Café frio

José Horta Manzano

Em dezembro de 2018, um mês antes de passar a faixa a Bolsonaro, o presidente Temer foi enfático ao confirmar a historinha do café frio que costuma ser servido aos presidentes em fim de mandato. “A história do café frio é uma verdade absoluta” – disse ele. Em seguida, emendou-se e garantiu que o café dele “ainda estava sendo servido quente”. Decerto um eufemismo.

A pitoresca imagem foi criada há décadas. É bastante explícita. Passadas as eleições, já se conhece o nome de quem ocupará o trono pelos quatro anos seguintes. O presidente sainte (=que está de saída) já não manda muito, fato que diminui a motivação de garçons, serviçais, faxineiros, atendentes e aspones em geral para atender a seus chamados.

Dado que, tirando os devotos, todos preferimos dar mais crédito ao Datafolha que ao Datapovo, já entendemos que, a não ser que aconteça um milagre, o mandato do capitão não será renovado. Nesse “nós” há muita gente incluída: você, eu e até bolsonaristas de carteirinha que estão deixando de pagar as mensalidades do clube.

Um deles deu na vista estes últimos dias. É o togado André Mendonça, o “terrivelmente evangélico” nomeado por Bolsonaro para ocupar uma cadeira no STF. Nos primeiros tempos, o feliz ministro vitalício votou em concordância com os interesses do governo e fez o que pôde para agradar ao padrinho. Mas o tempo passa, a Terra gira e… chega um dia em que o café começa a esfriar.

Todo o mundo ficou sabendo da compra de uma baciada de imóveis pelo clã Bolsonaro com dinheiro vivo. Como se deve, esse relato ficou em exposição no Portal UOL, à disposição do distinto público. Um dos bolsonarinhos, aquele que é senador, requereu à Justiça que a informação fosse retirada do ar. Um desembargador obsequioso determinou que os vídeos fossem retirados.

Foi aí que entrou em cena nosso ministro “terrivelmente evangélico”. Com uma argumentação cristalina e bem estruturada, cassou a decisão do desembargador e permitiu que a informação que cutuca o clã presidencial continue disponível, com todo o detalhe da negociata.

Pode-se imaginar o baque que terá levado o clã. A explicação é que André Mendonça, o pastor ministro, parece já ter virado a página do bolsonarismo. Numa era pós-bolsonárica, não pretende continuar como um elétron solto, um zumbi esquecido de um pesadelo que já acabou. Quer pisar em 2023 como ministro normal, no mesmo nível de prestígio dos demais.

Seja como for, Sua Excelência está ajudando a soprar o café do presidente. Que, a estas alturas, já deve estar gelando.

Ainda dá tempo

José Horta Manzano


Num mundo polarizado como o nosso, tentar se equilibrar em cima do muro pode não ser a melhor solução.


Poucos dias antes da invasão da Ucrânia, quando batalhões russos, em quantidade impressionante, já se amontoavam junto à fronteira, Bolsonaro foi a Moscou prestar reverência ao ditador Putin.

A guerra de conquista prestes a ser lançada não lhe pareceu motivo válido para suspender a viagem nem para acrescentar, de última hora, uma “visita de médico” a Kiev – nem que fosse pra equilibrar a posição brasileira.


 

Solidariedade “à” Rússia (sic)

Uma vez em Moscou, declarou – sem ter sido indagado – que o Brasil se solidarizava com a Rússia. Foi mais um erro monumental provocado por seu inexistente senso de geopolítica – fato raro mesmo entre seus antecessores mais incapazes.

Estivéssemos sob outras latitudes, sua carreira terminaria naquele instante e seu futuro eleitoral estaria comprometido por décadas, talvez para sempre. Mas não estamos sob outras latitudes. As nossas são tropicais.

Estourada a guerra, ninguém exigiu do presidente um posicionamento definitivo. E ele não se posicionou. Ficou, pois, o dito pelo dito mesmo. Ficou cimentada a posição do Brasil: todos nós nos solidarizamos com a Rússia. E ponto final. Pô.

Até certo ponto, é compreensível que o capitão procure amigos aqui e ali. Afinal, ele é rejeitado pelo mundo civilizado, justamente em razão das incivilidades que vem cometendo desde que vestiu a faixa. Parodiando a expressão inglesa “serial killer” (assassino em série), eu diria que nosso presidente é pessoa “serially incivilized” (um incivilizado inveterado).


 

Num mundo em plena turbulência, o Brasil precisa de aliados

Procurar amigos é uma coisa; bater à porta de ditadores ferozes e sanguinários é outra, bem diferente. Em vez de solidarizar-se com autocratas belicosos, Bolsonaro estaria mais inspirado se se dedicasse a aparar as arestas e aplainar as relações com os ofendidos. Os que foram por ele agredidos são justamente nossos aliados e parceiros tradicionais, dirigentes de países com os quais compartilhamos interesses comuns.

Se ele um dia ofendeu a esposa de Macron, ignorar a existência da França não é a melhor solução. Veja o resultado: o presidente francês acaba de ser reeleito para mais 5 anos no Eliseu. Se Bolsonaro não procurar consertar esse deslize, as relações franco-brasileiras permanecerão curto-circuitadas esse tempo todo, o que não é boa coisa.

Se insultou o presidente argentino, afastar-se do personagem não é o melhor remédio. Há que ter em mente que a Argentina não vai se mudar amanhã. Não vai sair do lugar e continuará sendo nossa vizinha pela eternidade.


 

É hora de virar a página dos insultos passados e olhar para a frente

Com a carta de desculpas redigida por Temer e assinada por Bolsonaro, este último conseguiu aplacar a indignação dos brasileiros com as barbaridades proferidas naquele 7 de Setembro de triste memória. Que convoque Michel Temer de novo e lhe confie a missão de preencher as lacunas de nossa diplomacia mambembe! O ex-presidente, que é culto, não é ministro de Bolsonaro nem deve favores ao capitão, saberá encontrar termos contritos mas não servis para expressar uma guinada no posicionamento internacional do Brasil neste momento grave para a humanidade.

Enquanto o destino do planeta se decide nas margens do Mar Negro, nenhum país tem o direito de virar a cara e fazer de conta que não é com ele. O peso populacional do Brasil, se não houvesse outra razão, nos obriga a nos posicionar claramente. Se Bolsonaro não sabe o que fazer – e as palavras pronunciadas em Moscou mostram que não sabe – que tome conselho com quem sabe.

A guerra acabará. Bolsonaro passará. Mas o Brasil ficará. Os brasileiros das próximas décadas não podem ser reféns das más decisões de um presidente pusilânime.

