Recadinho a Sua Excelência

José Horta Manzano

Prezado Ministro,

Vossa Excelência, ministro Gilmar Mendes, é graduado em Direito pela Universidade de Brasília, além de mestre e doutor pela Universidade de Münster, na Alemanha. Adicione-se a isso a prática adquirida em 35 anos de atividade, dos quais 20 como ministro do STF. Parabéns por ser um dos sobreviventes do tempo em que se escolhia um ministro do STF por seu notório saber jurídico.

Sua tendência a dar pronunciamentos e conceder entrevistas aqui e ali fazem parte do jogo – é assim que arde a fogueira das vaidades. Cidadãos mais recatados podem até se avexar com tal comportamento. Porém, no fundo, que fazer? Na Igreja, é pecado, mas no século passa batido.

Contudo (reparou que tem sempre um mas, um porém, um todavia, um contudo para atrapalhar?). Uma coisa é afagar o próprio ego; outra, bem diferente, é pronunciar-se fora dos autos. Até réu primário, como se vê em filme policial, sabe disso: “só falo na presença de meu advogado”. É que ele entende que palavra lançada ao ar é irrecuperável, não há como voltar atrás. Antes de abrir a boca, máxima prudência é exigida de todo cidadão, em qualquer circunstância.

Contudo, dizia eu, apesar de sua vasta bagagem jurídica, Vossa Excelência declara em praça pública ter convicção formada sobre a culpabilidade de um réu que, muito provavelmente, virá um dia a ser julgado no STF. Isso é um contrassenso. Sergio Moro, ex-Lava a Jato, caiu em desgraça, entre outras escorregadas, por não ter sido imparcial. Vossa Excelência está entrando pelo mesmo túnel. Como vai sair dele?

Um juiz que dá seu parecer antes mesmo do início do processo não está apto a julgar. Se o caso subir até o STF, Vossa Excelência terá de se declarar impedido. Se não se declarar, como é que fica? Teremos de conviver com um Supremo avacalhado, uma casa em que juízes julgam por antecipação, como os esbirros de Putin?

Permita-me a impertinência, ministro. Ouso dizer-lhe que um pouco de recato lhe faria bem. E ao Brasil também.

Saudações de ano novo!

Imagem roubada

José Horta Manzano

Uma imagem roubada da tela do celular do senador Sergio Moro foi estampada na manchete de toda a mídia. A foto, tirada durante a sabatina de Flávio Dino, eterniza uma conversa entre Moro e um correpondente misterioso identificado como “Mestrão”. (De lá pra cá, já foi identificado, mas não vem ao caso.)

Moro acabava de dar um abraço em Dino diante das câmeras que transmitiam ao vivo. Logo depois, “Mestrão” envia mensagem a Moro para prevenir que “o coro está comendo nas redes” e que não convém publicar declaração de voto a favor do sabatinado, sob pena de espichar o assunto e perder o controle da situação. Foi nessa altura que a foto foi tirada.

Os dois devem se conhecer bem, dado que “Mestrão” chama o senador pelo prenome e o trata por ‘você’. Um detalhe: “Mestrão” põe vírgula depois do vocativo, mostrando que pelo menos completou o ensino médio.

Dia seguinte, diversos articulistas da grande mídia comentaram o ocorrido. “Quem será o Mestrão?” – indaga um deles. “Veja só, o que as redes mandam, Moro faz” – se surpreende um outro. O que cresceu foi a fofoca. Me lembrou os mexericos da Candinha.

Não me lembro de ter visto nenhum articulista preocupado com a licitude da imagem. Tirar uma foto por cima dos ombros de alguém, captar um trecho de conversação particular e espalhar a imagem me parece configurar um ilícito. No mínimo, é violação de correspondência. É como abrir (e ler) a carta do vizinho. (Hoje já ninguém manda carta, mas o princípio continua de pé.)

Quem agiu assim fez exatamente o que se acusa Moro de ter feito: escarafunchar a intimidade de seus investigados para melhor acusá-los.

Não sou fã de Sergio Moro, personagem pouco recomendável a meu ver. Mas uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa.

Neste caso, é outra coisa.

Vou ficar bem quando f**** com o Moro

José Horta Manzano

Logo de entrada, vamos relevar o palavreado de botequim (em linguagem moderna: passar pano). No passado, o Lula costumava escorregar de vez em quando, mas Bolsonaro elevou o calão à categoria de linguajar oficial do Planalto.

