A juíza e o juízo

José Horta Manzano

Na sexta-feira 2 de setembro, o site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) passou a exibir a nova regra relativa ao porte de telefone celular na cabine de votação.

O aparelhinho continua proibido, assim como todo dispositivo que permita fotografar, filmar ou registrar o voto. A novidade é que o telefone celular será retido pela mesa eleitoral enquanto o eleitor vota. O cidadão que se recusar a entregar seu aparelho perderá o direito de votar.

A resolução não prevê exceção para cidadãos STC (sem telefone celular), como este blogueiro. Fico a imaginar a cara de espanto dos jovens mesários quando eu lhes contar a exótica verdade. Estou até pensando em tomar um telefone emprestado, só pra não causar mal-estar.

O mui sério e mui oficial site do TSE estampa as novas disposições(1). O trecho mais impressionante é o seguinte:

“Havendo recusa em entregar os equipamentos descritos, a eleitora ou o eleitor não serão autorizados a votar e a presidência da mesa receptora constará em ata(2) os detalhes do ocorrido e acionará a força policial para adoção de providências necessárias, sem prejuízo de comunicação a juíza ou ao juízo eleitoral.(3)

Considero que o confisco temporário do telefone de bolso é medida de bom senso. Inibe tanto o voto comprado quanto o voto de cabresto. O que me incomoda é a redação do comunicado. Vejamos.

(2) Constará em ata
Quem redigiu a frase ignora o significado do verbo constar. Nessa acepção, significa aparecer, ser mencionado. Ora, não é a presidência da mesa que vai aparecer na ata. A obrigação da presidência da mesa será fazer constar na ata. Se preferirem um único verbo, podem dizer que a presidência lançará em ata os detalhes do ocorrido.

(3) A juíza e o juízo
Li, reli e tresli a frase tentando adivinhar a intenção de quem a redigiu. Ainda estou na dúvida. Quem será o juízo? Pensei que talvez estivessem fazendo referência ao juízo eleitoral, ou seja, a instituição judiciária eleitoral. Se assim fosse, que estaria fazendo a juíza na frase?

Reflexão feita, acabei entendendo que o “politicamente correto” passou por ali. O redator devia estar com intenção de se referir à juíza e ao juiz, mas – oh céus! – digitou mal. Saiu “à juíza e ao juízo”. Ninguém releu, e o texto virou lei.

“A juíza e o juízo” me lembra uma historinha infantil em que se perguntava qual era o marido da vaca, e a resposta vinha: “É o vaco”.

(1) Se alguém quiser conferir no site do TSE, é por aqui.

O crime e a punição

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 25 junho 2022

Corrupção existe no mundo todo. Em certas regiões do globo, está mais presente que em outras. Seja como for, pouca ou muita, corrupção sempre há. Em países em que a observância de leis e regras é pouco rigorosa, a corrupção acaba se instalando como fato corriqueiro, presente no dia a dia de todo cidadão.

A América Latina, com o Brasil em destaque, é conhecida como um dos polos mundiais no assunto. Que se chame gorjeta, propina, cervejinha, cafezinho, molhadela, suborno, jabaculê, lambidela, joia – tanto faz: são variações em torno de um mesmo tema.

Dado que a corrupção crônica é vista no exterior como realidade indissociável de nosso país, ninguém se comoverá com o fato de este cidadão roubar mais que aqueloutro. Está aí, por certo, o segredo da persistente popularidade de Lula da Silva além-fronteiras. Processo, condenação e encarceramento não foram suficientes para manchar-lhe o retrato. Verdadeira ou não, a imagem que o mundo reteve dele foi a de um dirigente que cuidou seus compatriotas humildes e desvalidos – atitude incomum em nossos trópicos. Isso marcou.

O atual presidente martela: “No meu governo, não tem corrupção!”. Pode ser que o mantra funcione entre devotos mais crédulos; no estrangeiro, tem efeito nulo. Quando já se dá por favas contadas que todo dirigente sul-americano é desonesto, não é uma figura farisaica a bater no peito e a repetir “Eu, não!” que vai comover alguém. Portanto, fica claro que o fator corrupção não é suficiente para abalar a reputação do Brasil.

Passemos a um exercício de futurologia política. Vamos trabalhar sobre uma hipótese cujo peso, neste momento, é difícil avaliar. Inventemos um roteiro fictício.

Apesar da algaravia armada em torno da urna eletrônica, o capitão sofre derrota estrepitosa nas eleições. Dia seguinte, num balé incubado de longa data, tropas evacuam Congresso, STF e TSE, e lhes impõem rendição. Em cadeia nacional de rádio e tevê, o presidente aparece cercado por uma penca de fardados estrelados – generais, almirantes, brigadeiros. Todos ostentam o cenho franzido e o ar grave que convém aos momentos cruciais da vida nacional. O capitão anuncia o golpe.

Na sequência, estado de sítio é decretado. Garantias e liberdades individuais são suspensas. O Congresso é fechado, assim como o STF e o TSE. As personalidades que possam causar estorvo ao regime que se instala são detidas e encarceradas – o primeiro da lista é naturalmente o vencedor da eleição. Senadores e deputados têm os mandatos suspensos.

Nos dias que se seguem, manifestações internacionais de protesto pipocam. Os EUA são os primeiros da lista, instando o novo regime a repor o Brasil nos trilhos. Seguem-se a União Europeia, o Japão, o Reino Unido. Logo atrás, vêm os países da América Latina, num coro uníssono. A OEA e a ONU reiteram a mesma injunção: o resultado das eleições tem de ser respeitado e o Congresso, reaberto. Indiferentes às súplicas internacionais, o capitão e seu generalato levam adiante o golpe. Dada a vacância do Legislativo, o presidente passa a governar por decreto. É a estreia de um regime autocrático.

Fosse o Brasil um país pequenino e desimportante, talvez o mundo não se comovesse com a situação. Mas não é assim. Nosso país tem o peso de 200 milhões de habitantes e uma economia significativa. Nessas condições, ao ver que o novo ditador e a junta que o apoia sonegam resposta à súplica internacional, as nações, capitaneadas pelos EUA, decidem engatar a segunda.

Assim como foi feito com a Rússia, sanções contra o Brasil são decretadas. No primeiro pacote, a mais vistosa delas é a decisão de proibir cidadãos envolvidos no golpe de entrarem nos EUA e nos países adiantados. Os haveres desses indivíduos no exterior ficam bloqueados.

A notícia dessa decisão cai como bomba no Planalto. “Como assim? Quer dizer que não tenho mais acesso a minha conta bancária na Suíça? E não vou mais poder passar férias no meu apartamento de Paris? E nunca mais vou poder andar de xícara na Disneylândia?”

O mundo não precisa editar um segundo pacote de sanções. Esse basta. Tendo dado com os burros n’água, os golpistas encerram a brincadeira. Rapidinho.

