Bem, pesquisa no Google vale o que vale, não convém tomar como verdade científica. Mas é o que temos.

Tomei alguns conceitos básicos e conferi quantas vezes cada um deles é mencionado quando acoplado com a palavra “ode”, em seguida com a palavra “ódio”. O resultado está aqui abaixo. (Número de menções dividido por 1000.)

Conceito        Ode     Ódio     Relação
Lula          1.520    3.010     2 pra 1
Natureza      2.010    9.950     5 pra 1
Beleza        1.850    9.470     5 pra 1
Ciência       1.250    8.060   6.5 pra 1
Estudo        1.170    8.250     7 pra 1
Bolsonaro       558    4.480     8 pra 1
Dinheiro      1.530   12.700   8.3 pra 1
Inteligência    360    3.370   9.5 pra 1
Corrupção       233    3.330    14 pra 1

Rápida análise
O ódio vence a ode em todas as categorias. A conclusão apressada seria que somos um povo que odeia mais do que aprecia. Será verdade? Já  veremos.

Pra cada menção de ode ao ex-presidente Lula, há 2 de ódio a ele. No caso de Bolsonaro, pra cada ode há 8 ódios. O conjunto até que faria sentido. Comparado com Bolsonaro, qualquer um parece coroinha – até o Lula.

Pra cada ode ao dinheiro, há uma baciada de ódios, numa razão de 8.3 ódios x 1 ode. Esse ítem é difícil de entender. Será que o povo brasileiro tem assim tanto ódio ao dinheiro? Vamos ver.

Há 6.5 que odeiam a ciência contra 1 que a exalta. Esquisito? É. Parece que tem ódio demais nessa conta. E a beleza então? O ódio à beleza dá de 5 x 1 na ode.

No ítem corrupção, é compreensível que 14 menções ao ódio apareçam para cada menção à ode. Já no ítem inteligência, é muito esquisito ver tanto ódio (14 x 1) contra ela. Será que já chegamos ao ponto de odiar a inteligência?

Conclusão final
Não dá pra acreditar que o ódio domine, a esse ponto, o panorama do brasileiro. Esses números, com poucas exceções, mostram que há uma distorção em algum ponto.

Refletindo um pouco, acho que não precisa se aprofundar em nenhuma análise sociológica. A razão dessa predominância do ódio em nossa terra é muito simples: a maior parte dos brasileiros desconhece a palavra ode. Não conhecendo, não a utilizam. Está aí a razão da aparente predominância  do ódio. Elementar, meu caro Watson.

Sina

José Horta Manzano

Internet e redes sociais têm seu lado bom. Se assim não fosse, não teriam conquistado tantos adeptos. A informação instantânea (que hoje convém dizer “em tempo real”) é bom exemplo dos benefícios.

Nos tempos de antigamente, um meio muito utilizado de transmitir informação era o “telefone sem fio” ou “boca a boca”. Não era sofisticado, mas tinha sua graça. Logo após ter se inteirado de uma notícia, a gente corria pra informar algum conhecido.

– Você soube da novidade?

– Não. O que é que foi?

Neste ponto, o bom da coisa era contar o que tinha ocorrido e parar pra observar a cara de espanto do interlocutor. Era uma sensação impagável.

– Noooossa! Não diga!

– Digo, sim. E digo mais.

E aqui se acrescentava algum comentário pessoal. Como se sabe, quem conta um conto aumenta um ponto.

E assim seguia. Terminada a conversa, cada um seguia seu caminho pra continuar a espalhar a notícia.

Diálogos assim, hoje, são mais raros. Com o celular sempre no bolso, (quase) todos ficam sabendo de (quase) tudo ao mesmo momento. Não tem mais graça perguntar “– Soube da novidade?”. Normalmente, a resposta será “– Soube, sim.”

Nem tudo, porém, é cor-de-rosa. Há gente que exagera na dose e tem nas redes sociais seu único canal de informação. Não é o caso do distinto leitor, naturalmente, visto que chegou a este blogue caminhando com as próprias pernas. Está ficando cada vez mais raro ver gente que usa as próprias pernas para andar; muitos por aí andam caminhando com as pernas alheias. Parece cômodo, mas pode ser nocivo a longo prazo. Massa cinzenta pouco utilizada acaba se atrofiando.

