Vou de táxi

José Horta Manzano

Na Suíça, assim que a quarentena começou a afrouxar, o tráfego de automóveis teve aumento brutal. Sumiu o canto dos pássaros e voltou a poluição por partículas finas. A volta à vida pré-pandemia foi recaída brutal.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, as atividades econômicas deste país não estão geograficamente concentradas. Para trabalhar, não são todos obrigados a convergir em direção a alguma metrópole. Os focos de atividade econômica – indústrias ou serviços – estão disseminados pelo país. No entanto, dado que nem todos residem ao lado do trabalho, grandes contingentes se deslocam diariamente em todas as direções. Boa parte desses “pendulares” viaja de trem.

Acontece que, mesmo as autoridades tendo informado que o risco de infecção é diminuto, o povo anda ressabiado; afinal, ninguém é besta. Muitos hesitam em botar de novo os pés num trem. Os citadinos, que tinham o hábito de ir ao trabalho em transporte público, também estão com medo de apanhar covid-19 no ônibus. O resultado é que muitos habitués da estrada de ferro e do trasporte público urbano renunciaram ao costume, desempoeiraram o automóvel, encheram os pneus, completaram o tanque e agora trafegam sobre quatro rodas.

Dá pra imaginar o congestionamento provocado pelo repentino afluxo de veículos. Logo nos primeiros dias de desconfinamento, pra evitar que a pandemia fosse substituída por um pandemônio, as autoridades das principais cidades do país decidiram delimitar, às pressas, novas faixas de rolamento de bicicletas, as conhecidas ciclovias.

Dois corpos não costumam ocupar o mesmo lugar no espaço – é lei da Física, cláusula pétrea da natureza. Pra criar faixa de bicicleta, tem de diminuir a largura da faixa de automóvel. Em ruas estreitas do centro de cidades antigas, não tem perdão: ou passa automóvel, ou passa bicicleta; se vierem os dois juntos, vai dar problema.

Ciclofaixa do futuro

A grita anda feia. Automobilistas reclamam por ter perdido parte da rota habitual; ciclistas reclamam porque a nova faixa ciclável é às vezes exígua. Em resumo: muita gente descontente. Mas não há jeito. É ilusão imaginar que, daqui a 50 anos, cada um vai continuar a sair por aí no seu carrinho particular. No futuro, congestionamento de tráfego será lembrança de um passado de selvageria. Já que é assim, por que não começar desde já?

O grande título

Carlos Brickmann (*)

Que semana maravilhosa! Temos manchetes de tipos variadíssimos e pouco usuais. Uma delas permite até a metaleitura. Embora não trate do assunto, demonstra claramente que:

Interligne vertical 11a) o ensino primário pode se chamar fundamental, pode se chamar primário, mas não pode ser chamado de ensino;

b) os meios de comunicação estão recrutando profissionais com um quarto cheio de diplomas internacionais, mas esqueceram de pedir que os candidatos à vaga preencham pessoalmente uma ficha de pedido de emprego.

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Comecemos com este, de um dos maiores portais noticiosos do país, ligado a um dos maiores grupos noticiosos do país:
“Investigação da PF Lava Jato aponta propina trêz vezes maior do que no mensalão”
O destino, piedoso, permitiu que profissionais como Emir Macedo Nogueira, Eduardo Martins, Napoleão Mendes de Almeida fossem poupados de ler essa frase.

Rir 2Outra manchete notável consegue, sem ser humorística, despertar o riso. E, simultaneamente, fazer com que retomemos contato com os textos sagrados. “Ministros entregam a Renan pacote anticorrupção”
Agora só lhes falta entregar a Herodes o plano nacional de cuidados com a infância.

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Um título sugestivo também permite a leitura no subtexto. Traz a informação e, instigante, permite que busquem as causas do evento:
“Haddad volta a dar aulas na USP após 12 anos”
Demorou. Deve ter ido para a universidade de bicicleta, no meio da buraqueira mal pintada a que chama de ciclovia.

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E o grande título, capaz de provocar uma pergunta de difícil resposta:
“Morena, Angélica diz que perdeu virgindade aos 17”
E loira, com que idade terá acontecido?

 

Rir 1CURTINHAS

● Da tuiteira Bea M. Moura:
“Herrar uma vez é lulice. Herrar duas veis é dilmais.”

● Do jornalista Sandro Vaia:
“A entrevista de Cardozo e Rosseto prova que o fracasso também sobe à cabeça.”

● Do presidente do Congresso, senador Renan Calheiros:
“O Aloízio Mercadante tem resposta para tudo e solução para nada.”

● Do jornalista Leão Serva:
“Petrobrás vai privatizar propriedades da empresa. Mas tucanaram a privatização: agora se chama ‘desinvestimento’.”

● Do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, PMDB, sobre o PT:
“Eles fazem tudo aquilo que pensavam que nós fazíamos.”

Rir 5● Do jornalista Ricardo Noblat:
“A presidenta já avisou que é a pessoa mais humilda da galáxia!”

● De uma faixa na manifestação de 15 de março, erguida (supõe-se) por um palmeirense:
“Fora Dilma, Alckmin e Valdívia.”

● Da jornalista Maria Helena Amaral:
“Pedro Barusco foi o melhor investimento da Petrobrás nos últimos cinco anos. Roubou US$97 milhões a R$ 1,70 e devolveu a R$ 3,10.”

● Do deputado comunista Roberto Freire, presidente nacional do PPS:
“Nada mais patético do que petistas que participaram conosco do impeachment de Collor falarem de terceiro turno e golpismo.”

