Rudeza vs. sensibilidade

Ruy Castro (*)

Há um mês, o garoto Luiz Felipe Salinas Almeida, 20 anos, tocava seu violoncelo numa rua de Santos quando ouviu algo se chocando contra a madeira do instrumento. Sem parar de tocar, examinou-o e viu a baba escorrendo. Alguém o alvejara com um ovo.

Diante da gratuita brutalidade, Luiz Felipe teve vontade de chorar. Mas se segurou e continuou tocando. Os transeuntes que o ouviam olharam em torno tentando identificar quem fizera aquilo. Não conseguiram – o ovo poderia ter vindo de alguma janela. Outros perceberam a agressão e aproximaram-se, solidários. Isso só ampliou a humilhação de Luiz Felipe. Como ele disse depois, não queria ser objeto de piedade.

Não era a primeira agressão que sofria. Luiz Felipe toca nas ruas para viver e para pagar a pensão alimentícia de seu filho Valentim, de um ano. Seu palco são as cidades do interior de São Paulo e Minas Gerais. Em algumas, o comércio ao alcance de sua música já chamou a polícia para tirá-lo dali e apreender seu instrumento.

Luiz Felipe pode não ser um virtuose como o catalão Pablo Casals e o russo Mstislav Rostropovich, duas lendas do violoncelo, ou o sino-americano Yo-Yo Ma, um prodígio contemporâneo. Mas o violoncelo não é um instrumento agressivo. Seu território é o clássico e, sempre que emprestado à música popular, deu a esta uma sobriedade e classe que ela poderia ter incorporado de vez – vide o americano Kronos Quartet tocando Thelonious Monk e o nosso trio Paula e Jaques Morelenbaum e Ryuichi Sakamoto tocando Jobim. Numa época de música em decibéis intoleráveis para o ouvido humano, é impossível a um menino armado com um arco e quatro cordas, como Luiz Felipe, ferir a sensibilidade de alguém.

Resta ver até quando nossa sensibilidade resistirá à selvageria oficial, emanada dos atuais ocupantes do poder. Nunca o Brasil foi reduzido a tal rudeza e sordidez.

A pessoa que atirou o ovo personifica esse Brasil.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Os milicos que se cuidem

Ruy Castro (*)

Foi num dia de semana à tarde, em 1970, auge da ditadura —me contaram. Um garoto de seus 15 anos ganhou uma flautinha de plástico e foi à praia com ela. Sentado na areia, numa Ipanema vazia, tentou tirar o Hino Nacional —afinal, ouvia-o todo dia. Ao extrair algo parecido com a frase inicial, percebeu uma sombra entre ele e o Sol. Olhou para cima e viu um sujeito forte, bronzeado, de cabelo reco. O homem rugiu: “Por que está tocando isso?”. O garoto, surpreso, ficou mudo. Não havia resposta. O homem emendou: “Estou ali naquela barraca escutando tudo. Se continuar com gracinha vai se dar mal!”. Um vendedor de mate sussurrou para o garoto: “Coronel do Exército”.

É típico das ditaduras se apoderarem dos símbolos nacionais. O Brasil de Médici era uma diarreia verde-amarela. Uma geração de escolares foi submetida a anos de bandeira e hino diários, de pé, no pátio do colégio. Talvez por isso, um garoto de cabelo comprido tocando o Hino Nacional na praia pudesse ser um deboche, uma contestação.

O governo Bolsonaro não é uma ditadura – ainda. Mas, em algumas matérias, já se comporta como. Assenhorou-se, por exemplo, das cores nacionais e de conceitos como “povo”, “democracia” e “liberdade” e da expressão “homem de bem”. São “homens de bem” os que, contra a corrupção do PT, apoiam o extermínio de brasileiros pela Covid, promovido por ele.

Mas, agora, Bolsonaro se superou. Apropriou-se daquele que se considera o detentor do monopólio dos símbolos – o próprio Exército. Do mais tosco soldado ao mais empafiado general, Bolsonaro embolsou-os com benesses, empregos, cargos e uma ideologia intangível, em nome da qual passou a ditar-lhes o regulamento e fazê-los abdicar até de uma de suas cláusulas pétreas: a disciplina.