Observação
Na verdade, distorcendo a norma gramatical, o capitão não disse que o Brasil se solidarizava com a Rússia, mas que se solidarizava à Rússia. O fundo foi tão desastrado, que ninguém se preocupou com a forma.

Tuíte – 21

José Horta Manzano
O Google não mente?

Pesquisas no Google valem o que valem. Não há garantia alguma de resultado acurado. Assim mesmo, ainda que não se possa jurar por elas, sempre dão uma indicação geral.

Acabo de fazer uma experiência caseira. Associei o termo “corrupto” ao nome dos presidentes do Brasil dos últimos 25 anos e chequei no Google quantas menções aparecem. O resultado foi um tanto surpreendente. Eu não teria apostado que aparecessem nesta ordem:

 

Dilma corrupta     :    280’000 menções

FHC corrupto       :    622’000 menções

Temer corrupto     :  1’460’000 menções

Lula corrupto      :  1’880’000 menções

Bolsonaro corrupto : 12’000’000 menções

Interessante, não é? O mais mencionado, vencedor por ampla margem, é justamente o capitão.

O nome de Bolsonaro associado à palavra “corrupto” aparece 6 vezes mais que o nome do Lula nas mesmas condições. E olhe que Lula e Temer passaram pela casa prisão, fato que aumenta a probabilidade de serem vistos como corruptos.

Bolsonaro (ainda) não passou pela Papuda. Talvez um dia. O mundo dá voltas.

Falas impróprias

José Horta Manzano

Qualquer um de nós, apanhado desprevenido, pode soltar alguma bobagem. Nem com muito treino e controle seria possível acertar todas, em todas as ocasiões. Mas gente mal preparada é um problema. Quando alguém, além de mal preparado, exerce função elevada, então, é desastre assegurado!

Com a exceção do curto interregno durante o qual Temer assumiu as funções da titular destituída, nossa história presidencial recente é rica em gafes verbais cometidas por dirigentes que não tomaram a medida exata do cargo. Foram indivíduos eleitos sem ter a formação necessária para o cargo. A bagagem que carregam não é suficiente para lhes permitir estar à vontade em todos os ambientes.

Jair Bolsonaro assegura a continuidade do festival de impropriedades iniciado por Lula da Silva e endossado pela doutora. Comedido e pouco palavroso, Michel Temer garantiu uma trégua temporária ao festival. Doutor Bolsonaro tem se esforçado pra recuperar o tempo perdido.

Lula da Silva, por exemplo, deixou uma impagável explicação da circulação das massas de ar ao redor do planeta. Foi no dia em que garantiu que a poluição atmosférica que castiga nosso país só existe porque a terra é redonda e gira. Fosse quadrada, não haveria poluição no Brasil. O vídeo (de menos de 1 minuto) continua no youtube à disposição de quem quiser rever.

A doutora deixou impressionante coleção de pérolas, desde a saudação à mandioca até a invenção da Mulher sapiens, em contraponto ao Homo sapiens.

Nesse contexto de falas deslocadas, as impropriedades soltadas por doutor Bolsonaro são tão numerosas, que seria aborrecido listá-las todas. Muitos o consideram não muito afeito ao trabalho. Acusam-no de ter passado 28 anos (sete mandatos!) na Câmara Federal sem ter relatado um único projeto. É fato que fala por si.

Seja como for, a continuidade do besteirol na Presidência está garantida. Depois de um Lula verborrágico e de uma Dilma que proferia uma inconveniência a cada duas palavras, temos um Bolsonaro que se inscreve como sucessor legítimo.

Seu adversário no segundo turno de 2018 era Haddad. Acontece que este não convinha para a Presidência. Para começar, era lulopetista – justamente a família política que a maioria queria evitar naquele momento. Mais que isso, carregava o peso de um pecado mortal: conseguia exprimir-se decentemente.

Estava muito evidente que não ia combinar com nossa tradição presidencial. De fato, não foi eleito. Dentro da coerência, quem levantou a taça foi doutor Bolsonaro.

Lula, Bolsonaro e a revolução

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 outubro 2019.

Uma revolução, pra dar certo, pede dois ingredientes essenciais: um líder e um programa. Se for complicado estruturar programa, que haja ao menos reivindicações consistentes. Pra puxar o trem, alguém terá sempre de assumir o papel de locomotiva, aquela que apita estrondosa e leva adiante o reclamo do populacho. Tem sido assim desde o tempo em que os bichos falavam.

Neste Brasil – que também é de todos os santos – revoluções andam capengas. Ora falta uma perna, ora falta a outra. Se há líder, falta programa; quando há programa, o que falta é o líder. Pra não espichar, vamos examinar o que ocorreu no vigor da atual Constituição, essa que já foi descrita como ‘cidadã’ mas hoje muitos olham de esguelha. Collor de Mello, por exemplo, trouxe, sim, boas ideias. Embora possa hoje parecer inacreditável, telefone e carro importado estavam fora de alcance do brasileiro médio. Se o trem andou, tributo seja prestado ao autoqualificado «caçador de marajás». Tirando a falta de jeito no trato da economia, até que havia ideias. Mesmo não revolucionárias, eram novas no Brasil. O que faltou foi liderança. Bem que o presidente tentou, mas, para ser locomotiva, não basta querer. Faltou lenha. Deu no que deu.

Após um interregno em que o vice foi içado de supetão sem se dar conta do que ocorria, subiu FHC. Dizer que o Brasil foi mal administrado naqueles anos seria inexato. Dizer que o governo foi desastroso seria rematado exagero. Foram oito anos sem história. O país avançou, sem dúvida, em muitos pontos. Mas marcou passo em inúmeros outros. Nem chegamos ao Brasil potência, nem saímos do Brasil miséria. Com as armas e o prestígio de que dispunha, FHC podia ter feito melhor. Revolução, portanto, não houve. O governo foi assim assim. Não há que dizer: a prova de que o povo ansiava por agito maior foi a eleição de Lula da Silva.

E ele foi eleito com louvor, como antigamente se dizia de aluno que mostrasse desempenho acima da média. Sua liderança era incontestável, talvez a mais sólida que este país já conheceu. Lula tinha, na mão, a faca, o queijo, o prato e a embalagem. Ideias, até que havia, que o PT tinha sido, até àquela época, partido programático. O que aconteceu a partir da subida da (até então) virtuosa agremiação corresponde a conhecido dito popular: quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza. Lambuzaram-se todos. Em poucos meses, estavam todos besuntados, engordurados, obesos e emporcalhados. A liderança se manteve, mas as ideias se perderam. Pra que ideias, quando se está no bem-bom? Revolução, que é bom, não houve.

