História triste de fim de ano

by Caio Gómez, Correio Braziliense

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 janeiro 2022

É verdade que, em época de fim de ano, é costume falar de presentes, de peru e de farofa. Só que, ao lado do sonho, está sempre a vida real, uma danadinha que tem o desagradável hábito de nos puxar de volta ao chão. Assim, apesar da vontade de escrever uma fábula com guirlandas e fogos de artifício, cedo ao dever de manter pés na terra. Deixo pra passear de jet ski outra hora.

Alguns apontam La Niña como responsável; outros atribuem a tragédia a um pesado carma que o país carregaria. Pouco importa. O fato é que, desde novembro, o estado da Bahia vem sendo castigado por verdadeiro dilúvio. Chove tudo o que Deus mandou, e mais ainda.

Enxurradas, enchentes, desabamento de habitações, desmoronamento de morros, queda de pontes, colapso de estradas – nenhuma desgraça terá sido poupada à população. O governador do estado não economizou palavras. Segundo ele, estamos assistindo ao “maior desastre natural da história da Bahia”.

Na Europa, onde bem poucos seriam capazes de apontar a Bahia num atlas, a notícia tem saído no jornal, no rádio e na tevê, ao vivo e em cores. Comovidos, governadores de pelo menos dez estados brasileiros já se movimentaram para enviar ajuda humana e material para mitigar o apuro dos sinistrados.

Segundo a contagem publicada no momento em que escrevo, o desastre já atingiu mais de 100 municípios, pelo menos 25 mortos, cerca de 360 feridos e pra lá de 30 mil desabrigados. Para dar uma ideia de grandeza, é como se, de repente, a população inteira de Dracena (SP), de Diamantina (MG), de Soledade (RS) ou de Gameleira (PE) perdesse o teto. Incluindo homens, mulheres, crianças, gestantes e anciãos. Todos na rua. Sem contar os mortos e os feridos.

Decerto cutucado por algum assessor para que fizesse algum pronunciamento, o presidente Bolsonaro veio a público e pareceu condoído da sorte dos feridos e desabrigados. Disse que “agora, no início do ano que vem” tinha intenção de editar medida provisória liberando crédito de 200 milhões “para atender o pessoal”. Disse isso no dia 27 de dezembro. Até “o início do ano que vem”, com boa vontade, faltava pelo menos uma semana. Pra quem tem teto e vive abrigado em palácio, cercado de seguranças e com aluguel pago pela Viúva, ‘estar sem teto’ não passa de figura de linguagem. Na vida real, é outra coisa.

Mas o doutor seguiu para o segundo capítulo de suas férias. Depois da dança do funk no litoral paulista, foi gozar as delícias da costa catarinense, bem longe da Bahia, das enchentes, dos desmoronamentos e dos pobres. Partiu com o espírito leve dos que nada devem.

Assessores mais conscientes hão de ter considerado que, para quem perdeu tudo e vive ao relento, ter de esperar até “o início do ano que vem” era muito. Logo na terça-feira 28 saiu a medida provisória com o crédito extraordiário. Mas a nota da Secretaria-Geral da Presidência adverte aos baianos que não venham com muita sede ao pote. O dinheiro não é só para eles, não. Terão de compartilhar com Amazonas, Minas Gerais, São Paulo e Pará.

Pois é, enganou-se quem imaginava que o auxílio de emergência fosse para os desabrigados reconstruírem as casas. De olho na recuperação do tráfego rodoviário, ora bloqueado por causa dos estragos provocados pela chuva, o governo deixou bem claro que esse dinheiro se destina a recuperar as estradas. Quem perdeu a casa? Que se vire. Deus é grande e há de ajudar, não é mesmo?

Pela enésima vez fica escancarada a absoluta falta de empatia do capitão, sua rematada indiferença com os problemas alheios. Fosse ele um cidadão comum, essa bizarria não iria além do círculo familiar. No entanto, sua posição de chefe do Estado brasileiro faz que a distorção de caráter respingue sobre o andamento da nação.

Bolsonaro sabe que, sem uma economia florescente, será difícil reeleger-se. O espeto é que, possuído por essa ideia, não se dá conta de que os votos da reeleição virão justamente daqueles que ele hoje relega a segundo plano. Esses infelizes não são variáveis de ajuste, presidente, são seus potenciais eleitores!