Os milicos que se cuidem. Um dia, ainda veremos Bolsonaro de dedo no nariz de um deles por tocar o Hino numa flautinha de plástico.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Velhacos, nossos e alheios

Ruy Castro (*)

Todos os dias, políticos, governantes e empresários são flagrados em alguma sujeira e tachados de irresponsáveis, corruptos, venais ou coisa pior. Um ou outro, isoladamente, pode chamar seu acusador a se explicar, mas nenhuma dessas categorias tem audácia ou esprit de corps suficiente para reagir em bloco contra a imprecação. Quando, digamos, Jair Bolsonaro e seus filhos são chamados de assaltantes dos cofres públicos pela prática da rachadinha, os políticos não se juntam para emitir uma nota ameaçando a democracia. Aliás, nem os próprios aliados deles os defendem – não são suicidas.

Mas, se um general de escrivaninha é declarado suspeito de algum malfeito e isso é confirmado por uma série de testemunhas, o azedume corre os quartéis. Se essas suspeitas atingem também alguns coronéis e tenentes-coronéis de suas relações, os militares espumam, falam em desrespeito às instituições e insinuam que vão mandar lubrificar o canhão.

E por que, ao contrário das outras categorias, fazem isso? Porque eles têm o lubrificante – e o canhão. Os militares se julgam diferentes de nós, os paisanos. E são mesmo. A farda lhes dá imunidades e privilégios com que nem sonhamos. Eles têm, por exemplo, seus próprios e generosos planos de carreira, saúde e previdência e até a capacidade de se administrar leniente Justiça. Sua autossuficiência só não é total porque dependem de nós, os paisanos, para sustentá-los com nossos impostos.

Por se verem tão acima de si mesmos, os militares não deveriam rebaixar-se a privar com determinados políticos, negociantes, contrabandistas, atravessadores, reverendos, cabos da polícia e outros espécimes típicos do governo Bolsonaro, muito menos em negócios envolvendo milhões de dólares e vidas.

Se privam, deixam de ser diferentes e arriscam-se a serem tratados por nós com a mesma sem-cerimônia com que nos referimos aos nossos velhacos.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Bolsonaro banana

Ruy Castro (*)

Você se esbaldou com a notícia na semana passada. O bombado deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), ao ver a PF às suas portas para prendê-lo por várias e graves lambanças, tentou fugir pulando o muro de sua casa em Petrópolis. Mas, ao completar o salto, descobriu que os homens já o esperavam no outro lado do muro. Com agilidade quase circense, pulou-o de volta, sendo afinal abotoado. Uma sequência digna de comédia do cinema mudo, só faltando Sua Excelência ter voltado por um buraco no muro e passado por entre as pernas do policial.

A ideia de um deputado federal pulando muros como um ladrão de galinha deixa mal o Congresso e pior ainda o governo que ele defende —não por acaso, o de Jair Bolsonaro. Mas é perfeita para descrever o próprio governo, repetente em pular muros e pulá-los de volta diante das suspeitas, acusações e provas de suas sujeiras. Inúmeros pilantras que o compõem já tiveram oportunidade de fazer isso, dizendo e desdizendo-se ao se verem flagrados. O pulo de volta, nesses casos, é alegar um engano, atribuindo-o a um bagrinho escalado para o sacrifício.

O grande muro, no entanto, acaba de ser pulado de volta por Bolsonaro, e resta ver o que dirão seus seguidores. Eles devem se lembrar de duas de muitas falas iguais de seu imbrochável herói: “Quem manda sou eu! Eu sou um presidente que assume ônus e bônus!” (junho de 2019). E “Quem manda sou eu! Vou deixar bem claro! Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu! Quando vão nomear alguém, falam comigo! Eu tenho poder de veto, ou vou ser um presidente banana?” (agosto de 2019).

Há dias, quando o país sentiu indisfarçável cheiro de rato numa compra de vacinas por R$ 1,6 bilhão pelo Ministério da Saúde, Bolsonaro apelou para um covarde mimimi: “Não tenho como saber o que acontece nos ministérios!”.