Narrativa

José Horta Manzano

No domingo 14 de nov°, a deputada Joice Hasselmann soltou um tuíte venenoso:


Nenhum deputado bolsonarista se inscreveu para inspecionar o código fonte das urnas eletrônicas. O TSE abriu as portas para vistoria em 4/10. Eles só se interessam pela narrativa.


Estricnina pura. Em menos de 30 palavras, a doutora deu seu diagnóstico sobre o estado de espírito dos espalhadores de notícias falsas (em português: fake news). Nessa gente, o que domina é a falsidade. O que dizem é só “da boca pra fora”, como se dizia antigamente.

Os que praticam esse perigoso esporte de desinformação não são apegados à verdade. Se a notícia espalhada não bate com a realidade, dane-se a realidade.

Afinal, toda seita que se preze exige que os fiéis bebam as palavras do chefe, como se bebessem da fonte de água pura. Na qualidade de arautos do “mito”, são pagos pra divulgar o que seu mestre mandar.

Se o chefe disse que as urnas eletrônicas são um lixo, ninguém tem o direito de contestar, muito menos o de verificar. E há bobões que acreditam e seguem o enterro. Nenhum deles tem sequer a curiosidade de levantar a tampa do caixão pra ver se defunto há.

“Realizei tudo sozinho”

José Horta Manzano

Domingo passado, o Brasil assistiu, surpreso, à inusitada demora na apuração dos votos. Pra quem está acostumado, há vinte anos, a conhecer os resultados na hora, a espera foi longa. Teorias conspiratórias logo se alevantaram. “Isso é obra dos russos”, “Eu te disse que os chineses iam atrapalhar”, “Só pode ser coisa da CIA” – foram as hipóteses que correram por aí.

Em típica atitude defensiva – que ocorre esporadicamente no mundo todo, mas que, no Brasil, se tornou esporte nacional –, as autoridades responsáveis logo trataram de pôr a culpa em terceiros. “Não fomos nós!” Impossibilitados de negar a evidência do atraso, acusaram a covid, os computadores, os técnicos, os fornecedores, o faxineiro, a moça do café.

Dias depois, aparece o verdadeiro culpado. “Realizei tudo sozinho”, avisa um pirata informático (=hacker). Longe de se mostrar envergonhado, exibe o orgulho de que somente os muito jovens são capazes. O rapaz, um português de 19 anos, esclarece ter cometido a façanha munido de um simples telefone celular, desses que todo o mundo tem no bolso.

Por que fez isso? Ora, pelo frisson(*). Tendo ouvido dizer que o TSE tinha reforçado a segurança do voto eletrônico, resolveu testar. O resultado foi além da expectativa: perturbou a vida de 100 milhões de eleitores e ainda deu munição aos desajustados do Planalto para lançarem suspeita sobre a lisura do pleito. Desculpem qualquer coisa aí, hein!

O mundo informático, marca dos novos tempos, é contrastado. Do lado bom, está a facilidade infantil com que a gente se comunica, pouco importando a distância. O custo das comunicações, que caiu a quase zero, também é excelente notícia. Porém, do lado mau, está essa permeabilidade do sistema.

Nos tempos de antigamente, para grampear um telefone, era preciso subir no poste e instalar o dispositivo de arapongagem. Dava mão de obra e era indiscreto. Hoje em dia, com dois cliques um operador faz o mesmo trabalho – com a vantagem de poder grampear um indivíduo ou um bairro inteiro, se assim lhe apetecer.

Antes da informática, as palavras que se diziam ao telefone chegavam ao correspondente, em seguida se perdiam no espaço e se apagavam. Hoje não funciona mais assim. Gosto de imaginar que, nalgum bunker secreto no Arizona ou em Utah, todas as comunicações e mensagens telefônicas (escritas ou de voz) são gravadas e armazenadas para eventual uso futuro.

Não é ficção científica. Pense um pouco. Se um adolescente, com um telefone na mão, consegue invadir o complexo sistema do TSE e devassar o voto de uma população do tamanho da nossa, fica demonstrada a facilidade de manipular resultado de eleição.

Falando em manipulação, se alguma já não foi feita nas eleições passadas, fica aqui a sugestão. Quem tiver telefone pode tentar. O frisson(*) é garantido. As instruções de piratagem devem se encontrar na internet, acredito eu.

Ah, ia esquecendo de prevenir. Quando você tiver ganas de falar mal de alguém, em mensagem escrita ou de voz, pense duas vezes. Esse alguém pode até um dia invadir o bunker do Arizona. Se ele descobrir a maledicência, vai dar um forrobodó dos diabos.

(*)Frisson
É palavra francesa dicionarizada no Brasil sem alteração da grafia. Em sentido próprio, significa arrepio, calafrio. Aqui foi usada no sentido figurado, dado que arrepio não seria a melhor opção. O termo é descendente longínquo do verbo latino frigere = ter frio, através da forma medieval frictio/frictionis, que acabou dando nossa fricção. A idéia é que quem tem frio treme e sente arrepios.

Cloud Oracle

José Horta Manzano

Quem viver, verá. Mas quem viveu, já viu. Quem conheceu as eleições brasileiras pré-urna eletrônica sabe o que é bom pra tosse.

Pra voltar àquela época, precisa fazer um esforço de imaginação. Pense num Brasil com 50% da população vivendo na zona rural, em localidades remotas e de difícil acesso. Imagine urnas sendo transportadas por estrada de terra (ou de lama), num país sem computador, sem internet, (quase) sem telefone, com rede elétrica periclitante.

Pesquisas prévias não estavam na moda. Só a apuração valia – e como era lenta! Os primeiros resultados, bem parciais, só começavam a surgir lá pelo quarto ou quinto dia. Pra contar todos os votos, levava uns quinze dias. Mas era assim mesmo, e a gente já estava feliz de ter eleições, num mundo bipolar em que a maior parte da humanidade não dispunha desse luxo.

Estes dias, o TSE – órgão que dá as cartas em matéria de eleições – está apanhando de todos os lados. Governo, parlamentares e povo se uniram pra apedrejar o Tribunal. E tudo isso por quê? Porque estamos todos mal acostumados. Esperávamos o resultado em duas horas, mas ele levou uma noite inteira. O pior é que não é difícil imaginar quem encomendou e pagou os piratas internéticos.

Quanto à demora, não vejo razão pra tanto assanhamento. Veja o que se passa nos EUA. Entendo que o voto lá é mais complexo, o eleitor tendo de se pronunciar em numerosos assuntos. Assim mesmo, demoram muito pra contar. Hoje, exatamente 15 dias depois do dia do voto, a apuração ainda não terminou.