Essa dedicação exclusiva e em tempo integral às redes pode causar distorções em certos momentos. Em política, na hora de escolher candidato para eleição majoritária (presidente, governador, prefeito), esse hábito trabalha contra o eleitor, visto que limita sua liberdade de escolha.

A frequentação permanente das redes acaba por fagocitar outros canais de comunicação que costumavam ser usados entre candidatos e eleitores. Debates, por exemplo, em que cada pretendente tem ocasião de expor as próprias ideias, estão em processo de rápida perda de importância.

Esse estreitamento dos canais de informação dificulta o aparecimento e a ascensão de novos candidatos, enquanto favorece a reeleição dos nomes mais conhecidos. Para as presidenciais de 2022, o quadro se delineia cada dia com maior nitidez.

Um terceiro candidato, fora do binômio Lula x Bolsonaro, tem pouca chance de se fortalecer eleitoralmente. Esses dois personagens são tão conhecidos, que um terceiro será naturalmente menos popular do que eles. E terá menos espaço nas redes, o que limitará suas chances de sucesso.

Salvo acontecimento extraordinário, os dois nomes que o país inteiro conhece – o do ex-presidente (e ex-presidiário), e o do atual presidente (e futuro presidiário?) – têm todas as chances de aparecer na cédula do segundo turno.

Eta carma pesado, o nosso!

Euroinglês

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 abril 2021.

Diante do drama linguístico que vive hoje a União Europeia, convém recordar as palavras pronunciadas em 1962, numa coletiva de imprensa, por De Gaulle, presidente da França. O velho general tinha o dom do espetáculo; as credenciais para assistir a suas entrevistas eram disputadas a tapa pelos jornalistas. Naquele dia, ele pareceu ainda mais inspirado que de costume. Lá pelas tantas, citou Dante, Goethe e Chateaubriand e declarou que, se esses autores são venerados até nossos dias, é justamente porque cada um deles, ao se expressar na língua materna, guardou o espírito de seu país. Disse ainda que eles não teriam sido de nenhuma valia para a Europa se tivessem se exprimido “num esperanto ou num volapük qualquer”.

Não foi por acaso que o general mencionou duas línguas artificiais. Não foi sem razão que se referiu a elas em tom de desprezo, como se não passassem de brincadeira infantil do tipo língua do pê. É que, naquela altura, as lembranças da Segunda Guerra ainda estavam frescas na memória. Num Mercado Comum formado por apenas seis nações, a paisagem linguística era simples. Apenas três países eram grandes: França, Alemanha e Itália. Dos três, dois estavam em posição frágil, por serem os derrotados de 1945. Sobrava a França. Na lógica do general, a língua francesa se imporia naturalmente como lingua franca. Daí ter rejeitado toda ideia de língua neutra.

Passaram-se quase 60 anos, De Gaulle se foi, o mundo mudou. A União Europeia saltou de meia dúzia de membros para os 27 atuais, o que complicou o panorama linguístico. As línguas oficiais passaram de 4 a 24. E a tática do general furou: o francês não se impôs como língua de comunicação entre os europeus. Com o passar do tempo, foi o inglês que acabou por se impor.

Na administração da UE, a primazia da língua inglesa é fato incontestável. Em 2015, a Comissão traduziu 1.600.000 páginas para o inglês e apenas 72.000 para o francês, a segunda língua mais procurada. O domínio do inglês é brutal. Com sua estratégia de barrar línguas neutras, De Gaulle acabou facilitando a entrada do inglês. O que ele temia aconteceu: a língua de Shakespeare suplantou as demais.

O Brexit levou o Reino Unido para o outro lado da fronteira e deixou a UE numa situação linguística peculiar. Tirando Malta e a Irlanda, países de importância muito relativa, nenhum outro membro dá ao inglês estatuto oficial. No entanto, o inglês é de facto o idioma de todos os dias. No Parlamento, o número de intervenções em inglês equivale às falas em francês, espanhol e alemão somadas. A Inglaterra foi-se, mas o inglês ficou.