Ao pular o muro de volta, denunciou-se. É um presidente banana.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Cambalhotas na língua

Ruy Castro (*)

Quando escuto a primeira sílaba, meus ouvidos já entram em alerta. Alguém vai dizer a palavra “especificamente”. É um dos advérbios mais em voga no momento, e cada pessoa o acentua numa sílaba diferente. Alguns carregam no “fi”: especiFIcamente. Outros fazem a língua dar uma cambalhota e põem o peso no “pe”: esPÉcificamente. E há quem tenha de dar um salto mortal sem rede para pronunciar ÉSpecificamente. Só os puristas acentuam direito o “ci”: espeCIficamente.

Outra tendência da nova fala brasileira é a desmoralização do sujeito. Lembra-se dele nos seus tempos de cartilha? O sujeito era aquele termo da oração que formava com o verbo e o predicado uma espécie de Trio Maravilhoso Regina da língua – sabonete, água de colônia e talco. Mas parece que o sujeito, ele não é mais suficiente na frase. As pessoas, elas agora o acoplam a um pronome. O resultado, ele fica assim como você está lendo. Temo que, em breve, os escritores, eles passem a fazer o mesmo em seus textos. E, quando isso acontecer, o leitor, ele vai se dar conta da monotonia da coisa. Aliás, essa monotonia, ela acontece também na língua falada. Mas as pessoas, elas ainda não acordaram para isso.

E a palavra “robusto”? No passado, robustas eram as meninas que tomavam Toddy. Hoje, abundam robustas acusações contra os bolsonaros e não acontece nada. E quem ainda tolera o “simples assim”? Nos anos 80, só os leitores de Paulo Francis, introdutor dessa expressão na língua, a usavam. Agora qualquer pazuello faz uma cara beócia e vasovagal e a emprega para explicar que um manda e outro obedece.

Por sorte, clichês agonizantes como “reto e direto”, “sem querer interromper e já interrompendo”, “zona de conforto”, “ponto fora da curva” e “tudo junto e misturado” já saíram de moda, e só os desinformados ainda os usam.

Claro que a fala do dia a dia, ela é meio assim, tudo junto e misturado, não?

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

O jornal que nos abraça

Ruy Castro (*)

Um amigo meu, a respeito de um artigo na Folha, referiu-se ao fato de tê-lo lido “no impresso”. Queria dizer, claro, que o lera no jornal de papel. Ao ouvir isso, ocorreu-me que cada vez mais pessoas chamam de “impresso” o jornal que se compra na banca ou se recolhe pela manhã na porta do apartamento, para diferenciá-lo do online. E me ocorreu também que, mais uma vez, a substituição de um formato por outro fará com que o antigo é que tenha de mudar de nome para dar lugar ao novo.

Foi o que aconteceu quando o CD começou a se impor sobre o LP, nome pelo qual o disco de vinil foi chamado durante os seus cerca de 50 anos (1948-98) no mercado. Pois, com a chegada do CD, que era um disco metálico, o LP passou a ser chamado de “vinil” —quando, se fosse o caso, o CD, como novidade, é que devia ser chamado de “metal”. O que, com atraso, ainda pode acontecer, agora que o CD também foi reduzido a peça de museu pelas novas tecnologias.

Ninguém na Idade Média (500-1500) dizia que estava vivendo na Idade Média, e muito menos era xingado de medieval. A pecha só se estabeleceu quando veio o Renascimento. Também se diz sem pensar que dom João 6º trouxe a família real para o Brasil em 1808. Mas quem fez isto foi o príncipe-regente dom João, que só se tornou dom João 6º ao ser coroado rei, em 1816.

O advento da Segunda Guerra (1939-1945) transformou em Primeira Guerra o que até então se conhecia como a Grande Guerra (1914-1918). No Brasil, a Revolução de 1930 não derrubou a República Velha. Derrubou a República de 1889 e, para indicar a ruptura, passou a chamá-la de Velha. E o sanfoneiro Luiz Gonzaga sempre foi Luiz Gonzaga, até ser eclipsado por seu filho Gonzaguinha e tornar-se, retroativamente, Gonzagão. Etc.

Donde parece inevitável que este nosso velho amigo matinal, que nos abraça ao ser aberto, em breve se torne “o impresso”, e estaremos conversados.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Escalada verbal

José Horta Manzano

Nunca jamais esta República (que alguns começam a chamar ‘República de bananas’) tinha assistido a tamanha escalada de epítetos pespegados ao presidente. É uma chuvarada que aperta a cada dia que passa.