Com a chegada de uma turbulência de nome Dilma e de um susto de nome Temer, enfrentamos aventurosa travessia de um Mar dos Sargaços nacional, com armadilhas e enroscos. Melhor até nem lembrar desse intervalo que a história, sábia, vai acabar esquecendo. Passado o sobressalto, chegou a vez de Jair Bolsonaro, candidato eleito par défaut, como dizem os franceses – por falta de opção. Nas primeiras semanas da nova gestão, as decisões pareceram esquisitas. Mudança da embaixada do Brasil em Israel e exclusão da Argentina de visita presidencial pareceram apenas pontos fora da curva. Não eram. Estavam perfeitamente alinhados com a curva. O futuro viria rapidinho confirmar que esquisitice, no novo governo, não era exceção, mas regra. Doutor Bolsonaro deixou passar todas as oportunidades de mostrar liderança. Ainda recentemente, afrontando os fiéis da religião mais arraigada e (ainda) majoritária, ajoelhou-se à frente de bispo neopentecostal. Dias depois, fez questão de esnobar a caravana que reverenciou Irmã Dulce, a santa dos pobres. O presidente tem mostrado que prefere continuar a ser o «mito» apenas de um grupo que, se já não era grande, definha.

O Brasil hoje sabe que o atual governo é um descampado de ideias. Intrigas palacianas entravam o surgimento de um líder. Sem ideário e sem liderança, o governo enerva o eleitor esclarecido, mas não lhe mete medo. Se é verdade que o país vai continuar empacado, é também garantido que não haverá revolução.

A coroa do rei

José Horta Manzano

Quando prenderam o Lula, o Brasil se dividiu. De um lado, ficaram os que não gostavam do antigo presidente, assim como os que acreditavam que lugar de bandido é cadeia. Do outro, se colocaram os que gostavam dele e todos os que receavam ser atingidos pela Justiça. Minha explicação está bem simplificada mas, tirando floreios, a verdade não está longe.

De lá pra cá, a casta dos políticos e dos empresários interessados em negociatas esperneou. Se o Lula foi preso, pensaram, qualquer um pode acabar no xilindró. Com frequente cumplicidade do STF, pregos e tachinhas têm sido espalhados pelo caminho com a evidente intenção de estourar os pneus da Lava a Jato. O resultado tem sido contrastado. Grandes beneficiários da corrupção como doutor José Dirceu estão livres e soltos, gozando as delícias do patrimônio acumulado à custa do suor alheio. Ao mesmo tempo, vários doleiros ‒ que não são corruptores nem beneficiários, mas meros intermediários ‒ estão há anos vendo o sol nascer quadrado.

Estes últimos meses, desde que doutor Moro subiu a rampa e se tornou ministro, a Lava a Jato andava raquítica, anêmica, desmilinguida, sem fôlego. A espetaculosa prisão de doutor Temer traz de volta o vigor antigo. Quarenta anos de negócios escusos e de desvios chefiados pelo ex-presidente começam a ser servidos ao distinto público. Todo o mundo já desconfiava, mas agora é oficial. O velho político, embora seja apenas mais um a passar por exame de corpo de delito, vale por dez.

Com a ação de ontem, ganha o Brasil decente. Volta a esperança de que, apesar dos percalços destes últimos meses, a caça aos corruptos vai continuar. É difícil apanhar todos ‒ Sarney, por exemplo, deve escapar. Mas ainda há muita gente fina com contas a acertar com a Justiça. Ninguém se esquece, por exemplo, da doutora Dilma, envolvida até o pescoço no descalabro que foi a compra da refinaria de Pasadena, que sugou um bilhão do erário. A partir da prisão de Temer, a velha senhora vai precisar tomar chazinho de camomila pra dormir.

Mais uma vez, tem-se a prova de que o Brasil vem sendo dirigido, há anos, por quadrilhas de assaltantes. O destino dos seis últimos presidentes da República (de Collor a Temer) é eloquente. Um morreu. Dois passaram por impeachment e foram destituídos. Dois estão na cadeia por corrupção. Só um vive aposentadoria presidencial tranquila como manda o figurino. Ninguém poderá dizer que a Justiça não funciona no país. Quatro entre seis presidentes receberam punição, o que dá uma boa média. E que sirva de aviso para doutor Bolsonaro & descendência. Ninguém está a salvo.

Como disse o outro, não há risco de a prisão de doutor Temer alevantar clamor popular. Ninguém gosta do homem. Não haverá vigília nem acampamento diante da PF do Rio.

A posse e o desapossamento

José Horta Manzano

O novo presidente e seu vice tomaram posse do cargo. A cerimônia foi solene, formal, um tantinho demorada ‒ especialmente em razão do interminável discurso do presidente do Senado, um exercício de autolouvação explícita. Não é de bom-tom falar mais do que o homenageado, mas quem esperaria recato de doutor Oliveira?

Pelo protocolo, doutor Bolsonaro tornou-se presidente oficial do Brasil no exato momento em que o presidente da mesa fez a proclamação. Isso ficou claro. Porém, um detalhe ficou no ar.

Não foi oficialmente retirada a posse do antigo presidente. É automático, é? Ou, quem sabe, doutor Temer vai continuar residindo num puxadinho do Alvorada, como presidente emérito, igual ao papa antigo.

É verdade que todo o mundo intuiu que a posse dada ao novo anula a que tinha sido dada ao antigo. Mas não custava formalizar.

Observação
O mandato de doutor Temer terminou dia 31 de dezembro à meia-noite. O sucessor só foi empossado na tarde de 1° de janeiro. Tecnicamente, portanto, o Brasil ficou sem presidente da zero hora até o meio da tarde do dia primeiro.

Não é brincadeira. Suponhamos que alguma coisa grave aconteça nessas horas, algo que necessite imperativamente de decisão presidencial. Quem está no comando?

Aqui é meu lugar

José Horta Manzano

Semana passada, comemoraram-se os cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Para a ocasião, o governo francês providenciou cerimônia solene. A França, palco principal do sanguinário conflito, foi um dos países que mais sofreram naqueles anos sombrios.

Dirigentes de mais de setenta países acudiram ao convite e acorreram a Paris. Ao pé do Arco do Triunfo, entre dezenas de outros, estavam Trump, Putin, Merkel, Netanyahu. Procurei, na foto de família que se costuma tirar nessas ocasiões, nosso presidente. Perda de tempo. Ele não se dignou de comparecer. Apesar de o Brasil ter atuado nessa guerra ao lado dos aliados ‒ numa participação modesta mas ativa ‒, doutor Temer não julgou necessário estar presente de corpo.