● Do jornalista James Akel, comentando o baixo ibope do programa de TV apresentado por Marina Mantega:
“A filha é tão boa apresentadora quanto o pai era ministro.”

● Do jornalista Jarbas de Barros Domingues:
“Quando um homem consegue finalmente entender as mulheres, já está velho demais para se interessar por elas.”

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(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação. Publica a Coluna Carlos Brickmann em numerosos jornais.

O Ipiranga 2

José Horta Manzano

Aos amigos que leram meu artigo de ontem ― O Ipiranga ―, explico que o de hoje é continuação do anterior. Aos que pularam o capítulo, peço que comecem por ler o de 12 de março. É a melhor maneira de se inteirarem do assunto.

.:oOo:.

O caso do ciclista mutilado provocou comoção nacional. É justo e compreensível. Mas cuidado! Não vamos deixar que o estupor nos leve a clamar por um governo autoritário.

Este não é um blogue que propague o cerceamento das liberdades garantidas. As leis maiores já estão aí, não faz muita falta criar mais. Meu sonho é que um dia ― talvez ainda longínquo, admito ― nossas leis sejam de fato cumpridas. Que o Brasil se torne um país civilizado.

Os brasileiros, nascidos e criados em território de povoamento relativamente recente, carecem dolorosamente do sentimento de pertencimento a uma comunidade. Mas não exageremos: nada é inteiramente negativo, nem nada é totalmente positivo.Bicicleta

O fato de nosso País ter sido formado por diferentes correntes de população tem seu lado bom. Levas de gente trazida à força da África, coletividades indígenas que já aqui estavam, bandos de aventureiros e de idealistas, torrentes de vítimas de perseguição, multidões de fugitivos da fome, grupos de imigrantes miseráveis, enfim, gentes de todos os quadrantes estão tentando construir a nação brasileira.

Nação? Chegaremos lá um dia, mas falta um pedaço de caminho. Tudo ainda está muito heterogêneo, há que dar tempo ao tempo e deixar que o caldo engrosse. O feijão ainda está meio cru, muito ralo. Falta cozinhar. Vamos precisar de muito tempo para amenizar as marcas inauguradas pela partilha do território entre os amigos do rei e aprofundadas pelo regime escravagista que vigorou durante 300 anos.

A doação de imensos territórios feita pelo monarca de Portugal a seus mais chegados é hoje objeto de breve menção na escola elementar. Quanto à segmentação da população entre escravos e cidadãos livres, essa terminou num 13 de maio, faz 125 anos. Essa é a História oficial mas, como diria o outro, na prática, a teoria é outra. Não há «discriminação positiva» nem sistema de quotas capaz de mudar mentalidades da noite para o dia.

Os brasileiros ― que isso nos agrade ou não ― dividem-se em duas categorias nítidas: os que mandam e os que são mandados. Se preferirem uma metáfora, há os que habitam no andar de cima e o resto, os do andar de baixo. Repito: constitucionalmente, somos todos iguais, mas o dia a dia se encarrega de escancarar a realidade. Alguns são mais iguais que outros.

.:oOo:.

Os jornais de terça-feira 12 de março trouxeram a continuação do caso do ciclista atropelado, uma das ocorrências mais repugnantes de que tenho ouvido falar.

Que se instalem «ciclovias» e «ciclofaixas» somente em ruas menores! Essa foi a solução encontrada pelo prefeito do município mais populoso e mais rico do País. Poxa, que perspicácia, gente! Como é que ninguém pensou nisso antes? Se os ciclistas circularem somente por «ruas menores», não encontrarão mais motoristas bêbados e, por conseguinte, não terão seus membros decepados e atirados ao esgoto. Ah, como seria bela a vida se todas as ruas fossem «menores». Se simploriedade desse cadeia…

Pensam que estou brincando? Pois comprovem aqui.

Riacho Ipiranga, São Paulo

Riacho Ipiranga, São Paulo

O Estadão traz a declaração de «um dos advogados» do acusado ― sinal de que são vários ― segundo o qual a família do jovem criminoso estaria sendo ameaçada. Se for verdade, está aí outro sinal de que ainda é longo o caminho até chegarmos a um grau aceitável de civilização. O Direito Romano, dois milênios atrás, já consagrava o princípio da individualidade da culpa. Por pior que possa ter sido a influência da família, o culpado é o autor do delito. Alguns brasileiros ainda não captaram o ensinamento.

Por acaso, um outro causídico casual já se apresentou à mãe do atropelado e se propôs a assegurar a defesa de seus interesses. A senhora, atordoada pelo que aconteceu ao filho, ainda não sabe o que fazer.

Tudo indica que o acusado pertence ao andar de cima. Sua equipe de advogados saberá valer-se de todas as chicanas que nossa legislação oferece para tirá-lo rapidinho da cadeia e para protelar o julgamento. Daqui a alguns anos, quando e se o processo tiver lugar, não me espantaria que o jovem fosse apenas condenado a pagar algumas cestas-básicas. Seu verdadeiro castigo será o peso desse braço. Será obrigado a arrastá-lo até seu último suspiro.

Já o ciclista é morador do andar de baixo. É pobre e, como convém dizer hoje, euro-afrodescendente. Uma campanha foi lançada no facebook para arrecadar fundos para a compra de um braço mecânico para o infeliz.

Uma pergunta me atormenta: a quantos braços mecânicos equivalem os honorários de um advogado criminalista?