Plebiscitos & referendos

José Horta Manzano

Várias entidades andam promovendo debates, entrevistas e sabatinas com os candidatos à Presidência. É maneira interessante de conhecer melhor cada um deles. Mais vale ver um candidato responder diretamente do que ler breves tuítes caligrafados com o polegar.

Na série de entrevistas Estadão-Faap, doutor Álvaro Dias foi o entrevistado desta segunda-feira. Quando a conversa rodeou em torno da consulta ao povo, o candidato declarou que o recurso a referendos e plebiscitos «é um aprimoramento do sistema democrático».

Engana-se o doutor. A democracia direta, em que os eleitores são consultados toda vez que se tem de tomar uma decisão, não é aprimoramento, mas a expressão mais elementar desse tipo de organização da sociedade. Foi assim que a democracia nasceu, lá na Grécia antiga. Era um modo de consulta viável, dado o pequeno número de eleitores.

À medida que as cidades cresceram, o sistema se tornou inaplicável. No Brasil, por exemplo, não dá pra reunir 140 milhões de eleitores numa praça e pedir-lhes que votem, levantando o braço, cada projeto de lei.

Landsgemeinde: voto com braço levantado
A prática vigora em pequenas cidades da Suíça
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Eis por que já faz tempo que se inventou a democracia representativa. Dada a impossibilidade de reunir todos em praça pública, os eleitores elegem previamente seus representantes os quais, em seguida, se reúnem no Congresso onde deliberam em nome do povo. Diferentemente do que pensa doutor Dias, a representatividade é que é o verdadeiro aprimoramento do sistema democrático. Plebiscitos são úteis como instrumento auxiliar, a ser usado com moderação.

Nos momentos históricos em que o Congresso representa fielmente a vontade popular, plebiscitos se tornam desnecessários. Quando é preciso recorrer a eles a toda hora, é sinal de que o Parlamento já não reflete a vontade dos eleitores.

No Brasil vota-se com olhos vendados. O sistema proporcional faz que se vote no candidato A e se eleja o candidato B. Além disso, parlamentares que abandonam o mandato são substituídos por suplentes não eleitos. A acumulação dessas distorções resulta num Congresso dissonante, distante do povo e voltado para os interesses pessoais dos próprios integrantes.

No limite, quando o sistema funciona adequadamente, não há necessidade de recorrer a plebiscitos. Seja como for, eles não são um “aprimoramento”, mas uma volta às origens.

Semipresidencialismo

José Horta Manzano

Quando alguém que nos é simpático dá uma sugestão qualquer, ainda que nos pareça inaceitável, tendemos a levá-la em consideração. Ainda que estejamos em total desacordo, daremos ouvidos, argumentaremos e pode até ser que aceitemos a ideia nem que seja com reservas. Já quando a sugestão vem de alguém que nos é antipático, tendemos a rejeitá-la de bate-pronto, sem nem ouvir até o fim.

Estes dias, doutor Temer andou falando em reformular o sistema de governo do país. Palavras como parlamentarismo e semipresidencialismo surgiram sobre a mesa. Com diferença de poucos detalhes, ideia semelhante vem sendo emitida por doutor Gilmar Mendes, por doutor José Serra e até por doutor Maia, presidente da Câmara. Dado que essas figuras carimbadas sofrem forte rejeição popular, as propostas vêm sendo tratadas com indisfarçado desprezo. Muitos veem nelas simples subterfúgios para garantir aos figurões a permanência no poder.

Nenhum dos mencionados doutores me é especialmente simpático. No entanto, acredito que não se deva jogar o bebê com a água do banho. Melhor será concentrar-se sobre o conteúdo da mensagem e esquecer, por um momento, o(s) mensageiro(s).

Estamos todos de acordo num ponto: por razões que não cabe aqui discutir, a Constituição de 1988 nos conduziu a um impasse. Por melhores que tenham sido as intenções dos que a escreveram, o sistema engendrado pela carta magna mostrou seus limites. Esgotou-se. Vivemos em crise política permanente há 30 anos. É chegada a hora de reformular a máquina.

Muitos preconizam a convocação de assembleia constituinte para reconstruir o edifício. É problemático, demorado, caro, irritante e, sobretudo, dispensável. Mais vale seguir o atalho de alterações pontuais, caminho bem mais prático e rápido. Modificações limitadas não demandam a demolição do prédio, o que é menos traumático.