O interessante é que, como a pandemia, a espiral começou de mansinho, como uma gripezinha que incomoda mas não mata – (sem alusões, hein!). De repente, um jornalista aqui, outro ali, ousou realçar alguma característica desairosa do capitão. Os começos foram tímidos, mas a progressão logo se mostrou geométrica.

Como em tudo na vida, a coisa vai e a coisa vem. Quem começou, na verdade, foi o presidente, ao desancar jornalistas com qualificativos agressivos. Os profissionais revidaram em seus artigos. E assim o pingue-pongue foi crescendo até atingir picos nunca vistos. Ninguém gosta de apanhar calado. Assistimos hoje a um leilão em que cada um dobra o lance do concorrente.

Em julho do ano passado, escrevi um artigo comentando a escalada verbal introduzida por doutor Bolsonaro nos costumes desta maltratada República. Relembrei como era a coisa nos tempos de Juscelino, ao final dos anos 1950, num tempo em que o Brasil ainda era civilizado.

Meio receoso, eu listei 15 qualificativos colhidos na internet, todos aplicados ao presidente. Já me pareceu uma enormidade. Frisei bem que não eram de minha autoria, mas escritos por outras plumas – eu só fazia citar. Na época, ninguém imaginava que o pior ainda estava por vir. Se o distinto leitor quiser rememorar aquele passado tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante, deixo o link mais abaixo.

Meses mais tarde, outros escribas também tiveram a ideia de compilar adjetivos, substantivos e expressões aplicáveis ao presidente. Selecionei três artigos, que estão aqui para quem quiser dar uma olhada. Os links estão logo mais abaixo.

Apesar dessa inflação de epítetos, a língua não se esgotou. Ainda há expressões a garimpar. Dizem que não adianta, porque Bolsonaro é blindado contra expressões ofensivas. Ah, é? Por que então pede instauração de inquérito contra qualquer um que o chame de genocida, pequi roído ou outro nome cheiroso ou espinhudo? Essa história de blindagem está mal contada.

Links

13 jul° 2020
José Horta Manzano
15 qualificativos

26 jan° 2021
Ruy Castro
24 qualificativos

28 jan° 2021
Ruy Castro
146 qualificativos

19 março 2021
Mariliz P. Jorge
191 qualificativos

Demência de Bolsonaro

Ruy Castro (*)

Para nós que passamos 21 anos de vida adulta (1964-1985) sob a ditadura, os generais eram sujeitos sinistros, de óculos escuros, que nos ditavam quando, se e em quem podíamos votar, o que podíamos ler, ver, escutar, dizer e escrever e, se falássemos em instituições, direitos e liberdade, eles mandavam prender e arrebentar. Eles tinham as armas, as verbas e as canetas com as quais impor sua autoridade. E os porões, instrumentos de tortura e beleguins para aplicá-la. A mera visão de uma farda era intimidadora. Ela nos reduzia moralmente à menoridade, às calças curtas, à fralda.

Aí está algo incompreensível para um brasileirinho de hoje. Ele não entenderá como os militares podiam ter essa força. Para ele, militares são sujeitos que Jair Bolsonaro põe no governo, exibe nas redes sociais e logo começa a depreciar, diminuir, desmoralizar e, por fim, fulmina com a demissão. Em menos de dois anos, já fez isso com 16 generais, quatro brigadeiros e um almirante, e só entre os oficiais de alta patente.

Segundo levantamento da Folha, Bolsonaro demite um desses caciques por mês, até os que, por causa dele, abriram mão de suas promoções. Nada se compara, claro, ao esbofeteamento simbólico a que vive submetendo o general Eduardo Pazuello, pseudoministro da Saúde e seu mais dedicado ajudante de ordens.

Se Bolsonaro trata assim os graúdos, imagine seu apreço pelos 6.000 fardados do segundo time com que entupiu os ministérios, estatais, autarquias e bancos públicos. Só lhe servem para alimentar sua ilusão de que comprou o Exército.

Pode ser psicologia de galinheiro, mas estou certo de que Bolsonaro faz tudo isso para se compensar de humilhações em sua medíocre carreira militar. É uma forma de demência, que parece fascinar os generais – ou não se submeteriam a ela.

O brasileirinho de hoje tem razão. Se eles são assim, como conseguimos passar 21 anos sob suas botas?