Até que nossa demora é rápida…

O vaivém da hora

José Horta Manzano

Num raro exemplo de constância e rigor legal, a Casa Civil editou decreto em 2008 fixando regras para a hora de verão. Ficou combinado que o início seria no terceiro domingo de outubro enquanto a volta à hora normal se daria no terceiro domingo de fevereiro. Uma exceção foi aberta para o caso de o Carnaval cair justamente no dia da mudança de hora. Quando isso ocorre, a volta à hora normal fica adiada para o domingo seguinte. Pronto: simples e claro.

O sistema funcionou direitinho por nove anos ‒ longevidade excepcional para um dispositivo legal no país! Mas… ai de nós, o que é bom dura pouco! Já no fim do ano passado, a Justiça Eleitoral pediu que a Casa Civil desse um jeitinho de alterar a data de início da hora de verão 2018-2019. É que a mudança no relógio estava estorvando o calendário das eleições.

Pra começo de conversa, a coisa parece surreal: por que diabos o TSE não adaptou o calendário eleitoral à hora de verão? Por que será que é a tradicional e pré-fixada hora de verão que tem de ser mexida? Pra fim de conversa, a coisa parece mais surreal ainda: o presidente da República acatou o pedido e ousou mexer na hora de verão!

Desgraça pouca é bobagem. Eis que ‒ desta vez sob pressão dos organizadores do Enem ‒ a Presidência acaba de deslocar de novo a data de entrada em vigor da hora de verão. Foi retardada mais uma vez porque «estava atrapalhando os exames». Volta a pergunta: dado que o calendário da hora de verão já está fixado há 10 anos, por que diabos não marcaram o Enem para outra data?

A mudança anual de hora não é um berloque inventado pra animar a monotonia do calendário. Tem finalidade específica e influencia todas as atividades humanas. Sistemas informáticos têm de ser ajustados, coisa que se costuma fazer com antecedência. Horários de aviação são afetados pela mudança ‒ um deslocamento da data de início mexe com os horários de todas as companhias que servem o Brasil. Milhares de passageiros vão ser prejudicados. O horário de trabalho de todos os que vão ao batente à noite é afetado. Esses vaivéns perturbam a vida de muita gente.

Essas mudanças atabalhoadas ‒ e, pra piorar, feitas na última hora ‒ não fazem senão botar lenha na fogueira da insegurança institucional do país. Em matéria de hora de verão, a melhor iniciativa seria aboli-la. Mais atrapalha do que ajuda.

Periculum in mora

José Horta Manzano

O caso Lula da Silva, que virou novela de segunda categoria, já está levando à saturação a paciência dos brasileiros de bem. De molecagem em molecagem, o grão-petista e seu bando têm dado que fazer à Justiça, viciados que estão em brigar no tapetão.

Com as eleições chegando, seu mestre está de olho na miragem de uma eleição ao cargo maior, situação que lhe valeria, por quatro anos, imunidade para novos processos. A chance de poder concorrer (chance para ele, que para nós é risco) é praticamente nula. Ainda assim, Lula da Silva dá uma banana para o Brasil e passa o tempo entupindo a Justiça com recursos e reclamos absurdos.

Coube a doutor Luís Roberto Barroso a decisão sobre a fixação do rito que vai governar a decisão de homologar ou embargar a candidatura de Lula da Silva. Comedido, doutor Barroso, que é ministro do STF e também do Tribunal Superior Eleitoral, tem mostrado privilegiar decisões de bom senso. A maior parte das vezes, seu voto tem-se revelado isento, sem marcado viés ideológico.

Honesto e precavido, doutor Barroso considerou que o caso é de grande repercussão. Assim, preferiu adotar o rito longo, com prazos dilatados, consulta ao plenário da Corte, direito a réplica, tréplica e quatréplica. Sua intenção foi de fornecer um resultado inatacável. Louvo a decisão, mas acredito que Sua Excelência esteja equivocado.

Do outro lado da mesa, não está um “paciente” comum. Quando se julga um cidadão normal, deve-se calçar luvas de pelica e oferecer-lhe todas as possibilidades de defesa e de contestação. Quando, do outro lado da mesa, está um grupo de embusteiros, o tratamento tem de ser diferente, mais seco, mais radical, mais próximo do rito sumário.

Doutor Barroso está empenhado em seguir um caminho liso, perfeito, de modo a impedir todo ataque e toda contestação. Engana-se o magistrado. Seja qual for o rito seguido, é certo que Lula da Silva & amigos reclamarão de qualquer jeito. Insistindo no mito da vitimização, hão de proclamar ao Brasil e ao mundo que o julgamento terá sido injusto, autoritário e abusivo.

Se assim é, por que então deixar o Brasil em aflitivo suspense? Se a decisão (lógica) de proibir Lula da Silva de concorrer será atacada seja qual for o rito, não faz sentido fazer durar a espera.

Periculum in mora ‒ há perigo na demora.

Massagem no tribunal

José Horta Manzano

Desigualdade é marca distintiva do Brasil. Quando se fala nela, vem logo à mente a imagem da sociedade segmentada entre ricos e pobres. Mas a disparidade não se limita a isso. O mal é muito mais amplo. Diferenças de tratamento, de direitos, de oportunidades se infiltram pelos recônditos do corpo social e atigem a medula da nação. Não acompanham necessariamente a linha divisória entre ricos e pobres. O buraco é bem mais profundo.

Isonomia é palavra bonita. Mas permanece na esfera da teoria. Serve pra enfeitar um discurso aqui, uma lei ali. Não tem tradução na prática. Estamos tão habituados ‒ tão viciados, eu diria ‒ a conviver com privilégios, que nem mais nos damos conta deles. Sabe aquele infeliz dormindo na calçada coberto com pedaços de papelão, aquele que ninguém vê? Pois o que acontece com privilégios segue pelo mesmo caminho. Ninguém se impressiona com eles.

Surpreso, fiquei ontem sabendo que tribunais superiores de Brasília contam com instalações de fisioterapia postas à disposição de ministros e funcionários. A notícia que li não contestava o fato em si, mas o valor dos equipamentos, que pareceu elevado ao articulista. O princípio não pareceu escandaloso; o custo, sim.

É curioso. Fico aqui a imaginar se o tribunal de Currupira da Serra conta com essa facilidade. Se os magistrados currupirenses e os funcionários do fórum, quando amanhecem com dor nas costas, têm direito a massagem grátis num ginásio do subsolo.

Percebe o distinto leitor a quebra da isonomia? Se aqueles têm direito a cuidados gratuitos, por que não estes? Oferecer instalações para fisioterapia não me parece função de tribunal. Essa liberalidade só seria aceitável se pudesse ser proposta por todos os tribunais do país. Não é justo que juízes e funcionários de determinados tribunais gozem de privilégios negados a outros colegas.

Não é o pior exemplo de desigualdade no país. É apenas mais um.