Tampouco a ocasião de manter colóquio informal com algum colega dirigente motivou nosso cansado presidente. Doutor Temer, aprecie ou não, ainda tem mês e meio pela frente na chefia do Executivo. Está sendo pago pra isso.

Nestes dias, tem lugar, na capital da Guatemala, a Cúpula Ibero-Americana 2018, encontro dos dirigentes dos países ibéricos e latino-americanos. Com exclusão dos EUA, não precisa nem dizer. A intenção dos participantes é encontrar solução para desviar o planeta do destino trágico ao qual está condenado caso nacionalismos e regionalismos continuem a vicejar. Observo uma curiosa contradição: organiza-se uma cúpula regional, que exclui todo forasteiro, no intuito de denunciar e condenar regionalismos.

Doutor Temer, que não deu o ar da graça em Paris, embarcou dia 15 de novembro para Guatemala City. Tinha encontro marcado com o rei da Espanha ‒ figura politicamente decorativa ‒ e com o dirigente do Principado de Andorra. Estava previsto também um encontro reservado com o anfitrião, o presidente da Guatemala. São todos colóquios de primeira grandeza, como se vê.

Doutor Temer mantém-se fiel à doutrina da diplomacia Sul-Sul, instaurada por seus antecessores. Afinal, não se deve esquecer de que ele foi eleito na chapa de Dilma Rousseff. O passado deixa marcas.

Baile dos absurdos

José Horta Manzano

Tem coisas que, se faziam sentido cem anos atrás, hoje beiram o ridículo. Doutor Temer teve de ausentar-se por uns dias. Apesar de dispor em permanência, onde quer que esteja, de sofisticados meios de comunicação com Brasília, é considerado inapto para exercer a presidência. Tem de ser substituído.

A lei manda que seja o vice. Não há vice. A incumbência passa para o presidente da Câmara. Esse se esquiva, porque, se assumir, perde o direito a candidatar-se à reeleição. A batata quente segue para o presidente do Senado, que se esquiva pelas mesmas razões. Ambos se ausentam do país(!) para escapar à imposição legal. Bem-vindos ao país da hipocrisia legalizada!

Pelas regras de sucessão, o encargo passa para a presidência do STF, atualmente nas mãos de doutora Cármen Lúcia. Esta, que não é candidata a nada, aceita. Só que a lei, magnânima, estipula que exercer a presidência da República por alguns dias é tarefa incompatível com qualquer outra função. Trabalho demais. A doutora é obrigada a ceder o trono no STF a um substituto. Por dois ou três dias, é doutor Toffoli quem assume a presidência. Segurem-se.

Está justamente em pauta o caso de uma figurinha carimbada, um certo Demóstenes Torres, deputado cujo mandato foi cassado tempos atrás. Em vez de recolher-se ao merecido ostracismo, o apenado pretende de novo candidatar-se. Doutor Toffoli acha que pode. Doutora Dodge, procuradora-geral da República, acha que não pode. Na ausência de doutora Cármen Lúcia ‒ que está do outro lado da praça ‒, brigam os dois. O prognóstico é favorável a doutor Toffoli.

Nesse teatro de absurdos, dançam pelo menos três aberrações.

Primeira
Não faz sentido o presidente, ao ausentar-se do país, ter de «entregar o poder» ao vice. O presidente não perde o poder. A prova é que vai representar o Brasil no exterior, quiçá assinará acordos e tratados em nome do país. A partir do momento em que “entrega” o poder ao substituto, o presidente torna-se o quê? Um usurpador?

Segunda
Candidato a cargo eletivo ‒ exceto em caso de reeleição ‒ tem de renunciar ao cargo seis meses antes do dia do voto. É a lei. Mas quando ele é chamado, por incumbência legal, a assumir temporariamente a presidência, não estará exercendo mandato ordinário. É apenas um tapa-buraco. O fato de dobrar-se à lei e aceitar a incumbência não deveria torná-lo inelegível.

Terceira
Se o presidente do STF assume, por alguns dias, as funções burocráticas da presidência da República, isso não deveria impedi-lo de continuar na presidência do STF. Não será a primeira vez que se vê alguém acumular cargos. Não é nenhum bicho de sete cabeças. Está na hora de o país sacudir a poeira e se livrar desse excesso de formalismo.

Bobo da corte

José Horta Manzano

«Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu.»

Tem dias em que a gente se sente como bobo da corte, isso sim! Cedinho nesta quinta-feira, as manchetes do Estadão eram edificantes. Vamos pela ordem, se é que há ordem nesta República.

Chamada Estadão, 7 jun 2018

Temer, Moreira e Padilha
A Polícia Federal acaba de pedir ao Supremo Tribunal que suspenda o sigilo das comunicações e autorize acesso à lista de chamadas feitas e recebidas por três figurões do andar de cima. São peixes graúdos: o presidente da República e dois de seus ministros. Não é correto prejulgar, mas, como dizem os espanhóis, «por algo será» ‒ alguma razão deve haver.

Gilmar
A força-tarefa da Operação Lava a Jato assegura que a Federação do Comércio de São Paulo pagou 50 mil reais a um instituto ligado a doutor Gilmar Mendes. Saudade do tempo em que Gilmar era o festejado goleiro da Seleção.

FHC
A Polícia Federal (olhaí, de novo ela!) informa que Fernando Henrique pediu socorro a Marcelo Odebrecht e enviou-lhe seus dados bancários. Por que razão os terá enviado? Ganha uma passagem de ida simples pra Pyongyang quem adivinhar.

Urnas
Supremo Tribunal decidiu suspender implantação do voto impresso. Sem contraordem até outubro, as eleições se farão no escurinho, como de costume. Este blogueiro já se manifestou sobre o assunto e persevera: o voto eletrônico devia ser abolido. Se piratas informáticos conseguem introduzir-se nos computadores da CIA, nada garante a inviolabilidade do sistema eleitoral eletrônico brasileiro. A melhor arma contra fraudes ainda é o voto em cédula de papel, como se faz na imensa maioria dos países civilizados.

Conclusão
As demolidoras notícias de hoje confirmam a desagradável intuição que nos devora: são todos podres, não se salva um. E essa história de proibir voto impresso não me cheira bem. O futuro dirá.

Será por vaidade ou coisa pior?

José Horta Manzano

Ontem expus aqui neste espaço minhas impressões sobre a intervenção federal parcial no Executivo do estado do Rio de Janeiro. Deixei claro que a operação, do modo como está sendo levada a cabo, não me parece suficiente para resolver o problema. Não me considero pai de ideia nenhuma. Se alguém lograr encontrar solução para o drama do Rio ou para qualquer dos problemas nacionais, ficarei feliz, aplaudirei de pé, mencionarei aqui. E ainda mandarei cartinha de parabéns ao autor da façanha.