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Trump, a bomba humana

Ruy Castro (*)

Milhões perderam o emprego por causa do coronavírus. Donald Trump não. A pandemia não obrigou a Casa Branca a fechar as portas. Em consequência, Trump continuou batendo o ponto, recebendo o salário e contando com as benesses de seu cargo, inclusive a de ter sua vida salva.

Não sejamos cínicos. Foi com euforia que o mundo recebeu a notícia de que ele caíra vítima da doença que já afetou 35 milhões de pessoas e cuja gravidade sempre negou. Nada de condolências ou preces hipócritas pela sua recuperação. Multidões torceram para que ele passasse pelos mesmos horrores que nossos parentes e amigos, como o de ser entubado, e, quem sabe, se juntasse ao mais de um milhão de pessoas que o vírus levou. Entre outros motivos, para que alguém menos irresponsável tomasse as rédeas nos EUA e interrompesse o nefasto exemplo que Trump dá a governantes beócios.

Daí o encanto com que acompanhamos a batelada de remédios que os médicos bombearam no seu organismo por uma miríade de orifícios. Trump foi recheado com coquetéis de anticorpos sintéticos, antivirais, melatonina, zinco, aspirinas e antiácidos, associados a quilos de drogas heavy metal como dexametasona, remdesivir e REGN-COV 2, enquanto eles o mantinham respirando com jatos de oxigênio capazes de inflar o dirigível Hindenburg. Só não lhe deram cloroquina porque queriam salvá-lo, não matá-lo.

Com tudo isso, não admira que ele tenha levado apenas três dias para ressuscitar, voltar ao trabalho e jogar fora a máscara. O problema agora é: quem vai proteger a Casa Branca da bomba humana que Trump se tornou, despejando perdigotos por onde passa e atingindo colegas, burocratas, seguranças, faxineiros e até os pobres correspondentes?

Trump declarou que se sente melhor hoje do que “há 20 anos”. Mentira. Há 20 anos ele estava apalpando mocinhas em público. Agora já não lhe serve de nada fazer isso.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

De volta ao amadorismo

Ruy Castro (*)

A história é conhecida. Em 1956, no Rio, o jornalista Lucio Rangel apresentou o jovem Tom Jobim a Vinicius de Moraes no bar Villarino, como sendo o homem que Vinicius procurava para musicar sua peça “Orfeu da Conceição”. Para Vinicius, se Lucio Rangel o indicava, é porque Tom devia ser bom mesmo. E fez com a cabeça algo como “Ótimo!” ou “Vamos nessa!”. E, então, Tom perguntou: ”Tem um dinheirinho nisso?”.

Lucio quase caiu de seu copo de uísque. Recuperou-se e esbravejou: “Tom, este é o poeta e diplomata Vinicius de Moraes! Como é que você me fala em dinheirinho?” ‒ como se o simples fato de trabalhar com Vinicius fosse remuneração suficiente. E Tom, já quase querendo se matar, balbuciou: “É que… eu preciso pagar o aluguel”.

Bem, Tom e Vinicius saíram dali parceiros e o que fizeram juntos, pelos seis anos seguintes, entrou para a história. E teve, sim, um dinheirinho para Tom. Mas o que interessa aqui é a ideia de que, em 1956, o teatro e a música popular ainda eram uma operação romântica, em que falar de dinheiro era quase uma ofensa. Dava-se de barato que os artistas trabalhassem pela glória e só almoçassem de vez em quando.

Mas, a partir dos anos 70, o Brasil se profissionalizou. A arte brasileira ingressou no capitalismo e todos lucraram: os artistas, os produtores, o público, o país. O mundo se encantou com o que fazíamos, e isso só foi possível porque nossos artistas já podiam viver de sua arte.

