Todas as fichas no passageiro

José Horta Manzano

É perigoso apostar todas as fichas em algo passageiro que, amanhã, já poderá ter mudado. Apostar em governo de turno é atraso de vida. Ontem, foi o terrorista Battisti que, tendo escolhido o volúvel Brasil, esborrachou-se no chão. Mudou o governo, e ele se estrepou. Hoje é Mr. Assange, aquele que andou divulgando documentos confidenciais ‒ um ato que agradou a muita gente mas desagradou fortemente ao governo dos EUA.

Perseguido e com a cabeça a prêmio, o ‘lançador de alerta’ aceitou a oferta do frágil Equador, cujo presidente à época jogava no time do antiamericanismo radical. Isso foi em 2012. Desde então, viveu recluso na embaixada londrina daquele país, confinado a um espaço bem menor do que a confortável suite que hospeda Lula da Silva em Curitiba.

Mas tudo muda na vida. Cansado de guerra e de mutretas, o povo equatoriano entronizou presidente de outra corrente filosófica. Ontem, ao cabo de longas negociações com Londres, Quito anunciou que cancelava o asilo político concedido a Mr. Assange. Ato contínuo, as portas da embaixada foram abertas para permitir que a polícia de Sua Majestade entrasse e apanhasse o ex-asilado. O moço foi levado algemado num veículo policial.

O balanço final mostra que Mr. Assange, tentando se esquivar à prestação de contas, apostou no cavalo errado. Depois de passar sete anos encerrado num cubículo sem ao menos possibilidade de tomar banho de sol, volta à estaca zero. Terá de enfrentar interrogatório, extradição, julgamento e provavelmente condenação. Em resumo, ter confiado num regime de turno só lhe valeu postergar o encontro com o destino. Acrescentou sete anos de cela solitária ao prontuário e terá de cumprir a pena que lhe for imposta, que pode ser de mais cinco anos.

O clã Bolsonaro escolheu uma senda perigosa. A vassalagem que vêm prestando à pessoa do presidente dos EUA não é caminho de sol e flores. À volta das próximas eleições americanas, tempestade e espinhos podem surgir. Suponhamos que Mr. Trump não seja reeleito. Não é provável, mas sempre é possível. Certamente o presidente democrata que viria ocupar seu lugar não lançaria o mesmo olhar lânguido a doutor Bolsonaro. As coisas poderiam azedar, principalmente levando em conta que, imprevidentes como são, os bolsonarinhos são bem capazes de continuar a se apresentar com o boné « Trump 2020 » enfiado no cocuruto. Se Trump perder… já imaginaram o desastre?

Lula aciona ONU

José Horta Manzano

Lula caricatura 2Assombrado com a ordem de prisão, cada dia mais nítida, o batalhão de advogados do Lula implora à ONU que faça alguma coisa para proteger o antigo mandatário.

Não por acaso, usei o verbo implorar. O Brasil, como país soberano, dispensa tutela de organismos estrangeiros ou supranacionais. Se nem o Mercosul tem poder de influenciar nossas instituições, menos ainda terá a Organização das Nações Unidas. O Lula há de estar em pânico, o que explica estar arriscando as últimas fichas na empreitada. Acaba de dar passo perigoso.

Há duas possibilidades: a ONU tanto pode aprovar como reprovar o funcionamento da Justiça brasileira. Caso considere o processo isento e honesto, Lula terá perdido definitivamente a batalha ‒ quiçá a guerra. Caso considere que o ex-presidente é vítima de jogo de cartas marcadas, como numa «república de bananas», nosso Judiciário se sentirá, com razão, afrontado, ofendido e desafiado.

Lula caricatura 2aNinguém gosta de se sentir afrontado, nem ofendido, muito menos desafiado. O orgulho nacional será atingido. Nossos magistrados se sentirão todos insultados. Esse sentimento periga voltar-se contra o acusado, surtindo efeito contrário ao que estava sendo buscado.

É verdade que o Lula não tem muitas opções. Como cônjuge de cidadã italiana, deve ter imaginado poder um dia, em caso de necessidade, refugiar-se na Itália. O caso Pizzolato freou seus ardores. A Itália provou que, quando lhe parece justo, não hesita em extraditar os próprios cidadãos.

Caso consiga escapar das garras do juiz Moro, como tem tentado, quem garante que nosso guia não cairá nas mãos de magistrado ainda mais rigoroso? Moro não é o único juiz competente e tenaz.

Lula caricatura 2Se escolher deixar o país e estabelecer-se em alguma ilha paradisíaca, estará abrindo o flanco para os EUA pedirem ‒ e obterem ‒ sua extradição. Transação internacional de dinheiro sujo ou limpo costuma transitar por aquele país. No escândalo que emaranha Lula, Petrobrás, Mensalão, Eletrobrás, BNDES & companhia, não será difícil encontrar fundamento jurídico para pedido de extradição. Bilhões de dólares roubados aqui transitaram por lá.

