Viagem à Rússia

José Horta Manzano

Doutor Temer está de viagem para longe. Vai visitar a Noruega e a Rússia, países vizinhos, ambos a dois passos do Polo Norte. O que é que há de comum entre eles? Bem, tirando a fronteira de pouco mais de 200km, a característica mais saliente é que são ambos grandes produtores de petróleo. O objetivo oficial da visita presidencial resume-se a vagas ‘tratativas comerciais’. O detalhe não foi explicado tim-tim por tim-tim.

Não dá pra acreditar que o presidente de um país cuja maior empresa petroleira tem sido tão maltratada vá dar lições de administração àqueles brancos de olhos azuis. A empresa Gazprom, gigante do petróleo russo, vai bem apesar da corrupção que, dizem, é imensa. Os russos devem ser mais competentes em matéria de rapina. Tiram o leite sem matar a vaca.

Há outro motivo que está atraindo muitos visitantes à Rússia estes dias. Está-se desenrolando lá a Copa das Confederações, aquela que se disputa um ano antes da Copa do Mundo. O Brasil não participa, dado que o representante da América do Sul é o Chile. Isso explica o desinteresse da mídia nacional pelo evento. Será nosso presidente fervoroso amante do futebol? Será que sua paixão pela bola rolando o levaria a deixar o conforto de Brasília pela poltrona de um estádio? Difícil acreditar.

Dança cossaca

Doutor Temer saiu ameaçando processar aquele atrevido que o denunciou, o moço de nome simplório e sobrenome pio. «Me segura, que eu bato!» ‒ parecia dizer, à espera da turma do deixa disso. Como é curioso… Faz mais de um mês que veio a público a ousada gravação feita na calada. O Brasil inteiro ficou sabendo. Naquele momento, a resposta presidencial não passou de um desmentido. Foi veemente e vigoroso, mas não passou disso.

Todo cidadão que se considera injuriado, difamado ou caluniado costuma tomar providências jurídicas imediatas. Doutor Temer não tomou nenhuma. Passado um mês, sai para um passeio escandinavo-siberiano de uma semana deixando no ar a ameaça: «Ainda vou processar aquele indivíduo!»

Por que não o fez até hoje? Há de ser porque Temer teme. Num processo dessa natureza, certos podres não revelados antes perigam vir à tona. Melhor não abrir processo antes de combinar com os russos. Talvez seja justamente essa a razão da viagem a Moscou: combinar com os russos.

Síndrome de insensibilidade perceptual

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Globo 2Um distúrbio alarmante vem se disseminando como praga nos cinco continentes. Apesar dos esforços empreendidos por pesquisadores científicos em várias partes do mundo, ainda não foi possível determinar sua causa. Embora não represente um fenômeno novo para a neurociência, os cientistas estão intrigados com o rápido alastramento do transtorno.

Sabe-se apenas que o distúrbio atinge indiscriminadamente homens e mulheres, jovens e idosos. Pressupõe-se que os casos mais graves estejam relacionados à negligência afetivo-emocional na tenra infância, ainda que não se descarte a possibilidade de ela ser decorrente também dos altos níveis de estresse nas grandes cidades e da alta competitividade no mundo profissional.

O principal sintoma observado é a incapacidade do portador da síndrome no sentido de perceber as conotações simbólico-afetivas das imagens que visualiza. Alguns estudos indicaram uma possível falha na comunicação entre os neurônios do lobo occipital e os do sistema límbico, que mimetiza lesões nos corpos amigdaloides.

by Shaina Craft

by Shaina Craft, artista americana

É fato conhecido que, entre humanos, uma lesão nas amígdalas do sistema límbico faz com que o indivíduo perca o sentido afetivo da informação vinda de fora, tornando-o indiscriminativo e emocionalmente indiferente. Ou seja, embora do ponto de vista cognitivo o sujeito seja capaz de identificar e categorizar corretamente o objeto visualizado, é-lhe impossível apreender as conotações simbólico-afetivas do mesmo.

Em função dessa indiferença afetiva, pesquisadores ingleses batizaram a síndrome como “Insensitive Perceptual Misjudgement Syndrome” [IPMS]

Alguns dos casos mais recentes e notórios registrados nos últimos meses são os seguintes:

Interligne vertical 17eUm dentista americano realizava um safári no Zimbábue e, ao olhar pela mira de seu fuzil de caça, viu só um leão velho e o matou. Na realidade, tratava-se de Cecil, o amado animal-símbolo de um país e de todo o continente.

Interligne vertical 17dUm colono judeu, buscando retaliar o que entendia ser agressões sofridas pelos seus, atirou uma bomba incendiária pela janela de uma casa e viu só uma residência palestina. Na realidade, tratava-se do lar de um bebê de 1 ano de idade.

Interligne vertical 17cIntegrantes do Isis, o autodenominado Estado Islâmico, entregaram a uma criança a tarefa de justiçar um homem, que viam só como infiel. Na realidade, tratava-se de um grupo de seres humanos.

Interligne vertical 17bNo calor da torcida no estádio de futebol, o homem atirou uma banana em direção a um dos jogadores, já que viu só um macaco. Na realidade, tratava-se de um esportista jovem e hábil, aclamado por seus concidadãos.

Bandeira olhoO ministro Levy e a presidente Dilma dirigiram-se à plateia para explicar a necessidade de ajuste fiscal e viram só contribuintes e analfabetos políticos. Na realidade, eram cidadãos brasileiros.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O Egito antigo e nós

José Horta Manzano

Futebol 1

O portal noticioso francês RTL comenta o fechamento temporário do estádio dito Arena Pantanal, inaugurado em Cuiabá um mês antes da Copa 2014. O complexo esportivo será interditado ao público para dar lugar a «intervenção de emergência», necessária para sanar «diversos problemas de construção».

