Parabéns a você!

José Horta Manzano

Pergunta:
O que têm em comum o italiano Gioachino Rossini (1792-1868), o americano Herman Hollerith (1860-1929) e a francesa Michèle Morgan (1920-2016)?

Resposta:
Nasceram todos num 29 de fevereiro.

Sempre dirijo um pensamento comovido àqueles que nasceram nesta data esquisita. Imagine só, distinto leitor, como deve ser frustrante ter de esperar quatro anos pra receber parabéns! Se é chato pra adultos, pra crianças deve ser perturbador – ponha-se na pele do infeliz: vê todos os coleguinhas fazerem aniversário cada ano e ele… nada. Quatro anos, para os pequeninos, é uma eternidade!

Nestes tempos, de ditadura do politicamente correto e de hiper-judiciarização, é curioso que o legislador ainda não tenha se condoído da aflição dos que nascem neste dia fugaz. O sofrimento dos nativos desta data devia ser levado em conta quando se instituem quotas e privilégios. Como cidadãos discriminados pelos caprichos do calendário, merecem ressarcimento.

Michèle Morgan (1920-2016)
‘Les plus beaux yeux du cinéma français’
Os olhos mais lindos do cinema francês

A discriminação contra os nativos deste dia não é modismo. Ainda hão de se passar muitos séculos sem que alguém venha em socorro aos que passam a vida sob o flagelo da marginalização.

É verdade que o problema é mais amplo, tem a ver com o pas de deux entre o Sol e a Terra, um par de dançarinos que não conseguem acertar o passo. Em números arredondados, a Terra completa uma volta em torno do Sol em 365 dias e 6 horas. Fossem exatos 365 dias, nosso calendário seria simples: todos os anos teriam a mesma duração, sem necessidade de acrescentar esse dia intrometido de quatro em quatro anos. Infelizmente, assim são as coisas. Não dá pra mudar, nem com lei federal.

É verdade que podiam ter escolhido outro ponto do calendário pra intercalar esse ‘extra’ que só aparece a cada quatro anos. Podiam ter posto no final do ano, por exemplo, pra alongar as férias. Mas… que bobagem! Onde quer que pusessem o dia extra, crianças continuariam a nascer, e o problema continuaria!

Já que escolheram o fim de fevereiro, que assim seja. Deixo aqui minha solidariedade e meus parabéns a todos os que estiverem fazendo anos hoje!

Terraplanismo – primeira parte

José Horta Manzano

O jornal francês La Croix publicou ontem um artigo sobre a Confraria dos Terraplanistas do Brasil. O texto, muito sério, passa longe da zombaria. Expõe os fatos como eles são. Aponta que «para milhões de brasileiros, a Terra é plana».

Terra plana debaixo de seu domo

Este blogueiro, que vive há décadas em asilo voluntário no exterior, já tinha lido sobre isso. Da primeira vez, achei que fosse brincadeira. Duvidei que alguém pudesse acreditar nessa ideia. Em seguida, quando fiquei sabendo que o guru boca-suja, inspirador do governo atual, também apoia essa teoria, descobri que o mal está mais difundido do que eu imaginava.

Doutor Bolsonaro formou uma assessoria de gente esquisita. É espantoso que um pessoal capaz de avalizar o terraplanismo tenha sido alçado a cargos importantes. Como é que pode um país complexo como o nosso ser conduzido por gente assim? Ingenuidade até que passa; credulidade a esse ponto é de sair correndo sem olhar pra trás.

Se não bastassem as intuições dos antigos, as teorias de Galileu e Copérnico, o pêndulo de Foucault e os trabalhos de Coriolis, temos hoje astronautas que volta e meia fazem viagens em torno da Terra. Que precisa mais?

Onde está e que está fazendo aquele moço de Bauru, o Marcos Pontes, que é hoje ministro da Ciência, Tecnologia & outras coisas? Falo daquele que, no governo Lula, tomou carona num voo espacial da Rússia e viajou até a Estação Espacial Internacional. (Dizem que a brincadeira custou aos cofres brasileiros a módica soma de 10 milhões de dólares, pagos aos russos para fazerem o favor de aceitar o ‘astronauta-turista’ de uma viagem só; mas pode ser apenas maledicência.)