Doutor Jair Bolsonaro, campineiro de nascimento e deputado há décadas pelo Rio de Janeiro, já peregrinou por oito diferentes partidos. É candidato declarado à presidência do país. Instigado por um jornalista que lhe perguntou se considerava que, ao decretar a intervenção, doutor Temer lhe estava roubando o discurso, o deputado lançou de volta: «Temer já roubou muita coisa aqui, mas o meu discurso ele não vai roubar não».

Esse tipo de reflexão, que não é exclusividade de doutor Bolsonaro, me deixa perplexo. Trocando em miúdos, dá uma equação torta. Vejamos como funciona o mecanismo.

O indivíduo X tem, no bolsinho, a ideia para resolver determinado problema. Entra na política, batalha para aplicar sua solução. Faz campanha, faz discurso, faz pregação, mas não consegue. Persiste. Continua sem sucesso. Candidata-se mais uma vez, vence, e continua a bater pé na ideia. Nada. Recandidata-se a cada eleição e insiste. Um belo dia, alguém consegue pôr em prática a solução preconizada. Na certeza de que a ideia resolverá o problema, o indivíduo X alegra-se e sente-se, enfim, realizado. Certo?

Errado! Em vez de alegrar-se e sentir-se feliz com a solução do problema, o indivíduo X reclama ‒ magoado, indignado e ameaçador ‒ que a ideia lhe foi «roubada».

Em primeiro lugar, levando em conta que a Terra conta com 7,5 bilhões de habitantes, é altamente improvável que uma ideia, seja ela qual for, possa germinar exclusivamente na cabeça de um só indivíduo. Nem todos nasceram para Einstein. Pretensão ingênua: ninguém é «dono» de ideia nenhuma.

Em segundo lugar, a reação do indivíduo X revela que, no fundo, sua intenção não era exatamente resolver o problema. O que queria mesmo era aparecer sob os holofotes, receber a coroa de louros e colher os dividendos da glória. A solução do problema servia só de escadinha pra subir ao palco.

Infelizmente, doutor Bolsonaro não está sozinho nessa fogueira de vaidades. O mundo ‒ especialmente na política, mas não só ‒ está coalhado de gente assim. São pessoas que parecem lutar por um ideal, mas que, no fundo, visam somente à promoção pessoal. Êta, mundo véio!

Fórum mundial e mundano

José Horta Manzano

Depois de um mês de neve e tempo fechado, o sol finalmente saiu hoje em Davos, Suíça. Três metros de flocos brancos caíram desde o Natal. Com o peso, a espessa camada de neve vai-se comprimindo, mas assim mesmo ainda mede um metro e setenta. Pra nenhum cartão de boas-festas botar defeito.

Paisagem branca com sol e céu azul é um encanto. A recepção aos participantes da 48a. edição do WEF (Fórum Econômico Mundial), que se abre hoje, promete ser grandiosa. Os setenta chefes de Estado e/ou de governo que devem circular pelo vilarejo esta semana tiveram sorte com o tempo. Não estão sozinhos, os figurões. Três mil personalidades públicas de 110 países e os dirigentes das maiores empresas do planeta também estão por lá para participar de 400 sessões de debates. Sem contar a imprensa e os numerosos assessores.

O contraste entre a população residente da acanhada cidadezinha e os visitantes que retornam a cada janeiro é surpreendente. O vilarejo tem apenas doze mil habitantes fixos. Na época do fórum, seus hotéis recebem quarenta mil hóspedes, uma enormidade. Pelo espaço de cinco dias, torna-se o lugar onde todos querem ver e ser vistos.

Davos, Suíça ‒ altitude: 1600m

Com tanta gente importante reunida num lugar só, não se brinca com a segurança. Manifestações e passeatas são terminantemente proibidas. Uma zona de exclusão aérea com raio de 46km foi determinada. (Ela inclui trechos do território de quatro países.) As ruas e os telhados estão coalhados de militares armados e atiradores de elite. Militares e policiais da Suíça inteira foram convocados em reforço. Sem esquecer os dirigentes de grandes países, como os EUA, que mandam dezenas de agentes de segurança.

Cúpulas de G7, G8, G20, Brics & assemelhados são mais vistosas, com foto de turma e reuniões de todos os participantes ao mesmo tempo. Mas são menos frutíferas que o fórum de Davos. Na cidadezinha suíça, são incontáveis os encontros informais entre dirigentes e figurões. Às vezes a solução para problemas cabeludos nasce mais facilmente numa conversa em torno de um chocolate quente do que com discursos inflamados diante de plateia que aplaude. É isso que faz a força de Davos, um fórum que, além de mundial, está-se tornando cada dia mais mundano.

Depois de dezoito anos de ausência, um presidente americano estará presente. Bill Clinton foi o último a comparecer, em 2000. Donald Trump está sendo aguardado com curiosidade. Imprevisível que é, consegue surpreender ‒ e escandalizar ‒ quando menos se espera. Outro que deve sobressair é Monsieur Macron, o presidente da França, rapaz jovem (40 anos) que se está tornando uma espécie de «presidente informal da Europa».

Há quem se insurja contra essas manifestações. Não é meu caso. Continuo acreditando no velho adágio: “É conversando que a gente se entende”.

Um resultado, duas análises

José Horta Manzano

Saíram esta semana os resultados de extensa pesquisa feita no Brasil pelo instituto Ipsos, de origem francesa. A sondagem avalia a percepção que o eleitorado brasileiro tem da política em geral e do momento atual em particular.

Perguntas referentes a doutor Temer, a doutora Dilma, a deputados e senadores são inevitáveis. As respostas mostram que o eleitor não vota nem avalia com o cérebro, mas com o fígado. Tem até os que julgam com o estômago. De fato, com o país atravessando momento difícil, com aumento de preços e queda na oferta de empregos, a população tende a culpar os dirigentes de turno. Ainda que não tenha responsabilidade direta sobre a situação atual do país, doutor Temer encarna o vilão da novela.

É interessante notar que cada analista enxerga nos resultados aqueles que vão de par com suas próprias convicções. Passando por cima das respostas que não lhe agradam, cada um dá ênfase aos resultados que vão ao encontro de suas teses. Senão vejamos.

O Estadão, jornal que nunca escondeu sua oposição à visão de mundo lulopetista, focalizou sua análise na ojeriza crescente inspirada pelos políticos. Destacou o fato da rejeição que atinge a totalidade dos políticos. Mencionou que, de cada quatro brasileiros, três são contra o voto obrigatório. Tece outras considerações sem se deter ao modo de governar de doutor Temer. Acrescenta que os brasileiros não se sentem representados por nenhum político.