Depois do desaparecimento do sabir, um pidgin que serviu de lingua franca na bacia do Mediterrâneo desde a Idade Média até meados do século 19, é a primeira vez que um consórcio de povos adota, para a comunicação do dia a dia, uma língua estrangeira que não a do antigo colonizador – mesmo porque de descolonização não se trata. Não se trata tampouco de imposição de quem quer que seja. A adesão espontânea ao inglês teve crescimento vigoroso a partir da admissão de países da Europa Oriental, em 2004.

Chega-se agora a uma situação curiosa. Há uma corrente propondo que se oficialize o inglês como segunda língua dos europeus, junto à língua materna. Se isso ocorrer, a língua inglesa assumirá importância superior à do latim medieval, que se restringia ao posto de língua de cultura, sem jamais perpassar a fala popular. A moderar os ardores dessa corrente, surgem vozes que, sem renegar a realidade, recomendam que o futuro inglês europeu – euroinglês, provavelmente – lance, de certo modo, seu grito de independência: “Que se afrouxem as amarras que me prendem à tirania do inglês britânico!”.

O pleito faz sentido. Não é confortável nem admissível que um inglês oficializado na UE continue sob a tutela de Cambridge ou de Oxford. Nenhum parlamentar europeu deveria se envergonhar de não dominar o idioma como um nativo. Não se pode esperar que um lituano, um espanhol ou um húngaro manejem o inglês como se fossem ingleses. Ainda que puristas britânicos possam não apreciar, a futura lingua franca europeia será fruto do idioma de Shakespeare. Será fruto, é verdade, mas será também bastardo.

Marina e a perereca

Ascânio Seleme (*)

Lula tem razão. Ele e Gleisi assinaram artigo na “Folha” mostrando preocupação com o meio ambiente e batendo na política criminosa de Bolsonaro para o setor.

Mas é bom não esquecer que o maior ícone ambientalista nacional, a ex-senadora Marina Silva, pediu demissão do Ministério do Meio Ambiente no governo Lula por falta de “sustentação política” para tocar sua pauta.

Também não custa lembrar que Lula sempre se queixou da “poderosa máquina de fiscalização” ambiental. Por isso disse, no longínquo 2010, que o Brasil não podia “ficar a serviço de uma perereca”. Criticava a paralisação das obras do Arco Metropolitano do Rio em favor da preservação de um anfíbio que habitava um charco por onde passaria a estrada.

(*) Ascânio Seleme é jornalista. Trecho de artigo publicado no jornal O Globo de 24 abril 2021.

A ignorância faz estragos

José Horta Manzano

“É preciso justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas.”

Jair Bolsonaro, em discurso na Cúpula do Clima 2021

É verdade que ninguém presta muita atenção ao que se diz em reuniões espetaculosas como a Cúpula do Clima destes dias. Convidar líderes de 40 países é muita coisa. As palavras que cada um possa ter pronunciado se perdem na algaravia. Quando o 23° termina de falar, todos já esqueceram o que o 14° tinha dito. Cada um analisa o que o dirigente do próprio país declarou, sem se ater ao que possam ter declarado os demais.

O interesse geral está no pronunciamento daquela meia dúzia de líderes que realmente contam: EUA, China, Rússia, França, Alemanha – pouco mais ou menos. O resto é o resto. Assim mesmo, as palavras ali pronunciadas vão permanecer nos anais para todo o sempre. Sempre há quem vá se referir a elas em negociações futuras. Por isso, convém ser comedido e pensar muito antes de discursar. Antes de abrir a boca, é bom ter certeza da exatidão do que se vai afirmar. Infelizmente, a afligente ignorância que atinge nossos dirigentes costuma pregar peças no presidente de turno.

Soprada por sabe-se lá qual ministro iluminado, uma frase enigmática sobressaía do discurso de Bolsonaro. É a que cito no cabeçalho deste artigo. Trocando a ideia em miúdos e utilizando o fino vocabulário do clã que nos governa, fica assim: “Não me encham o saco, senão ainda vou acabar apresentando a conta; vocês, que são ricos, têm de me pagar por lhes fornecer o ar que respiram”. Uma finura que só.

