Deportação e extradição

José Horta Manzano

«Battisti foi extraditado imediatamente pelo governo boliviano» ‒ li nalgum lugar. Bobeou quem escreveu isso. Confundiu atos distintos.

Deportação
É a expulsão sumária de indivíduo indesejado no país ‒ o mais das vezes, por ter entrado irregularmente. Frequentemente, brasileiros incapazes de demonstrar possuir meios de subsistência durante a estada no país são deportados da Espanha, de Portugal, dos EUA. Em geral, não chegam nem a sair do aeroporto.

Extradição
É processo muito mais complexo que a simples deportação. A extradição de um indivíduo se concede em atendimento a pedido de país estrangeiro. Só é autorizada depois de exame aprofundado da documentação enviada pelo governo requerente. Via de regra, os extraditandos são pessoas condenadas ou acusadas de crime.

O caso Battisti
Culpado de ter adentrado o território boliviano irregularmente, Battisti foi deportado pelo governo daquele país. Os policiais italianos, que por acaso passavam por ali, ofereceram-se para escoltar o clandestino de volta à pátria. Agradecidas, as autoridades bolivianas entregaram o homem.(*)

Comentário malicioso
No oficial, o governo de Evo Morales entregou o criminoso de mão beijada, sem contrapartida. No paralelo, não é proibido imaginar que tenha recebido um agradozinho. Aviões costumam levar muitas malas ‒ e o trimotor da aeronáutica militar italiana era bem grandinho.

(*) No rigor jurídico, o terrorista foi mesmo é sequestrado pela polícia italiana, enfiado num avião militar e carregado à Península. Guardadas as devidas proporções, lembra o caso de Adolf Eichmann, nazista de alto coturno sequestrado na Argentina em 1960 por agentes secretos israelenses e levado a Israel, onde foi julgado, condenado e executado.

Receita para enriquecer rápido

José Horta Manzano

Guardo um livro de receitas escrito por minha avó. Sim, eu disse escrito por ela. Escrito à mão. Na verdade, copiado. É que antigamente não havia internet nem televisão. A dona de casa prendada anotava cuidadosamente num caderno as receitas que colhia aqui e ali. Ter a receita de determinado prato já era, em si, uma preciosidade. Sem receita, como preparar um cobu mineiro um toucinho do céu ou um alfenim ‒ aquela bala de coco que derrete na boca?

As melhores receitas eram agraciadas com um qualificativo: «Esta é ‘explendida’», assim, com xis, como se escrevia quando a língua ainda não estava engessada pelo emaranhado de normas atuais. Vou dar hoje ao distinto leitor uma receita «explendida» para enriquecer rapidamente. Não dá muito trabalho. Seguida à risca, é sem risco. Vale arriscar!

Receita «explendida» para enriquecer rápido e sem risco
(em 17 etapas)

1) Você pode fazer sozinho, mas é mais seguro arrebanhar um grupo de companheiros. No final da receita, você vai entender por quê.

2) Reunido o bando, escolha um alvo e um modo de proceder. Pode ser um assalto a banco, embora não seja a melhor opção. Pode ser um estelionato de alto coturno. Infrações enquadradas no Artigo 312 do Código Penal são bem-vindas: concussão e peculato em especial.

3) Há mil soluções. Discuta com o grupo de companheiros pra definir qual delas é a mais adequada. Enfim, sinta-se livre de escolher o alvo, mas cuide que seja frutuoso. Anote isso: o ato tem de render no mínimo 10 milhões. Se o golpe for de 50 milhões, melhor ainda. Golpezinho pequeno é coisa de pé-rapado, só gera problema.

4) Planejem bem, que uma boa preparação é a alma de todo golpe de mestre. Fixado o alvo, defina o papel de cada membro do grupo. É essencial que todos sigam rigorosamente as ordens de Seu Mestre.

5) Dê o golpe. Procure agir no tempo mais curto possível. Práticas que se eternizam não são boa opção. Não ultrapasse 6 meses. Quando o produto do golpe estiver em suas mãos, não guarde em malas nem em apartamentos. O melhor é despachar logo pra um banco em Singapura ou em Hong Kong. Nem em pesadelo mande para a Suíça: embora alguns incautos não saibam, já faz anos que o segredo bancário foi lá abolido.

6) Apesar de todo o empenho e de todos os cuidados, o risco existe de algum membro do grupo ser apanhado e, uma vez encarcerado, pôr-se a delatar. Não é desejável, mas é possível.