Já o portal Gente de Opinião, que mostra simpatia para com o lulopetismo, analisa os resultados de outro jeito. Destaca que a democracia não é respeitada e explica que isso era previsível «desde que um impeachment afastou a presidente legítima e permitiu que o poder fosse usurpado (sic) pelo vice Michel Temer, que a traiu». Diz também que noventa e tantos porcento dos eleitores não se sentem representados por «Temer e sua turma».

Ao final, a gente fica pensativo. Pra que servem mesmo essas sondagens? Cada um vê o que quer ver, entende o que quer entender, analisa como lhe convém, chega à conclusão que lhe apraz. Eta, mundão grande… e hipócrita!

Falam de nós – 23

0-Falam de nósJosé Horta Manzano

Chamada jornal AS (Madrid), 10 ago 2017

Elefante branco
O portal espanhol As, especializado em esportes, repercute anúncio feito por senhor del Nero, presidente da Confederação Brasileira de Futebol. «Brasil no jugará en Maracaná porque está abandonado» ‒ é a declaração do cartola, referindo-se à partida Brasil x Chile prevista para outubro próximo.

Quando se leva em conta que, doze meses atrás, o estádio carioca fervilhava com numerosas competições dos Jogos Olímpicos, a notícia é de pasmar. Bastou um ano para o Maracanã se tornar um elefante branco, imprestável para acolher um simples jogo de futebol.

Quem são os culpados? Estão por aí, passeando, ricos, sorridentes, livres e soltos. A vergonha fica por nossa conta.

 

Chamada The Guardian (Londres), 10 ago 2017

Um problema esconde outro
O inglês The Guardian estampa a pergunta que está em todos os lábios: Por que, empacado nos distúrbios da Venezuela, o mundo ocidental ignora os problemas do Brasil?

E discorre longamente sobre as atribulações de doutor Temer, sem esquecer doutora Dilma, a corrupção, o Congresso, o Partido dos Trabalhadores, a taxa de desemprego difícil de explicar, o atraso do pagamento de salários de funcionários públicos. Um balaio de gatos.

É verdade que a desordem venezuelana, que é bem mais espetacular e que já coleciona quase 150 mortos, chama a atenção. Vista da Europa, ofusca o que possa estar acontecendo nos países vizinhos. Vista do Brasil, não é bem assim. Mas o Guardian não é obrigado a saber.

 

Chamada Ynetnews (Israel), 10 ago 2017

Terra de asilo
Cria fama e deita-te na cama, diz o provérbio. Muita gente, ao redor do mundo, continua acreditando no clichê: o Brasil é terra de asilo para bandidos. Às vezes, funciona. Para um certo senhor Elitzur, falhou.

O israelense, condenado a 20 anos de cadeia por um assassinato cometido em 2004 em seu país, conseguiu escapar para a Alemanha. É que, sendo duplo nacional, dispunha de passaporte germânico. De lá, embarcou para o Brasil, onde logrou viver anos tranquilos sob falsa identidade.

Em 2015, com ajuda da Interpol, a polícia brasileira acabou localizando o indivíduo em São Paulo. Levado à prisão, está há dois anos esperando a tramitação do processo de extradição.

Mostrando que não está lá unicamente para julgar políticos, o STF acaba de aceitar o pedido do Estado de Israel. O cidadão será extraditado dentro em breve para cumprir o resto da pena no país de origem. Parte da opinião pública israelense gostou.

 

Chamada South China Morning Post (Hong Kong), 11 ago 2017

Trump & Bolsonaro
A fama de doutor Bolsonaro já deu a volta ao mundo. O South China Morning Post, jornal publicado em Hong Kong, dá conta da ambição presidencial do deputado e o retrata como «Brazil’s Trump» ‒ o Trump brasileiro.

Dá, em seguida, um breve currículo do quase futuro candidato descrevendo-o como “versão brasileira” do nacionalismo e do conservadorismo que se espalham pelo mundo. Explica que é contrário ao aborto e aos direitos dos gays, mas favorável às armas e aos militares. Esclarece que os brasileiros, exaustos de conviver com a corrupção e com um Estado ausente, tendem a dar ouvidos à fala de doutor Bolsonaro.

Teremos um Trump tropical?

Sem chance

José Horta Manzano

Sabemos todos que pesquisa de opinião pode ser torcida, retorcida e distorcida conforme o que se está querendo ouvir. Os especialistas no assunto conhecem bem as manhas. Há perguntas que induzem o entrevistado a dar a resposta que se deseja. A ordem em que se apresentam as opções conta. Misturar nomes conhecidos do grande público com ilustres desconhecidos também tem importância. Há mil e um truques que pesquisadores não hesitam em utilizar.

Já faz algum tempo que tenho visto sondagens focadas nas eleições presidenciais de 2018, previstas para realizar-se para daqui a um ano e três meses. É cedo demais para sondar. Além disso, tirando o eterno candidato Lula, nenhum outro se declarou formalmente. Portanto, sem ao menos saber quem vai concorrer, como é possível chegar a resultado razoável?

Achei interessante que o nome da doutora Dilma não apareça em nenhuma das pesquisas. Seus direitos políticos foram mantidos, pois não? A doutora governou o país durante cinco anos. Por que, diabos, os institutos a eliminam arbitrariamente da lista de possíveis candidatos? E que dizer de doutor Temer então? Ainda que fosse destituído ‒ o que está longe de acontecer ‒, pode candidatar-se em 2018. Assim mesmo, não aparece em nenhum cenário.

Em compensação, aparecem figuras como Luciana Genro, Eduardo Jorge e Ronaldo Caiado que, convenhamos, pouca gente conhece. Francamente, em matéria de parcialidade, a mais recente pesquisa eleitoral parece imbatível. Falando em imbatível, o Lula aparece com 30% dos votos no primeiro turno, independentemente do nome dos concorrentes. É possível que nem a inclusão da doutora e do atual presidente viesse a modificar o resultado.

Como contrapeso, saiu ontem pesquisa do Instituto Paraná. Foi divulgada pelo blogue de Lauro Jardim, alojado no jornal O Globo. Aos entrevistados não foi perguntado em quem votariam. Mais sutil, o instituto quis saber se o sondado achava que, pelas denúncias já apuradas, há motivos para o Lula ou doutor Temer serem presos. Aí vem a surpresa: 62% dos entrevistados acham que o Lula deve ir para o xilindró ‒ perto de 2 em cada 3 brasileiros! Só doutor Temer bate nosso guia. De cada 5 eleitores, 4 acham que o lugar dele também é na cadeia.