Lula e Bolsonaro julgados

José Horta Manzano

Antes de qualquer outra consideração, quero deixar claro (como se necessário fosse) que não nutro especial simpatia nem pelo Lula nem por Bolsonaro. O primeiro traz, como marca registrada, a amoralidade, mãe da corrupção, da ladroeira, do populismo e de males que podem afundar o Brasil ainda mais. Do segundo, o pouco que se sabe não é animador. O gajo parece limitado, hesitante, inexperiente. Falta-lhe firmeza. Mais vale não tentar a experiência.

Ambos são políticos. O próprio de todo político é manter-se no noticiário a qualquer preço. «Falem bem, falem mal, mas falem de mim» ‒ é a divisa de todos eles. Quanto mais aparecerem na telona, na telinha e na telica, melhor será. Político vive de voto, e voto só se recebe quando se é conhecido. Propaganda faz parte do jogo.

Corre no Tribunal Superior Eleitoral processo contra cada um dos dois personagens citados. São acusados de «propaganda eleitoral antecipada». Taí um conceito difícil de delimitar. Político discursa, faz pronunciamento e dá entrevista diariamente. A partir de que ponto a fala se transforma em propaganda eleitoral?

Se já não era fácil responder à pergunta que acabo de fazer, os modernos meios de difusão da palavra e da imagem se encarregaram de baralhar ainda mais as cartas. Vídeos circulam no Youtube falando bem (ou mal) deste ou daquele personagem. Pedem «Lula em 2018» ou «Bolsonaro no Planalto» ou ainda «Juca de Chiquinha para presidente». Propaganda eleitoral antecipada é isso?

A corte eleitoral está embaraçada. Em princípio, candidatos que fizerem campanha antes da hora serão punidos com multa financeira. Mas como multar candidatos se as candidaturas ainda não estão registradas? E se apoiadores lançarem vídeo na rede ‒ sem conhecimento nem autorização do elogiado ‒, como proceder? «Mandar retirar o vídeo», dizem alguns. «Mas isso é censura à livre expressão do pensamento», retrucam outros.

O mundo tem evoluído rapidamente. A lei, como é natural, segue atrás. (Não se pode legislar sobre realidade que ainda não existe.) Estamos diante de fato novo para o qual a legislação não está adequada. Pessoalmente, não vejo problema no fato de um futuro candidato se fazer conhecer por antecipação. Aliás, tudo o que é demais cansa. Propaganda demasiado longa periga deixar o eleitor enjoado.

De qualquer modo, o panorama mudou. Antigamente, para fazer propaganda, o político precisava de muito dinheiro e forte aparelho partidário. Hoje em dia, basta um telefone celular para filmar o discurso feito em casa. Em seguida, é só divulgar pelo Youtube ou por qualquer rede social.

Não dá mais pra segurar. Estou curioso pra ver o que decide o legislador.

O edifício e a maquineta

José Horta Manzano

O portentoso (e modernoso) edifício retratado aqui abaixo, obra do arquiteto Niemeyer, é a sede do TSE ‒ Tribunal Superior Eleitoral. Fica em Brasília. Especificidade brasileira, a instituição está encarregada de organizar e administrar eleições. Em outros países, uma simples comissão subordinada à Justiça comum faz o trabalho. Entre nós, decidimos pensar grande: há todo um aparato nacional para cuidar do assunto. Afinal, somos um país grande e rico, que diabos!

Deixo ao distinto leitor a tarefa de calcular, por alto, quanto nos deve custar o funcionamento da estrutura. Começa com os ministros togados de Brasília e se expande pelas 27 filiais estaduais, também chamadas de tribunais. A manutenção do imponente prédio brasiliense, dos palácios estaduais e de todo o pessoal há de custar os olhos da cara.

Assim mesmo, a julgar pelos eleitos, é dinheiro desperdiçado. Ainda se a pesada e caríssima estrutura produzisse bons frutos, vá lá, ninguém reclamaria. Mas o gasto exorbitante do dinheiro do contribuinte, neste caso preciso, não tem melhorado o nível dos eleitos.

by Constantin Ciosu (1938-), desenhista romeno

Domingo passado, o Amazonas votou para governador. Cassados o titular e o vice, não houve jeito senão convocar novas eleições. Para prestigiar o pleito, doutor Gilmar Mendes visitou a capital do estado no dia do voto. Entre outras declarações, ensinou que a urna eletrônica ‒ da qual tantos desconfiam ‒ é testada a cada eleição.

Devo confessar que desconhecia esse fato. Procurei me interessar. Como é feito o contrôle? Segundo doutor Mendes, escolhe-se aleatoriamente certa quantidade de urnas. Para cada uma delas, será conferido se a totalização corresponde à planilha oficial enviada a Brasília.

Como é que é? Ou entendi mal, ou esse teste não testa. O que se quer saber não é se os mesários transmitiram total falsificado. Só faltava. O que se quer é ter certeza de que a totalização automática da urna, ao final do voto, reflete com fidelidade a escolha dos eleitores. A verificação evocada pelo doutor não garante que o próprio software instalado na maquineta já não venha viciado.

Já disse e repito: os únicos capazes de garantir a lisura da totalização de cada aparelhinho são os que produziram o software. E, naturalmente, seus mandantes. Na falta de prova escrita e tangível, pode-se apenas conjecturar sem poder afirmar. Alguns países democráticos e avançados chegaram a testar a geringonça. Não adotaram. Continuam a votar com a boa velha cédula de papel. «Por algo será» ‒ alguma razão há de haver, como dizem os espanhóis. Sabidos, os latinos também já tinham constatado que «Scripta manent» ‒ o que está escrito permanece.

Frase do dia — 335

«Alguns casais eram anacrônicos(1), outros de passo bem marcado. Dilma Rousseff e Michel Temer, Rosa Weber e Luiz Fux. Mestre Gilmar Mendes puxou o Arraial do TSE, mas ofuscado foi pela grande atuação do protagonista, o sanfoneiro Herman Benjamin. Foi ele quem deu o grito: “Olha a cobra!”. Ao que quatro dos sete juízes responderam: “É mentira!”. Anavantu(2)

Monica de Bolle, economista, em artigo publicado pelo Estadão.

(1) Neste caso, o termo anacrônico foi utilizado em contraposição a sincrônico. A autora quis dizer que dançavam fora do tempo, de maneira desordenada.

(2) Anavantu é ordem dada aos pares que dançam quadrilha junina. É deturpação do original francês «En avant tous!» ‒ todos para a frente!

Pittsburgh e o planeta; Brasília e o Brasil

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há alguns dias, Donald Trump postou-se em frente às câmeras e, como de hábito, inflou o peito de orgulho para anunciar diante de uma plateia embasbacada que os Estados Unidos estavam se retirando do Acordo do Clima de Paris. Sem parecer se dar conta das consequências de seu ato, cometeu simultaneamente um ato falho e ilustrou como raciocinam pacientes psiquiátricos acometidos por um distúrbio em que se toma a parte pelo todo ou o todo pela parte.