Mas não adianta. Não há pior cego que aquele que não quer ver. Vamos torcer para que as eleições deste novo ano não nos ponham de novo um estropício na Presidência – nem este, nem aquele. Feliz 2022 a todos!

Ondas perdidas

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 30 maio 2020.

Nestes tempos de epidemia, a história se precipita. Da noite para o dia, o ritmo acelerado dos acontecimentos envelhece as notícias. Casos da semana passada já estão no arquivo morto; coisas de três meses atrás já estão entrando no livro de história. Faz quatro meses, Paulo Guedes visitou o Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde recebeu, na ausência do presidente, as honras devidas ao Brasil. Sua fala passou quase despercebida. É verdade que ele não fez nenhuma revelação acachapante. Referindo-se a nosso país, filosofou: “Perdemos a grande onda da globalização e da inovação, então essa mudança vai levar um tempo, mas estamos a caminho”.

O ministro não foi o primeiro a passar recibo da lentidão de reação de nosso país. Cem anos atrás, o estadista francês Georges Clémenceau (1841-1929) já havia se dado conta disso. Quando lhe contaram que o Brasil era o país do futuro, replicou ferino: “e há de continuar assim por muito tempo”. Tinha razão. Um século depois, o futuro radioso ainda não se vê. Toda vez que a gente pensa que a hora boa chegou, a realidade se encarrega de nos desenganar. Perdemos não só a onda da globalização e da inovação, sublinhada pelo ministro, mas muitas outras. Chegassem todas juntas, formariam um tsunami. Nossa maré baixa já vem de longe.

Perdeu-se a memória do Brasil imperial, defunto há mais de 130 anos. Nenhum vivente sabe mais, de experiência própria, como era então a vida. Mas a história ensina que, em terras onde o chefe de Estado é permanente e desprovido de poder real, a estabilidade política é superior. Entra governo, sai governo, a figura do patriarca vitalício é garantia de segurança. Essa onda da estabilidade política, que a República não soube compensar, perdemos.

A grande onda de Kanagawa
by Katsushika Hokusai (1760-1849), artista japonês

O ensino foi sempre tratado com pouco caso. A primeira universidade das Américas foi fundada nos anos 1530; a abertura da Escola de Cirurgia da Bahia – primeiro curso superior do Brasil – só ocorreria 250 anos mais tarde. Já demos a largada com dois séculos e meio de atraso. O desdém para com o estudo se reflete até nossos dias. Na virada do século 19 para o 20, dois em cada três brasileiros maiores de 15 anos eram analfabetos. Em 1950, metade da população ainda não sabia ler nem escrever. Foi só nestes últimos 70 anos que os números começaram a sorrir – sorriso tímido, visto que o analfabetismo resiste e ainda condena 7% dos brasileiros à ignorância. Como pode a sociedade aceitar que 1 compatriota em cada 15 viva na escuridão? A onda da Instrução Pública, perdida, continua a nos desafiar.

O Brasil rateou também na hora de decidir sobre mobilidade. Sucumbindo a interesses poderosos, elegeu o transporte rodoviário como solução única, relegando a estrada de ferro ao ferro-velho. Na mesma fieira, não soube prever que a supremacia absoluta do transporte de superfície em detrimento do metrô geraria entupimento permanente nas grandes cidades.

Na Saúde Pública, perdura uma surpreendente jabuticaba – bizarrice que não parece comover ninguém. Longe da contenção de gastos recomendada a todo país pobre, boa parte dos assalariados brasileiros são compulsoriamente afiliados a dois sistemas de saúde redundantes. O sistema nacional (SUS) e uma rede de convênios privados correm em paralelo. Um dos dois sistemas será sempre supérfluo, dado que cada ato médico só poderá ser ministrado uma vez. O cliente passa a vida pagando dobrado. Quando se pensa na dificuldade que o Brasil tem para suprir necessidades básicas de seus filhos, esse contingente de cidadãos sobreassegurados é tremendo desperdício. A pandemia de covid-19 tem mostrado que, apesar do sistema duplo, o circuito hospitalar segue assoberbado, próximo do colapso. Está aí um problema que, visto o atual descaso com a Saúde, só deverá ser enfrentado por um próximo governo.