A pérola que o Estadão destaca na chamada reproduzida acima foi solta pelo presidente em extensa entrevista concedida à TV Brasil 247, rodada em pleno Palácio do Planalto.

As tristezas e as mágoas que persistem no coração do presidente são legítimas. O ressentimento que ele guarda contra o juiz que o condenou é compreensível. O Lula tem direito de desabafar com família e amigos. Já falar disso ao grande público é outra coisa.

Quando o presidente revela a todos os brasileiros a sede de vingança que lhe rói a alma, comete uma imprudência e dá um tiro no pé. Sem obter vantagem nenhuma.

A imprudência é a ameaça velada externada contra um hoje senador da República. Não sei que tipo de ameaça se esconde por trás do termo f****, mas coisa boa não é. Se amanhã algo feio acontecer com Moro, muitos olhares hão de se voltar contra Lula.

O tiro no pé é mais grave. Logo no discurso de vitória proferido na noite do segundo turno, Lula prometeu governar para todos os brasileiros (os que votaram nele e os demais) e que era hora de restabelecer a “paz entre os divergentes”. Agora, ao revelar publicamente que carrega um desejo de vingança tão entranhado, o presidente contradiz o lindo pronunciamento inicial e mostra que tudo não passava de palavras vazias escritas por algum discurseiro a soldo.

Ao fim e ao cabo, Lula:

  • mostra uma incômoda proximidade com o antigo presidente, aquela verborragia pesada que muitos gostariam de esquecer;
  • traz de volta o nós x eles, ao alargar o fosso entre dois campos políticos;
  • revela uma faceta inquietante de sua personalidade: tem espírito vingativo.

Além de tudo, Lula perde mais do que ganha. Se a eleição fosse hoje, uma fala desastrada como essa poderia fazê-lo perder sua estreita margem de votos e entregar a vitória ao adversário.

A eleição não é hoje, mas a impressão de ser um presidente rancoroso fica.

Farinha do mesmo saco?

José Horta Manzano

Os candidatos que neste momento ocupam os quatro primeiros lugares na corrida presidencial têm um currículo(*) interessante.

Lula da Silva
Foi presidente e também presidiário.

Jair Bolsonaro
É presidente com boa probabilidade de tornar-se presidiário assim que descer a rampa.

Ciro Gomes
Foi ministro do Lula, aquele que foi presidente e presidiário.

Sergio Moro
Foi ministro de Bolsonaro, aquele que é presidente e tem risco de se tornar presidiário.

Como se vê, a escolha parece ampla, mas não nos tira do círculo vicioso no qual rodopiamos há duas décadas. Nosso mundinho político exala mau cheiro.

(*) Tem casos em que, em vez de currículo, o termo mais adequado seria prontuário.

O próximo presidente

José Horta Manzano


Pra ser muito sincero, não acredito que doutor Sergio Moro venha a ser o próximo presidente do Brasil.


Isso não significa que este blogueiro tenha uma quedinha por Bolsonaro ou pelo Lula. Meus fiéis leitores sabem que a verdade não é bem essa. Acredito – e principalmente espero! – que o próximo chefe de nosso Executivo não venha a ser nenhum dos três: nem Moro, nem Bolsonaro, nem o Lula.

Eliminados os três, me parece que aumentam as chances de termos um próximo presidente razoável. Nem peço nem que seja excelente; razoável já estaria de bom tamanho.

Bolsonaro dispensa apresentações: é esse estropício que está aí. Ele não deixa passar um dia sem nos lembrar quem é, de onde veio, quem são seus acumpliciados, como age, quais são suas intenções, de que estofo é feito. O homem é transparente, cristalino. Não só parece mau, é mau. Não só parece primitivo, é primitivo. Não só parece rasteiro, é rasteiro. Não só parece falto de inteligência, é falto de inteligência.

O Lula, bom, desse então, nem precisa falar. Mas não custa lembrar, que há sempre gente desmemoriada. Além de “aparelhar” toda a administração do Estado brasileiro com seus cupinchas, permitiu (chefiou?) a instalação da maior corrupção sistêmica já vista num Estado que se imagina democrático. Se sofremos hoje o castigo de ter um Bolsonaro segurando as rédeas do país, agradeça-se ao Lula. Sem a roubalheira, os excessos e os escândalos do primeiro, não haveria o segundo.