Frise-se que o estádio foi entregue 6 meses atrás. Acolheu 4 (quatro) jogos do Campeonato do Mundo, entre eles um imperdível Nigéria x Bósnia. A construção da ‘arena’ custou módicos 254 milhões de dólares, que equivalem, ao câmbio atual, a 660 milhões de reais.

Dividindo o gasto total pelos quatro jogos que o estádio acolheu, chega-se ao veredicto: cada um dos encontros custou ao contribuinte brasileiro 165 milhões de reais. Sem contar o que vai ser gasto no «conserto». Não foi divulgada a porcentagem de superfaturamento incluída nesse valor.

Futebol 4O portal informa que o próprio governo do Estado de Mato Grosso reconhece que o futuro do campo de futebol está comprometido, dado que a previsão de receitas está longe de cobrir os custos de manutenção. É obra deficitária, como todos já sabiam.

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Para fechar o artigo, uma última flechada. Fica-se sabendo que, para amortizar os 470 milhões de euros (1,3 bi de reais) investidos no estádio Mané Garrincha, de Brasília, serão necessários mil anos.

O distinto leitor e eu não temos nada que ver com o peixe. Mas pode ter certeza: os tataranetos dos tataranetos de nossos tataranetos nos amaldiçoarão.

Daqui a um milênio, se a humanidade ainda estiver povoando este planeta, nossa era será descrita como civilização atrasada, que gastava recursos construindo monumentos de concreto em vez de cuidar da saúde e da educação do povo. Exatamente como enxergamos o Egito antigo ou as monarquias absolutistas. No fundo, pouca coisa mudou de lá pra cá.

Sem fronteiras

José Horta Manzano

Seja qual for o resultado da final de consolação deste 12 de julho, a Copa das copas já terminou. Chegou a hora do inventário. Quando o resultado é bom, distribuem-se os dividendos. Dado que o exercício foi catastrófico, é hora de apontar os culpados.

Certa de que o Brasil venceria o torneio, dona Dilma tinha-se atribuído, de antemão, a paternidade de glórias futuras. As glórias entraram em greve e não vieram. Todos agora lançam olhar interrogativo à presidente e perguntam: «Ué, a senhora não disse que ia dar tudo certo e que ia ser uma maravilha?». Presidenta que se preza não pode se esquivar alegando que foi traída, que não sabia de nada. Essa desculpa já está muito manjada.

Elefante 2Instruída por algum assessor, ela chegou à conclusão de que, para escapar, o melhor seria jogar a responsabilidade no colo de alguém. A CBF, responsável pela organização do futebol nacional, apareceu como culpada ideal pelo descalabro. Dona Dilma, sob a ameaça de ver suas «arenas» se transformarem em elefantes brancos, aceitou a sugestão. Já se pronunciou mais de uma vez declarando, em tom peremptório, que uma profunda reformulação do futebol brasileiro tem de ser empreendida.

Cabe a pergunta: por que, diabos, essa profunda reformulação não foi posta em prática faz sete anos, desde o momento em que o Brasil foi designado para abrigar a Copa das copas? Por que esperaram que a incúria desembocasse numa acachapante derrota?

Ainda que tardiamente, nossa presidente propõe que se criem escolas de futebol, como na Alemanha, para que nossos craquinhos possam desenvolver sua craquidão e tornar-se cracões sem ter de recorrer a escolas estrangeiras. Assim ― raciocina a mandatária ― jogadores brasileiros ficarão no Brasil, o nível do futebol nacional subirá e os estádios lotarão, afastando o espectro de elefantes albinos plantados em plena Amazônia Legal.

O raciocínio manca das duas pernas. Parte da falsa premissa de que nossos atletas vão jogar na Europa por causa da inexistência de escolas de futebol nacionais. Não é bem assim. Eles vão jogar onde o salário for mais vantajoso. Se os clubes brasileiros pagassem o que pagam os europeus, haveria fila de cracões mundiais à espera de uma chance.

Elefante 1A segunda leviandade é ignorar o custo da empreitada. Já imaginaram? Cria-se nova estatal, a Futebrax (ou SoccBras, de sabor mais americanizado). Em seguida, abrem-se 27 filiais da autarquia, uma em cada estado. Depois vêm as sedes, os campos de treinamento, os professores, os assessores, os olheiros, os fisioterapeutas, os médicos, os roupeiros, os treinadores, os psicólogos, os porteiros, os seguranças, a mulher do café. Sem esquecer os agregados, os nomeados, os apaniguados, os amigos do rei e a indispensável propaganda institucional ― um verdadeiro cabide de empregos. Para salvar elefantinhos (os estádios inúteis), cria-se um elefantão. Contrassenso.

Proponho a dona Dilma um caminho muito mais simples, rápido e barato. Que institua imediatamente a Bolsa-Futebol. Os craquinhos que demonstrarem talento serão contemplados. Passarão dois anos na Alemanha, estudando numa escola de futebol, com todas as despesas pagas. Depois disso, terão de honrar o compromisso de atuar no futebol brasileiro, obrigatoriamente, durante dois anos. A partir daí, estarão liberados para trabalharem onde bem entenderem.

A mim, parece-me uma solução de baixo custo e de fácil realização. Em vez de construir uma estrutura a partir do zero, cara e demorada, aproveita-se a estrutura já existente no estrangeiro. Não vejo desonra nisso.