Terra redonda avistada da ISS – Estação Espacial Internacional

Primeira consideração
Doutor Bolsonaro escolheu Pontes para ministro; logo, deduz-se que sejam próximos.

Segunda consideração
Da escotilha da ISS – Estação Espacial Internacional, pode-se avistar a redondeza da Terra (veja imagem). Já faz mais de 20 anos que, sem parar, a estação dá uma volta completa em torno da Terra a cada hora e meia. Ninguém põe em dúvida a aventura de Doutor Pontes no espaço, em visita à ISS. Ele há de ter reparado nesse ‘detalhe’ da terra redonda. Logo…

Pergunta que não cala
Por que é que nosso silencioso ministro da Tecnologia não informa às excelências do Planalto (inclusive e principalmente ao guru boca-suja) que viu com seus olhos que a Terra é, de fato, redonda? Ao fazer isso, vai acabar na hora com a difusão dessa estupidez no Brasil. Estamos fartos de passar vergonha aqui no exterior. Se alguém quiser continuar acreditando na platitude terrestre, que o faça. Mas, na impossibilidade de eliminar todas as idiotices do Planalto, que se elimine pelo menos essa. Afinal, o pessoal precisa estar com a cabeça descansada pra bolar aquelas fábulas do arco-da-velha que alimentam os tuítes diários, uma doçura.

Não perca
A segunda parte deste artigo está no meu outro blogue.

Quarta-feira

José Horta Manzano

Em vídeo lançado nas redes, doutor Bolsonaro autoqualificou-se de «presidente cristão, patriota, capaz, justo e incorruptível». A falsidade intelectual contida da frase é tamanha, que faz a desonestidade petista parecer coisa pouca. Aliás, em matéria de hipocrisia, o atual inquilino do Planalto está deixando o próprio Lula no chinelo. Uma façanha!

Em atitude pra lá de temerária, Bolsonaro encasquetou de convocar o povo pra afrontar o Congresso. Levando em conta que o Congresso foi eleito por esse mesmo povo, algo está fora de lógica. Enfim, como exigir lógica de um presidente desequilibrado?

A lei permite que o mandato de um indivíduo (congressista ou o próprio presidente) seja cassado. Há regras para isso, sem necessidade de botar o povo nas ruas. No entanto, não é possível fechar o Congresso, cassando assim, de facto, o mandato de todos os congressistas. Isso tem nome: é golpe de Estado.

Posso entender a boa intenção dos que votaram no Lula em 2002, assim como a dos que votaram no Bolsonaro em 2018. Por seu lado, tenho dificuldade em captar a lógica dos que votaram no lulopetismo depois do mensalão e do petrolão, assim como dos que apoiam doutor Bolsonaro depois de um desastroso primeiro ano no poder.

Respeito todos os apoiadores de um e de outro. Assim mesmo, recomendo a todos aproveitar esta Quarta-Feira de Cinzas pra dar uma passadinha numa igreja qualquer e tomar as cinzas – prática com a qual os fieis de antigamente se penitenciavam dos excessos carnavalescos. Pode servir pra apaziguar ânimos e aclarar mentes.

O chinês e os mapas

José Horta Manzano

Você sabia?

O chinês
Entre 1850 e os primeiros anos do século XX, a China viveu tempos confusos. A extensão do território e a precariedade dos meios de comunicação dificultavam o controle e a imposição da autoridade central.

China painting

O Japão e as potências europeias aproveitaram a desordem para tirar uma casquinha aqui e ali. Ao cabo da primeira guerra sino-japonesa, ganha pelo País do Sol Levante, a China teve de entregar Taiwan e outros arquipélagos que interessavam ao vencedor. Os ingleses obtiveram uma concessão de soberania por 99 anos sobre um naco de terra adjacente a Hong Kong.

A Rússia, a Alemanha, o Império Austro-Húngaro também se aproveitaram daqueles tempos para fazer valer seus interesses políticos e comerciais. Em 1911-1912, com o fim do regime imperial, foi proclamada a república. Mas muita água ainda teve de passar sob as pontes do Rio Yangtzé antes que o país se estabilizasse.