A fala do ministro em Davos mostra que, além de não resolver problemas passados, continuamos a adicionar ondas perdidas à contabilidade nacional. Enquanto não encararmos essa realidade pra valer, seguiremos dando razão ao velho Clémenceau: estamos condenados a ser eternamente o país do futuro.

Três em um

José Horta Manzano

Estou acostumado a dar uma passada d’olhos na imprensa internacional. Posso garantir-lhes que, fora de nosso país, erros gramaticais são raros e excepcionais. Que se trate de regência, de sintaxe ou simplesmente de datilografia ‒ perdão! de digitação ‒, a raridade é a mesma.

Dizem que o desleixo com que costumamos nos comportar no Brasil é herança do colonizador. Se assim for, constato que a herança frutificou. Em vez de regredir, o desmazelo parece aumentar a cada dia. O filho saiu melhor que o pai.

Até o Estadão, que, afinal de contas, é o jornal brasileiro de referência, reverenciado no mundo todo, tem-se deixado levar pela negligência. E logo na primeira página! A impressão que fica é de que as chamadas ‒ que são justamente as palavras mais lidas do veículo ‒ ficam por conta de estagiários ou de gente que não tem suficiente domínio da norma culta.

Na edição de 1° de agosto, três escorregões coexistiam na página principal da edição online. Ao mesmo tempo, sim, senhores. Aqui estão:

Chamada Estadão, 1° ago 2017

Conselho prorroga mais 1 ano da Lava Jato
Eta, frase torturada! Prorroga-se algo por determinado tempo. Deveriam ter posto «Conselho prorroga Lava a Jato por um ano».

Chamada Estadão, 1° ago 2017

Béndine tentou dissuadir Ferreirinha a depor
Aqui também, a regência foi pro beleléu. Dissuade-se alguém de (fazer) algo. Teria sido melhor: «Béndine tentou dissuadir Ferreirinha de depor».

Chamada Estadão, 1° ago 2017

Neymar viaja à Barcelona
Essa é primitiva. Salvo as exceções, que não chegam a meia dúzia (Cairo, Porto, Rio de Janeiro, Recife, Crato), nome de cidade não aceita artigo. Ninguém mora na Barcelona, nem trabalha na Florianópolis, nem pretende estudar na Paris. Sem artigo, sobra somente a preposição. Naturalmente, não ocorre crase. Melhor seria: «Neymar viaja a Barcelona».

Água mole em pedra dura… Vamos em frente. Quem sabe, um dia ainda chegamos lá.

Minha casa, meu barraco

José Horta Manzano

Vi ontem uma foto aérea de um conjunto habitacional versão «Minha casa, minha vida». Fica em Imperatriz, no Estado do Maranhão. Que tristeza, minha gente!

Imagem Estadão, 16 jul° 2016

Imagem Estadão, 16 jul° 2016

A panorâmica mostra cerca de mil residências, todas rigorosamente iguais, alinhadas como num acampamento de refugiados de guerra. A cor ocre é uniforme. O verde simplesmente não existe, o que dá ao conjunto um aspecto lunar. Não há o esboço da suspeita do rascunho de um arbusto.

A gente fica na dúvida se o espetáculo melancólico é fruto de falta de imaginação ou de descaso. Fica a desagradável impressão de que, na cabeça de quem projetou aquele horror, está a certeza de que «pra quem é, goiabada basta». Nos tempos de antigamente, costumava-se usar esse refrão pra avisar que, pra receber visita simples, humilde e de baixa extração, ninguém precisava vestir roupa de domingo.

by Charles Samuel Addams (1912-1988), desenhista americano

by Charles Samuel Addams (1912-1988), desenhista americano

Será que os brilhantes idealizadores do projeto não são capazes de bolar, digamos, meia dúzia de diferentes modelos de habitação? Que tenham todos a mesma área, pouco importa. Mas que tenham pequenas variações e que sejam misturados aleatoriamente, nem que seja pra quebrar esse aspecto de acampamento militar. Variar a cor das fachadas tampouco sai mais caro. O custo de tinta verde não deve ser muito diferente do custo de tinta amarela, azul ou cor de abóbora.