Mas o mundo gira e, de repente, regredimos a 1956. Desde 2015, quando Dilma Rousseff quebrou o país, o dinheiro sumiu. Incontáveis projetos na área da arte e da cultura foram cancelados; outros tantos nem saíram do papel. E, sob a ignorância ou má-fé dos beleguins de Jair Bolsonaro, a Lei Rouanet virou palavrão. Na área cultural, o Brasil dispara de volta rumo ao amadorismo. Perguntar pelo dinheirinho pode ser, de novo, uma ofensa.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Tuíte – 2

José Horta Manzano

Ruy Castro, escritor e jornalista, é da mesma opinião que este blogueiro quanto à relação entre doutor Bolsonaro e a covid-19. Em três ocasiões (25/3, 31/3 e 13/4) escrevi artigos sugerindo que o presidente teria sido contagiado na viagem que fez à granja de Trump. Voltou, tossiu, sentiu falta de ar, tomou cloroquina, os sintomas passaram. E o moço atribui a cura milagrosa ao remédio. O artigo de Ruy Castro está aqui (para assinantes da Folha). O último dos que escrevi está aqui (é boca-livre, não precisa ser assinante).

Aposta errada

Ruy Castro (*)

As forças que, há um ano, se juntaram para apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência devem estar se perguntando hoje se não teria sido melhor ficar com a primeira opção, o cabo Daciolo. Na época, ainda longe da largada, Bolsonaro e Daciolo, cada qual em seu box, pareciam focinho com focinho nas preferências. Ambos preenchiam os requisitos: eram carismáticos, primários e quase medievais.

A ideia era a de que qualquer um deles, se eleito, faria uma simpática figuração no Planalto enquanto o país seria gerido pelos profissionais – os quais, depois de milhares de reuniões-hora em suas instituições, já tinham tudo esquematizado: abertura, reformas, volta da economia. Ao presidente, caberia uma agenda que o manteria ocupado e à distância da única arma perigosa ao seu alcance: a caneta.

Mas, já na campanha, Daciolo começou a assustar os apoiadores. Em vez de prometer salvar o Brasil, fazia de cada 15 segundos na TV uma versão pocket do Sermão da Montanha. Sua voz, amplificada por anos de salmos em quartéis de bombeiros, era “assertiva” demais. E, pela frequência com que dava Glória ao Senhor Jesus, era como se tivesse o WhatsApp do homem e somente a Ele daria satisfações no mandato.

Os apoiadores voltaram-se então para Bolsonaro, com seu jeito de matuto simplório. No poder – pensaram –, enquanto ele brincasse de capitão dando ordens a generais, eles tratariam do país.

Bem, Bolsonaro foi eleito e fez o que eles não esperavam: resolveu usar a caneta. Diz os maiores absurdos, toma decisões irresponsáveis, provoca incêndios que o próprio governo tem de apagar, quer acabar com a educação e o ambiente, tem três filhos dementes e se deixa guiar por um esperto que está vivendo algo nunca sequer sonhado: dirigir o país por controle remoto. Resultado: erraram feio. Daciolo talvez fosse melhor – mesmo com Jesus Cristo como vice.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

O valor de ‘pi’

Ruy Castro (*)

Uma notícia de jornal trouxe-me à memória um fantasma da adolescência: “pi”. “Pi”, para quem não sabe, tem a ver com matemática. É a resultante da razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo. Não sei o que isso significa —apenas copiei a descrição do jornal. Durante toda a vida escolar, fui atormentado por “pi”. Quando o professor tirava o giz do bolso do guarda-pó, enchia o quadro com números e falava em “pi”, eu já sabia que aquilo logo me renderia um zero.

“Pi”, com esse nome de esquilo de desenho animado, é um desafio para os matemáticos. Desde o grego Arquimedes, eles vêm travando sangrentas batalhas entre si, fazendo cálculos para determinar o valor do bicho. Um “pi” simples vale 3,14 —não me pergunte de quê. Mas, há milênios, esse número tem sido acrescido de decimais, a tal ponto que, pelos cálculos do suíço Peter Trüb, em 2016, “pi” já estava em 22,4 trilhões de dígitos —nem a inflação na Venezuela chegou a tanto.

Agora, a japonesa Emma Haruka Iwao acaba de estabelecer um novo valor: 31,4 trilhões de dígitos. E como ela chegou a isto? Operando, durante 121 dias, 25 computadores, que processaram 170 terabytes de dados. Um terabyte, para se ter ideia, armazena 200 mil músicas. Pois tente imaginar 31,4 trilhões de dígitos.

Devíamos chamar Emma ao Brasil. Só ela, usando sua intimidade com “pi”, poderia ajudar a Lava a Jato a calcular o total de dinheiro movimentado pela corrupção nos últimos 30 anos, envolvendo governantes, burocratas, empresários, políticos e partidos. Deve estar em níveis de “pi”.