7) Denunciados, todos os membros do bando vão ter de passar um (breve) período atrás das grades. Você também. Mas não se preocupe, que ninguém vai mandá-lo pra prisão de pobre. Quanto mais volumoso for o produto do crime, mais luxuosa será sua cela.

8) É agora que o montante obtido se revela importante. Quanto mais elevado for, mais e melhores advogados você poderá contratar. Não economize. Se puder, chame até antigos ministros do STF ‒ isso dá um plus a sua defesa.

10) Você será acusado de estelionato. Dado que o crime terá sido cometido em bando, você receberá também acusação por formação de quadrilha. Isso é muito bom. Quanto mais pesada for a acusação, mais respeito suscitará.

11) A partir daí, é simples. A fortuna que você tiver guardado em Singapura será amplamente suficiente pra bancar os honorários do batalhão de advogados. Na hora de pagar, basta transferir de uma conta para outra ‒ todos eles têm conta naquele país.

12) Agora descanse. Seus defensores impetrarão habeas corpus para você e para todos os seus amigos. Você não passará nem dois dias na cadeia. Talvez lhe imponham o uso de tornozeleira. Não esquente a cabeça, que ela é discreta e passa despercebida.

13) Em casa, tranquilo, você aguardará que seu caso seja julgado. De qualquer maneira, se você se comportar bem, não terá de portar a tornozeleira por mais que uns dois meses. Depois disso, estará livre de ir e vir. Enquanto isso, seu caso vai passeando pelas instâncias: a primeira, a segunda, a terceira, a quarta. Isso vai levar no mínimo dez anos. Pode chegar a vinte. E você tranquilo, já imaginou? Rico, tranquilo e livre!

14) Pode usufruir o produto do golpe, que ninguém vai reparar. Gaste à vontade, mas procure não dar sinais explícitos de riqueza. É mais prudente comer caviar em Paris do que pizza no Rio.

15) Resta um último risco. Há uma probabilidade em um milhão de seu caso chegar ao STF antes da prescrição. O Supremo pode até negar provimento ao seu caso. É raro que aconteça, mas não é impossível. Sua prisão pode até, nesse caso, ser decretada. Se tal infelicidade viesse a acontecer, não se apoquente. Dirija-se a um sindicato qualquer. Um que tenha prédio grande, de preferência. Tranque-se lá dentro e resista.

16) Chame os amigos de seus amigos. Seja generoso na distribuição de churrasco e cerveja. Muita gente virá. Ensine-lhes palavras de ordem. Distribua megafones. Pague um extra para quem ficar no horário noturno ‒ afinal, isso não é problema, você já é rico e seu dinheiro está guardado em lugar seguro.

17) Mande rezar uma missa, que pega bem pra caramba. Nenhuma polícia tem a ousadia de invadir lugar de culto pra prender alguém. Se o pior acontecer e você acabar de novo preso, não se aborreça. Será por pouquíssimo tempo. Seu batalhão de defensores vai tirá-lo de lá rapidinho.

A partir daí, descanse. Você está livre. Nunca mais alguém vai importuná-lo. Relaxe e goze.

Três notícias

José Horta Manzano

Estes últimos dias, o sempre bem informado jornalista Cláudio Humberto(*) publicou três notícias interessantes no portal Diário do Poder. Aqui estão elas.

O crime das malas
O apartamento no Chame-Chame, bairro de Salvador, não é o único local onde Geddel Vieira Lima escondia dinheiro. A suspeita é de que haja malas e caixas espalhadas em outros locais, inclusive fora da Bahia. A apreensão dos 51 milhões atribuídos àquele que foi ministro de Lula e de Temer não causou especial surpresa no mundo político: esse tipo de esconderijo é mais comum do que se imagina.

O imóvel do Chame-Chame era conhecido dos vizinhos de Geddel, que o viam com frequência no local. Fica a menos de 1km da casa dele. O Ministério Público Federal e a Polícia Federal vão listar, à procura de malas, até mesmo imóveis remotamente ligados a Geddel.

O juiz federal Vallisney de Souza Oliveira já mandou vasculhar outros endereços, inclusive a casa onde mora a mãe de Geddel. A expectativa dos investigadores é de que também ele se disponha a delatar seus cúmplices no esquema.