Passando por cima da demonstração pública de mesquinhez e da evidente demonstração de que o Brasil está na defensiva, a ideia comporta grave erro de raiz. Certamente não haverá consequências, visto que ninguém leva Bolsonaro a sério, mas o engano está lá, registrado para sempre nos arquivos implacáveis da internet.

A turma palaciana deve ter achado o máximo entrar com mais essa ameaça. Devem ter-se sentido superinteligentes. Não sabem que são de uma pobreza intelectual deplorável. Se não estivessem brigados com a ciência, bem que podiam ter perguntado a alguém que entende do riscado, mas acredito que não deva ter sobrado nenhum cientista sério nas cercanias desse governo.

O problema é que a ameaça de Bolsonaro não tem base na realidade. Diferentemente do que creem os áulicos do Planalto, “pulmão da Terra” não são as florestas, mas os oceanos. Se o planeta dependesse unicamente da vegetação para regenerar o ar que respiramos, faz tempo que a vida estaria extinta. Não estaríamos aqui sorrindo das bobagens que o presidente pronuncia.

O oceano abriga bilhões de toneladas de pequeninos seres invisíveis a olho nu: é o plâncton, formado por organismos microscópicos. Eles representam mais de 95% da biomassa marinha e são compostos por vírus, larvas de peixe, bactérias, microalgas, minúsculos crustáceos. A porção vegetal desse batalhão invisível – o fitoplâncton – responde pela maior parte da regeneração da atmosfera. No ciclo do oxigênio, não seria correto dizer que o papel das florestas não conta, mas o dos oceanos é infinitamente mais importante.

Se tivessem sabido disso antes de bolar o discurso do presidente, os sábios do Planalto talvez tivessem tido o cuidado de verificar quem são os donos dos maiores nacos de oceano, ou seja, aqueles que mais contribuem para a regeneração da atmosfera. Os sábios talvez não estejam a par, mas os almirantes da Marinha certamente sabem que os países com saída para o mar dispõem de uma ZEE (Zona Econômica Exclusiva) de 200 milhas de extensão. Trata-se da zona marítima sobre a qual esses países têm direito exclusivo de exploração mineral e comercial – o que inclui a pesca e a exploração petrolífera. É a porção de mar que, de certo modo, pertence a cada país.

Por razões históricas que não vêm ao caso agora, certos países dispõem, além do território principal, de ilhas e arquipélagos ao redor do planeta. Acontece que a regra das 200 milhas também se aplica a cada uma dessas ilhas, o que resulta num quadro inesperado. O país que possui a maior área marítima é a França, dona de 11,6 milhões de km2 de Zona Econômica Exclusiva. Coladinhos, vêm os EUA, com 11,4 milhões de km2. Seguem-se a Austrália, a Rússia e o Reino Unido. O Brasil, que tem poucos arquipélagos de alto-mar, aparece na 10ª posição, com 3,8 milhões de km2 – um terço da área de cada um dos dois campeões.

Assim sendo, pela régua de um ingênuo Bolsonaro, que ousou falar em “remuneração pelos serviços ambientais prestados”, quem estaria no direito de apresentar a conta ao mundo não é o Brasil, mas a França e os EUA, países que aparecem quase empatados na primeira colocação.

Mas não o farão, porque têm bom senso. Bolsonaro tampouco o fará porque dinheiro a ele, assim, de mão beijada, ninguém vai dar.

A multiplicação das cotas

Hélio Schwartsman (*)

Cotas provavelmente vieram para ficar, mas continuo não gostando delas. Reconheço que é tentador resolver problemas atuando diretamente sobre os resultados a que queremos chegar. Se é a discriminação que impede minorias de obter vagas nas universidades e concursos, bons postos de trabalho e cargos de direção, então basta reservar esses lugares para elas. Fazê-lo, entretanto, é abrir uma caixa de Pandora.

Não é difícil enxergar o viés contra mulheres e negros nas estatísticas. Mulheres e negros ganham em média menos do que homens brancos mesmo quando os cálculos são ajustados para comparar adequadamente qualificação, horas trabalhadas, tempo de casa etc. Pior, experimentos mostram que currículos idênticos obtêm respostas diferentes dos empregadores dependendo do sexo e da etnia do candidato.