Fica a impressão de obra feita de má vontade, pra cumprir tabela. Pra quem é, goiabada basta.

Aeroporto sem trem

José Horta Manzano

Avião 7A cada vez que penso nos bilhões rapinados da Petrobrás e do erário, imagino o que poderia ter sido feito com esse patrimônio caso não tivesse ido parar no bolso dos cangaceiros que nos governam.

Intuitivamente, a gente se lembra dos mais precisados ‒ hospitais e escolas em primeiro lugar. Mas falta dinheiro por toda parte. Uma sociedade tem muitas facetas e todas elas demandam atenção e cuidado. Não é aceitável que governantes não cuidem de cada uma.

AviaoO maior aeroporto do país fica em Guarulhos (SP). Tem nome de gente, mas praticamente ninguém usa: foi sempre chamado de Guarulhos e assim continuará. Além de turistas, por ali transitam homens de negócios, investidores, visitantes ilustres, todos aqueles a quem gostaríamos de dar boa impressão de nosso castigado país. Como se sabe, não há segunda chance de dar uma primeira impressão.

Pra quem chega, a realidade, logo de cara, é um choque: o aeroporto não está conectado com a metrópole por estrada de ferro. Nem metrô nem trem expresso nem bonde. Nada. A única solução para transpor os 30km até o centro é a estrada de rodagem. De carro, de ônibus, de caminhão ou de moto, tráfego pesado e eventuais enchentes terão de ser enfrentadas.

Aeroporto esteiraFosse o aeroporto recém-inaugurado, já seria surpreendente que não se tivesse pensado em construir ligação férrea ao mesmo tempo em que se instalava o terminal aéreo. Visto que foi inaugurado 30 atrás, a ausência de transporte rápido e confiável foge à compreensão de todo forasteiro.

Avião 6Em 2014, o Aeroporto de Guarulhos ficou em 30° lugar em número de passageiros. Não é pouca coisa. Nos 29 primeiros lugares, estão 12 aeroportos americanos, 4 chineses e os inevitáveis Frankfurt, Paris, Londres, Amsterdam, Tóquio.

Por Guarulhos transitam mais passageiros do que por campos de aviação importantes como Munique, Sydney, Roma, Barcelona, Toronto, Zurique, Milão, Lisboa, Copenhague. A estação aérea paulista é de longe a mais importante da América Latina. O segundo classificado, o da Cidade do México, fica em longínqua 48ª posição.

Faz 30 anos que, episodicamente, se fala vagamente em interligar o terminal com o centro da cidade. Embora, vez por outra, o assunto volte à tona, não passou, por enquanto, de conversa fiada. Os maiores aeroportos do mundo são conectados por meio confiável à metrópole mais próxima. Por que fazemos questão de continuar sendo a exceção?

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PS: O governo paulista acaba de anunciar que, pela enésima vez, fica paralisada a construção da interligação da rede de metrô ao Aeroporto de Congonhas, campo de pouso urbano.

Aeroporto Congonhas 1O aeroporto foi inaugurado em 1936, em sítio então desabitado e afastado do centro. A cidade cresceu e envolveu o campo de aviação. Contruiu-se o metrô. A primeira linha do metropolitano ‒ que passa a 1,5km do Aeroporto de Congonhas ‒ opera desde 1974. Nesses quarenta anos, as autoridades que nos governam foram incapazes de completar esse quilômetro e meio que falta. Contando, assim, parece brincadeira, coisa de filme cômico, não?

É verdade que o atual governo federal é mastodonticamente incompetente. Mas ‒ há que dizê-lo ‒ a incapacidade administrativa e o descaso com a coisa pública vêm de longe e estão incrustados na alma nacional.

A ruína emergente

José Horta Manzano

Braço da Represa de Chambod, França em tempos normais

Braço da Represa de Chambod (França)
em tempos normais

Governar é abrir estradas. Governar é prever. Governar é satisfazer às necessidades de cada cidadão. Governar é botar as contas em ordem. Governar é cuidar da educação, da saúde e da segurança.