Sobra ainda a possibilidade de o Lula pedir asilo político a algum país. (Quem garante que a eventualidade já não tenha sido sondada?) Não vai ser fácil encontrar abrigo. Se ninguém quis acolher um simples Snowden, quem abrigará um Lula? A Bolívia ou a Venezuela talvez? Pode ser um caminho. Pelo menos, enquanto não caírem os respectivos governos.

Vão ainda duas ou três reflexões. A primeira, mais evidente, é quanto ao custo do batalhão de advogados. Quem paga? Estarão todos trabalhando por amor a um acusado desvalido?

Outra observação é quanto à escolha do escritório de Mister Robertson, jurista australiano especializado em direitos humanos, que conta com Salman Rushdie e Julian Assange entre seus clientes. Não é um fantástico cartão de visitas.

Lula caricatura 2aO escritor britânico Salman Rushdie sobrevive há quase 30 anos, sob rigorosa proteção policial, a uma ordem de assassinato expedida pelo bondoso (e já finado) aiatolá Khomeini. Quanto a Mister Assange, esconde-se há quatro anos num cubículo da embaixada do Equador em Londres. Visto o histórico da banca de advocacia de Mister Robertson, não fica claro o que podem fazer pelo Lula.

Penso ainda no foro competente para julgar nosso ex-presidente. Por enquanto, é acusado comum. Na inimaginável eventualidade de dona Dilma voltar à presidência, o Lula poderia até ser nomeado ministro, o que lhe daria direito a ser julgado pelo STF. Ainda assim, não é concebível que a maioria de nossos magistrados-mores se pronunciem pela total inocência do indiciado. Nenhum deles vai querer entrar para a História com reputação manchada.

Uma saideira: ninguém garante que as informações vazadas até agora representam a totalidade dos indícios e das provas. Debaixo desse angu ainda deve ter muita carne.

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Observação
Para quem acaba de chegar de Marte, aqui está a notícia no Estadão e na Folha de São Paulo.

Não me esqueçam!

José Horta Manzano

O senhor Julian Assange, nome meio esquecido ultimamente, está mofando há dois anos num cubículo da embaixada do Equador em Londres.

by Patricia Storms, desenhista canadense

by Patricia Storms, desenhista canadense

Sabe-se lá por que razão, o gajo decidiu um dia subir ao telhado e gritar ao mundo o que o mundo já sabia. Contou que agências americanas bisbilhotavam a vida e a obra de gente importante e de empresas relevantes. Por malícia ou por ignorância, nada disse sobre agências de outros países.

O primeiro caso de espionagem se deu quando um agrupamento de neandertais sofreu a primeira cisão, indo cada subgrupo morar em caverna própria. A partir do dia seguinte, cada grupo designou emissário para, discretamente, inteirar-se do que estava acontecendo na caverna rival.

E assim continua até hoje. Todos espionam todos. Marido e mulher, pais e filhos, chefes e subordinados, bandoleiros, seitas religiosas, partidos políticos. E, com maior razão, países. Democráticos, comunistas, fascistas, autoritários, liberais, republicanos, monárquicos ― todos os países se espionam entre si. Na medida dos interesses de cada um e, é claro, de suas possibilidades.

by Carlos Alberto da Costa Amorim, desenhista carioca

by Carlos Alberto da Costa Amorim, desenhista carioca

É altamente improvável que agências americanas sejam as únicas interessadas em abelhudar altas esferas brasileiras. Não precisa ser formado em contraespionagem para imaginar que russos, chineses, argentinos, britânicos, alemães, franceses também tentem colher informações sobre o que se passa em Tupiniquínia.

Bom, eu disse tudo isso para reafirmar que, ao dar com a língua nos dentes, o senhor Assange não disse nada de extraordinário. Todos fizeram cara de espanto e ar de melindre, mas era ― ou deveria ter sido… ― só pra inglês ver.

Depois de dois anos sem botar o nariz fora do imóvel onde se encontra, é compreensível que Assange esteja à beira de um ataque de nervos. Como bom súdito da Coroa, ele sabe que as autoridades britânicas não costumam largar o osso. Uma vez que decidiram negar-lhe salvo-conduto e vigiar a saída da embaixada 24 horas por dia, irão até o fim.

Outro dia, o refugiado bateu um papo telefônico com um jornalista do Estadão. Percebendo que, no Brasil, alguns ainda se lembram dele, decidiu requentar o prato já servido dois anos atrás.

Para botar medo nas autoridades brasileiras ― e tentar, quem sabe, cavar uma oferta de asilo ―, ressaltou o fato de que «os EUA são capazes de cortar o Brasil do resto do mundo em qualquer momento que queiram». É grande o risco de sua advertência cair em ouvidos de mercador.

EspiãoEm primeiro lugar, porque é de conhecimento geral que o grosso das telecomunicações planetárias transita pelos Estados Unidos. Assim é e assim continuará a ser. Não faz sentido instalar centenas de cabos submarinos para ligar o Brasil diretamente a cada país.