Em 1909, no ocaso do regime imperial chinês, o Brasil recebeu uma comitiva vinda de Pequim. Era encabeçada pelo príncipe Liu She-Shun, representante de Sua Majestade. O príncipe tinha duas missões: por um lado, buscava firmar acordos comerciais; por outro, tentava convencer o governo dos Estados Unidos do Brazil a aceitar imigração de mão de obra chinesa.

O senhor Liu, recebido com todas as honras devidas a tão ilustre visitante, esteve no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nesta última cidade, deu uma passada pelos cartões postais de então, incluindo uma inevitável visita à Escola Normal ― orgulho do nascente magistério republicano. Foi saudado em francês, como se usava na época. E em francês respondeu.

Um ano antes da visita do príncipe, a primeira leva de imigrantes japoneses já havia aportado a Santos. Pode ter sido porque os japoneses estavam sendo bem avaliados por seus empregadores, pode também ter sido porque a instabilidade da China atrapalhava ― o fato é que o pleito do embaixador chinês gorou. Não se estabeleceu uma corrente contínua de imigração de chineses para o Brasil.

Os mapas
Era grande a cobiça que a China, desorganizada, despertava em potências estrangeiras. Os chineses se ressentiam da situação. Um exemplo é o mapa abaixo, onde países são representados por animais indesejados, cada qual carregando seu estandarte.

Mapa chinês alegórico Princípios do séc. XX

Mapa chinês alegórico
Princípios do séc. XX

As bandeiras são um tanto fantasiosas, assim mesmo dá para distinguir a Itália, a Suíça, a Suécia, a Hungria. A águia americana aparece também.

Naqueles tempos, a totalidade da península indochinesa ― aquela tripa de continente onde hoje estão o Vietnã, o Cambodja, o Laos ― era colônia francesa. É por isso que, no mapa, a França aparece simbolizada por uma rã assentada sobre a Indochina e prestes a agarrar a China. Por que uma rã? Porque o francês é apelidado de frog (=sapo) pelos ingleses. O apelido pejorativo vem do fato de os gauleses terem o surpreendente hábito de comer pernas arrancadas de rãs vivas. Para quem não está habituado, it’s really shocking, é chocante.

Mapa-múndi chinês

Mapa-múndi chinês

Para completar o capítulo geográfico, uma curiosidade. Cada um de nós sente que é o centro do universo. É natural, it’s human nature. Pois o mesmo ocorre com nações e países. Quando desenhamos um mapa-múndi, pomos o nosso país no centro e o resto em volta. Estamos acostumados a ver as Américas à esquerda, a Europa à direita e o Oceano Atlântico no meio. A China e o Japão quase caem do mapa.

Mapa-múndi chinês

Os chineses sofrem do mesmo mal. Sentem, eles também, que são o centro do mundo. Você já viu um planisfério chinês? Veja então os dois que reproduzo acima. A China está localizada no meio do mapa. A Europa fica na extrema esquerda e as Américas se situam na extrema direita, com o Brasil quase caindo do mapa.

Cada um vê o mundo com seus óculos.

Nota
Embora representem variedades do mesmo animal, os termos sapo, e perereca são intercambiáveis no falar brasileiro.

Artigo publicado originalmente em 15 jan° 2014

As águas vão rolar

Canivete do exército suíço

Canivete do exército suíço

Interligne 28a

Canivete do exército francês segundo Michael Crawford, desenhista americano

Canivete do exército francês
segundo Michael Crawford, desenhista americano

Interligne 28a

Os menores de 60 anos devem estar se perguntando o que é que o título tem a ver com as imagens. Explico. Para o carnaval de 1954, Zé da Zilda compôs uma marchinha muito simples, fácil de memorizar, daquelas que todos se lembram com facilidade. Ia assim:

As águas vão rolar
Garrafa cheia eu não quero ver sobrar
Eu passo a mão no saca, saca, saca-rolha
E bebo até me afogar.