Quando nos damos conta da naturalidade com que temos ouvido falar em milhões ou bilhões de reais roubados, e não distinguimos mais uns dos outros, é porque já nos tornamos cínicos ou indiferentes. E por que não? Afinal, como disse o juiz Ivan Athiê, aquele que soltou Michel Temer outro dia, “propina não é crime ‒ é gorjeta”.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Nossa vida, mais amores

Ruy Castro (*)

Um dos maiores poemas, talvez o mais célebre, da literatura brasileira diz em sua segunda estrofe:

Nosso céu tem mais estrelas
Nossas várzeas têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida, mais amores.

Você adivinhou: é a Canção do Exílio, de Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), que começa, claro, com

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.

Sabiá-laranjeira

Quando o poeta o escreveu, em 1843, o Brasil, ainda com 90% de território a desbravar, tinha de si próprio uma visão romântica e idealizada. Hoje sabemos muito mais sobre o país ‒ e tanto que, se Gonçalves Dias fosse reescrever seu poema, teria outras imagens a escolher. Eis algumas.

Nossas barragens são criminosas e inseguras ‒ rompem-se e levam à morte o que encontram pela frente. Nossos viadutos e pontes vão abaixo ou racham, pela ação do tempo ou por serem feitos com material de quinta. Nossos museus se incendeiam e destroem patrimônios que não nos pertencem, mas à humanidade.

Nossos mares, baías e rios recebem nossos abjetos dejetos naturais e industriais e só têm o odor como protesto antes de morrer. Nosso céu é, às vezes, uma hipótese ‒ algo que deve existir acima da camada de poluição. E nossos sistemas de fiscalização, obedientes a interesses maiores, não fiscalizam.

Nossos hospitais, escolas e transportes públicos são carentes, insuficientes ou inexistentes. Nossas estradas, ruas e calçadas são crateras, impróprias para humanos e carros. Nossas cidades têm vastos territórios vedados aos cidadãos e outros em que, pela miséria, seus habitantes podem praticar tudo, menos a cidadania. E nossos administradores são inoperantes, incompetentes ou corruptos.

Falando neles, nossos corruptos são, estes, sim, dignos de poemas e rapsódias. Penetraram por todas as brechas conhecidas da vida pública. E, como não paramos de descobrir, também pelas desconhecidas.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Mixórdias incompreensíveis

Ruy Castro (*)

Entra presidente, sai presidente, e os funcionários das embaixadas brasileiras no exterior continuam sofrendo. Nossos governantes precisam viajar de vez em quando e, como não são obrigados a falar outra língua ‒ nenhum governante é ‒, dependem dos intérpretes para conversar com seu colega estrangeiro ou com a imprensa local. Esses intérpretes, se forem do velho Itamaraty, são fluentes nas línguas internacionais e competentes na dos países em que servem. O problema são os presidentes. Além das asneiras que dizem, quase todos têm péssima dicção.

Jair Bolsonaro, pelo que já se viu e ouviu, é um desastre vocal. Fala depressa demais e suas consoantes atropelam as vogais, numa mixórdia quase incompreensível ‒ é como um trem descarrilado, com os vagões, no caso, as sílabas, amontoados uns sobre os outros. Às vezes, desiste de uma frase pelo meio e a substitui por outra, que, idem, não conclui. Esse suposto à-vontade não quer dizer segurança ou desembaraço, mas desleixo, mesmo. Ou contratam uma professora como Glorinha Beutenmüller para ensinar Bolsonaro a falar, ou seus intérpretes terão de pular miudinho.

Não é só Bolsonaro, claro. Lula era língua presa ‒ ainda é. Seus esses soam como efes, tipo “Eu fó queria faber, eu fou ou não fou o dono do fítio?”. Imagine-o, em presidente, falando com Mugabe, do Zimbábue, Maduro, da Venezuela, ou Ali Bongo, do Gabão, e os intérpretes tendo primeiro de traduzi-lo para o português antes de vertê-lo para seus ditadores favoritos.

Já o problema de Dilma eram os absurdos que dizia, como “Depois que a pasta de dente sai do dentifrício, ela dificilmente volta pro dentifrício”. E o de Temer é o conteúdo zero com os pronomes certos ‒ suas falas são um vácuo, não dizem nada.