Jactando-se de sua capacidade de fazer valer delirantes promessas de campanha, justificou sua decisão afirmando ter sido eleito para representar os eleitores de Pittsburgh e não os de Paris. Parece ainda não lhe ter caído a ficha de que sua inesperada (até para ele mesmo) façanha eleitoral o colocou no centro do palco para representar a totalidade dos cidadãos norte-americanos, não importando na prática se eles são oriundos de Pittsburgh, Nova Iorque ou Baltimore, se de fato votaram nele, nem se acreditam nas evidências de que o aquecimento global é um preocupante fenômeno real ou se apostam, como seu patrono, que tudo não passa de mais um embuste dos chineses.

Na sequência, na ânsia de repisar seu bordão favorito “America First”, atropelou a lógica, passando lépido e fagueiro por cima do fato de que o Acordo de Paris não representa apenas os interesses dos eleitores da capital francesa, mas é um desejo comum manifesto por mais de 190 países signatários. Pateticamente, comportou-se mais uma vez como se tivesse sido não só proclamado presidente, mas coroado imperador do universo, estando exclusivamente em suas mãos o poder de decidir o que é melhor para o futuro do planeta.

Ainda um pouquinho pior, se é que é possível, demonstrou continuar acreditando que aos demais líderes mundiais cabe apenas curvar a cabeça e dobrar-se impotentes a seus decretos. A realidade, felizmente, foi-lhe esfregada na cara poucos minutos depois, a começar pela própria cidade de Pittsburgh.

Essas considerações me ocorrem enquanto eu acompanho o julgamento da chapa vitoriosa em 2014 pelo TSE e reflito sobre os desdobramentos da eterna crise da democracia brasileira. Lá como cá, a questão da representatividade não está clara para aqueles que teoricamente nos representam. É como se todos se sentissem guindados a posições de poder não por livre escolha da população, mas por direito divino ou inteligência superior ao comum dos mortais. Mais grave, permanecem indistintos na mente da esmagadora maioria de nossos homens públicos – e, infelizmente, também de uma parte da população – os conceitos de interesses do Estado e interesses do governo de plantão.

A patológica negação dos limites da realidade domina a cena também em nossos tristes trópicos. Se já não bastassem os parlamentares e integrantes do executivo a ignorar o clamor das ruas, agora são magistrados a admitir, sem qualquer espécie de pudor, que estão a serviço da manutenção da governabilidade e não da faxina ética que a população vem perseguindo.

Retraçar através de uma decisão digna da corte eleitoral os limites jurídicos e constitucionais entre a coisa pública e a privada? Nem pensar. O TSE não se sente imbuído dessa missão. Avisa que não há tempo, nem “clima” para ponderar sobre essas minudências agora.

E lá vai a Pátria Educadora enviando a mesma velha mensagem às futuras gerações: em certas situações emergenciais, mande os escrúpulos às favas e permita-se pequenos desvios de trajeto. Quando o tempo de vacas gordas voltar, haverá tempo e motivação suficientes para dar uma bela limpada no chiqueiro e livrar-se da lama que possa ter respingado aqui e ali.

Como questionaria Mané Garrincha, será que a estratégia de jogo já foi combinada com os adversários, isto é, com a população? Pensando bem, eu diria que, a julgar pelo andar da carruagem, logo estaremos assumindo a liderança mundial no campeonato de implementação de um inovador conceito de filosofia política: a democracia sem povo. Afinal, para que serve o povo?

Já não basta estar assegurado o direito de votar para que o regime continue a ser chamado de democrático? Ora bolas, chega de hipocrisia e de discursos paternalistas inflamados para inglês ver. Está mais do que na hora de nos conscientizarmos de que o povo sempre foi um penduricalho incômodo no organograma nacional desde que a primeira caravela portuguesa aportou em território brasileiro. “O povo não sabe votar”, “o povo é só um detalhe”, lembram-nos continuamente tantos iluminados de nossa história recente.

Sem querer parecer arrogante, tenho um só conselho a dar a todos esses senhores: quando o resultado do jogo for finalmente anunciado, comecem a redigir suas cartas-testamentos, explicando à nação porque foi inevitável abrir mão da honra e da história para cair de vez na vida. Se escolherem as palavras certas, pode ser que alguns clientes ainda se deixem sensibilizar e se mostrem sôfregos para contratar novamente seus serviços de zeladoria.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Dactiloscopia

José Horta Manzano

Volta e meia, fala-se da revolução informática. Não é exagero nem boato: é fato. No campo da informação, o mundo não é mais como antes. E olhe que, quando digo «antes», não falo do tempo de Matusalém. De vinte anos a esta parte, muita coisa mudou. E pensar que estamos no comecinho do começo… Por mais que nos esforcemos, é impossível imaginar em que mundo viverão os bisnetos de nossos bisnetos.

Estes dias, chegou ao Congresso uma petição com 2,2 milhões de assinaturas. Exprime o desejo de boa parcela de cidadãos quanto aos rumos das investigações da Operação Lava a Jato. Não vamos discutir aqui o mérito da questão, mas a forma. Os congressistas, destinatários da petição, alegaram ser impossível conferir esse balaio de assinaturas. Portanto, a legitimidade delas não pode ser confirmada.

impressao-digital-1O acelerado desenvolvimento da informática não deixa passar uma semana sem anunciar aplicações nunca dantes sonhadas, capazes de façanhas do arco-da-velha. Antes, havia a firma manual, restrita a alfabetizados. Faz pouco mais de um século, surgiu a dactiloscopia, o estudo da impressão digital. Até anteontem, eram os únicos instrumentos para identificar pessoas. A par delas, temos hoje uma coleção de opções. Há reconhecimento da íris, das veias da palma da mão, do rosto, da voz. Deus sabe o que aparecerá amanhã.

Num universo em transformação, soa anacrônico ouvir que nossas autoridades não dispõem de sistema capaz de autentificar assinaturas sem intervenção humana. De um lado, está o Superior Tribunal Eleitoral cujo banco de dados reúne o jamegão de todos os eleitores. Do outro, estão dois milhões desses mesmos indivíduos que, ao aderir à petição, se identificaram pela mesma assinatura. Basta comparar, não?

É compreensível que fazer a verificação «a olho» seria tarefa hercúlea. Exigiria meses de trabalho de alentada equipe. Mas as coisas mudaram, minha gente. Nossas autoridades estão com a faca e o queijo na mão. Dispõem do material necessário à comparação, só falta automatizar. Foi-se o tempo em que precisava mostrar atestado de vida. Se ainda não desenvolveram um sistema para resolver o problema, não é difícil adivinhar a razão: não há interesse. Que mais poderia ser?