O problema é que não são só mulheres e negros. O primeiro emprego de Lúcifer deve ter sido de estatístico. Quem se debruçar com cuidado sobre os dados encontrará discriminação contra jovens, velhos, gays, gordos, feios e até contra baixinhos.

Embora não exista uma história conhecida de perseguição e opressão contra pessoas de baixa estatura, esse grupo, a crer em estudos norte-americanos, sofre tanto quanto mulheres e negros no mercado de trabalho. Entre os CEOs das maiores companhias americanas, 58% tinham mais de seis pés (1,83 m) de estatura, contra apenas 14,5% na população geral. Cada polegada (2,54 cm) a mais de altura representa um incremento de US$ 789 na renda anual do funcionário. Curiosamente, só o estado de Michigan tem uma lei para coibir o preconceito contra baixinhos.

Uma aplicação consistente do princípio de que grupos discriminados devem ter direito à reserva de vagas nos levaria a uma irrefreável multiplicação das cotas. No limite, chegaríamos a uma situação borgiana na qual cada indivíduo, dadas suas peculiaridades, faria jus à cota de si mesmo.

(*) Hélio Schwartsman é graduado em Filosofia e escritor.

Estratagemas

Rei Balduíno

José Horta Manzano

No dia 3 de abril de 1990, pouco antes da meia-noite, os ministros do governo belga se encontraram para uma reunião de crise. Após uns minutos de deliberação, constataram que o rei estava “impossibilitado de reinar”.

No dia seguinte, a decisão foi publicada em edição especial do jornal oficial do país, o que permitiu ao primeiro-ministro e aos demais ministros tomar as rédeas do governo e assumir as funções do monarca.

O rei Balduíno estava em perfeito gozo de sua saúde física e mental. Como é possível, então, que tenha sido julgado “impossibilitado de reinar”? Para entender, é preciso voltar no tempo. Uma semana antes, depois de anos e anos de hesitação, o parlamento tinha aprovado uma lei de descriminalização do aborto voluntário. Para a entrada em vigor, só faltava a sanção do monarca.

O problema é que o rei Balduíno, católico fervoroso, se recusava a promulgar a lei. Afirmou que não assinaria o documento nem se o papa lhe pedisse. Não queria que seu nome ficasse para sempre ligado a uma lei cujo teor colidia frontalmente com suas convicções. Diante do impasse, constitucionalistas encontraram uma saída – um tanto ousada e fora de esquadro, é verdade, mas servia pra contornar o problema.

Assim que a real interdição foi publicada no órgão oficial, os ministros, agora únicos responsáveis, assinaram e promulgaram a lei. No dia seguinte, o ministério se reuniu novamente. A ordem do dia era uma só: discussão sobre a interdição do rei. Após rápida deliberação, a interdição foi anulada e Balduíno foi de novo julgado “apto a reinar”. No dia seguinte, a boa notícia foi sacramentada pelo diário oficial e o monarca recuperou o trono.

No Brasil, faz uns dias, situação análoga estava se desenhando. Os deputados federais haviam votado um orçamento que desrespeitava as leis vigentes. Suas Excelências, cujo único interesse parece ser permanecer no poder para todo o sempre, sabiam o que faziam ao votar a peça. Mas deixaram o abacaxi para o presidente descascar.

Bolsonaro sabia que, se sancionasse o orçamento como foi votado na Câmara, estaria cometendo crime de responsabilidade, o que poderia levar à abertura de processo de impeachment. Se não o sancionasse, entraria em choque frontal com Suas Excelências que, em represália, poderiam até abrir… um processo de impeachment – há dúzias cochilando na gaveta da Mesa Diretora.

Foi quando surgiu a ideia de uma malandragem salvadora. (Afinal, nesta altura do campeonato, não é um trambique a mais que vai arruinar de vez o currículo do presidente.) Bolsonaro embarcaria num avião com destino ao exterior, para uma viagem de um ou dois dias. Por seu lado, Mourão, o vice-presidente, também deixaria o país. Assim, a via estaria livre para o presidente da Câmara, que é o nome seguinte na linha de sucessão, assumir a Presidência. Ele sancionaria a lei do orçamento, e pronto: Bolsonaro escaparia ao risco de destituição.