Afinal… o que é governar? É tudo isso aí e um pouco mais. Mas essa é a teoria. Na prática, como se sabe, a teoria é outra. Governantes não abrem mais estradas. Aliás, já nem cuidam das existentes.

Braço da Represa de Chambod, França esvaziada a cada 10 anos para limpeza

Braço da Represa de Chambod (França)
esvaziada a cada 10 anos para limpeza

Governantes não satisfazem às necessidades de cada cidadão. Contentam-se de ações vistosas, midiáticas, em que migalhas são distribuídas a pequena parte do público, como dinheiro em programa de auditório. O resto da plateia que se vire.

Quanto a botar as contas em dia… ai, ai, ai. Garantir o amanhã não é a tônica dos dirigentes atuais. E a educação, a saúde e a segurança – como é que ficam? De novo: toda energia é focada em ações momentâneas, aparatosas, sem compromisso com o futuro. Governantes mantêm-se fiéis ao pensamento medieval: «o futuro a Deus pertence».

A seca que persiste no sul do Brasil tem causado danos e grande temor. Caso tudo seque, não há solução a curto prazo. Luz e água vão faltar, não há alternativa. Um aqueduto para transportar o precioso líquido da Amazônia até o sul do País não se instala em uma semana.

Represa de Chambod, França esvaziada a cada 10 anos para limpeza

Represa de Chambod (França)
esvaziada a cada 10 anos para limpeza

Infelizmente, não tenho solução milagrosa. Tampouco estou aqui para apontar culpados. O descalabro atual resulta de décadas e décadas de descompromisso com o futuro.

Mas vamos ser optimistas. Crises têm seu lado bom. Servem pra abrir os olhos. De agora em diante, autoridades serão mais previdentes e guardarão em mente que os atos de hoje determinam os fatos de amanhã. Certo?

Não, distinto leitor, não é assim. A lição não está sendo aprendida. As autoridades encarregadas da manutenção das represas não estão fazendo seu trabalho. A fotomontagem aqui abaixo dá um exemplo concreto.

Represa de Atibainha: nível sobe após estiagem

Represa de Atibainha (SP):
nível subindo após estiagem severa

Um energúmeno arremessou, faz anos, uma carcaça de automóvel numa represa. Nem visto nem sabido, o esqueleto permaneceu submerso. Com a seca, reapareceu. Fotógrafos não se privaram de retratar a descoberta. Galhofeiros se encarregaram de engalanar o destroço com faixas de duvidoso humorismo. No entanto, a ninguém ocorreu o óbvio: remover a ruína insepulta.

Bondoso, São Pedro mandou alguma chuva. O nível de tanques e barragens tem subido. Fotógrafos se precipitam à beira de reservatórios para registrar o fato. E… que vemos? A carcaça continua lá, intocada, como se repousasse em túmulo adequado.

Represa 2Fosse nosso País mais civilizado, as coisas teriam seguido outro rumo. Em primeiro lugar, o responsável pelo arremesso do automóvel teria sido procurado e punido. Em segundo lugar – e rapidinho – o destroço teria sido retirado. Já imaginou o que pode acontecer amanhã se um inocente banhista der um mergulho naquele lugar? Já pensou na desgraça programada que será uma embarcação abalroar a carcaça, soçobrar e ir a pique?

De que adianta ficar eu aqui cogitando? Pessoas, grupos, departamentos inteiros são pagos para agir. Se governar é prever, fica cada dia mais evidente que não há mais governo em nosso País. Se é que, algum dia, houve.

Interligne 18fClique nas fotos para aumentar.

Frouxidão

José Horta Manzano

Não se pode esperar que todos os habitantes do planeta tenham o mesmo nível de conhecimento e de habilidade. A diversidade é uma riqueza da espécie humana. Quem não sabe construir um muro chama um pedreiro que entenda do assunto. Quem não leva jeito para redigir uma petição solicita o serviço de um advogado capaz. Quem não consegue cortar as unhas do pé vai a um pedicuro apto a executar o serviço.

Placa com erro 2

De Sul a Norte, não há quem se importe
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Esses exemplos parecem evidentes, não é? Estou chovendo no molhado, não parece? O que eu disse salta aos olhos de qualquer indivíduo medianamente inteligente, não? Pois fique sabendo, caro leitor, que ainda há gente que não entendeu a mensagem. E gente graúda, daqueles que fazem parte do restrito clube de otoridades.