Manif 26O andar de cima dá mostras de estar incomodado com essa interferência popular na cidadela dos privilegiados. Afinal ‒ pensam eles ‒ povão foi feito para se acomodar ao perverso sistema atual, em que o eleitor vota no candidato A e, sem se dar conta, acaba elegendo um obscuro B.

Eta povão impertinente! Que gente ingrata! A continuar assim, qualquer hora vão acabar exigindo que todos os postulantes exibam ficha limpa antes de se candidatar. Que ousadia! Desse jeito, aonde é que vamos chegar?

Balanço de fim de ano

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Em anos normais, fujo das retrospectivas ‒ que pululam por toda parte ‒ como o diabo foge da cruz. Além daquele gosto azedo de “déjà-vu”, as imagens coladas umas às outras em flashes alucinados, acompanhadas por uma locução empostada e altissonante, só fazem reforçar minha sensação de enjoo, tontura e ressaca, como se eu tivesse passado o ano envolta em desenfreada esbórnia.

Neste ano terrível que periga não se despedir sem novas pitadas de indigestos acontecimentos, manter a televisão, o rádio, o computador, o celular, a internet e as redes sociais inoperantes é decisivamente questão de saúde mental. Ninguém, acredito eu, vai ter estômago nem fígado para digerir a sucessão de eventos trágicos que envenenaram nossos dias por estas bandas, nem aqueles que enlamearam mais uma vez a história da civilização universal.

check-list-1Como já disse muitas vezes, invejo os animais por sua capacidade de viver apenas no presente. O passado, idealmente, deveria estar a serviço de nosso aprendizado, desvelando a estupidez das escolhas erradas que fizemos e iluminando nossa capacidade de nos desviarmos dos buracos e becos sem saída. Infelizmente, não é assim. A montanha-russa de imagens e sons recortados acaba inexoravelmente por reativar mágoas e ressentimentos que julgávamos adormecidos, ajudando a cavar ainda mais fundo o fosso que separa os que acreditam ter se posicionado do lado certo da história e os que se deixaram iludir por apostas temerárias.

Não quero jogar mais gasolina nesse incêndio, mas não posso me furtar a apontar uma assustadora analogia entre as decisões que tivemos de tomar no plano econômico, político e social ao longo do ano e o trágico acidente aéreo que vitimou a equipe de Chapecó. Acompanhem comigo as coincidências e vejam se não tenho razão.

Os dirigentes do time vice-campeão da Copa Brasil precisavam contratar uma companhia aérea para nos levar até o destino com que sonhávamos há muitas gerações. Tinham uma importante final de campeonato de ética e capacidade de gestão pela frente e sentiam que já estavam preparados para garantir o cumprimento das regras pelos jogadores e técnicos. Ainda que de modo titubeante, recrutaram analistas e consultores especializados para pesquisar os antecedentes e os critérios de qualidade adotados pelas empresas interessadas na licitação. Estes entregaram seus relatórios, aconselhando que o contrato fosse fechado com a empresa que demonstrasse possuir os recursos técnicos mais avançados e a equipe mais idônea e mais comprometida com o bem-estar dos passageiros. Entretanto, depois de muito ponderarem, os dirigentes, ainda assustados com as perspectivas sombrias de prolongamento da crise financeira do clube, acabaram optando pela companhia que propôs o custo mais baixo.

Estadio 1Embora pequena, essa empresa já havia lhes prestado serviços minimamente satisfatórios em ocasiões anteriores. Se o nível de conforto e segurança que ela propunha não podia ser descrito exatamente como o ideal, ao menos eles encontravam consolo no fato de que o piloto escolhido para comandar o voo já conhecia a região e estava familiarizado com as carências e desejos dos passageiros.

O avião praticamente lotado com nossas esperanças de um futuro melhor estava na cabeceira da pista, pronto para decolar, mas faltava aguardar a autorização do controle aeronáutico. O despachante da companhia vencedora havia entregado o plano de voo no último minuto e algumas irregularidades na documentação haviam sido constatadas. Os órgãos responsáveis pela autorização da decolagem (TCU, TSE e STF) alertaram que não havia combustível de reserva para chegar com segurança ao destino caso houvesse alguma emergência. O despachante deu de ombros ao alerta e respondeu com certa empáfia: “Faremos o trajeto em tempo menor, não se preocupem”.

Intimidados diante do histórico de aprovação automática dos planos de voo em todas as administrações anteriores, os órgãos controladores limitaram-se a assinar, com ressalvas, a autorização. O avião decolou. Tudo correu como previsto nos primeiros minutos, mas, logo depois de a aeronave ter estabilizado e entrado em velocidade de cruzeiro, pequenos sinais de alerta de mau funcionamento começaram a surgir por todos os lados. O espaço exíguo entre as poltronas, o forte ruído interno, o precário serviço de bordo e a desatenção da equipe de comissários para com as necessidades especiais de alguns passageiros somaram-se à turbulência típica do trajeto e detonaram um clima generalizado de insatisfação.

Havia uma escala prevista para reabastecimento (convocação de eleição direta), mas o piloto – que também era um dos sócios-proprietários da companhia – optou por não fazê-la. Sabia que a margem de lucro da empresa seria seriamente comprometida se tivesse de pagar por mais combustível e confiava cegamente em sua própria capacidade de encurtar o tempo de viagem. Acreditava também que bastaria conceder algumas benesses aqui e ali, distribuir sorrisos e se mostrar simpático para que os passageiros mais exaltados se aquietassem.

aviao-17A poucas milhas do destino, no entanto, percebeu que os tanques da aeronave estavam praticamente esgotados. Relutantemente, acionou a torre de controle e pediu prioridade para pouso, sem informar com exatidão qual era a emergência a bordo (aprovação da PEC do Teto e Reforma da Previdência). Foi informado de que já havia outra aeronave nessa condição (dívida dos Estados). Foi orientado a dar voltas até que a outra pousasse.

Um tanto temeroso, mas ainda confiante de chegar com segurança ao destino, uma vez que já havia enfrentado situações de risco semelhantes, o piloto permaneceu em silêncio por mais alguns minutos. Aos poucos, a aeronave foi perdendo altitude e se aproximando perigosamente do cume das montanhas da região. Angustiado, o piloto deu-se por parcialmente vencido. Sem usar o código internacional obrigatório que poderia colocá-lo imediatamente em terra firme, gastou, tresloucado, os poucos segundos de que dispunha para admitir que enfrentava pane elétrica total causada pela falta de combustível (crise ética e decorrente falta de credibilidade da tripulação) e solicitar que lhe fossem informados os vetores para o pouso. Infelizmente, era tarde demais. O choque com a montanha Lava a Jato foi inescapável.

O que pretendo demonstrar com essa analogia? Será que a retrospectiva de 2016 pode ser resumida como crônica de uma morte anunciada? Não, ainda não. Anime-se, foram encontrados sobreviventes! Cerca de 10% dos passageiros escaparam da morte e já se preparam para voltar a campo.