Para disfarçar o estigma de assistencialismo embutido na palavra bolsa, melhor chamar o programa de Futebol sem fronteiras. Que tal?

#Tevecopa

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jul° 2014

Teve Copa, sim, senhores. Contradizendo pessimistas, o megaevento fez sucesso estrondoso. Como escrevo antes das quartas de final, não sei se a Seleção terá avançado ou tropeçado. De todo modo, o que interessa mesmo são os efeitos colaterais e o legado. Nossas autoridades, quando aceitaram organizar o campeonato, tinham objetivo ambicioso e múltiplo.

No plano interno, o torneio congregaria duzentos milhões em ação num só brado: «pra frente, Brasil, salve a Seleção». Seria a prova maior da concórdia e do contentamento do povo brasileiro ― a consagração lógica e brilhante destes anos de obstinado marketing. A magnificência do espetáculo havia de satisfazer aos apetites mais exigentes. O crédito de simpatia do mandarinato só poderia crescer.

No plano externo, a fabulosa exposição midiática seria o vetor da afirmação do Brasil-potência. Alto e bom som, ecoaria no planeta a prova da inserção definitiva de nosso país no restrito clube do Primeiro Mundo. Membro de carimbo e carteirinha, faz favor!

Teve Copa, sim, senhores. E foi um sucesso! Por irrisórios 25 bilhões, temos agora uma dúzia de soberbos estádios de futebol, dois deles estrategicamente plantados na Amazônia Legal. É inacreditável relembrar que o País tinha chegado ao século 21 sem essas imprescindíveis «arenas». O espírito visionário de nossos dirigentes preencheu a lacuna.

Bandeira Brasil 1É verdade que a Copa poderia ter servido de incentivo ao aprendizado de línguas. Afinal, centenas de milhares de turistas forasteiros foram recebidos por um povo monoglota. É pena ninguém ter pensado em planejar esse detalhe. Tem nada, não. Fica pra próxima. Não se pode cuidar de tudo ao mesmo tempo.

É verdade que nosso padrão de Instrução Pública continua baixo. Nos grotões, o ensino é ministrado em condições africanas. Mas isso é ninharia. Não se pode cuidar de tudo ao mesmo tempo. Dispositivo impressionante foi preparado para cuidar da saúde de atletas. Equipes médicas paramentadas, macas padrão Fifa, helicópteros para emergências. Os esportistas socorridos encontraram atendimento de primeira linha, rápido, eficaz.

É verdade que nossos hospitais públicos ainda não atingiram tal grau de excelência. Mas isso é mixaria, problema antigo que pode esperar. Não dá pra resolver tudo ao mesmo tempo.

Até linhas aéreas se esforçaram. Não houve greve. Atrasos estiveram abaixo do habitual. Atletas boquiabertos cruzaram os céus sem um pio de reclamação.

Crédito: Guilherme Bandeira www.olhaquemaneiro.com.br

Crédito: Guilherme Bandeira
http://www.olhaquemaneiro.com.br

É verdade que o transporte urbano dos brasileiros comuns continua caótico, caro, raro, desconfortável, lento, inseguro. Diante da grandiosidade da organização da Copa, porém, isso é bagatela. Metrô? Pura babaquice.

Last but not least, a projeção do País no exterior. Nas muitas décadas que tenho vivido expatriado, posso garantir que jamais o Brasil tinha sido alvo de exposição midiática de tal magnitude.

Até nos rincões da Mongólia e da Birmânia, sabe-se hoje que nosso país tem estádios magníficos. Sabe-se também que nossa terra tem sol e calor. Muitos se arrependem de não ter planejado uma viagem ao Brasil durante a Copa. Agora é tarde.

Visitar o País depois? Visitar o quê? A novidade mostrada foram só os estádios. Fora isso, a exposição midiática serviu para reforçar conhecidos clichês. Repórteres repisaram os horrores de sempre: prisões superlotadas, violência urbana, desigualdade social, gente hospitalizada em corredores, prostituição, carestia. Coisa de frear os ímpetos do turista ajuizado.

Uma detalhe pouco divulgado: teve Copa, sim, mas não para todos os brasileiros. Cerca de um milhão de conterrâneos ainda não dispõem de energia elétrica. Como no século 19, vivem nas trevas ― no próprio e no figurado.

No exterior, muitos me perguntam por que a presidente do Brasil não assiste aos jogos nem mesmo quando chefes de Estado estrangeiros estão presentes. Nessas horas, desconverso.

Copa 14 logo 2Na conta de perdas e danos, o resultado da «Copa das Copas» terá sido neutro. O brasileiro agora tem estádios esplêndidos, mas as mazelas do dia a dia continuam como dantes. O resto do mundo encharcou-se de ouvir e ler sobre o Brasil, mas nossa imagem não mudou: Carnaval, malemolência, criminalidade, anarquia perduram no imaginário forasteiro. Nossa ineficiência ficou patente.

Perdemos excepcional ocasião de melhorar a vida dos habitantes e de soerguer a imagem do Brasil. Fica para quando der. E vamos torcer para que, na próxima Copa, a Fifa nos conceda os segundos que faltam para a execução decente do Hino Nacional. O povo brasileiro, desde já, agradece.

Escolha infeliz

José Horta Manzano

O escritor Ruy Castro, colunista da Folha de São Paulo, acertou no milhar com seu artigo Solene esnobada, publicado em 23 de junho. Irretocável.

Nestes tempos de “Copa das copas”, todos nós temos tido nossos ouvidos e olhos bombardeados com gritos de goool, patriotadas, análises, janelas embandeiradas, carreatas, trombetas, buzinaços. E continhas de chegar.