O cenário parecia bem desenhado. Quando chegou a hora dos finalmentes, veio a pergunta: “Muito bem, e Bolsonaro viaja para onde?”. Foi aí que caiu a ficha.

Os estrategos do Planalto foram obrigados a encarar a realidade: nenhum país está disposto a receber Bolsonaro. Nem vizinhos próximos, nem os mais distantes, nem Europa, nem Estados Unidos. À África, ele tem medo de ir. Viajar à Polônia, país que talvez o recebesse, fica complicado, porque a distância é muito grande.

Não, minha gente, não deu. E a ideia foi abandonada.

Chapéu na mão

José Horta Manzano

Em 2019, assim que assumiu a Presidência, Bolsonaro se indispôs com meio mundo. Nas relações exteriores, brigou com vizinhos e com todos os países amigos – com exceção dos EUA de Trump.

Aconselhado pelos luminares que o cercam, o capitão cuspiu em cima das doações milionárias da Alemanha e da Noruega, destinadas à preservação da Amazônia brasileira. Ofendido, deu a entender que o Brasil tinha como ponto de honra a manutenção da própria soberania. O recado passado ao mundo foi o de que não precisávamos nem desejávamos dinheiro de ninguém. Éramos crescidinhos e suficientemente fortes para cuidar de nosso território nós mesmos, sem interferência nem participação externa.

Para esta semana, Joe Biden convocou uma cúpula sobre o clima, com a participação de 40 líderes planetários. Bolsonaro está sendo esperado. Em contradição total com a arrogância de dois anos atrás, nosso “mito” fará uma apresentação humilde e indigente. Anunciou que pretende entrar de chapéu na mão, pedindo esmola. Deverá apresentar a chantagem que o Planalto preparou para confrontar o resto do mundo: ou me dão 10 bilhões de dólares por ano, ou a Amazônia brasileira vai continuar minguando até desaparecer. Se assim procederem, nossas autoridades vão transmitir a imagem de um Brasil empobrecido mas sempre vigarista. Como todas as iniciativas do governo atual, esta também é fruto de burrice entranhada. É impressionante como falta inteligência àquele pessoal.

Por certo não estão se dando conta de que a proposta é confissão pública e definitiva de impotência. A chantagem tupiniquim vai escancarar a realidade e dar razão aos que sugerem a internacionalização da floresta tropical. De ora em diante, todos saberão que, sem ajuda externa, o Brasil não tem condições de cuidar do próprio território.

Fica mais uma vez comprovado que os repentes de patriotismo bolsonárico não passam de patriotadas para a galeria. Na hora do vamos ver, é rabo entre as pernas e pires na mão.

Tratamento precoce

“Kit covid”

José Horta Manzano

Não posso saber qual era a intenção das autoridades que conceberam o “kit covid”. Não está claro, pelo menos para mim, se a intenção era curar ou prevenir a doença – se os remédios são curativos ou preventivos.

Não foi boa ideia dar ao coquetel de remédios o nome de “tratamento precoce”. Pra começar, precoce é palavra um tanto ambígua, visto que seu significado pode variar dependendo do contexto. Além disso, o termo não pertence à língua de todos os dias, ou seja, muita gente simplesmente não sabe o que significa.

No meu entendimento, para que a expressão “tratamento precoce” faça sentido, é preciso que o paciente já esteja doente, isto é, que já tenha contraído o vírus. Não se trata alguém que ainda não está doente.

Admitindo que a intenção dos criadores fosse tratar os doentes em estágio precoce, é preciso constatar que muitos estão entendendo que o famigerado “kit covid” é um preventivo, isto é, uma espécie de imunizante que se toma para não ficar doente.

Agora dá pra entender por que há tantos infelizes sofrendo as consequências de ter tomado os medicamentos do “kit”. Elas podem ser violentas. Há quem passe a sofrer insuficiência hepática, renal ou cardíaca. Há quem entre para a fila dos transplantes. Há muitos que infelizmente não resistem e acabam falecendo.

Entre os que sofrem essas consequências, deve haver muitos que, sem haver contraído covid, ingeriram os medicamentos do “kit” como preventivo. É trágico imaginar que, pensando escapar de um mal, recebam o terrível abraço de outra doença que os acompanhará até o túmulo.