Feliz 2017 para todos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Frase do dia — 297

«O relato do ex-presidente da Andrade Gutierrez aos investigadores – ao qual deu fé o STF – torna quase inexorável a condenação no Tribunal Superior Eleitoral da chapa de 2014. Trata-se de um caso de batom no colarinho. Branco, não estivesse ele maculado por malfeitorias em série.»

Dora Kramer, em sua coluna do Estadão, 8 abr 2016.

De horas e de horários

José Horta Manzano

Hoje mudamos de hora aqui na Europa. A hora que nos tinham surrupiado em março nos foi devolvida, e o sol volta a aparecer mais cedo, quando aparece. Em compensação, a noite chega rápido.

Faz trinta anos que é assim a cada ano. No último domingo de março se adiantam os relógios em uma hora. Volta-se atrás no último domingo de outubro. Nem todo o mundo aprecia, mas o jeito é resignar-se.

Agricultores e criadores são os que mais resmungam. Dizem que vacas, que não costumam usar relógio, ignoram invencionices humanas. Têm de ser ordenhadas todos os dias à mesma hora.

Hora legal na Europa

Hora legal na Europa

Por aqui, todos os países adotam a alternância de hora entre verão e inverno. As «fronteiras» criadas pelos fusos horários permanecem o ano todo. Espanha e Portugal, por exemplo, estão sempre separados por uma hora, no frio e no calor.

No Brasil, é um pouco mais complicado. Por razões geográficas, mudar de hora não faria sentido nas regiões próximas ao equador. Pra dizer a verdade, tampouco faz muito sentido no sul do País. A economia de energia gerada há de ser mínima.

Não sei por que, no Brasil, a hora legal muda à meia-noite. Qualquer estudo demonstrará que as horas em que o movimento é mais baixo se situam entre as 2 e as 4 da manhã. Europeus e americanos determinaram que a mudança se faça no meio da madrugada. À meia-noite atrapalha muita gente.

Interligne 18h

Vou aproveitar que estamos falamos de hora pra falar de horário. Hoje é dia de votar. No momento em que escrevo, as primeiras urnas estão sendo destrancadas, no Brasil, para votantes matinais. Daqui a três horas, serão destravadas as últimas, no Acre e no extremo oeste do Amazonas.

Brasileiros inscritos no Japão, na Austrália, na Nova Zelândia já votaram. As urnas foram totalizadas, e os resultados já estão em Brasília. Assim que der 17 horas no Acre – 20 horas em Brasília – os primeiros resultados começarão a ser publicados. É normal, visto que todos os eleitores terão exprimido seu voto, correto?

Não, distinto leitor, não é exatamente assim. Temos aí uma intrigante anomalia. Mais de 16 mil eleitores, inscritos em Los Ángeles, San Francisco e Vancouver, ainda disporão de duas horas para emitir seu voto. Em tempos de internet e de informação instantânea, esses privilegiados vão poder votar já sabendo a quantas anda a apuração.

Esquisito? Bota esquisito nisso! São poucos eleitores, concedo, mas, por questão de princípio, a ninguém deveria ser permitido votar uma vez que resultados parciais já tiverem sido anunciados.

Fusos horários no planeta Los Ángeles, S. Francisco & Vancouver estão no fuso U

Fusos horários no planeta
Los Ángeles, S. Francisco & Vancouver estão no fuso U

Imagine um cenário de eleição apertada, em que a vitória seja disputada voto a voto. Como é que fica? O futuro do Brasil seria refém da decisão de um punhado de eleitores!

É inacreditável que o TSE não se tenha até hoje dado conta dessa aberração. O mais provável é que sim, se tenham dado conta, mas que tenham julgado que, num País habituado a tolerar imperfeições, um malfeito a mais ou a menos não faria diferença. Para mim, faz.

Qual é a solução? Há mais de uma à disposição. A Itália adota o voto por correspondência. O cidadão pode votar durante todo o mês que precede o dia da eleição. Seu voto permanece sob custódia das autoridades competentes até o dia da apuração.

A solução francesa vai por outro caminho. Os franceses do estrangeiro – assim como os residentes em territórios onde o fuso horário é mais atrasado que na metrópole – votam de véspera. Em vez de fazê-lo no domingo, dirigem-se às urnas no sábado.

Pronto. Soluções, há. Basta confiar a responsabilidade de encontrá-las a gente capacitada e de boa vontade. Dizem que esse tipo de gente é mercadoria escassa atualmente.

O feitiço e o feiticeiro

José Horta Manzano

É público e notório que José Antonio Dias Toffoli, ministro do STF e atual presidente do TSE–Tribunal Superior Eleitoral, passou anos a serviço da CUT e do PT. Quando foi nomeado membro vitalício da suprema corte de justiça do País, nenhuma grita popular se alevantou, num sinal evidente de que a promiscuidade entre o público e o privado não incomoda ninguém.

JustiçaAto legal é uma coisa. Ato ético é outra. O que é legal não é necessariamente ético. São casos como o da nomeação do ministro Toffoli que revelam flagrante diferença entre o Brasil e terras mais civilizadas. Em outras plagas, nenhum cidadão aceitaria nomeação de figurão sobre o qual pesasse suspeita de conflito de interesses.

Um personagem como Dias Toffoli poderia até obter a chefia de um ministério, que esse é cargo de confiança. Jamais se admitiria, porém, que entrasse para o topo da magistratura. A Justiça deve, por definição, ser distribuída de forma neutra e isenta. Há razões suficientes para pressentir que decisões políticas desse ministro possam favorecer seus companheiros de tantas jornadas.

Irremediavelmente, o que está feito, está feito. Caso o homem não se resolva a ir embora antes, tem direito a permanecer no cargo pelos próximos 23 anos, até 2037.

Interligne 18b

Nas campanhas de 2006 e de 2010, já vigorava o aberrante dispositivo do horário eleitoral (dito) gratuito. Eram tempos em que a oposição ao governo central andava encorujadinha, envergonhada. Só os que já ocupavam o poder desferiam ataques virulentos. Os postulantes só faziam se defender. Desajeitadamente, diga-se.

Desta vez, mormente no intervalo entre o primeiro e o segundo turno, a paisagem mudou. Uma revigorada oposição tem revidado à altura. Não era o que o Planalto esperava. O fato novo exige resposta imediata e certeira.

O TSE já andou mexendo os pauzinhos para pôr fim a esse incômodo. Onde já se viu oposição que ousa contestar – em público! – o governo instalado? Só faltava essa…

Não se sabe se por iniciativa própria ou inspirado em algum conselho marqueteiro, o ministro Toffoli fez saber que os princípios que regem a propaganda eleitoral dita gratuita têm de ser revistos. O magistrado preconiza maior controle da matéria levada ao ar.