Baixo risco
O Risco Brasil, que mede o grau de confiança do mercado na economia do país, baixou a 250 pontos em maio, patamar que não tinha sido atingido desde a reeleição de Dilma, em 2014. O índice, usado como base para investimentos estrangeiros, já caiu 36,5% em relação aos 394 pontos registrados no dia seguinte à aceitação do impeachment pela Câmara. E segue com viés de queda em virtude da melhora na economia.

O Risco Brasil caiu de 394 para 309 entre a votação do impeachment na Câmara e a cassação de Dilma no Senado. Com Dilma no comando do governo e da economia, o Risco Brasil chegou a atingir 548 pontos, nível 107% maior do que quando ela assumiu o poder.

O maior nível registrado pelo Ipea na série histórica, desde 1994, foi de 2.436 pontos. Foi em setembro de 2002, um mês antes da eleição de Lula.

by Ignacio Consuegra “Monokuko” Bolívar (1957-), desenhista venezuelano

Calote vem aí
O Brasil já dá como certo que o governo do ditador venezuelano Nicolás Maduro dará gigantesco calote em empresas brasileiras. Da dívida total de 5 bilhões de dólares (R$15,6 bi), cerca de 3,8 bilhões (R$12 bi) vencem em outubro e novembro próximos. O Brasil aposta em “beiço” da Venezuela. «A expectativa é de calote», informou à Comissão de Relações Exteriores da Câmara o embaixador Tarcísio Fernandes Costa, do Departamento de América do Sul do Itamaraty.

A dívida do desastroso governo Maduro para com empresas brasileiras representa mais da metade do total de reservas internacionais daquele país. Elas totalizam, hoje, US$9,8 bilhões. Para efeito de comparação, as reservas do Brasil somam 380 bilhões de dólares.

Com a penúria, a Venezuela entrou no chamado «default seletivo», deixando de pagar credores variados e investidores dos seus papéis.

(*) Cláudio Humberto é jornalista. Publica coluna diária no Diário do Poder.

 

A falta que a imagem faz

José Horta Manzano

Nos dias atuais, poucos viventes se lembrarão do tempo em que as notícias vinham sem imagem. Faz tempo que perdemos o hábito. Já nos anos 1930-1940, os jornais começaram a ilustrar reportagens com fotos. Eram em preto e branco e de baixa qualidade, mas assim mesmo falavam mais alto que o texto.

Foram, em seguida, reforçadas pelos documentários que toda sala de cinema passava antes do filme principal. Imagens nítidas ‒ e em movimento! ‒ deixavam nos espectadores marca forte dos acontecimentos da semana anterior. Depois disso, veio a tevê com seus jornais e, mais recentemente, a internet com suas redes sociais. Nem sempre nos damos conta, mas vivemos num mundo em que a imagem ocupa um espaço enorme encurralando, num cantinho, sons e palavras.

Furacão Irma

Na falta de imagem, a mídia se sente desamparada, sem saber direito como dar a notícia. Muita informação importante deixa de ser divulgada por simples falta de ilustração visual. Um exemplo atual e vigoroso é a misteriosa Coreia do Norte. Há relatos, artigos, livros inteiros sobre o país mas… faltam imagens. A falta de podermos enxergar o que acontece por lá aumenta a inquietude que aquela terra nos inspira. De lá não temos senão fotos e vagos «clips» oficiais, pasteurizados e aprovados pela ditadura. São paradas militares e a indefectível apresentadora de tevê, sempre vestida de rosa-choque. Pouco ou nada além disso, uma frustração.

Avião pousando no aeroporto da parte holandesa de St-Martin em dia sem furacão.
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Estes dias, Irma, o furacão mais violento dos últimos cem anos, passeia pelas Caraíbas (que, no Brasil, convém chamar pelo nome espanhol: Caribe). Ontem, devastou as pequenas ilhas francesas de Saint-Barthélémy e Saint-Martin. (Esta última, aliás, é dividida em duas porções: uma francesa e outra, holandesa.) Acontece que, quando passa um ciclone de tais proporções, a pior ideia é expor-se ao ar livre. Ninguém fez isso e, se fez, não sobrou pra dar notícia.

Como resultado, não há imagens da passagem do vendaval. Rádios e tevês tiveram de se contentar com gravações caseiras do ruído do vento, forma pouco costumeira de dar notícia. Para preencher o espaço, promoveram mesas-redondas com especialistas em meteorologia. Ao fundo, apenas fotos (belíssimas) do furacão tiradas por satélite.