Na organização da «Copa das copas» ― segundo o slogan dernier cri bolado pelo marketing planáltico ― a acolhida ao turista estrangeiro tem recebido especial atenção.

Placa com erro 3

Estádio da Fonte Nova, Bahia
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Sabemos todos que, em cada cidade-sede, linha especial de metrô foi inaugurada ligando o aeroporto ao centro. Dezenas de terminais aéreos foram criados, e os existentes, modernizados. Policiais, agentes e pessoal voluntário seguiram curso intensivo de língua estrangeira ― são hoje praticamente todos bilíngues. A criminalidade baixou a níveis nunca vistos. Até novenas e trezenas têm sido dedicadas a Santa Bárbara para que evite tempestades. Enfim, o turista estrangeiro voltará para casa com a impressão de ter passado uma temporada no paraíso.

Infelizmente, um grãozinho de areia anda perturbando o funcionamento da máquina. É coisa pouca, mas vistosa e capaz de estragar o todo. Autoridades encarregadas de providenciar placas informativas em língua estrangeira se distraíram: encomendaram o serviço a tradutores incompetentes. O resultado tem sido desastroso.

Placa com erro 4

Cariado de preferência
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Já no ano passado, a inauguração de um estádio baiano foi objeto de zombaria por parte da imprensa nacional e internacional. O erro era tão monstruoso que ofuscou a notícia principal, que deveria ser a abertura da praça de esportes. Uma imensa placa dizia «Saída» e, mui educadamente, traduzia para o inglês. Nossa saída tornava-se «entrace»(sic). Entrance, em inglês, é a entrada. E se escreve entrance, não entrace.

Estes dias, foi a vez do respeitado metrô paulistano. Botaram placas em francês e em italiano para sugerir ao estrangeiro que procure um funcionário da companhia caso deseje obter informações. Por óbvia, a placa, a meu ver, é desnecessária. A quem mais se dirigiria o turista se não a um agente da empresa?

Seja como for, se placa há, que esteja bem escrita. E não está. Tanto a versão francesa quanto a italiana apresentam erros de grafia e de lógica. A frase escrita na língua de Molière soa, a ouvidos franceses, mais ou menos como se estivesse escrito: «Por informação, pergunta um emprego». Precisa um certo esforço para entender.

A versão italiana é ainda mais intrigante. Do jeito que está, sugere, com sabor dialetal, que o incauto leitor procure obter informações junto a um indivíduo cariado. Bom, ter cárie é sinal de que ainda sobra algum dente. É sempre melhor que ter de procurar um desdentado…

Duas palavras para resumir o problema: fracasso total. De otoridades incultas, displicentes, desleixadas e descompromissadas com a seriedade, não se poderia esperar mais que isso. Procuraram um pedreiro incapaz, e o muro periga desabar.

E não se esqueça de que o conceptor, o tradutor, o grafista, o pintor e o batedor de prego foram pagos com nosso dinheiro. Sem contar alguma eventual propininha aqui e ali, que ninguém é de ferro.

A Copa é nossa!

As chaves

José Horta Manzano

Hoje terá lugar, na ultrassofisticada Costa do Sauípe ― um balneário padrão Fifa! ― o sorteio das chaves da próxima Copa do Mundo. Todos os países participantes estão pedindo, cada um a seu São Benedito nacional, que os ajude a cair num grupo fácil.

Agora, vamos fazer um esforço. Vamos supor que não haja trapaça no sorteio. Com a Fifa, nunca se sabe, mas não é impossível, pois não? Pois então. Há de haver surpresas, um ou outro ah! de alegria, muitos oh! de decepção.

No fundo, no fundo, pouco importa quais possam ser os times que o Brasil terá de enfrentar. Nossos adversários maiores já são conhecidos. São o atraso, a corrupção, a desigualdade entre os que mandam e os que são mandados, o paternalismo, a ignorância, a inação, a leniência, o descaso dos que poderiam fazer alguma coisa, a desonestidade.