De Sergio Moro, não se conhece muito. Mas o que se sabe já é suficiente para colar-lhe algumas etiquetas. Sabe-se que é obstinado e que não hesita em lançar mão de procedimentos “quase legais” a fim de alcançar seus propósitos. Sabe-se que apoiou o capitão e que seu ardor pelo personagem foi tão grande, que o fez abandonar a magistratura para seguir o chefe. Sabe-se que, no espectro político, suas posições estão à direita da direita. Exagerando um pouco, eu diria que Moro é um Bolsonaro que não fala palavrão.

Acho muito difícil Sergio Moro chegar ao segundo turno. Se, por surpresa, chegasse lá, suas chances de vencer não seriam enormes.

Se Moro tiver de enfrentar o Lula, vai pular um cortado. Por um lado, Lula conta com um capital de eleitores cativos; por outro, duvido que os devotos do capitão, desamparados, deem uma mão a Moro, votando naquele que eles consideram “traidor” da causa. Nesta configuração, nosso guia conserva todas as suas chances.

Se Moro tiver de enfrentar o Bolsonaro, vai ser pior ainda. Alguém imagina um simpatizante do Lula votar naquele que, quando juiz, mandou o demiurgo para a cadeia? Portanto, subtraindo os votos do eleitorado simpático ao Lula e os votos dos que desconfiam de Moro, não há de sobrar grande coisa para o ex-magistrado. Nesta configuração, quem conserva todas as chances é o capitão.

Vamos torcer para sobressair logo um nome que encarne uma verdadeira terceira via. Essa que o ex-juiz representa está mais pra beco sem saída. Sem calçamento e sem iluminação.

Tuíte – 9

José Horta Manzano

Sergio Moro acaba de dar demissão ao vivo. Durante os 16 meses em que esteve à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, engoliu cobras, lagartos, sapos e pernilongos. Foi humilhado dezenas de vezes pelo capitão. Dizia-se à boca pequena que ele estava apequenado, que se agarrava ao emprego.

De repente, caiu a gota d’água, aquela que fez transbordar o pote até aqui de mágoa. Entornou tudo, até a última gota. O ex-magistrado disse, com todas as letras, que saía porque doutor Bolsonaro não havia cumprido a palavra dada.

Pegou mal pra caramba, talquei? Que o doutor fosse homem em quem não se deve confiar, todos já sabiam. Mas ele nunca havia sido malhado dessa maneira, em praça pública, em rede nacional, por personagem tão admirado pela população.

Agora todos ficaram sabendo por que o doutor quis trocar o chefe da PF: a fim de proteger a si e aos filhos de perigosa proximidade com a Justiça, prefere dar o cargo a um amigo.

Mas a hora do acerto de contas vai chegar um dia. E esse dia pode estar mais próximo do que imagina o capitão. Quem tem rabo preso, não adianta fugir – tudo acaba aparecendo.

Tuíte – 5

José Horta Manzano

Faz um ano, Sergio Moro e Paulo Guedes surgiam como superministros intocáveis. “Se sair o Moro, o governo acaba”, “Se faltar o Guedes, o governo desanda” – era o que se ouvia. O tempo levou as ilusões de cambulhada. Um desconhecido Mandetta, que havia arrancado na moita, cresceu, correu rápido e ultrapassou os dois “super”. Tanto brilhou que ofuscou o chefe e recebeu bilhete azul; mas saiu pela grande porta, conhecido e admirado. Já os superministros, ai, ai, ai. De tanto dizer amém, se rebaixaram e perderam sustança. Não fazem mais jus ao epíteto de “super”.

O adversário maior

José Horta Manzano

Ainda é muito cedo pra pensar na próxima eleição presidencial. Até lá, muita água ainda há de passar pelo Amazonas e, espera-se, também pelo canal de repartição do São Francisco. Ainda assim, se nenhuma catástrofe ocorrer no meio do caminho, o maior adversário de doutor Bolsonaro para a reeleição chama-se Sergio Moro.