Fosse hoje, o autor perigava ser processado por incitação à bebedeira (ou, como convém dizer agora, à ingestão indiscriminada de bebida alcoólica). Na época, o mundo funcionava diferente. A gravação original está no youtube.

Publicado originalmente em 10 set° 2015

De nascença

José Horta Manzano

Quase três anos atrás, escrevi um artigo sobre a menção, em documentos oficiais, do lugar de nascimento. É que nova lei acabava de ser publicada no Diário Oficial pra, digamos assim, ‘flexibilizar’ a naturalidade do registrando.

Até aquela data, o município de nascimento que figurava no registro de cartório tinha de corresponder ao município onde a criança realmente tinha nascido – o que não deixa de ser lógico. A nova lei veio afrouxar o rigor tradicional. A regulamentação passou a permitir a escolha entre o município onde o nascimento tinha realmente ocorrido e o município de residência da mãe. Condenar um neonato a começar a vida com informação falsa logo no primeiro documento oficial não me pareceu ser boa ideia.

Ultimamente, eis que a França também anda falando em afrouxar as regras de registro de nascimento. As razões são diferentes das do Brasil. Muitos hospitais pequenos estão fechando as portas no país. Financiamento minguado e falta de pessoal médico e paramédico são os motivos. Como consequência, chegado o momento de dar à luz, parturientes têm de viajar dezenas de quilômetros. A criança acaba nascendo num município com o qual a mãe não tem laços afetivos. Daí a ideia de fazer figurar, no registro de nascimento, o lugar de residência da mãe.

A meus olhos, a falsidade continua. Se o registro de nascimento mencionar o município de residência da mãe, isso terá de ser anotado. Desaparece o lugar onde a criança realmente nasceu e o campo passa a intitular-se «Município de residência habitual da mãe». Além de afagar o ego materno, não vejo bem a utilidade dessa menção. Pode até atrapalhar a futura confecção do horóscopo de nascimento do cidadão – coordenadas geográficas errôneas vão falsear o resultado.

O lugar de nascimento é um acidente. Portanto, que seja este ou aquele, pouca diferença faz. Já houve quem tenha nascido num navio, num avião, num bonde, num táxi, numa ambulância. Nada disso afeta a dignidade da pessoa. Assim sendo, mais vale mencionar o município onde o nascimento realmente ocorreu. Ressalvada a particularidade dos (raros) que nascerem dentro de avião ou a bordo de navio, naturalmente.

Da infidelidade

José Horta Manzano

Da fidelidade, o dicionário diz que é «característica do que é fiel, do que demonstra zelo, respeito por alguém ou algo». Tem razão, mas falta ainda explicar de onde vem esse zelo, quanto dura e por que acaba. Cada caso é um caso.

Quebra de fidelidade amorosa, praticamente todos sabemos o que é. É raro encontrar quem nunca tenha sido autor, vítima ou coadjuvante. Além disso, zilhões de manuais de autoajuda autopsiam a infidelidade.

Fora do círculo amoroso, numerosos outros tipos de infidelidade correm por aí. A maior parte das pessoas depende de alguma atividade para ganhar a vida. É exatamente onde despendem mais tempo – oito horas por dia ou mais. É natural que as mostras mais frequentes de infidelidade ocorram nesse ambiente.

Na área política, os atores costumam estar particularmente excitados. Quanto mais alta a função, tanto mais exacerbado será o nível de infidelidade. Eleitos que abandonam partidos são multidão. Incontáveis são os que, uma vez empossados, ‘se esquecem’ de promessas de campanha. Viração de casaca é corriqueira. Na presidência da República, então, o fenômeno é especialmente agudo.

Não é coisa nova. Nos tempos do imperador, a infidelidade já estava na moda. A deposição de D. Pedro II, por exemplo, foi resultado de tremenda infidelidade dos galonados que haviam jurado defender o chefe de Estado e a Constituição. Presidentes infiéis para com o eleitorado, sempre houve. Ultimamente, no entanto, o problema parece agravar-se.