Em segundo lugar, porque o refugiado agita espantalho na hora errada. Período eleitoral não é momento adequado para esse tipo de polêmica.

Em terceiro lugar, vem a razão mais importante. O Brasil não precisa de interferência dos EUA para desligar-se do mundo. Nosso governo federal, com a inestimável ajuda dos aspones que cuidam de nossa diplomacia, já está cuidando, faz anos, de apequenar nossa importância na cena planetária. Mais alguns anos, conseguirão.

Thank you anyway, Mr. Assange. Valeu!

Segredo é pra quatro paredes

José Horta Manzano

Já faz um tempinho que se fala menos de Julian Assange, aquele que andou bisbilhotando mensagens confidenciais do governo americano e espalhando o resultado da façanha pela internet.

Muita gente aplaudiu. O homem foi, por um breve tempo, elevado à categoria de herói, uma espécie de Robin Hood dos tempos modernos, aquele que rouba segredos dos poderosos para distribui-los aos sem poder. Não é minha visão.

Mala diplomática 1Um bonito samba-canção de Herivelto Martins e Marino Pinto que Dalva de Oliveira gravou em 1947 (*) dizia justamente que «segredo é para quatro paredes». Naqueles tempos recuados, as paredes já tinham ouvidos, mas o som não ia muito além do quarto ao lado. O pior que podia acontecer é que algum maldizente espalhasse a fofoca pela vizinhança. Hoje não é mais assim.

A internet e os novos meios de difusão da informação abriram caminhos que nós, pioneiros, estamos ainda longe de conceber aonde vão levar. Hoje em dia, um sussurro emitido em Singapura será ouvido instantaneamente em Sydney, em Helsinque e até em Ushuaia. Quem joga informações na rede deve estar bem consciente dessa nova realidade. E o senhor Assange certamente estava quando decidiu divulgar dados obtidos por meios fraudulentos.

Na primeira metade dos anos sessenta, foi assinada a Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas. É aceita por praticamente todos os países. Até Cuba e a Coreia do Norte são membros do clube. Entre outras determinações, a Convenção de Viena reitera e regulamenta o antigo princípio da mala diplomática.

Tradução portuguesa da expressão valise diplomatique, a mala chegou, realmente, a ser uma espécie de baú. Os países signatários da convenção comprometeram-se a deixá-la passar, sem violá-la e sem controlar seu conteúdo. O nome ficou, mas a mala, nos dias atuais, se desmaterializou.

Mensagens diplomáticas transitam agora por internet. A mudança de meio de transporte, no entanto, não invalidou o princípio da inviolabilidade do conteúdo. Violá-lo continua sendo um crime. Difundir por internet o produto do crime, a informação surrupiada, é duplamente repreensível.

Os tempos do faroeste passaram. As leis são feitas para serem obedecidas. A ninguém ― salvo, naturalmente, a alguns figurões brasileiros «especiais» ― é dado desobedecer a elas. Quem o fizer, terá de prestar conta de seus atos.Mala diplomática 2

O senhor Assange cometeu um ato de pirataria. C’est plus bête que méchant, diriam os franceses, está mais para tolice que para malvadeza. Seja como for, o ato foi leviano e deu pano pra mangas. Agora, para coroar, o pirata mostra que sua coragem só funcionava quando se sentia protegido por um biombo, perdão, por uma tela de computador. Desmascarado, exposto e procurado por polícias do mundo inteiro, amoita-se num cômodo acanhado da embaixada londrina de uma pequena República sulamericana.

Na entrevista que teve a fineza de conceder a um correspondente do Estadão, Assange fez questão de se apresentar fantasiado de jogador de futebol. Uniformizado como se fosse dos nossos. É receita certeira para embevecer muita gente. Veja aqui e aqui.

Plugado e conectado, o hóspede da exígua embaixada deve estar a par da acolhida peculiar que o governo brasileiro costuma dispensar a refugiados. Deve saber que, durante a Segunda Guerra, nossas representações diplomáticas estavam instruídas a negar visto de entrada a judeus. Deve saber também que o último grande bandido internacional extraditado pelo Brasil foi Tommaso Buscetta, um mafioso pentito (arrependido), faz 30 anos. Deve ter estudado tim-tim por tim-tim o caso Battisti.

Em resumo, sabe que não poderá ― nunca mais ― atravessar fronteiras e circular livremente. Se tiver a sorte de se safar da embaixada onde se encontra encurralado, imagino que trocará o apertado Equador(2) por um refúgio no espaçoso Brasil. À beira-mar, se possível.Mala diplomática 3

Nesse particular, não tem muito a temer: muito provavelmente será aceito. Talvez de braços não tão abertos, dado que seu crime não foi de sangue, mas, assim mesmo, lo recibiremos de corazón.

Seus feitos combinam com o clima de malandragem e de traição.

(1) Quem quiser recordar o samba-canção, siga por aqui.

(2) Quem quiser assistir a um pouso no aeroporto de Quito, clique aqui.