Recente pesquisa de opinião do instituto Datafolha constata que a popularidade do ex-juiz é inabalável. Nada parece capaz de derrubá-lo. As revelações sobre conversas inadequadas não degradaram sua imagem. A fritura intermitente a que é submetido pelo presidente tampouco arranhou o elevado conceito em que os brasileiros o têm. Imperial, Moro continua lá no topo. Em matéria de simpatia, deixa o presidente comendo poeira: sua popularidade estacionou 25 pontos à frente da do chefe.

by Gilmar de Oliveira Fraga (1968-), desenhista gaúcho

Bolsonaro está numa sinuca cabeluda. Se conservar Moro no cargo de ministro, estará garantindo fabulosa vitrine ao ex-juiz que, humilhado ou não, continuará no noticiário. Se o demitir, perderá apoiadores e será apupado pelos brasileiros, que enxergam no ex-magistrado caçador de corruptos o garante da lisura da Presidência. Manter Moro na fritura não adianta nada, que sua popularidade parece blindada.

Doutor Bolsonaro só tem uma maneira de afastar Moro do caminho. (Eu até nem deveria dizer estas coisas aqui. Não acredito que o presidente seja leitor do blogue, mas… nunca se sabe.) O único jeito de neutralizar a ameaça é nomear Moro para o STF. Em 2020, uma vaga vai surgir. Que Bolsonaro aproveite a ocasião e esqueça essa bobagem de indicar ministro «terrivelmente evangélico». Dê a cadeira ao ex-juiz.

Se fizer isso, auferirá vantagem múltipla. Contentará a todos os que simpatizam com Moro. Não ferirá a imagem de probidade do Executivo. Asfaltará o caminho que o pode levar à reeleição. E terá, no STF, um integrante que lhe deve favores – o que pode ser uma mão na roda para quando ele deixar a presidência e começarem a surgir os inevitáveis processos.

Avaliando o avaliador

Ruy Castro (*)

Até outro dia, sapateiros eram sapateiros, mecânicos eram mecânicos, cientistas eram cientistas. Um mecânico não ia além da sola, um cientista não trocava rebimbocas e um sapateiro não dividia o átomo. Um advogado não se passava por médico, um químico não dava uma de padre e um jogador de futebol não escrevia “Hamlet”. E nenhum deles precisava aprender o ofício de um engenheiro eletrônico. Hoje, todo mundo precisa ser engenheiro eletrônico.

Dei-me conta disso quando ouvi falar que o Telegram de Sergio Moro e Deltan Dallagnol tinha sido invadido e pessoas estavam lendo suas mensagens. Logo imaginei um espião embuçado abrindo os telegramas entre os dois, talvez aproximando-os do vapor para derreter a cola, copiando seus conteúdos e os lambendo para colar de novo. E até me espantei de alguém ainda se comunicar por telegramas. Para minha surpresa, fui informado de que o Telegram era um “serviço de mensagens instantâneas criptografadas fim a fim no modo client-to-client ou client-to-server, baseadas na nuvem”.

Eu disse “Ah, bom!” e, vexado por minha ignorância, perguntei como acontecera. Responderam-me que uma invasão dessas se dá quando o usuário é induzido a fazer um reset de senhas e recebe um arquivo Office ou um app comprometido.

Assustado, quis saber como evitar isto e me disseram que, ao baixar um app, é preciso ativar o aplicativo dentro desta página da web após avaliar a descrição do aplicativo associado à nota de avaliação e considerar a quantidade de downloads efetivos e os comentários dados por estes usuários. Simples.

Ou seja, o cidadão comum está sendo obrigado a achar soluções para problemas que não criou, é isso? Estou fora. Nos últimos cem anos, tenho ganhado a vida lendo, fazendo perguntas e escrevendo. Se, em breve, isso não bastar, vou para a lavoura, feliz da vida.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Saidinha

José Horta Manzano

Todos se lembram daquele sujeito que, em 2008, com a cumplicidade da namorada, atirou a filha de cinco anos pela janela de um sexto andar. A menina morreu. O indivíduo foi preso, julgado e condenado a passar 30 anos à sombra. O caso provocou comoção nacional. O trauma foi tão pesado, que ninguém se esqueceu até hoje. Estivéssemos em outros tempos, o casal teria sido linchado.

Onze anos se passaram. Preso bem comportado tem o privilégio de ser solto por algumas horas ou alguns dias, em ocasiões especiais. Natal, Dia das Mães, Dia dos Pais, por exemplo. Chegou o Dia dos Pais. O condenado pelo filicídio de 2008 tem-se comportado bem. Portanto, em princípio, tem direito a uma ‘saidinha’.

Doutor Moro, ministro da Justiça, indignou-se com o fato. (Ele não é o único a se sentir revoltado.) Soltou um tuíte amargo em que fustiga a possibilidade de o assassino do próprio pai ou do próprio filho ter direito a tirar férias da prisão justo no dia dedicado ao amor entre genitor e cria. Diz o ministro que a lei tem de ser mudada.