Logo em seguida à entrada do novo século, Lula da Silva, alavancado pela promessa de ‘acabar com a miséria’, chegou lá. Ainda há quem acredite que ele compriu o prometido. Não é minha análise. O desempenho do ex-sindicalista foi marcado por senso de oportunismo e soberbo desprezo à palavra dada. Ficou com os milhões e entregou migalhas. Seu programa de transferência de renda não passa de assistencialismo – um curral com entrada e sem saída, que transforma os assistidos em dependentes eternos. O Lula foi infiel às ideias e às esperanças dos que o puseram lá em cima. O resultado foi pífio pra tanta empáfia.

O presidente atual não fez melhor. De natureza paranoica, bombardeia todos os que possam representar ameaça – real ou imaginária. Já metralhou muita gente fina, companheiros de longa data, pessoas que o ajudaram a chegar lá. Todos os dias, o Brasil desperta inquieto e curioso pra saber se nova cabeça rolou.

Taí uma parecença entre as duas figuras mais impactantes deste começo de século: a constância na infidelidade. Se é que é permitido exprimir-se assim. Mas é permitido constatar que ambos têm feito um mal danado ao povo sofrido que tinha depositado esperança neles.

Great again

José Horta Manzano

Tem coisas que a gente não entende. Parece que essa gente que nos governa tem uns parafusos soltos. É verdade que não roubam tanto quanto os lulopetistas. (Pelo menos não se divulgou, até agora, nenhum assalto maior.) No entanto, são estranhos; tomam atitudes estrambóticas; dão tiro no pé, um atrás do outro.

Alguns meses atrás, deram de insultar autoridades estrangeiras, especialmente francesas. Esquecidos de que o desenvolvimento cultural do Brasil deve mais à França do que a qualquer outro país, insultaram a esposa do presidente Macron. E não foi lapso de um desavisado. Na brecha aberta pelo presidente, entraram o ministro da Economia e o ministro das Relações Exteriores(!). Coisa de adolescente maluquinho e descompromissado com a seriedade do cargo.

Faz alguns dias, vazou – por negligência ou intenção – um relatório sobre a segurança nacional, elaborado pelas autoridades militares cuja função maior é a defesa do território. Entre outras alucinações, pode-se ler que, no horizonte do próximo quinzênio, o maior inimigo potencial do Brasil é… a França. A França! Os que queimaram as pestanas pra chegar a essa conclusão são, com certeza, mais iluminados que nós outros.

Um enredo provável da catástrofe está explicitado no dito relatório. Segundo o documento, a França aglomeraria forças na Guiana Francesa, prontas a tomar posse dos cinco milhões e meio de quilômetros quadrados da Amazônia brasileira, área equivalente a dez vezes o território francês. De quebra, ocupando Belém, Manaus e todas a cidades e vilas da região. A legitimação internacional viria da ONU, pressionada pela França.

Fica a impressão de que os autores do enredo têm assistido demais a telefilmes de série B, daqueles em que o herói branco, alto, forte e loiro consegue – com meia dúzia de capangas – tomar de assalto uma inteira republiqueta de mestiços. E dizer que o relatório ‘vazado’ emana do Ministério da Defesa da República do Brasil. É desconcertante.

“Persiste o curto-circuito entre Paris e Brasília”
Les Echos (equivalente a nosso Valor Econômico)

Antes que o bom senso escoe de todo pelo ralo da ignorância, recomenda-se que os iluminados que vazaram o ridículo relatório se lembrem de que Brasil e França estão compromissados num negócio bilionário, em andamento há vários anos, envolvendo a compra de 4 submarinos da classe Scorpène. Um deles, o Riachuelo, já foi entregue. Faltam 3, todos eles já batizados: o Humaitá, o Tonelero e o Angostura. A França fornece; o Brasil compra.

Não convém acusar de «pior inimigo do Brasil» justamente aquele país de quem se está comprando sofisticado material militar. A repercussão desse assunto na França foi abominável. O gênio militar brasileiro está sendo motivo de zombaria.

Imagino que, por detrás dessa enormidade, esteja a paranoia de doutor Bolsonaro. Esse desequilíbrio de personalidade de nosso presidente está custando caro ao país. Quando o doutor se for, teremos de encontrar um presidente equilibrado, com parafusos ajustados, disposto a «Make Brasil great again – Fazer o Brasil voltar a ser grande». Ou, pelo menos, “parar de se apequenar”.