Agora comparemos. No primeiro turno, o Lula mantém, em qualquer cenário, seus 30% de eleitores fiéis. Vamos admitir. No entanto… 62% querem mais é vê-lo atrás das grades. A conclusão se impõe. Por mais que nosso guia caído apregoe, não teria possibilidade nenhuma de ser eleito caso a eleição fosse agora. Dado que será daqui a 15 meses, a situação só tende a piorar. Para ele.

Pedir pra fazer pipi

José Horta Manzano

«Falar certo» e «falar errado» são noções meio vagas, sujeitas a discussão. Nós, brasileiros, estamos em conflito permanente entre dois falares. O primeiro deles é nossa língua materna que, pra dizer a verdade, não tem nome. Pode-se classificar como ‘falar popular’ ‒ eu prefiro ‘falar caseiro’, mais simpático. É língua que todos falamos perfeitamente, sem hesitar nem errar. A par desse, temos um segundo falar. É o português, também dito ‘norma culta’. Em princípio, não aprendemos essa variante em casa. Ela só nos é ensinada na escola, e é aí que reside o perigo: escola ruim = mau aprendizado da variante oficial.

Não somos o único povo a conviver com dicotomia linguística. Há casos em que a enorme divergência entre o falado e o escrito gera problemas mais acentuados. Nas regiões onde isso acontece, é imprescindível aprender bem a norma culta. Quem não a dominar, periga enfrentar transtornos no dia a dia.

Bem ou mal, o brasileiro consegue se comunicar por escrito. Falta de erudição não significa necessariamente iletrismo ou analfabetismo. O cidadão de poucas letras pode até chegar a transmitir seu pensamento, no entanto, por lacunas sintáticas e inadequação vocabular, nem sempre logra se exprimir com clareza.

Que o não-profissional escreva mal, ainda vá lá. Quando se trata de alguém que se dirige ao grande público, a coisa muda de figura. Daqueles que escrevem notícia de jornal, não se espera a erudição e o linguajar reluzente de um padre Vieira, mas é importante que seja pelo menos claro. Não convém transmitir ambiguidades.

Topei hoje com esta chamada do Estadão:

Chamada Estadão, 29 jun 2017
clique para ampliar

Nestes tempos estranhos em que as notícias se atropelam, a gente tem dificuldade em acompanhar, no detalhe, o psicodrama que se desenrola no andar de cima. Numa primeira leitura, entendi que a defesa de doutor Temer estivesse pedindo a doutor Fachin que lhes permitisse ouvir os tais peritos. Imaginei que, egoísta, o ministro do STF houvesse barrado, aos advogados, acesso à conclusão dos especialistas. Do jeito que está escrito, é a única interpretação possível.

Só ao ler o artigo, entendi que o título tinha sido construído em fala caseira. Pode cair bem num bate-papo ao redor da mesa da cozinha; num jornal de prestígio, fica estranho. O encarregado de dar título à matéria mostrou não ter aprendido a manha do verbo pedir.

«Pedir para» subentende «pedir (permissão) para». Usa-se «pedir para» quando se deseja obter autorização para alguma coisa. Pedir para participar quer dizer solicitar autorização para fazer parte. Pedir para ouvir peritos significa solicitar permissão para ouvir esses especialistas. Não é o que o autor do artigo queria dizer.

Na verdade, os defensores de doutor Temer gostariam que o ministro do STF desse ouvido aos tais peritos. A boa escola de Português ensina que o jornal deveria ter escrito «Defesa de Temer pede a Fachin que ouça peritos».ou, ainda mais claro: «Defesa de Temer pede que Fachin ouça peritos».

Em resumo: o uso jornalístico da língua descontraída é admissível até o ponto em que compromete a compreensão. Clareza é essencial.

Observação
O título deste meu artigo faz alusão ao aluninho que, depois de engolir uma garrafa inteira de tubaína, pede (permissão) pra ir ao banheiro.

Mala preta aos três anos da Lava a Jato

Fernando Gabeira (*)

Interessante classificar os que pedem a queda de Temer como irresponsáveis. Já que estamos usando a palavra, é bom lembrar que não somos presidentes nem recebemos um empresário investigado à noite, sem anotação na agenda, usando senhas no portão de entrada.

Não nos parece responsável um presidente que mantém aquele tipo de diálogo, tarde da noite, com o dono da Friboi. Tampouco parece responsável designar como interlocutor do empresário Joesley Batista um assessor especial que, horas depois, é filmado carregando a mala com R$ 500 mil.

Para ficar no universo mínimo de uma só palavra, a irresponsabilidade decisiva foi de Temer. Supor que três anos depois da Lava a Jato não só tudo terminaria em pizza, como o dinheiro da propina seria pago diretamente na Pizzaria Camelo.

by Eneko de las Heras (1963-), desenhista venezuelano

Foi Temer sozinho que arruinou suas chances de conduzir as reformas e jogou para fora da pinguela uma grande parte da sociedade, já constrangida com ela, mas vendo-a como a única saída momentânea.

A maioria tem o direito de rejeitar um presidente que se envolve em práticas tão sospechosas. E tem também o direito de achar que ele deva ser investigado, mas que os dados já expostos o desqualificam para o cargo.

Por enquanto, vamos assistir à guerra de Temer contra a Lava a Jato. Apertem, pois, os cintos: o que chamam de estabilidade nós chamamos de turbulência.

(*) Fernando Gabeira é jornalista. O texto reproduzido é parte de artigo publicado em 16 jun 2017. O escrito integral está aqui.

Frase do dia — 335

«Alguns casais eram anacrônicos(1), outros de passo bem marcado. Dilma Rousseff e Michel Temer, Rosa Weber e Luiz Fux. Mestre Gilmar Mendes puxou o Arraial do TSE, mas ofuscado foi pela grande atuação do protagonista, o sanfoneiro Herman Benjamin. Foi ele quem deu o grito: “Olha a cobra!”. Ao que quatro dos sete juízes responderam: “É mentira!”. Anavantu(2)

Monica de Bolle, economista, em artigo publicado pelo Estadão.

(1) Neste caso, o termo anacrônico foi utilizado em contraposição a sincrônico. A autora quis dizer que dançavam fora do tempo, de maneira desordenada.

(2) Anavantu é ordem dada aos pares que dançam quadrilha junina. É deturpação do original francês «En avant tous!» ‒ todos para a frente!