Enquanto isso…
Enquanto isso, no Brasil, um apartamento usado como valhacouto por eminente homem político brasileiro entrou na linha de mira. A toca, desprovida de móveis mas atulhada de malas e caixas de papelão abarrotadas de dinheiro, fez a alegria de fotógrafos, repórteres, jornalistas e analistas. A imagem deu a volta ao mundo. Emparelhou com o destaque dado à perquisição levada a efeito na mansão do mandachuva do Comitê Olímpico Brasileiro.

E assim vai-se cimentando a ideia de que nosso país não passa de uma republiqueta de segunda zona, onde uns mordem a orelha dos outros, onde se mata mais que em guerra aberta, onde se rouba mais que em mesa de jogo de mafiosos. Uma imagem vale mais que mil palavras.

Receita contra a corrupção ‒ 1

José Horta Manzano

Acabar de vez com a corrupção fica bonito na retórica mas é impossível na realidade. Daqui a um século ‒ se o mundo já não for governado por robôs ‒ ainda haverá candidatos prometendo solução para o problema. Mas não tem jeito. A tentação de se aproveitar de situação favorável vai sempre ser mais forte. A carne é fraca, disso sabemos todos.

Assim mesmo, há disposições relativamente simples que, implantadas, tornam o caminho dos grandes corruptos pedregoso e lhes complicam a vida. Tenho várias sugestões. Para não embolar, dou-lhes hoje uma só, que me parece simples de aplicar.

Dinheiro líquido
O Brasil não é o único país a sofrer com o branqueamento de capitais. Lavagem de dinheiro sujo é praga mundial. Outros países já tomaram medidas para coibir a circulação de malas e cuecas recheadas de notas, forçando-as a entrar no circuito bancário. Na Europa, por exemplo, pagamentos em dinheiro vivo são cada vez mais malvistos.

Limite para pagamentos em dinheiro vivo

Na Alemanha, nenhum pagamento acima de cinco mil euros (R$ 18.500) pode ser feito em espécies. Quantias superiores serão obrigatoriamente pagas em cheque, cheque administrativo, cartão de crédito ou transferência bancária. Qualquer pagamento em dinheiro que supere esse montante constitui delito passível de processo penal.

Na Itália, o limite é de três mil euros (R$ 11.100). A Espanha é ainda mais restritiva: dois mil e quinhentos euros (R$ 9.250) é o máximo que se pode pagar em notas. Na França e em Portugal, o rigor é ainda maior. Esses dois países fixaram em mil euros (R$ 3.700) o montante máximo de transação paga em dinheiro.

A Suíça é um caso à parte. No país, todo cidadão costuma levar no bolso quantia que, no Brasil, seria considerada exorbitante. É hábito tradicional, que fazer? Em outros países, nos dias atuais, compras se pagam quase exclusivamente com cartão. Mas a Suíça resiste. Metade dos compradores ainda prefere enfiar a mão no bolso e tirar as notas coloridas. Essa é a principal razão pela qual o limite de pagamentos em dinheiro ser de cem mil francos (R$ 320.000). Por enquanto.

Os limites que mencionei até agora valem também, naturalmente, para depósito bancário. Se, na França, um correntista tentar depositar mais de mil euros de uma vez só, vai encontrar problemas. Terá de dar explicações ao gerente. Ainda que o depósito seja aceito, o nome do cidadão ficará inscrito no caderninho vermelho. Se fizer isso mais uma ou duas vezes, pode ter certeza: será chamado a dar explicações à Receita. Aí, então, ai, ai, ai…

No Brasil, a implantação de um limite razoável para pagamentos em dinheiro tornaria muito difícil a circulação do dinheiro ilícito. Ao receber propina por cheque, cartão de crédito ou transferência bancária, corruptos estariam dando recibo do mal feito. Seria bem feito.

Rabicho
Agora vem a grande pergunta: por que, diabos, não se estabeleceu até hoje um limite para pagamentos em dinheiro no Brasil? Um doce pra quem encontrar explicação convincente.

Hermenêutica à luz da exegese

Myrthes Suplicy Vieira (*)

O genial Chico Anysio foi profético ao criar um de seus personagens mais emblemáticos, o advogado Pedro Pedreira. Conhecido por seu mau humor e ceticismo diante de quaisquer evidências a ele apresentadas, sejam elas de caráter científico, religioso ou até mesmo histórico, o personagem reluta em emprestar-lhes credibilidade, usando o bordão “há controvérsias” para, em seguida, solicitar que se lhe seja apresentada alguma prova incontestável do fato.