Ontem, dia 18, o jornal O Globo publicou artigo esclarecedor que conta a pressão que autoridades vêm exercendo sobre o corpo médico lotado em hospitais por todo o país. O texto em pdf está aqui à disposição do distinto leitor.

Estrela brasileira no céu azul

Carlos Brickmann (*)

Sim, já houve época em que Varig, Panair, Vasp, Transbrasil e TAM eram embaixadoras do Brasil no Exterior. Respeitadas internacionalmente, era em seus escritórios que os brasileiros no Exterior liam jornal e tomavam cafezinho; eram seus pilotos que traziam remédios do Exterior, sem frete.

Hoje, que o governo federal se orgulha de ter transformado o Brasil em pária entre as nações, podemos voar livremente, ou quase livremente, para oito países: México, República Centro-Africana, Nauru, Tonga, Costa Rica, Afeganistão e Albânia. Senhores passageiros, sejam bem-vindos a seus destinos de comércio e de turismo e tenham uma boa viagem pela Bolsonair!

Temos oito destinos dos quais dois valem a pena. E 217 países restringem a entrada de passageiros vindos do Brasil. Nada ideológico: Europa Unida, Estados Unidos, Rússia, China, Cuba, Argentina, Chile, Canadá, Inglaterra, Israel, Irã, Turquia impõem sérias restrições aos viajantes provenientes de nosso país tropical.

Este colunista passou por diversas fases em voos internacionais: a fase Pelé, a fase samba-mulher-futebol, a fase da ditadura militar, a fase Amazônia, e até, surpreendentemente, uma fase Jorge Amado, em que a Europa intelectual discutia a opção menos partidarizada de seus romances.

A fase atual – “bote esse cara na quarentena e cobre adiantado” – me era desconhecida. O Brasil era pobre, mas o brasileiro era bem recebido. Hoje o brasileiro, vetor de vírus, é mal recebido. E o Brasil continua pobre.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

Vamos de cloroquina?

Prof. Didier Raoult, médico francês defensor da cloroquina contra a covid

 

José Horta Manzano

Esta semana, a Nature, conceituada revista científica britânica, publicou o resultado de uma análise sobre a administração de cloroquina e de hidroxicloroquina a pacientes que sofrem de covid-19. Nada menos que 94 cientistas endossam o estudo, que se baseou em quase três dezenas de ensaios clínicos efetuados com mais de dez mil pacientes.

Chegaram à conclusão de que o uso de hidroxicloroquina eleva a taxa de mortalidade. Já a cloroquina, molécula da mesma família, demonstrou ser simplesmente inócua. A fim de desestimular toda ideia de automedicação, os cientistas recomendam que pacientes de covid sejam alertados para esse perigo. Acrescentam que a administração de hidroxicloroquina potencializa o risco de hospitalização mais prolongada com frequente necessidade de intubação.

O estudo só vem reafirmar o que faz algum tempo que todos já sabemos: em caso de covid-19, cloroquina e hidroxicloroquina são medicamentos a banir. Na melhor das hipóteses, não fazem efeito nenhum; na pior, levam à morte. Tirando algum iluminado, como o professor Raoult – lombrosiano médico francês adepto ferrenho da cloroquina e da hidroxicloroquina –, todo profissional consciencioso devia passar ao largo desses medicamentos.

Não deixa de causar espanto que, no Brasil, muitos médicos (centenas? milhares?) continuem receitando e administrando essas moléculas a título de “tratamento precoce” de pacientes de covid. Será que esse pessoal não costuma se inteirar dos avanços da pesquisa científica? Não leem inglês ou, quem sabe, simplesmente não leem? Ou serão devotos fanáticos do capitão, daqueles que fazem tudo o que seu mestre mandar, sem parar pra refletir?

Talvez nenhuma das hipóteses mencionadas. Talvez a realidade seja mais tenebrosa ainda. É possível que, tendo estudado em escola de medicina de segunda categoria, estejam mal formados e despreparados para exercer a profissão. O que explica que não leiam pesquisa, visto que não entenderiam. O que também explica que sigam as orientações do capitão, visto que Bolsonaro lhes parece mais entendido no assunto do que os fracos professores que tiveram na escola.

Que São Benedito nos ajude!