Compreendo o raciocínio legalista de doutor Moro, mas acredito que o Brasil esteja precisando se sacudir um pouco, se desempoeirar, se livrar dessas amarras cartoriais. Anda faltando discernimento. Se a lei faculta a saída de presos em determinadas ocasiões, essa soltura não é automática. Tem de ser autorizada e avalizada pelo juiz encarregado das liberdades. Cabe a ele barrar anomalias como soltar parricidas, matricidas ou filicidas em feriados que festejam a família. Não precisa mudar lei nenhuma.

As leis são entrelaçadas e se acavalam umas sobre as outras. Tome o direito de voto, por exemplo. É concedido a todo cidadão adulto. Mas não é direito absoluto e irrestrito. Se um indivíduo tentar exercê-lo vestindo roupa inadequada – de calção de banho e sem camisa, por exemplo –, poderá ser barrado. Há situações em que uma lei ou um simples regulamento atravanca e bloqueia outra lei.

É o entendimento que deve vigorar no caso que tratamos hoje. Prisioneiro que matou membro da família não deve ser beneficiado com suspensão de pena em data que festeja a família. Não faz sentido. É um acinte ao espírito de nossa sociedade. A lei permite, mas não torna obrigatória a ‘saidinha’. A última palavra será sempre da autoridade que assina o alvará de soltura provisória.

Não há que exigir leis novas a cada tropeço da sociedade. Um pouco de bom senso, nessas horas, facilita as coisas e faz milagres.

Loop, segundo tempo

Eduardo Affonso (*)

Com o empate no tempo regulamentar e na prorrogação, o jogo entre Lula F.C. e o Clube de Regatas L.J. vai para a disputa nos pênaltis.

O goleiro Sérgio Fernando, titular absoluto da L.J. se posiciona. Quem vai bater é Cristiano.

Lá vem Cristiano e… Fora! Cristiano chuta para fora, senhores!

Cristiano reclama com o juiz, diz que o apito tirou sua concentração e pede para bater de novo.

O juiz concede, e lá vai Cristiano – agora sem o apito.

Sérgio Fernando esfrega as mãos, Cristiano corre, dá uma paradinha e… bola na trave!

A torcida da L.J. comemora, mas a comissão técnica do L.F.C. exige que a cobrança seja feita novamente, porque a paradinha de Cristiano atrapalhou sua performance.

O árbitro acata, e lá vai Cristiano em sua terceira tentativa. Toma distância, dá uma bicuda e… Sérgio Fernando espalma com categoria.

Parece que… não, Cristiano exige bater outra vez porque Sérgio Fernando teria adivinhado o ângulo e defendido por pura sorte. Exige uma melhor de três.

O juiz informa que essa já foi a terceira cobrança perdida, mas Cristiano e a torcida da L.F.C. não se dão por vencidos. Apesar de ser uma partida do campeonato local, ameaçam recorrer à à Conmebol e à Fifa.

Nova cobrança é autorizada. Cristiano toma distância, enche o pé, mas Sérgio Fernando é um muro no gol e agarra.

Fim de jogo, amigos do esporte! L.J. é a camp… Não, ainda não. A L.F.C. exige que o árbitro consulte o VAR, porque Sérgio Fernando teria dado um passo para trás e a bola teria ultrapassado a linha.

O árbitro consulta o vídeo. Vamos aguardar seu veredito.

Volta o árbitro, e informa que apenas o calcanhar do goleiro Sérgio Fenando tocou a linha. A bola não entrou.

Cristiano e a comissão técnica cercam o juiz, argumentando que o árbitro de vídeo foi parcial, que a tecnologia não é confiável, que todo o campeonato deve ser anulado e o goleiro Sérgio Fernando suspenso.

Muita tensão no estádio, senhores, com a torcida do L.F.C. subindo no alambrado e ameaçando invadir o gramado.

A proposta apresentada pelos dirigentes do L.F.C. é que Cristiano continue batendo pênaltis indefinidamente, até a bola entrar. Enquanto isso não acontecer, a cobrança não terá validade.

Há um confronto generalizado nas arquibancadas, com as duas torcidas se engalfinhando. A PM se protege no fosso e pede reforços.