Nós outros, expatriados, vivemos imersos em ufanismos múltiplos. As carreatas e os buzinaços não correspondem necessariamente às conquistas daquela que antigamente chamávamos Seleção canarinho. Dependendo do país onde se esteja, as continhas de chegar podem até ir em sentido contrário ao que nos interessaria. É natural. Vivemos na casa dos outros.

Já se disse e redisse, já se pisou e repisou o assunto: a dinheirama que o povo brasileiro ― através de seus representantes, evidentemente ― despejou na organização da Copa e na construção de estádios ma-ra-vi-lho-sos teria sido mais bem utilizada em projetos de educação e saúde.

Assim não foi feito, que é que se há de fazer? O que está feito está feito. Resta fazer das tripas coração. Os bilhões de reais arrancados do povo brasileiro estão, pelo menos, servindo de maxipromoção do País em nível planetário. Será?

Fifa vinhetaComo salientou Ruy Castro, nenhuma das atrações do País tem sido mostrada à plateia brasileira. Querem saber mais? Tampouco os espectadores estrangeiros têm tido direito a conhecer, nem que fosse por alguns segundos, alguma coisa além das “arenas” de padrão Fifa.

A vinheta ― acho linda essa palavra(*) ― tem sua beleza plástica, não há que negar. Falo daquele desenhozinho animado de alguns segundos que nos repetem umas dez vezes por dia. Aquele que sobrevoa uma praia, atravessa uma floresta, mostra uma selva de prédios e termina com um menino com cara de pobrezinho, encarapitado em sua favela, com o olhar maravilhado ao vislumbrar ― bem longe ― um estádio iluminado. Estádio padrão Fifa que ele, pobrezinho, visivelmente não tem condições de frequentar.

Gastar tantos bilhões suados dos brasileiros para reiterar ao mundo a imagem de um país marcado pela desigualdade social? Que escolha infeliz.

Interligne 28a

(*) Vinheta, do francês vignette. No século XII, quando entrou na língua francesa, a palavra fazia alusão à decoração de folhas de vinha com que se ornava o bordo de utensílios de louça.

Obscurantismo

José Horta Manzano

Você sabia?

Hoje, às 16 horas, Curitiba terá direito a uma partida entre o Irã e a Nigéria. Não só a capital paranaense, mas o planeta inteiro. Em tempo real. Em directo, como dizem nossos amigos lusos.

Eu disse em tempo real? Well… não é bem assim. Há mundo real e há mundo de faz de conta. Algumas regiões do globo vivem apartadas, debaixo de uma redoma, subjugadas e domadas por uma clique que morre de medo de ser apeada do poder.

Adão e EvaUm desses lugares abafados é justamente a República Islâmica do Irã, a antiga e gloriosa Pérsia. A revolução de 1979, que despachou o xá para o exílio e baniu seu regime brutal, ressuscitou certos costumes medievais. Entre eles, a proteção da moral pública, tal como é idealizada pelos guias espirituais da nação.

Segundo a concepção deles, expor ao público um corpo feminino é ato gravemente ofensivo, a evitar a todo custo. No extremo oposto da austera visão iraniana, o brasileiro está longe de sentir-se horrorizado ao contemplar imagem de beldades pouco vestidas. Muito pelo contrário.

Em estádios brasileiros ― especialmente em dias de calor ― moça bonita não costuma esconder suas curvas. Já nas telinhas iranianas, mostrar mulheres seminuas é simplesmente inconcebível. Como conciliar as cenas captadas pelas câmeras brasileiras e a pudicícia persa?

É simples, ora pois. Basta renunciar à transmissão em tempo real. A televisão iraniana fará a retransmissão com defasagem de alguns segundos, tempo necessário para tapar nudezas tropicais. Toda vez que as câmeras se fixarem em imagens insuportáveis para a castidade persa, os cidadãos daquele país terão direito a um substitutivo. Pode ser uma tela preta ou algum verso de Camões. Talvez até uma receita de quindim.

A sorte dos técnicos malabaristas iranianos é que se espera um tempo fresquinho para Curitiba hoje. Se escândalo houver, será menos repreensível.

Interligne 18g

A notícia nos chega pela versão online do grupo italiano AKI de comunicação.

Frase do dia — 138

«Lula, por boa contingência da vida, conta com transporte terrestre e aéreo à disposição, trata da saúde no Sírio-Libanês e não enfrenta desconfortos do cotidiano.

Nada contra, desde que não faça pouco caso de quem se ache no direito de querer algo além de comida (cara) no prato, serviços públicos de péssima qualidade e apelos à gratidão eterna para um governo que se tem na conta de inventor do Brasil.»

Dora Kramer, em seu artigo Ir a pé ou ir de trem, in Estadão 20 maio 2014.

Frase do dia — 132

«La violenza negli stadi brasiliani non sembra aver limiti. Un tifoso è morto al termine di una partita di calcio, all’esterno dello stadio, colpito da un water lanciato dagli spalti.»

«A violência nos estádios brasileiros parece não ter limites. Ao término de um jogo de futebol, um torcedor morreu, no exterior de um estádio, atingido por um vaso sanitário atirado das arquibancadas.»

in QN ― Quotidiano Net, do grupo editorial italiano Monrif, que publica Il Giorno (Milão) e La Nazione (Florença). 3 maio 2014.