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

Que o Brasil vença vários adversários e obtenha boa classificação na Copa é secundário. Quer chegue lá ou não, será um momento passageiro.

O mais desalentador é a certeza de que, após o último jogo, quando o último turista tiver embarcado e os garis tiverem varrido o lixo, nossos adversários de sempre continuarão aí, a nos envenenar a existência.

Arrombada a porta, põe-se a tranca

José Horta Manzano

Nos idos de 1967, eu estava trabalhando na Suécia. Travei conhecimento com uma senhora muito simpática. Poliglota e inteligente, teria ali pelos 40 anos. Tinha nascido no Brasil, mas, casada com um sueco, vivia em Malmö fazia já vários anos. Vamos chamá-la senhora Almgrén, mas não posso garantir que fosse esse o nome. Passou muito tempo e já não tenho certeza.

Uma música francesa, gravada por Sacha Distel (1933-2004), estava nas paradas de sucesso, como se dizia na época. Na crista da onda, muito popular. Era ― como explicar? ― um «samba europeu». Um ritmo um tanto desengonçado que grande parte do povo do Velho Continente acreditava ser música brasileira. Aliás, muitos ainda acreditam, acreditem.

O compasso da canção, divertida e bem animada, hesitava entre cumbia, conga e rumba. Chamava-se «L’incendie à Rio», o incêndio no Rio. Meu conhecimento de francês, precário à época, não me permitia entender a letra.

Comentei com a senhora Almgrén que eu gostava muito daquela música. Maliciosamente, ela me replicou que, se eu entendesse a letra, por certo gostaria menos. Fiquei um tanto perplexo. “Ué” ― pensei ― “e por quê?”

Sacha Distel

Sacha Distel

Indulgente, minha amiga explicou que a letra relatava um incêndio imaginário numa torrefação de café no Rio de Janeiro. E descrevia a atrapalhação dos bombeiros que não encontravam as mangueiras, nem o esguicho, nem a escada. Somente no final da noite, quando todo o quarteirão estava reduzido a cinzas, os petrechos foram encontrados. Assim mesmo, os bombeiros continuavam não podendo sair do quartel porque o caminhão estava enguiçado e ninguém sabia onde estava a manivela para dar partida no motor.

Uma zombaria total, como se vê. Retratava nosso País como era visto pelos europeus, um lugar muito alegre e animado, mas totalmente bagunçado. Quem quiser recordar (ou conhecer) L’incendie à Rio, pode dar uma espiada aqui. Vem com vídeo, música e letra.

O bem informado blogue de Sonia Racy, alojado no Estadão, nos informa neste 30 de janeiro que a Câmara Federal do Brasil não tem brigadistas de incêndio. Pior que isso, a Casa não dispõe sequer de servidores treinados para casos de incêndio(!). Não acredita? Pois confira aqui.

Quando a canção de Sacha Distel fez sucesso, fazia 3 ou 4 anos que se encerrara a «Guerra da Lagosta», um daqueles conflitos sem batalha e sem sangue. Foi nessa época, dizem, que De Gaulle teria pronunciado a célebre frase «o Brasil não é um país sério». Dizem outros que jamais o general teria cometido tal afronta. Ele nunca confirmou. Tampouco desmentiu. Vamos deixar para voltar ao assunto noutra ocasião.

Neste finzinho de janeiro, passados alguns dias do pavoroso drama de Santa Maria, aparecem outros podres, aos borbotões: casas de espetáculo funcionando sem alvará, proteção contra incêndio inexistente, pessoal não treinado. Em resumo: é a ganância de braço dado com a irresponsabilidade. Se nem a Câmara ― a casa dos representantes do povo brasileiro! ― escapa do descaso, imagine o resto. Nossos 513 deputados devem, realmente, estar totalmente ocupados com outros assuntos.

É urgente que os poderosos que mandam no Brasil tomem um banho de integridade e de probidade. Queira o destino que o inconcebível drama gaúcho tenha sido a última tragédia decorrente de desleixo aliado ao descaso e à cupidez. Já está na hora levar as coisas a sério.

Que o clichê sublinhado pelo irreverente Incendie à Rio possa ser atirado à lata de lixo do passado. Para nunca mais voltar.