O técnico do L.F.C. tenta impugnar a bola, a grama, o tom de branco das linhas de marcação da grande área, a iluminação, a acústica e a localização do estádio, além de apresentar nudes do goleiro Sérgio Fernando, feitos com uma cam escondida no vestiário.

Sérgio Fernando aguarda o desenrolar dos acontecimentos encostado na trave e parece murmurar algo como “Om Mani Padme Hum” – ou “PQP MQGCDC”, segundo nossos especialistas em leitura labial.

Vão ser retomadas as cobranças. E, segundo as regras impostas pelo L.F.C, enquanto a bola não entrar, não vale.

Pode isso, Arnaldo?

(*) Eduardo Affonso é arquiteto e colunista do jornal O Globo.

O dilema do presidente

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 junho 2019.

A sinceridade não costuma ser a qualidade primeira do homem político. Uns mais, outros menos, todos acabam contornando promessas feitas quando era hora de atrair e cativar eleitores. Tanto faz que tenham sido promessas de raiz ou de circunstância. Virada a página da eleição, faz-se tábula rasa e o passado some. Alguns eleitos exageram no caradurismo. Roçam a desfaçatez. A julgar por declarações dadas recentemente, doutor Bolsonaro parece esforçar-se para aparecer nesta última categoria.

Em visita ao município onde passou a infância, nosso presidente foi claro. (Clareza não é lá seu forte mas, com boa vontade, dá pra entender o que ele quis dizer.) Pra começar, agradeceu aos que votaram nele e, curiosamente, também aos que lhe negaram voto. Dado que essa generosidade d’alma não é comum em suas falas, fica a impressão de ele estar seguindo, a seu modo, o conselho de algum assessor mais antenado. O objetivo nítido era contentar a todos, mas não se sabe se foi atingido. Devotar-se, ao mesmo tempo, a Deus e a Mamom é complicado.

No começo da Copa América de 1997, Zagallo, técnico da Seleção, andava desprestigiado. Ao final, assim que o Brasil conquistou a taça, ele despejou sobre seus críticos: «– Vocês vão ter que me engolir!». Vinte anos mais tarde, Lula da Silva repetiu a tirada de Zagallo. Foi num discurso em Vitória, quando pesquisas lhe sorriam enquanto nuvens judiciárias já lhe escureciam o horizonte. Dirigindo-se à pequena minoria que, em sua imaginação, não votaria nele para presidente, soltou a mesma frase: «– Vocês vão ter que me engolir!». Acabou engolido pelos acontecimentos.

Ainda na visita à terra da infância, doutor Bolsonaro não se contentou com agradecer pelos votos e pelos não votos. Fez uma ameaça que lembra a de Zagallo e a de Lula da Silva. Não usou as mesmas palavras, mas o sentido está lá. Disse que, caso não haja uma ‘boa reforma política’, será candidato à própria sucessão. Ficou claro o desafio lançado a deputados e senadores. Se o Congresso não conseguir costurar uma reforma que proíba a reeleição, os brasileiros terão de engolir Jair Messias de novo.

De fato, caso o Legislativo não releve o desafio de vedar reeleições, o diagnóstico do presidente quanto a sua futura candidatura é inequívoco: «– Lá na frente, todos votarão [em mim]», profetizou. Por um lado, a frase confirma a intenção de disputar a reeleição. Por outro, a julgar pelo valor de face, denota indisfarçável pendor totalitário. Eleições em que todos votam no mesmo homem são aquelas em que o partido único impõe um candidato só. Visto ser altamente improvável que a miríade de partidos brasileiros aceitem hipotética fusão geral que dê nascença a um partidão solteiro e único, doutor Bolsonaro vai ter de neutralizar concorrentes no muque.

Com apenas seis meses de estrada mas já de olho em 2022, o presidente não tem tarefa fácil pela frente. Que ninguém se deixe iludir pelo fato de a oposição estar destroçada neste momento. No jogo político brasileiro, pra ganhar eleição, o candidato pode dispensar respaldo de partido forte ou de coalizão. A prova disso é o atual presidente que, nanico na partida, vestiu a faixa na chegada. Portanto, aquele que desafiará o atual presidente no próximo pleito pode ser figura hoje desconhecida.