Unesco tomba as Sete Maravilhas do Caos da Copa

Diego Rebouças (*)

Notícia azeda de tão velha: Brasil não vai conseguir maquiar todos os seus problemas até a Copa do Mundo! Pensando nisso, a Unesco decidiu tombar as «Sete Maravilhas do Caos da Copa do Brasil». Não é o máximo? Agora, os gringos não vão poder reclamar. E nem você, mané! A não ser que queira levar de brinde da PM uma arma que eles chamam de não-letal, mas que mata que é uma beleza. Papel e caneta na mão para a lista:

1) O caos aéreo
Welcome, gringaiada! Primeira parada obrigatória: o aeroporto. Nós temos tanto orgulho de termos aeroportos que nenhum brasileiro passa menos de duas horinhas preso em um. Tanto é que a gente vota na mesma corja que promete ajeitar as coisas e não ajeita nada. Ajeitar pra quê? A gente gosta assim! Filas, malas trocadas, voos superlotados. Se espremam na confusão e welcome!

Parece cheio, mas cabe mais gente by Roberto Capote, Folhapress

Parece cheio, mas cabe mais gente
by Roberto Capote, Folhapress

2) Trens, metrôs e ônibus superlotados
Conseguiu sair do aeroporto, Gringo? Mas a superlotação continua nos trens, metrôs e ônibus. Esse assunto irritou alguns brasileiros em 2013, muitos foram até pras ruas protestar, dizendo que “Não é só por 20 centavos”, mas a CPI dos Ônibus do Rio de Janeiro morreu, todo mundo esqueceu do assunto e tenta entrar aí no trem, Gringo, com mala e tudo. Não conseguiu? Não tem problema, porque a gente acha que Gringo é tudo rico e por isso temos a honra de apresentar a Terceira Maravilha do Caos da Copa!

3) Taxistas monolíngues
Símbolo do nosso folclore, o taxista fala pouco quando você precisa de uma informação crucial e entope os seus ouvidos quando você não está nem aí pra saber a opinião dele sobre como as novelas das 21h prejudicam a educação das crianças. Gringo, saiba desde já uma coisa: seu taxista vai falar pouco. Ou vai falar muito. Mas quase nunca vai falar o que você quer. Ainda bem que isso não importa porque nós temos a Quarta Maravilha do Caos da Copa!

4) Os maxiengarrafamentos
Bem-vindo, Gringo! Seu taxista não diz coisa com coisa e esse táxi bandeira dois não sai do lugar. É que nós, brasileiros, adoramos ficar parados. Em aeroporto, transporte público ou no carro. Tanto que todo ano a gente vota em pessoas que têm até uma cara diferente, mas são financiadas pelos mesmos empreiteiros. Que ganham maravilhas fazendo megaviadutos, que tapam a visão e dão uma maquiada no trânsito daqui, só pra meio quilômetro mais na frente afunilar tudo de novo. Isso é que é bacana do Brasil, gringo! Não importa em que cidade você esteja, você sempre estará em Gambiarra City. E olha, que máximo! Enquanto você lia esse item, clic, clic, o precinho do seu taxímetro só fez aumentar. Tá achando ruim? É porque você ainda não viu o próximo item da lista, o…

Parece cheio, mas cabe mais água by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

Parece cheio, mas cabe mais água
by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

5) Alagamento pós-chuva
Recapitulemos a sua situação, Gringo: você levou uma surra no aeroporto, está preso numa avenida que não anda, com um taxista que consulta um dicionário cada vez que você pronuncia uma palavra. Eis que começa a chover. Carros começam a buzinar. Uns sobem na calçada, outros sobem no posto e quem não consegue sobe sua prece em direção a Deus. Mais 15 minutos e tudo estará debaixo d’água.
Mas antes temos a Sexta Maravilha do Caos da Copa, a…

6) Violência urbana
Com os carros parados e a chuva caindo, décadas de negligência dos governos municipais, estaduais e federal de todos os partidos dão suas caras: crianças que não tiveram acesso à escola viraram jovens sem acesso ao mercado de trabalho e pior – sem acesso à autoestima. Vão respeitar pra quê, se o Estado brasileiro nunca os respeitou? Eles não estão nem aí. Tanto que estão mandando você entregar sua carteira e sua mala no meio do engarrafamento, antes que a rua alague. E é bom entregar, Gringo.

7) Estádios überfaturados
ÊêÊêÊê!!! Chuva passou, táxi andou, Gringo precisou parar num caixa 24 horas para poder pagar a corrida, mas é hora de comemorar. Sem malas nem carteira, você está muito mais leve. E como o taxista não entendeu onde ficava o seu hotel, então, ele te trouxe para um dos nossos estádios überfaturados. Isso mesmo: über. Afinal, nem a Muralha da China e as pirâmides do Egito JUNTAS custaram tanto. E daí que mais da metade da população brasileira não tem cacife para assistir os jogos da Copa? Se você tem ingresso, Gringo, pode entrar. Por isso, seja muito welcome. Entre no estádio. Ache a sua cadeira-padrão-Fifa, que a partida vai começar.

(*) Diego Rebouças é roteirista e jornalista. O artigo acima foi publicado pela Folha de São Paulo, 26 dez° 2013.

Este artigo foi publicado neste blogue no fim do ano passado. No entanto, com a aproximação da “Copa das copas”, está mais atual que nunca. Daí a republicação.

Frouxidão

José Horta Manzano

Não se pode esperar que todos os habitantes do planeta tenham o mesmo nível de conhecimento e de habilidade. A diversidade é uma riqueza da espécie humana. Quem não sabe construir um muro chama um pedreiro que entenda do assunto. Quem não leva jeito para redigir uma petição solicita o serviço de um advogado capaz. Quem não consegue cortar as unhas do pé vai a um pedicuro apto a executar o serviço.