Ex aurea etiam sede in paludem rana resilit
Até de um trono dourado, a rã pula sempre de volta ao pântano
Máxima latina

No avião

José Horta Manzano

Pouco importa que o presidente, os filhos, os áulicos e o guru sejam tremendos bocas-sujas. Como é de público conhecimento (apesar de algumas vozes discordantes), não vivemos no país de Joseph Goebbels. O fato de uma aberração ser repetida sem cesso não a faz entrar à força nos usos e costumes nacionais.

Doutor Guedes, aquele que, em três tempos, havia de tranformar o país de calhambeque em Rolls-Royce, escorregou na mesma casca de banana que seu entourage costuma pisar dia sim, outro também. Que o tivesse feito entre amigos acomodados ao redor de um copo de pinga – que digo! – de um uísque 18 anos, passaria. O problema é que escorregou em público. E o público, como se sabe, dificilmente perdoa a quem resvala.

Pra quem esteve de quarentena em Wu Han estes dias e perdeu o último capítulo, o enredo é simples. Em fala pública sobre o valor do dólar, doutor Guedes soltou esta: “Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Vou exportar menos, em função de importações, turismo, todo mundo indo pra Disneylândia. Empregada doméstica indo pra Disneylândia. Peraí”. (O grifo é meu.)

Seria cômico se não fosse trágico. Se Guedes ‘está’ ministro, é porque doutor Bolsonaro – seu chefe e empregador – assim quis. Bolsonaro foi eleito em contraponto ao lulopetismo, é verdade, mas unicamente porque o regime petista, na cabeça dos eleitores, tinha se tornado sinônimo de roubalheira. O que se queria era eliminar a podridão e manter as conquistas.

Empregada em avião… e daí? Pois ela já não vive dentro da casa de distintas famílias? Já não exerce a primordial função de primeira educadora de muito pimpolho bem-nascido? Por que é que no avião não pode? Será medo de coronavírus ou hipocrisia grossa?

Doutor Guedes não entendeu a cançoneta. Milionário, segundo dizem, é legítimo representante daquela gente de nariz empinado a quem o Lula apontava o dedo reprovador. Naquela época, muita gente fina acompanhou o dedo reprovador e acabou acreditando nessa conversa – que parecia generosa e humana – até que o próprio Lula escorregou no melado, se lambuzou, e foi parar na cadeia por corrupção. Será por isso que alguns narizes por aí estão se sentindo de novo livres pra se empinar. E será também por isso que certos doutores estão voltando a se horrorizar com doméstica em avião.

A chacoalhar desse jeito, o avião de doutor Guedes não chega a bom porto. Em país decente, ministro nenhum continuaria no cargo depois de dizer o que disse doutor Guedes. Vamos ver se Bolsonaro se toca.

Vistos gold em Portugal

José Horta Manzano

Pouquíssimas são as cidades que, em nossa língua, exigem o artigo. De cabeça, me ocorrem: o Cairo, o Rio de Janeiro, o Recife, o Crato, o Guarujá.

Quanto à cidade de Haia, na Holanda, alguns conservam o artigo do original neerlandês (Den Haag); outros acham esquisito dizer “a Haia”. Fica ao gosto do freguês. De qualquer maneira, não é nome de cidade que se pronuncie com frequência.

Já vi muita gente fina escrever “a Filadélfia” (EUA) e também “a Basileia” (Suíça). Não sei de onde tiraram o artigo. No original, não há. Continuo preferindo ambos os nomes sem artigo.

Quanto à boa cidade do Porto, portugueses em geral e portuenses em particular fazem questão fechada do artigo: o Porto, do Porto, no Porto, e assim por diante.

Portanto, a chamada reproduzida acima tem um problema. Não se pode dar tratamento igual a dois seres diferentes. Ficam aqui sugestões pra acertar da próxima vez:

Portugal aprova fim dos vistos gold em Lisboa e no Porto.
Lisboa e o Porto deixam de emitir vistos gold.
Portugal elimina vistos gold em Lisboa e no Porto.