A obrigação primeira de quem quer receber o voto de todos é limpar o terreno arredando rivais e superarando concorrentes. Nesse particular, doutor Bolsonaro está diante de um dilema visguento. Sergio Moro, o pilar moral de seu governo, está atravessando fase de turbulência. Como capitão, o presidente tanto pode atirar o homem ao mar quanto dar-lhe amparo e abrigo. Se decidir abandonar o ministro e condená-lo à fritura em banha quente, eliminará o concorrente mas, em troca, seu governo perderá o esteio. Caso lance uma boia e salve o ex-juiz, o governo recuperará a garantia de intolerância contra a corrupção. Em compensação, doutor Bolsonaro estará vitaminando aquele que poderá vir a ser seu mais perigoso concorrente. E agora, Jair?

 

Um bunker no Arizona

José Horta Manzano

Todo o mundo está liberado pra fazer coisa errada. A prática funciona, leve e solta, até que nos apanhem com a boca na botija. Aí, o angu encaroça. Todos fazemos diariamente o que devemos e o que não devemos, o que podemos e o que não podemos. E o barco segue tranquilo até o dia em que o erro é descoberto. Aí… catapum! Vêm as consequências.

A vida é assim, todos somos assim, o fenômeno é banal. Todos fazemos besteira. Um conselho antigo diz: «Se cometer malfeito, não deixe rastro». Doutor Moro se descuidou, não seguiu o conselho e se estrepou. Talvez os anos de magistratura lhe tenham inculcado a certeza de ser invulnerável. Talvez tenha botado fé exagerada na inviolabilidade de mensagens eletrônicas. O fato é que ele bobeou e acabou deixando rastro. Fez como o gato que se esconde e deixa o rabo de fora. Tamanha ingenuidade por parte de pessoa erudita e antenada surpreende.

Faz décadas que acredito que todas as conversas telefônicas são gravadas e conservadas em algum lugar. Hoje em dia, com as facilidades de armazenagem de material digital, tenho a convicção de que todas as mensagens – de som ou de texto – são recolhidas e armazenadas nalgum bunker enfurnado num deserto do Arizona ou do Colorado. Não é imaginável que todas sejam lidas. Mas ficam lá pra uso em caso de necessidade.

O que o distinto leitor e eu dizemos ou escrevemos não é de interesse público. São palavras inconsequentes, sem nenhuma incidência sobre a rotação do planeta. Já o que diz ou escreve um figurão como doutor Moro interessa, sim, a muita gente. Principalmente quando, em conversa clandestina, ele escreve o que não deve e envia a um correspondente com quem não devia estar-se correspondendo.

Mas agora o mal está feito. O moço foi apanhado com os dedos enfiados no pote de geleia. E com a boca lambuzada. Não tem como se esquivar. O que me surpreende é a veemência com que certos blogueiros e articulistas tentam negar a realidade. É esforço jogado fora, minha gente, que o rei está nu. O que interessa é saber o que vai acontecer daqui para a frente. O fato de os dados terem sido obtidos de modo ilegal não anula a ilegalidade da troca de mensagens. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Saudação militar

José Horta Manzano

Doutor Moro foi flagrado outro dia, ao lado do presidente da República, batendo continência durante uma cerimônia militar. Prestar continência é gesto inabitual para um civil. Ficou esquisito. Aliás, muita coisa esquisita anda acontecendo estes últimos tempos.

Voltando ao gesto de saudação, é curioso que nenhuma língua além da nossa use a palavra continência pra designá-lo. Todos usam alguma expressão girando em torno do tema da saudação militar: salut militaire (francês), salute (inglês), militärischer Gruß (alemão), saluto militare (italiano) & cia.

Entendo o motivo de haverem escolhido o termo continência. Ao fazer o sinal de saudação diante de oficial superior, o militar menos graduado dá mostra de submissão, comedimento, sobriedade, resguardo, temperança – qualidades sugeridas pelo termo continência.

Falando em sinal de saudação, ocorreu-me que a palavra sinal faz parte de extensa família. Assinar, assinatura, sinalizar, sinaleira, pelo-sinal, sino, sinete são todos parentes.

Um outro membro da família merece atenção especial. É senha, termo que, embora não guarde parecença, é da mesma tribo sim, senhor. Está aí outra peculiaridade nossa.

Enquanto a palavrinha senha, sozinha, nos basta, outras línguas não conseguem designar o mesmo fato com um termo simples. Vai daí, são obrigados a valer-se de expressões compostas de duas ideias que transmitem a ideia de «palavra a pronunciar pra poder passar». Password, mot de passe, wachtwoord, Passwort são alguns exemplos. E pensar que, apesar de nossa senha estar presente na língua há 400 anos, há muita gente por esse Brasilzão usando password. Pra dizer a mesma coisa.