A graça dos diálogos com esse personagem vem diretamente da sensação de perplexidade que suas demandas provocam, já que todas as comprovações que ele exige mostram-se inexequíveis na prática, dado que não guardam conformidade com o contexto original. Um exemplo dessa descabida forma de argumentar seria algo como Pedro Pedreira perguntar, caso fosse confrontado com o relato bíblico da abertura do Mar Vermelho: “Há alguma testemunha ocular que tenha feito uma selfie de pé no fundo do oceano, com as roupas totalmente secas, e sendo possível visualizar de cada lado gigantescas colunas de água?”.

Ao ouvir a resposta negativa do atônito interlocutor, o personagem fecharia então o diálogo com outro magistral bordão: “Então, não me venha com chorumelas!”.

by Lucas Leibholz (1981-), desenhista paulista

Se ainda vivo fosse, Chico Anysio certamente teria motivos para se regozijar com mais uma inequívoca demonstração de que a vida copia a arte. Ao tentar se defender da acusação de corrupção passiva apresentada ao STF pelo procurador-geral da República, Michel Temer deu mostras claras de ter incorporado o espírito de Pedro Pedreira. Logo depois de afirmar que a peça acusatória não passava de ficção, encheu o peito e, após uma pausa dramática, perguntou: “Afinal, é isso que vale? Onde estão as provas do recebimento desses valores?“.

Não as verbalizou explicitamente, mas deixou no ar indagações inquietantes: haveria, por acaso, algum recibo assinado pelo presidente que tenha tido sua autenticidade comprovada por grafólogo juramentado? Algum vídeo gravado no interior do palácio presidencial em Brasília ou na residência de Sua Excelência em São Paulo teria flagrado o presidente estendendo as mãos para acolher a mala recheada de propina? Teria a PF colhido impressões digitais do presidente em alguma das notas daqueles 35 mil reais que faltavam quando a mala foi devolvida? Teria algum familiar do presidente postado uma foto sua, sorridente, ao lado da mala, no Facebook, com a legenda “Nada nos destruirá”?

Não faltou sequer uma rápida alusão às chorumelas da imprensa e da oposição. Ao tentar comprovar em tom sarcástico que o Ministério Público Federal estava criando uma perigosa nova figura jurídica, a denúncia por ilação, o presidente insinuou com a sutileza de um elefante em loja de cristais que, se delação fosse por si só prova válida juridicamente, seria igualmente lícito supor que os milhões recebidos por um ex-assessor de confiança do Procurador-geral da República para negociar o acordo de delação da JBS não tenham sido destinados unicamente (grifo meu) a ele.

Posso não ter nenhuma expertise na arte da hermenêutica, mas minha velha relação com os escritos do mestre Sigmund Freud me autoriza a levantar a hipótese de que, sob pressão, o inconsciente intranquilo do chefe do executivo veio à tona e representou, simbolicamente, ao menos uma confissão de compadrio na culpa.

Como mais não disse e encerrou a coletiva de imprensa com ar triunfante, meu cérebro permitiu-se indagar de onde vinha todo aquele senso de autoridade moral. Da hermenêutica (isto é, da interpretação de textos jurídicos), passei a devanear também pelo terreno da exegese (isto é, pela interpretação de textos religiosos).

Sabem todos que um dos dogmas máximos da Igreja Católica, que dá sustentação à autoridade de seu chefe espiritual, é o da infalibilidade do papa. Ora, se Sua Santidade é escolhido não por um colégio de cardeais, mas sim por inspiração direta do Espírito Santo, não há como ver em seus atos, decretos e bulas a interferência de motivações humanas – a não ser que aquele que levanta objeções esteja sendo induzido a isso por influência satânica.

Ainda atônita com a extraordinária autoconfiança demonstrada por um político acuado, acreditei ter detectado no pronunciamento de nosso mandatário-mor a proposição de um novo dogma, desta vez a meio caminho entre o religioso e o político: o da infalibilidade do presidente da República. Se, como declarou, nosso atual chefe do Executivo sente-se guindado ao cargo por obra e graça do próprio Deus, como poderemos nós, ignaros e descrentes cidadãos mortais, duvidar que todos os seus atos públicos ou privados estejam unicamente a serviço da redenção de nosso amado Brasil para honra e glória do Senhor?