Há outras opções.

Ofensa pode custar caro

José Horta Manzano

Pelo tamanho do país, até que o Brasil não exporta tanta fruta assim. Aqui na Europa, alguns anos atrás, até que se via, aqui e ali, algum produto brasileiro. Hoje em dia, mais e mais se vê uva do Chile, goiaba da Tailândia, abacaxi da Costa do Marfim, banana-maçã das Ilhas Canárias, figo da Turquia, laranja da África do Sul.

Alguma importação do Brasil haverá, mas não sobressai. Não sou especialista na área, daí não saber explicar a razão da mudança que se opera estes últimos anos. Chutando, eu diria que o volume de certas exportações específicas (suco de laranja, por exemplo) aumentou muito e acabou por encobrir o encolhimento de outras vendas. Se alguém souber mais, todo esclarecimento é bem-vindo.

Acabo de ler um artigo no site da Câmara de Comércio Árabe Brasileira. Fala justamente da exportação de frutas brasileiras para o imenso mercado árabe. Comparado com o que se exporta para a Europa, EUA, Canadá e até para a China, o volume de vendas a países árabes é modesto. Mas o importante são as perspectivas de crescimento.

A Câmara de Comércio informa que, de 2018 para 2019, o aumento foi de 34%. É considerável para um ano só. A continuar assim, o mundo árabe vai logo se tornar importante cliente do Brasil nessa área também.

Alguém precisa avisar, sem demora, a doutor Bolsonaro. Embora esteja entre os grandes, o Brasil não é o único produtor de frutas. Muitas outras nações estão aí, grudadas, na fila, só esperando a ocasião pra abocanhar mercados. Se nosso admirável doutor – especialista em soltar ofensas gratuitas e gerar confusões evitáveis – continuar batendo na tecla da mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, afastará esse mercado florescente e será o único culpado de o Brasil perder mais essa.

Risco sexual

José Horta Manzano

“Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce”. O nome é pomposo, digno de ser definido como *imprecionante por nosso peculiar ministro da Educação. Mas não é obra dele, não. Sai direto da escrivaninha de uma colega: dona Damares – figura não menos peculiar.

Um exame um pouco mais atento revela um lapso. A valer o título, depreende-se que, para a ministra, tudo o que tiver a ver com sexo representa um risco a merecer prevenção. Quanto mais cedo a garotada espinhuda der vazão aos instintos que brotam naturalmente nessa altura da vida, tanto maior será o risco. Conclui-se que, sempre segundo a filosofia ministerial, o risco não está na ignorância do que virá a seguir, mas na precocidade com que a fatalidade vier.

Como costumam dizer os ingleses de modo ultrapolido, não tenho certeza de estar de acordo com o pensamento da ministra. Não acredito que o perigo resida na precocidade da sexualidade, mas na ignorância dos transtornos que ela pode ocasionar a pessoas menos informadas. Não cabe ao ministério coibir práticas sexuais de jovens brasileiros, mas instruí-los sobre os comos, os porquês, as causas e as consequências de seus gestos.

Por mais que as convicções íntimas da ministra sejam legítimas e respeitáveis, elas não devem ultrapassar a esfera privada da cidadã Damares. Sua Excelência não foi guindada ao ministério para impor sua convicções morais à juventude do país. Vivemos numa República laica, de total liberdade de crença e culto. Não cabe a ministro nenhum, por mais importante ou bem-intencionado que seja, «orientar» a sexualidade juvenil. Woodstock, meio século atrás, já se encarregou de dividir as águas entre o antes e o depois.

O Brasil e seus habitantes podem muito. Podem até ouvir certos discursos que vêm do Planalto, às vezes desconectados da realidade. O que o Brasil não pode é aceitar bovinamente que lhe seja imposto um “Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce”. A sexualidade não é um risco em si. Pode até oferecer risco a incautos, caso sejam mantidos na ignorância.

Reformulado, depurado e despojado dos preconceitos de Sua Excelência, o nome deverá ser: “Plano Nacional de Prevenção do Risco de Gravidez Precoce”. A gravidez juvenil e as doenças sexualmente transmissíveis é que representam risco. O sexo, não.