Placa com erro 2

De Sul a Norte, não há quem se importe
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Esses exemplos parecem evidentes, não é? Estou chovendo no molhado, não parece? O que eu disse salta aos olhos de qualquer indivíduo medianamente inteligente, não? Pois fique sabendo, caro leitor, que ainda há gente que não entendeu a mensagem. E gente graúda, daqueles que fazem parte do restrito clube de otoridades.

Na organização da «Copa das copas» ― segundo o slogan dernier cri bolado pelo marketing planáltico ― a acolhida ao turista estrangeiro tem recebido especial atenção.

Placa com erro 3

Estádio da Fonte Nova, Bahia
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Sabemos todos que, em cada cidade-sede, linha especial de metrô foi inaugurada ligando o aeroporto ao centro. Dezenas de terminais aéreos foram criados, e os existentes, modernizados. Policiais, agentes e pessoal voluntário seguiram curso intensivo de língua estrangeira ― são hoje praticamente todos bilíngues. A criminalidade baixou a níveis nunca vistos. Até novenas e trezenas têm sido dedicadas a Santa Bárbara para que evite tempestades. Enfim, o turista estrangeiro voltará para casa com a impressão de ter passado uma temporada no paraíso.

Infelizmente, um grãozinho de areia anda perturbando o funcionamento da máquina. É coisa pouca, mas vistosa e capaz de estragar o todo. Autoridades encarregadas de providenciar placas informativas em língua estrangeira se distraíram: encomendaram o serviço a tradutores incompetentes. O resultado tem sido desastroso.

Placa com erro 4

Cariado de preferência
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Já no ano passado, a inauguração de um estádio baiano foi objeto de zombaria por parte da imprensa nacional e internacional. O erro era tão monstruoso que ofuscou a notícia principal, que deveria ser a abertura da praça de esportes. Uma imensa placa dizia «Saída» e, mui educadamente, traduzia para o inglês. Nossa saída tornava-se «entrace»(sic). Entrance, em inglês, é a entrada. E se escreve entrance, não entrace.

Estes dias, foi a vez do respeitado metrô paulistano. Botaram placas em francês e em italiano para sugerir ao estrangeiro que procure um funcionário da companhia caso deseje obter informações. Por óbvia, a placa, a meu ver, é desnecessária. A quem mais se dirigiria o turista se não a um agente da empresa?

Seja como for, se placa há, que esteja bem escrita. E não está. Tanto a versão francesa quanto a italiana apresentam erros de grafia e de lógica. A frase escrita na língua de Molière soa, a ouvidos franceses, mais ou menos como se estivesse escrito: «Por informação, pergunta um emprego». Precisa um certo esforço para entender.

A versão italiana é ainda mais intrigante. Do jeito que está, sugere, com sabor dialetal, que o incauto leitor procure obter informações junto a um indivíduo cariado. Bom, ter cárie é sinal de que ainda sobra algum dente. É sempre melhor que ter de procurar um desdentado…

Duas palavras para resumir o problema: fracasso total. De otoridades incultas, displicentes, desleixadas e descompromissadas com a seriedade, não se poderia esperar mais que isso. Procuraram um pedreiro incapaz, e o muro periga desabar.

E não se esqueça de que o conceptor, o tradutor, o grafista, o pintor e o batedor de prego foram pagos com nosso dinheiro. Sem contar alguma eventual propininha aqui e ali, que ninguém é de ferro.

A Copa é nossa!

Unesco tomba as Sete Maravilhas do Caos da Copa

Diego Rebouças (*)

Notícia azeda de tão velha: Brasil não vai conseguir maquiar todos os seus problemas até a Copa do Mundo! Pensando nisso, a Unesco decidiu tombar as «Sete Maravilhas do Caos da Copa do Brasil». Não é o máximo? Agora, os gringos não vão poder reclamar. E nem você, mané! A não ser que queira levar de brinde da PM uma arma que eles chamam de não-letal, mas que mata que é uma beleza. Papel e caneta na mão para a lista:

1) O caos aéreo
Welcome, gringaiada! Primeira parada obrigatória: o aeroporto. Nós temos tanto orgulho de termos aeroportos que nenhum brasileiro passa menos de duas horinhas preso em um. Tanto é que a gente vota na mesma corja que promete ajeitar as coisas e não ajeita nada. Ajeitar pra quê? A gente gosta assim! Filas, malas trocadas, voos superlotados. Se espremam na confusão e welcome!

Parece cheio, mas cabe mais gente by Roberto Capote, Folhapress

Parece cheio, mas cabe mais gente
by Roberto Capote, Folhapress

2) Trens, metrôs e ônibus superlotados
Conseguiu sair do aeroporto, Gringo? Mas a superlotação continua nos trens, metrôs e ônibus. Esse assunto irritou alguns brasileiros em 2013, muitos foram até pras ruas protestar, dizendo que “Não é só por 20 centavos”, mas a CPI dos Ônibus do Rio de Janeiro morreu, todo mundo esqueceu do assunto e tenta entrar aí no trem, Gringo, com mala e tudo. Não conseguiu? Não tem problema, porque a gente acha que Gringo é tudo rico e por isso temos a honra de apresentar a Terceira Maravilha do Caos da Copa!

3) Taxistas monolingues
Símbolo do nosso folclore, o taxista fala pouco quando você precisa de uma informação crucial e entope os seus ouvidos quando você não está nem aí pra saber a opinião dele sobre como as novelas das 21h prejudicam a educação das crianças. Gringo, saiba desde já uma coisa: seu taxista vai falar pouco. Ou vai falar muito. Mas quase nunca vai falar o que você quer. Ainda bem que isso não importa porque nós temos a Quarta Maravilha do Caos da Copa!