Bem, gente, vejam como são as coisas. Começamos este escrito falando em doutor Moro e terminamos falando em senha. É que senha lembra privacidade. Privacidade lembra hackeamento. Hackeamento lembra doutor Moro. E o círculo se fecha.

Intestinos envenenados

Vinicius Torres Freire (*)

Era uma vez um governo que teria dois superministros, Paulo Guedes (Economia) e Sergio Moro (Justiça). Entraram por uma porta, saíram por outra.

São príncipes transformados em plebeus da Esplanada dos Ministérios pelo caldeirão da política de Jair Bolsonaro, que tem intestinos envenenados, filé de serpente, pelo de morcego, língua de cão e múmias de feiticeiras, como o cozido das bruxas de Macbeth, mas não tem coalizão parlamentar. Fim.

(*) Vinicius Torres Freire tem graduação em Ciências Sociais (USP) e mestrado em Administração Pública (Harvard). O texto é parte de artigo publicado na Folha de São Paulo.

Em nome da causa

Demétrio Magnoli (*)

À sombra de Lula, a Petrobrás foi saqueada. A Lava a Jato prestou serviços valiosos à nação, expondo máfias políticas e empresariais dedicadas à pilhagem sistemática de recursos públicos. Mas, agora sabemos, desviou-se pelos atalhos do arbítrio. Não há inimigo mais letal do combate à corrupção do que juízes e procuradores dispostos a flexibilizar a lei em nome da causa.

(*) Demétrio Magnoli é geógrafo. O texto é trecho de artigo publicado na Folha de São Paulo de 15 junho 2019.

A bomba e o Bessias

José Horta Manzano

Outro dia, um jovem desequilibrado vestiu agasalho com capuz, saiu da periferia de Lyon (França), foi até o centro da cidade de bicicleta, depositou discretamente, numa rua frequentada, uma bomba fabricada na cozinha de casa e acionou o detonador a distância. A explosão feriu meia dúzia de pessoas. Dois dias depois, o rapaz estava atrás das grades.

Em 2016, ficou famosa uma misteriosa conversa telefônica entre a então presidente Dilma Rousseff e o já ex-presidente Lula da Silva. Era aquela em que a doutora prometia ao chefe mandar o ‘Bessias’ com o ‘papel assinado’ – o título de ministro da Casa Civil, que livraria o demiurgo das agruras da Justiça comum que, como todos sabem, foi feita para o populacho e não para criminosos de categoria. Bastou um curto espaço de tempo pra o Brasil inteiro tomar conhecimento do caso. Com todos os detalhes, hilariantes ou tenebrosos.

Estes dias, o Brasil ficou sabendo de alentada troca de mensagens entre integrantes da força-tarefa da Lava a Jato e doutor Moro, hoje ministro da República. Em praça pública, pra quem quiser ver, estão disponíveis as conversas, tim-tim por tim-tim. E por escrito, o que não deixa de ser melhor que o episódio do ‘Bessias’ da doutora.

Qual é o fio condutor que liga essas três historietas? É a abolição – lenta e gradual, mas inexorável – da privacidade. Golpes diários vêm ferindo de morte a vida particular de cada cidadão. Não dá mais pra escapar. Nem o terrorista de Lyon, nem a doutora, nem o Lula, nem o ministro Moro, nem a turma da Lava a Jato se deram conta de que o mundo mudou.

Telefonema e troca de mensagens são pirateados com facilidade desconcertante. Todo deslocamento físico de quem quer que seja é flagrado por câmeras instaladas por toda parte neste mundaréu que Deus fez. Está cada dia mais difícil refugiar-se na discrição. A devassa perpassa todas as atividades humanas.

Assim, de cabeça, só me ocorre um jeito de comunicar em total discrição: é a velha carta. Para nossos padrões, correspondência epistolar – ô palavra chique! – é um bocado lenta. Mas não dá pra ter tudo. Tivesse a doutora mandado uma carta ao Lula, era bem possível que ele tivesse escapado à Justiça do povão. Tivessem o MP e doutor Moro trocado epístolas, nenhum pirata teria ficado sabendo. Nem mesmo o Capitão Gancho.

Quanto ao perturbado que fabricou a bomba, ah, pra esse, carta não resolve. Ainda bem.