Observação
Em qualquer dos casos, será «prevenção do risco», nunca «prevenção ao risco».

Mentes embotadas

José Horta Manzano

É impressionante como a ignorância dá filhotes. Não se passa uma semana sem que o Planalto lance nova barbaridade, filha da ignorância. A mancada de hoje bate às portas da crueldade. É negação de um dos princípios básicos da democracia: o Estado tem o dever de amparar os membros mais frágeis da sociedade.

Algumas dezenas de conterrâneos nossos vivem nas cercanias de Wuhan, o ponto central da epidemia de pneumonia viral que está assustando o planeta. Nenhum deles está lá a mando do governo; cada um terá razões pessoais: paixão, estudo ou trabalho. Todos os dias, nossos patrícios veem amigos expatriados sendo recolhidos pelo país de origem. Os EUA, o Japão, a Alemanha, a França, a Espanha, a Bélgica, a Holanda, a Itália, a Suíça e muitos outros já cuidaram de repatriar seus filhos e tirá-los do olho do furacão.

Nossos conterrâneos, sentindo-se abandonados, juntaram-se e produziram um vídeo conjunto, em que rogam ao presidente da República que dê um jeito de tirá-los de lá. Sem ajuda, não conseguem sair. Os transportes estão todos paralisados; nada de trem, ônibus ou avião. Estão de mãos atadas, à mercê da boa vontade de doutor Bolsonaro. Sabem o que ele fez?

Nosso solerte presidente declarou-se «muito preocupado». Foi só. Negou ajuda aos patrícios. Disse que nenhum avião será encomendado pelo governo brasileiro, nem avião da FAB, nem fretado. Alegou que custa muito caro. Tentou escapar da responsabilidade ao explicar que precisa da aprovação do Congresso. (O Congresso não precisou aprovar a requisição do jato da FAB que levou um auxiliar de ministro à Índia – mas essa é uma outra história.)

Bolsonaro encerrou o assunto e matou a charada ao declarar-se receoso de que aquele punhado de expatriados venha contaminar 200 milhões de brasileiros. Não disse, mas todos entenderam: «Foram para esse país comunista porque quiseram; agora, que se virem; não tenho nada que ver com isso.»

Não sei como Donald Trump, Angela Merkel e outros fizeram para evitar contaminar milhões de cidadãos seus ao repatriar os conterrâneos em dificuldade. Deram um jeito. Sei, no entanto, como fez a França. Requisitou uma espécie de colônia de férias, à beira-mar, desocupada nesta época do ano. Conforme vão chegando os franceses vindos de Wuhan, vão sendo acomodados no lugar. Hoje já chegou o segundo avião, com mais uma leva de cento e tantas pessoas. Vão ficar lá por 14 dias, que é o prazo após o qual não há mais risco de contágio. Alimentados e bem tratados, podem circular dentro do perímetro da colônia; só não podem sair. Concordo que não é a maneira mais agradável de passar férias, mas é sempre melhor do que ficar confinado dentro de casa na China.

Os aviões fretados pela França trazem também cidadãos de países vizinhos. Belgas, holandeses e luxemburgueses estão sendo trazidos assim. O Brasil tem vizinhos que, muito provavelmente, têm cidadãos perdidos naquela lonjura. Nestas horas, a prática diplomática ensina que se deve consultar Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Santiago e propor uma ‘rachadinha’ – no bom sentido, naturalmente. Cada uma paga na proporção do número de cidadãos repatriados. O avião faz escala aqui, depois ali e acolá até chegar ao destino final definido pelas autoridades sanitárias brasileiras.

Bom, “isso aí” é o que ocorreria se tivéssemos um governo normal. Desgraçadamente, não temos. Portanto, os conterrâneos desgarrados que se virem, que o governo está se lixando procês.

E parem com essa história, que já deu. Agora, silêncio, porque os graúdos do Planalto estão preparando a próxima live. Pô! Essas picuinhas de brasileiro em país comunista atrapalham pra caramba, taoquei?