4) Os maxiengarrafamentos
Bem-vindo, Gringo! Seu taxista não diz coisa com coisa e esse táxi bandeira dois não sai do lugar. É que nós, brasileiros, adoramos ficar parados. Em aeroporto, transporte público ou no carro. Tanto que todo ano a gente vota em pessoas que têm até uma cara diferente, mas são financiados pelos mesmos empreiteiros. Que ganham maravilhas fazendo megaviadutos, que tapam a visão e dão uma maquiada no trânsito daqui, só pra meio quilômetro mais na frente afunilar tudo de novo. Isso é que é bacana do Brasil, gringo! Não importa em que cidade você esteja, você sempre estará em Gambiarra City. E olha, que máximo! Enquanto você lia esse item, clic, clic, o precinho do seu taxímetro só fez aumentar. Tá achando ruim? É porque você ainda não viu o próximo item da lista, o…

Parece cheio, mas cabe mais água by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

Parece cheio, mas cabe mais água
by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

5) Alagamento pós-chuva
Recapitulemos a sua situação, Gringo: você levou uma surra no aeroporto, está preso numa avenida que não anda, com um taxista que consulta um dicionário cada vez que você pronuncia uma palavra. Eis que começa a chover. Carros começam a buzinar. Uns sobem na calçada, outros sobem no posto e quem não consegue sobe sua prece em direção a Deus. Mais 15 minutos e tudo estará debaixo d’água.
Mas antes temos a Sexta Maravilha do Caos da Copa, a…

6) Violência urbana
Com os carros parados e a chuva caindo, décadas de negligência dos governos municipais, estaduais e federal de todos os partidos dão suas caras: crianças que não tiveram acesso à escola viraram jovens sem acesso ao mercado de trabalho e pior –sem acesso à autoestima. Vão respeitar pra quê, se o Estado brasileiro nunca os respeitou? Eles não estão nem aí. Tanto que estão mandando você entregar sua carteira e sua mala no meio do engarrafamento, antes que a rua alague. E é bom entregar, Gringo.

7) Estádios überfaturados
ÊêÊêÊê!!! Chuva passou, táxi andou, Gringo precisou parar num caixa 24 horas para poder pagar a corrida, mas é hora de comemorar. Sem malas nem carteira, você está muito mais leve. E como o taxista não entendeu onde ficava o seu hotel, então, ele te trouxe para um dos nossos estádios überfaturados. Isso mesmo: über. Afinal, nem a Muralha da China e as pirâmides do Egito JUNTAS custaram tanto. E daí que mais da metade da população brasileira não tem cacife para assistir os jogos da Copa? Se você tem ingresso, Gringo, pode entrar. Por isso, seja muito welcome. Entre no estádio. Ache a sua cadeira-padrão-Fifa, que a partida vai começar.

(*) Diego Rebouças é roteirista e jornalista. O artigo acima foi publicado pela Folha de São Paulo, 26 dez° 2013.

Em estado de dúvida

José Horta Manzano

Estádio é estádio. Arena é arena. Picadeiro é picadeiro. Palco é palco. Palanque é palanque. Não viria à ideia de ninguém dizer que a peça de teatro será apresentada no picadeiro do teatro. Não seria concebível relatar que, para pronunciar seu discurso, o candidato subiu à arena. Ficaria ridículo contar que o jogo de vôlei teve lugar no palanque.

Picadeiro é termo ligado ao circo. Palco traz à mente o teatro. Palanque lembra imediatamente um comício político. Arena é expressão intimamente conectada a tourada, corrida de bigas, luta de gladiadores. Estádio é construção ― geralmente de grandes dimensões ― onde se praticam esportes atuais, entre os quais o futebol.

O povo brasileiro, sabe-se lá por que, sempre foi bastante permeável a modismos vindos do estrangeiro. Cem anos atrás, a linguagem era recheada de palavras e expressões francesas, a língua de cultura da época. Hoje é vez do inglês. Amanhã, só Deus sabe o que virá.

Há neologismos bem-vindos. Quando falta uma palavra em nosso vocabulário, por que não adotar aquela que já nos vem prontinha do exterior? Comprar feito é tããão mais fácil que inventar um similar nacional, não é mesmo? No entanto, há modismos que perturbam. Um deles, muito em voga atualmente, é o surpreendente e repentino abandono do tradicional termo estádio, substituído pelo bizarro arena.

Será que os brasileiros logo estarão dizendo que, domingo que vem, vão à arena assistir a um jogo? Pode ser, melhor não botar a mão no fogo. Os franceses são mais duros na queda. Naquele país, ninguém jamais em tempo algum conseguiria impor uma novidade desse calibre. Stade continua significando estádio. Arènes (que é normalmente usada no plural) é a palavra empregada para designar um campo de touradas.

Le Monde ― o jornal mais prestigioso da França, traz, em sua edição datada de 12 dez° 2013, artigo de Nicolas Bourcier sob o título Le Brésil au stade du doute. A expressão contém um jogo de palavras. Stade tanto significa estádio como estado (=situação). Portanto, tanto se pode traduzir por O Brasil em estado de dúvida, como por O Brasil no estádio da dúvida. Trocadilhos e brincadeiras com palavras são comuns na imprensa francesa.