E Fernando Collor? Posso calcular o suplício do intérprete se ele dissesse lá fora o que, certo dia, disse aqui: “Eu tenho aquilo roxo!”.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Mensagens em garrafas

Ruy Castro (*)

Tenho reparado que alguns emails enviados por mim só têm sido respondidos dez dias depois. A desculpa é sempre a de que só então haviam sido abertos pelo destinatário. Não duvido. No mundo do WhatsApp, quem se preocupa em abrir emails? O fato de que, até outro dia, eles eram o principal veículo de comunicação entre humanos não quer dizer mais nada. Mandar um email para alguém parece-se hoje com o náufrago que atira ao mar uma garrafa com uma mensagem, rezando para que, um dia, com sorte, a garrafa seja encontrada e a mensagem, lida.

Da mesma forma, deixar uma mensagem gravada na secretária eletrônica de um celular equivale a falar para um anfiteatro vazio, mesmo que se esteja recitando a Odisseia, de Homero. Por algum motivo, as pessoas já não se dão ao trabalho de escutar mensagens em secretárias. Ao ler no visor o número de quem telefonou, preferem ligar de volta e perguntar o que você deseja. O contrário também vale: ninguém mais dá bola para as secretônicas. Há um mês, ganhei um aparelho com uma secretária. Mas, até agora, o número de mensagens deixadas nela ainda não chegou a dez.

Nenhuma tecnologia, por mais moderna, está a salvo. Todas terão o destino daquele que já foi o mais querido e importante elo entre pessoas distantes: a carta de correio. As pessoas ‒ eu, inclusive ‒ deixaram de escrevê-las. É pena: há certas mensagens que só ficam bem em cartas manuscritas, vide as de amor, de despedida e até as sórdidas e anônimas, entregando a sua mulher.

E não vou me referir àquele trissecular e heróico veículo a ser brevemente extinto: o telegrama. Dizem que, mais do que todos, ele ficou inútil. Será? Como conferir aos outros veículos a reconfortante sensação de urgência de um telegrama de parabéns ou de pêsames?

Acho que vou passar a imprimir meus emails, enfiá-los em garrafas e atirá-los ao mar.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Os crimes da mala e o cadáver do Brasil

Ruy Castro (*)

Em 1928, em São Paulo, um imigrante italiano, Giuseppe Pistone, estrangulou sua mulher Maria Mercedes, que o denunciara como trambiqueiro. O que fazer com o cadáver? Pistone serrou-o pelas pernas, espremeu-o numa mala e despachou-o para um destinatário inexistente em Bordeaux, França. Ao ser içada a bordo do navio Massilia, em Santos, a mala abriu acidentalmente e revelou o seu conteúdo. Pistone foi preso e condenado a 31 anos. Cumpriu 13, saiu e até se casou de novo.

O caso passou à história como “o crime da mala”, embora não fosse o primeiro nem o último com esse nome. Há cinco anos, também em São Paulo, uma mulher matou a tiros o marido, executivo de uma grande empresa fabricante de pipoca. Experiente em enfermagem, ela o esquartejou e o distribuiu por três malas com rodinha, que enfiou no carro e levou até Cotia para se desfazer. Foi apanhada e presa. E este também não será o último caso do gênero.

Um novo tipo de crime da mala está em curso no Brasil. Consiste em esquartejar os escrúpulos e rechear malas, não com o que restou deles, mas com dinheiro ilícito. O caso mais flagrante é o do ex-deputado Rodrigo Loures, destacado pelo presidente Temer como seu “homem de confiança” para se entender com os amigos da JBS — e, dali a dias, filmado ao receber uma mala numa pizzaria e, assustado, tomar um táxi com ela no colo. A mala continha R$ 500 mil em espécie e soube-se depois que ele a escondeu na casa da mãe.

Na sequência, Fred Pacheco de Medeiros, operador e primo do senador Aécio Neves, também foi filmado acomodando em malas R$ 500 mil da mesma generosa JBS. E, antes deles, o notório ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto era tão useiro em rechear mochilas com dinheiro que seu apelido era “Mocha”.

Em todas essas malas e mochilas, vai, aos pedaços, o cadáver do Brasil.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.