Vento

Por minha parte, não concordo com essa visão que nos faz voltar aos tempos da censura prévia. Melhor será fixar as regras do jogo e, em seguida, soltar os gladiadores na arena. Aquele que infringir o regulamento passará por julgamento imediato e terá, como pena, diminuição de seu tempo de propaganda. Garanto-lhes que dói muito mais que pena pecuniária.

Mas não sou eu a fazer a lei. Portanto, teremos de nos conformar com o que for decidido. Mas tem uma coisa: o ministro Toffoli e as correntes que lhe são simpáticas podem estar jogando jogo perigoso. Explico.

O PT e a nebulosa que o envolve detém hoje as rédeas do poder. Sendo assim, a oposição será a grande perdedora em caso de cerceamento do conteúdo do horário gratuito. Essa propaganda é o único meio de que a oposição dispõe para projetar-se em escala nacional. À situação, ainda sobrará o fato de estarem governando o país – um confortável e fabuloso palanque. A proposição do ministro é astuciosa.

Mas… e se – numa hipótese arrojada, naturalmente – a oposição vencer a eleição e se instalar no Planalto? Os papéis se inverterão, não? O feitiço pode virar contra o feiticeiro.

Petistas, governistas & simpatizantes em geral deveriam sempre trazer em mente que os ventos costumam mudar de direção sem pedir licença a ninguém.

De mentirinha

José Horta Manzano

Como ocorreu nas demais unidades federadas, o eleitorado maranhense votou, domingo passado, para escolher novo governador. Ganhou um certo senhor Flávio Dino de Castro e Costa, sorridente advogado de 46 anos. E ganhou bem: abocanhou 63% dos votos válidos. Foi aclamado por dois em cada três eleitores.

Até aí, morreu o Neves. Que ninguém veja aqui alusão ao candidato à presidência da República. Estou usando expressão bem-educada para substituir o grosseiro «e daí?».

Lenin 2A mídia toda deu destaque ao fato de o novo governador ter desbancado o clã Sarney, que dominava e assombrava a governança estadual havia quarenta anos. Mandou pra aposentadoria o capo e tutta la famiglia. Bravo!

Em meio aos festejos, poucos prestaram atenção ao partido ao qual o recém-eleito é afiliado. Afinal, na algaravia das 32 legendas(!) registradas no TSE, não há cristão que ache seu caminho. Pois o moço é membro do… PC do B – o Partido Comunista do Brasil.

Tive a curiosidade de dar uma espiada nos estatutos do PC do B. Ele prega a «luta contra a exploração e opressão capitalista e imperialista». Vai mais longe: «[o partido] tem como objetivo superior o comunismo». Os estatutos nomeiam e louvam Marx, Engels e Lênin. E se propõem chegar ao comunismo através de um primeiro estágio – o «socialismo científico» – seja lá o que isso signifique. Está tudo preto no branco, pode conferir.

O novo governador é bem-nascido. Advogado, filho de advogados, já foi juiz federal durante 12 anos. Entrou na política relativamente tarde, quando já tinha 38 anos de idade. Sua ascensão foi rápida.

Eleito, seu discurso de vitória incluiu banalidades como «enfrentar a corrupção», «fazer um governo bom, simples, com os pés no chão», «tirar nosso Estado das páginas policiais». Declarações que cairiam bem na boca de qualquer político.

Longe de mim acusar esse senhor de falsidade ideológica. Mas custa crer que, no Brasil, em pleno século XXI, um homem maduro, aparentemente instruído, formado e experiente ainda possa comungar na cartilha comunista. Alguma coisa está fora de lugar.

Reuniao trabalho 1Fica no ar a impressão de divórcio consumado entre estatuto de partido e motivação de afiliado. O Partido Comunista não é necessariamente composto por comunistas. A recíproca é verdadeira: os comunistas – se é que sobrou algum – não estão necessariamente afiliados ao Partidão.

Partido político, hoje em dia, está mais pra balcão de negócios do que para caldeirão ideológico. São clubes de mentirinha.

Voto nulo funciona?

Rainer Sousa (*)

Você sabia?

Em nosso regime democrático, vários partidos políticos oferecem candidatos a cada disputa eleitoral. Em contrapartida, cabe aos cidadãos avaliar e escolher os mais afinados com seus interesses e anseios. Considerando a grande variedade de opções, chegamos à conclusão de que vivemos num regime político de amplas liberdades, onde o cidadão tem direito a todo tipo de discurso e de proposta.

urna 4Contudo, quando percebemos quanto é grave o problema da corrupção entre nossos representantes, acabamos por enfrentar séria questão. Que sentido faz, afinal, perder tempo avaliando e escolhendo um candidato que, cedo ou tarde, será denunciado pela participação nalgum esquema de corrupção ou de desvio de verba pública? É justamente por causa desse questionamento que vários eleitores acabam optando pelo voto nulo.

Ultimamente, boatos insinuaram que o voto nulo seria capaz de invalidar todo o processo eleitoral. Caso mais da metade dos votos fossem nulos, novo processo eleitoral deveria ser organizado. A hipótese se assenta no artigo 224 do Código Eleitoral, que diz que “se a nulidade atingir mais da metade dos votos do país nas eleições, (…) o Tribunal marcará nova eleição dentro do prazo de 20 a 40 dias”.

Para muitos, esse artigo faz que o voto nulo se transforme não só em arma de protesto, mas também em forma de alterar o cenário eleitoral. Entretanto, segundo recente interpretação do TSE, essa nulidade só invalida as eleições quando os votos são anulados por alguma fraude que determine sua desconsideração. Portanto, se mais de cinquenta por cento dos votos dos cidadãos forem nulos, prevalecerá a escolha daqueles que votaram em algum candidato. E não se discute.

Voto de cabresto

Voto de cabresto

Dessa forma, quando um cidadão vota nulo, acaba abrindo brecha para que um candidato ruim acabe vencendo a eleição ― com necessidade de número de votos até menor. Pensando bem, mais vale depositar confiança em legenda ou em candidato parcialmente satisfatório a facilitar a vida de algum perfil questionável. Ao fim das contas, a opção pelo voto nulo acaba denotando passividade diante do cenário político.

Há os que votam nulo por razões de ordem ideológica. Os anarquistas, por exemplo: costumam anular o voto por não reconhecerem a necessidade de autoridades nem de políticos para reger a vida da sociedade. Ao dilapidar o voto, expressam repúdio ― de princípio ― ao Estado, a leis, a governantes. Assinalam total falta de interesse pelas propostas, sejam elas quais forem.

Quer estejam certos, quer estejam errados, os anarquistas demonstram uma das facetas de nossa democracia: o direito de não escolher e de se submeter, sem lutar, à escolha de outrem.

(*) Rainer Sousa é diplomado em História.