Apesar de ser considerado presidencialista, nosso sistema, na prática, é um «parlamentarismo presidencialista», se é que assim me posso exprimir. A meu ver, nossos 594 congressistas (513 deputados + 81 senadores) estão muito mais perto de representar a vontade popular do que o solitário presidente da República. Grosso modo, o conjunto dos parlamentares traduz a vontade de praticamente todos os brasileiros, ao passo que o presidente é eleito por pouco mais de 50% do eleitorado. A Câmara e o Senado congregam representantes de dezenas de partidos, enquanto o presidente é afiliado a um só deles. Portanto, é indiscutível que o Congresso está mais próximo do ideal da democracia representativa.

Quem afirma que «o presidente fez» ou que «o presidente deixou de fazer» se esquece de que o chefe do Executivo depende da aprovação do parlamento para pôr em prática qualquer medida. Nosso regime dito presidencialista, em que o presidente tem grande poder, colide com o Congresso, fato que está na raiz de muitos de nossos males. Cooptação, corrupção e compra de voto de parlamentares são consequência dessa confrontação.

No meu entender, uma drástica diminuição dos poderes presidenciais ‒ acompanhada da criação da figura de um primeiro-ministro ‒ contribuiria para a diminuição de tensões. Ordens e decretos deixariam de vir do Planalto e passariam a ser objeto de debate entre os legítimos representantes do povo. O presidente guardaria atribuições limitadas e específicas de representação do país.

Em sua ingenuidade, grande parte dos eleitores dá muita importância à escolha do presidente e pouco se importa com os parlamentares. Talvez seja essa a razão de elegerem congressistas tão medíocres. Na verdade, no sistema que imagino, o presidente não precisaria nem mesmo ser eleito por voto direto. Como na Alemanha, na Itália e em outros países civilizados, poderia ser eleito pelos parlamentares. Dado que teria poder pra lá de limitado, jamais seria fonte de crise.

Pode-se dar ao novo sistema o nome que convier: parlamentarismo, semipresidencialismo ou qualquer outro. Pouco importa. O que conta é que o país seja dirigido por seus representantes legítimos e não mais por um medalhão no qual 50% dos eleitores sequer votou.

Antipático por antipático

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 24 set° 2016

Diversos ramos da fé cristã reconhecem o estado de graça, condição extraordinária em que o seguidor fiel faz jus a uma ajuda sobrenatural que lhe permite, caso faleça, escapar à danação eterna. Quer tenha alcançado a graça por fé, por merecimento ou por outra razão qualquer, o devoto será premiado com a benevolência do Juiz Supremo. Estado de graça não é permanente: tem começo, meio e fim.

Em alguns países ‒ França, Alemanha e, em certa medida, Estados Unidos ‒ a expressão indica, por analogia, o período durante o qual a opinião pública tende a ser favorável a figurão político que acaba de ser alçado a importante posto de comando. Embora a duração exata fuja ao rigor científico, é geralmente aceito que o período se prolonga por cem dias, pouco mais ou menos. São quinze semanas durante as quais o governante beneficia de trégua relativa. Por um momento, todos se retêm na expectativa do que virá.

anjo-6Em abril de 2016, na sequência do afastamento provisório de Dilma Rousseff, doutor Michel Temer assumiu interinamente a presidência da República. Nos meses que se sucederam, vivemos um momento bizarro, com dois presidentes de direito. Uma ainda era, mas já não portava a faixa nem exercia o cargo. O outro já exercia o cargo ainda que não portasse a faixa. Nenhum dos dois era presidente pra valer.

Durante quatro meses e meio, o país viveu num compasso de espera, período em que os brasileiros ‒ gente cordial, como se sabe ‒ sobreviveram à custa de verdadeira paciência de Jó. A situação, tensa, não atava nem desatava. Tivemos de esperar até o derradeiro dia de agosto para conhecer o veredicto: o presidente provisório tomava posse do cargo e substituía definitivamente a antiga titular. Tanto os que simpatizavam com a anterior quanto os que preferem o atual hão de ter sentido alívio. A situação se desanuviou e a realidade, seja ela qual for, mais vale conhecê-la.

A contar da entronização, doutor Temer, pelo menos em teoria, entrou em período de graça. Atravessamos agora um tempo em que, excetuando-se algum resmungo aqui e ali, o país suspende a respiração. Estamos todos ansiosos pra saber a que veio o homem, se é manso ou bravio, se é incisivo ou frouxo, se dá mostras de ação ou, antes, de enrolação.