Da inutilidade do vice ‒ 2

José Horta Manzano

Suponhamos que um casal se candidate a tomar um apartamento em aluguel. São aceitos, o marido assina o contrato e se mudam. Depois de alguns meses, surgem problemas devidos a um desvio de comportamento qualquer. Pode ser por falta de pagamento, por barulho excessivo, por litígio com vizinhos, por deixarem o cachorro fazer xixi no elevador, por terem brigas frequentes e escandalosas.

Tanto faz o motivo. No final de algum tempo e depois de algumas advertências, o resultado não pode ser outro: acabam sendo despejados. Rescindido o contrato, a permanência no apartamento não é permitida nem ao marido, nem à mulher, nem a filhos ou dependentes. Todos têm de deixar o imóvel. A esposa não pode alegar que a inadimplência era culpa do marido e que, doravante, ela assumirá o compromisso. Não é assim que funciona.

Por analogia, enxergo a presidência do país nos mesmos moldes. O casal (presidente e vice) se candidata. Vencem juntos a eleição. Assumem posto e funções. Depois de algum tempo, por um motivo qualquer, deixam de fazer jus ao cargo. No nosso caso, suponhamos que tenha sido por maquiagem das contas públicas, manobra que a lei pune com a perda do cargo.

Seguindo o rito constitucional ‒ que corresponde ao regulamento do condomínio ‒, o presidente da República é destituído, assim como o inquilino inadimplente foi despejado. Nesse ponto, surge uma bizarrice. O presidente se vai, mas o vice, embora tenha sido eleito em ‘dobradinha’ com ele, tem o direito de ficar. Está plantada a semente da confusão. Quem planta confusão colhe balbúrdia.

O distinto leitor sabe que, na minha visão, a figura do vice é perfeitamente dispensável. Aquela espécie de urubu à espreita de chegar seu momento é sombria, inútil e prejudicial. Mas, se fizerem questão de continuar copiando o modelo americano que determina que se tenha um vice à mão e pronto a assumir, que sejam especificadas as ocasiões em que lhe cabe tomar o assento do presidente.

Esqueçamos a ridícula passagem de poder feita a cada viagem internacional do titular. Isso é coisa do século 19, que hoje não faz mais sentido. O vice assumirá em caso de morte, renúncia, doença prolongada, incapacidade física ou mental do presidente. Doutora Dilma foi mandada embora por ter cometido crime de responsabilidade. No meu entender, doutor Temer deveria ter deixado o governo junto com a titular.

Como vice-presidente eleito na mesma chapa, ele era corresponsável. É inconcebível que tenha passado ileso pelo processo, como se nunca tivesse passado de figura decorativa, sem função. Afinal, o doutor tinha assumido a presidência frequentemente, a cada vez que a titular viajou ao exterior. E tinha assinado atos administrativos. E tinha segurado as rédeas do país. Se, ao sair a doutora, saíram todos os ministros e assessores, por que, diabos, ficou o vice?

E pensar que é tão simples resolver o problema da vacância do cargo. Quando um presidente se vai, organizam-se novas eleições e escolhe-se novo titular. Pronto. Pra que serve esse incômodo curinga guardado na manga? É carta marcada, que traz cheiro e gosto do presidente anterior. Foram eleitos na mesma chapa, pelos mesmos eleitores. E governaram juntos. Entraram juntos e assim devem sair.

Tratamento desigual

José Horta Manzano

Não tenho acompanhado de perto os escândalos políticos do Brasil. Tudo o que é demais cansa. Além disso, me dá muita pena ver o mal que essa balbúrdia está trazendo ao país, um mal duradouro de que padecerão nossos netos. Justo quando parecia que estávamos pra atingir a borda e nos safar do naufrágio, catapimba! Estamos de novo no fundo do poço. E, desta vez, mais desesperançados que nunca, na quase certeza de que lá permaneceremos até o fim de nossos dias.

Chamada Estadão, 6 jun 2017

Enquanto a caravana da história passa, continuamos discutindo miudezas. Um juiz da corte suprema puxa o tapete pra fazer outro escorregar. O outro revida. Num jardim da infância, certos caprichos são toleráveis ‒ na alta magistratura, não. Corruptos, corruptores, ladrões e rapinadores se fazem defender em tribunal por batalhões de penalistas retribuídos regiamente com nosso dinheiro.

Depoimentos filmados são distribuídos ao grande público, exatamente como se lança miolo de pão a pombas famintas. Não tenho nada contra o fato de serem registrados e filmados. Já o fato de pôr som e imagem à disposição da população, como se cada interrogatório fosse capítulo de trágica e interminável novela, não me agrada nada. Pode até ser legal, mas não contribui para a serenidade exigida pelo exercício da justiça. Fica a impressão de que o intuito é justamente esse: tumultuar os espíritos.

Chamada Estadão, 6 jun 2017

Enquanto peixinhos são encarcerados e condenados a vinte, trinta, quarenta anos de cadeia, peixões são agraciados com liberdade total. É insuportável o tratamento dado àquele senhor de prenome simplório e sobrenome pio, um dos homens mais ricos do país. Falo daquele que, na moita, gravou uns quantos personagens graúdos e, em troca de absolvição, entregou os cúmplices e se mandou para Nova York sob as bênçãos das autoridades judiciárias.

Não tenho especial simpatia para com senhor Temer, presidente em exercício. Nem especial antipatia para com o novo-rico de nome simplório, exceto por ter ele praticado a traição, um crime que abomino. Assim mesmo, as duas notícias que li hoje me impressionam. Por um lado, a Justiça dá ao presidente 24 horas para responder a 82 perguntas no âmbito da investigação de que é objeto. Por outro, a mesma Justiça dá à empresa do rapaz que está passeando nos EUA 90 dias para apresentar a «lista de propinas». O prazo é noventa vezes mais longo!

Quero crer que tudo esteja dentro da legalidade. Mas, convenhamos, há uma flagrante disparidade de tratamento. Trabalhando oito horas seguidas, supondo que não tenha nada mais a fazer, senhor Temer terá de responder por escrito a dez perguntas por hora, seis minutos para cada resposta. Por que tanta benevolência para com o rapaz de Nova York? Imaginando que as propinas não tenham sido dadas ao acaso, com o dinheiro que o bom moço tinha na carteira, a lista de montantes e de beneficiários já deve estar pronta há anos.

Como pôs Shakespeare na boca do personagem Marcellus da peça Hamlet, «Something is rotten in the state of Denmark» ‒ algo está podre no Reino da Dinamarca.

Observação
Na época em que a peça foi escrita, por volta de 1600, não existia o Reino do Brasil. Se existisse, talvez o dramaturgo inglês tivesse situado o enredo em terras de Santa Cruz.