O texto, naturalmente, tece considerações sobre a próxima Copa do Mundo e sua organização. Menciona o espetáculo horripilante que se viu recentemente num estádio de Joinville. Fala também do acidente que dizimou uma parte do estádio dito Itaquerão. Relata atraso na construção dos estádios de Curitiba, Manaus e Cuiabá. Para coroar, conta que a previsão de custo das construções esportivas teve aumento de um bilhão de reais de um ano para cá. Diz ainda que o total de investimentos em infraestrutura deve ultrapassar os 25 bilhões de reais. No finalzinho do escrito, fica no ar uma dúvida maliciosa sobre a serenidade do clima no qual ocorrerá o megaevento do ano que vem.

O artigo de página inteira está engalanado por vários desenhos humorísticos. Estão aqui abaixo.

Le Monde ― 12 dez° 2013 página inteira

Le Monde ― 12 dez° 2013
Artigo completo

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Le Monde ― 12 dez° 2013 O texto

Le Monde ― 12 dez° 2013
O texto

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Le Monde ― 12 dez° 2013 "Ainda bem que estão todos em frente à tevê!" by Mix & Remix, desenhista suíço

Le Monde ― 12 dez° 2013
“Não vejo a hora em que eles se sentem todos em frente à tevê!”
by Mix & Remix, desenhista suíço

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Le Monde ― 12 dez° 2013 by Payam Borumand, desenhista iraniano

Le Monde ― 12 dez° 2013
by Payam Borumand, desenhista iraniano

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by Boligan, desenhista mexicano

by Boligan, desenhista mexicano

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by Nicolas Vadot, desenhista franco-britânico

O custo da Copa 2014  –  by Nicolas Vadot, desenhista franco-britânico

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by Marcelo de Andrade, cartunista da Folha de São Paulo

by Marcelo de Andrade, cartunista da Folha de São Paulo

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Frase do dia – 21

“É impossível jogar bem num estádio que custou 800 milhões [de euros] e que fica a 100 metros de uma favela com 120 mil pessoas, das quais 20% estão sem comida”

Cesare Prandelli, selecionador do time nacional italiano de futebol, in Folha de São Paulo, 8 ago 2013, mostrando que a desigualdade, que já não enxergamos, continua escandalizando os visitantes estrangeiros.

Vaia

José Horta Manzano

Levar uma vaia, taí uma coisa desagradável. Ninguém deseja isso nem a seu pior inimigo. Isto é… bem… hããã… é melhor mudar de parágrafo.

Desagradável ou não, ela está na moda mas ninguém quer saber de enfrentá-la. Todos fogem, uns discretamente, outros na caradura.

Nossa presidente, escaldada pelos apupos de que foi alvo na cerimônia de abertura, anunciou, num primeiro momento, que pretendia peitar a multidão e se apresentar na final da copinha destemidamente in personam. Com os acontecimentos quentes que se seguiram àquele dia, ela mudou logo de ideia. Pelo menos, teve o mérito de ser clara: disse que tinha decido não ir. E pronto.

Vaia

Vaia

Já um antigo presidente, escaldado meia dúzia de anos atrás quando dos Jogos Panamericanos, esgueirou-se como pôde. Mandou-se para a África. Preferiu guardar uma respeitosa distância de 10 mil quilômetros dos estádios ― que hoje têm o sugestivo nome de «arenas».

Os torcedores hão de ter sentido muita falta do antigo mandatário. Logo ele, que tinha batalhado tanto para que esse torneio se realizasse em território nacional… É realmente uma pena que obrigações imperativas o tenham retido tão longe do carinho do povo que tanto o adora. Uma pena.

Outros mandarins valeram-se de, digamos assim, «malfeitos» para estar presentes. Para chegar ao Rio de Janeiro, requisicionaram avião da FAB, que ninguém é de ferro. Discretos,  confundiram-se com a multidão, julgando-se assim a salvo de olhares indiscretos. Tiveram de aprender de forma brutal que, nos dias de hoje, está cada vez mais difícil passar despercebido.

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Etimologia

Vaia é termo que utilizamos para demonstrar desagrado com o desempenho de um artista no palco. Accessoriamente, costuma-se vaiar para mostrar descontentamento com a simples presença de determinada pessoa em determinado lugar.

Dificilmente alguém vaia sozinho. É mais comum que vaias partam de uma multidão ou, pelo menos, de um grupo consistente. É mostra de desagrado coletivo, bem mais temível que o aborrecimento de um indivíduo só. O antigo palco vem sendo substituído por «arenas» e por telões. Sinal dos tempos.

Embora não se note à primeira vista, vaia é palavra de origem onomatopaica, daquelas que tentam imitar o som original. Aliás, várias outras línguas se valem de onomatopeia para dar nome à vaia.

Os ingleses dizem to boo e os franceses huer. Os espanhois preferiram abuchar, derivado do grito com que chamavam falcões amestrados.

Vaia

Vaia

Os italianos não seguiram a norma. Preferem dizer fischiare, assobiar. Os alemães vão pelo mesmo caminho quando dizem auspfeifen, assobiar.

Mas a raiz de nossa vaia não está plantada em terras brasileiras nem tampouco lusas. Vem de mais longe.

O italiano moderno guarda o termo baia (báia), derivado do verbo baiare, já obsoleto. Usa-se sobretudo na expressão «dare la baia» a alguém, com o sentido de zombar dessa pessoa.

O francês costumava usava o termo baie com o sentido de engodo, enganação. A palavra caiu em desuso há mais de 100 anos.

A hipótese mais provável da origem de nossa vaia é uma onomatopeia, uma imitação do uivo dos cães. É parente do italiano abbaiare e do francês aboyer, ambos significando ladrar.

Políticos não temem a lei, mas abominam a vaia. Vamos em frente, brava gente: povo que vaia unido chega lá!

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