A relativa trégua de que goza o novo presidente é tênue e, grosso modo, vai até o fim do ano. Toda decisão mais encorpada tende a ser mais bem aceita pelo distinto público se for tomada neste período. Doutor Temer tem uma vantagem adicional sobre os que o precederam: já deixou claro que não se candidatará à reeleição. Se mantiver a decisão, essa firmeza de propósitos tende a eliminar toda suspeita de medida eleitoreira. Ninguém jamais poderá acusá-lo de ter agido para angariar votos.

Se o presidente for, como parece, bem-intencionado ‒ e se estiver disposto a deixar marca duradoura no avanço civilizatório do país ‒, há reformas urgentes na fila, todas esperando por alguém que dê mais importância ao futuro do Brasil do que davam os populistas. Algumas medidas são pouco simpáticas, outras francamente antipáticas. Para um homem que já viveu três quartos de século e que tenciona deixar um país melhor do que aquele que encontrou, tanto faz. Antipático por antipático, que seja proveitoso para os brasileiros de amanhã.

by Fernando de Castro Lopes (1957-), desenhista carioca

by Fernando de Castro Lopes (1957-), desenhista carioca

Já faz lustros que se sabe que o atual sistema de Previdência Social é uma bomba-relógio. Sucessivos governos fizeram-se de desentendidos, empurraram com a barriga e preferiram deixar a solução para o sucessor. O Brasil pensante espera que doutor Temer, que pouco tem a perder, não aja como os antecessores. Se conseguir adaptar o sistema à realidade atual do país, terá enriquecido a própria biografia.

Na área política, o presidencialismo à brasileira tem mostrado sinais de esgotamento. A profusão de partidos ‒ dezenas deles com representação no Congresso ‒ tem sido mais favorável à corrupção do que ao bem comum. A ausência de voto distrital, além de encarecer campanhas eleitorais, contribui para o divórcio entre eleitor e eleito. Representantes não sabem quem os elegeu e eleitores não sabem quem os representa. Vivemos uma paródia de regime representativo.

O país sofre de muitas mazelas. Não se pode atacar todas de uma vez. Se se dispuser a corrigir distorções da Previdência e a implantar o voto distrital, doutor Temer já pode ir reservando lugar de honra nos livros de História. Só tem uma coisa: tem de agir rápido, senão babau. O tempo lhe é contado.

Passo tímido, pacote flácido

José Horta Manzano

Dia 13 de agosto — que não era sexta-feira —, a OAB passou às mãos da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal seu projeto de reforma política. É um projeto tímido, que está mais para gambiarra que para reforma. Assim mesmo, poucos acreditam que venha a ser debatido e sacramentado por suas excelências a tempo de valer para as eleições de 2014.

Palhaço

Palhaço

A reforma aventada tem, pelo menos, o mérito de existir. É mais uma prova de que a sociedade pensante brasileira não está acomodada, muito menos satisfeita, com o funcionamento da política no País.

A OAB garante que, uma vez introduzida essa modificação, desaparecerá o chamado «efeito Tiririca». Essa incongruência, que faz que meia dúzia de candidatos totalmente desconhecidos sejam eleitos a reboque dos votos excedentários recebidos por um candidato estrela, não é novidade no País. Antes do nobre palhaço, Clodovil, Enéas e outros personagens em voga já exerceram o mesmíssimo papel. Essas figurinhas carimbadas são, aliás, ultracobiçadas. E não só por partidos nanicos.

É uma distorção flagrante do sistema de representação popular, mas não é a única nem a pior. Como já tive ocasião de comentar neste espaço algumas semanas atrás (post Época de mudanças), algumas disposições da Constituição outorgada em 1988 traem o princípio basilar de que todos os brasileiros são iguais perante a lei. A limitação do número máximo (70) e do número minimo (8) de deputados que cada Estado tem direito de mandar a Brasília desvirtua a isonomia entre os eleitores. Na hora de escolher seus representantes, os brasileiros não são todos iguais. O voto de um roraimense vale pelo de dez paulistas. É disfunção tão flagrante, que fica difícil captar por que a Assembleia Constituinte de 1988 terá introduzido esse dispositivo.