Assim sendo, permito-me humildemente lançar a candidatura de Michel Temer ao posto de venerável futuro prior do Mosteiro Brasil. ‘Ora et labora’ continuará sendo nosso lema, nossa derradeira profissão de fé.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Jeitinho danoso

Tribunal 2José Horta Manzano

Escrevo antes do exame de admissão ao STF pelo qual deverá passar, logo mais, o candidato indicado por dona Dilma. Desconheço, portanto, o resultado. Mas tenho considerações a respeito.

O que se passa estes dias é o retrato do Brasil, um exemplo acabado do «jeitinho» brasileiro, prova maior da indisciplina, da desorganização, da leniência de nossa sociedade. Muitos se orgulham dessa faceta nacional – não é meu caso.

Tribunal 4Segundo a Constituição, os poderes da República são harmônicos e complementares. Nenhuma hierarquia há entre eles. Portanto, fazer parte do colegiado que encabeça o STF é estar no topo da hierarquia, tanto quanto o presidente da República.

Presidente, muda-se a cada quatro anos, quando nos é permitido despachar o antigo pra casa e eleger outro. Escolha de ministro de STF deve ser feita com cuidado redobrado, dado que o cargo é vitalício. Com a escolha de mau titular, quem se dana é o País. Ninguém poderá tirar o homem de lá.

Tribunal 5Pela natureza do cargo, é conveniente que juízes exibam perfil neutro. Essa recomendação de imparcialidade vale sobretudo para juízes-mores. Melhor será que não tenham (nem tenham tido) proximidade com movimentos radicais, com partidos políticos, nem com teorias extremistas, revolucionárias ou sectárias. Serem conhecidos por suas opiniões sensatas, é o mínimo que se pode exigir.

O atual candidato à vaga do Supremo não se encaixa nesse perfil. Pelo que o Brasil inteiro ficou sabendo estes dias, o postulante comunga com ideias próximas às de movimentos radicais. Pior que isso, está demonstrado que passou por cima da lei ao aceitar posto na Procuradoria Pública ao mesmo tempo que continuava exercendo como advogado privado.

Tribunal 3Dona Dilma, amparada por seus assessores, não pode alegar ignorância desses fatos. Não devia, portanto, ter nomeado esse indivíduo para posto tão importante. Ao indicá-lo, a presidente fez exatamente como ele: pisoteou a Constituição, o decoro e o bom senso. Tentou “dar um jeitinho”, contornar leis e regras. É revoltante assistir ao menosprezo do interesse da nação em prol das conveniênciais pessoais da presidente e da nomenklatura que lhe assiste.

Que o senhor Fachin seja ou não aprovado pelos parlamentares é de somenos. O pior passo já foi dado pela presidente ao indicá-lo para o topo do STF. Se não quiserem descer mais um degrau na pouca consideração que a nação ainda lhes devota, os congressistas têm de repudiar o postulante. É o mínimo que podem fazer para remendar o tremendo erro presidencial.

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Facchino 3Curiosidade etimológica
Fachin (pronuncie Faquín) é forma dialetal vêneta do italiano facchino. Provém do árabe faqih, que designava, na origem, um doutor, um sacerdote, um teólogo ou um juiz – pessoa importante.

Facchino 2Ao entrar na língua italiana, o termo foi perdendo majestade. Com o decorrer do tempo, passou a significar superintendente, controlador de alfândega. Decaiu, em seguida, para designar um escrivão. Continuou perdendo importância. Alguns séculos atrás, adquiriu o sentido de vendedor ambulante, mascate.

Facchino 1Hoje chegou ao fundo do poço. Facchino é como são chamados os carregadores de malas, os descarregadores de caminhão, os que transportam objetos pesados. Aliás, a palavra faquino existe, com o mesmo sentido, em nossa língua. Mas seu uso é pra lá de bissexto.

Esperemos que a (provável) sagração de nosso Fachin nacional não signifique a decadência da função de ministro do STF.

Frase do dia — 49

Dirceu girar, girar e acabar virando gerente administrativo de um hotel que era justamente de Sérgio Naya, deputado que foi cassado e preso, é a realidade esbarrando na ficção. Ok, a vida dá voltas, mas não precisava tanto. As perguntas são as mais maliciosas: vai cuidar do «lobby»? Vai para a «lavanderia»? Ou vai carregar as «malas»?

Eliane Cantanhêde, in Folha de São Paulo, 28 nov° 2013