Palhaço

Palhaço

Uma outra mudança que, mais dia, menos dia, terá de ser feita é a introdução do voto distrital. O Brasil tem Estados enormes e pouco populosos. Tem também Estados menores, mas densamente povoados. No sistema atual, cada Estado representa um distrito. Não é a melhor maneira de proceder. No final, não sendo ligado a nenhum distrito, a nenhuma região particular de seu Estado, o deputado não se sente na obrigação de representar ninguém em especial. Como corolário, o eleitor não se sente representado por nenhum deputado em particular. Aliás, poucos são os eleitores que se lembram em quem votaram. No voto distrital, o País é dividido em distritos, cada um com população equivalente. E cada distrito elege o seu deputado, em votação majoritária de dois turnos.

Para corrigir de verdade, uma nova Constituição teria de ser escrita. Mas isso, além de ser demorado e trabalhoso, incomoda muita gente. Não vai ser fácil chegar lá. Vamos ter de nos contentar com puxadinhos, como esse que a OAB está propondo. Que remédio?

Cá entre nós: no duro mesmo, o «efeito Tiririca» é produto da ignorância de imensos contingentes de nossa maltratada população. É pela instrução pública que as reformas deviam começar.

Época de mudanças

José Horta Manzano

Reforma política
Toda caminhada, seja ela de alguns metros ou de quilômetros, tem de começar pelo primeiro passo. Temos pela frente uma oportunidade rara, daquelas que não aparecem mais que uma ou duas vezes na vida: endireitar as estruturas de nosso País. Ou, pelo menos, tentar fazê-lo.

A frustração de constatar que aquilo que se fez não deu certo é sempre menor do que o arrependimento de não haver tentado.

Estados Unidos do Brazil Constituição da 1a. República, 1891

Estados Unidos do Brazil
Constituição da 1a. República, 1891

O Brasil é um país de muita desigualdade e de muitas distorções. Tem-se falado muito, estes últimos dias, em reforma política. Que seria isso? É um conceito amplo, vago. É como um ônibus em que, apertando um pouco, sempre cabe mais um.

Reforma política pode tratar da duração do mandato de cada eleito. Mas pode também substituir o regime republicano por uma monarquia. Num sentido lato, a política é a arte de administrar o Estado. Isso vai da fixação do horário de trabalho dos contínuos até a definição dos poderes da República e sua hipotética hierarquização.

Seria altamente recomendável que se fixassem os objetivos antes de dar o primeiro passo da caminhada. Que seja tudo muito claro. Que se determine aonde se quer chegar, sob pena de atolar no meio da estrada.

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Representatividade
Partindo do pressuposto que a reforma política mantenha a representação bicameral (Câmara + Senado), o momento vem a calhar para botar remédio numa distorção flagrante.

No nosso regime federativo bicameral, o Senado representa os estados, enquanto a Câmara reflete os habitantes. Para evitar que estados mais populosos exerçam uma influência esmagadora no Congresso, cada um, seja qual for sua população, envia 3 representantes ao Senado. Isso faz que, na câmara alta, os estados estejam todos em pé de igualdade.

Na Câmara Federal ― também chamada câmara baixa ― cada deputado deveria representar um determinado número de habitantes. Se somos, grosso modo, 200 milhões de cidadãos, cada um dos 513 deputados deveria representar cerca de 400 mil brasileiros, pouco mais, pouco menos. Não é o que acontece atualmente.

Brasília - Congresso Nacional

Brasília – Congresso Nacional

Por alguma razão que me foge, a Constituição de 1988 passou por cima do que parece uma evidência. Desprezando a representatividade proporcional, estabeleceu que cada estado enviasse um mínimo de 8 e um máximo de 70 representantes.

O resultado é que, no caso mais aberrante, o voto de um roraimense vale o de dez paulistas. Em outros termos, se um habitante do simpático estado do Norte decidir-se pelo candidato do partido A, será necessário que 10 paulistas votem no candidato do partido B para equilibrar. Haja desequilíbrio!

A Câmara Federal está longe de representar proporcionalmente os habitantes. O voto de um acriano vale o de 4 alagoanos. O partido A vai precisar conquistar o voto de 4 ou 5 mineiros para compensar o sufrágio de um único amapaense.

O voto distrital puro, em dois turnos, parece-me a melhor solução. Seja qual for o caminho escolhido, a atual distorção na representatividade tem de ser corrigida.