Myrthes Suplicy Vieira (*)
Estou seriamente preocupada. Esgotaram-se os argumentos que eu poderia usar em minha defesa caso um dia fosse acusada injustamente de alguma transgressão grave.
Mortificada com a atual onda de delações, premiadas ou não, eu vinha me preparando para enfrentar o surgimento de potenciais acusadores, conhecidos ou desconhecidos, cujas motivações me fossem sabidas ou sentidas como absolutamente sem propósito.

Me engana, que eu gosto
Só para que se possa dimensionar melhor o tamanho da minha aflição, eis uma lista não exaustiva das alegações que coletei ao longo de poucas semanas:
- Sou absolutamente inocente e provarei isso no momento oportuno.
- Tenho a consciência limpa e tranquila.
- Sou a alma mais pura do planeta.
- Isso é uma calúnia, uma difamação intencional.
- Não há provas contra mim.
- Delação não é prova.
- Sou uma pessoa honesta.
- Não menti. Nunca fiz nada de que possa me arrepender.
- Tenho uma longa história de prestação de serviços a meu povo.
- Estou sendo vítima de perseguição política.
- Meus advogados provarão em tribunal que não tenho nenhuma responsabilidade.
- Confio na Justiça do meu país e tenho certeza de que a verdade prevalecerá.
E por aí vai. Que ninguém se engane, os malfeitos de que podemos todos ser acusados não se restringem ao campo político. Destruição intencional do sistema ecológico; contratação de mão de obra infantil ou de trabalhadores em regime análogo à escravidão; acobertamento de pedófilos, estupradores e criminosos, comuns ou de trânsito; discriminação racial, religiosa, social ou ideológica, etc. e até maus tratos a animais são outras possibilidades bastante comuns.
É por isso que minha paranoia persiste. Mesmo tendo muitas vezes a impressão de que sou uma pessoa do bem, generosa e responsável, sempre comprometida com o bem-estar de terceiros, não posso descartar a chance de que outras pessoas me avaliem sob ótica diferente. Alegar que agi contra a lei movida por “questões humanitárias”, como já tentaram antes, também não me serve de salvo-conduto. Sou humana, eis tudo.
Ontem fui dormir preocupada, ainda sob o impacto do mais recente atentado terrorista. No limiar entre a vigília e o sono, me perguntava como e por que as pessoas enlouquecem e se dispõem a destruir tudo à sua volta. Serão esses eventos extremos uma triste consequência da confusão que estamos fazendo entre o mundo virtual e o real? Quando uma pessoa aceita se divertir com jogos virtuais que propõem atropelar o maior número possível de pessoas ou disparar tiros de metralhadora a esmo para atingir o máximo de “inimigos”, como ela faz para conter a náusea provocada pelas imagens de corpos destroçados? Será que é preciso sentir o cheiro de sangue para que a experiência do horror se concretize?
Outro detalhe relevante para entender meu pesadelo. Durante a tarde, eu tinha gasto também algumas horas cuidando da tradução de um termo de responsabilidade redigido em sutil palavreado jurídico. A empresa solicitava que contratados temporários assinassem uma declaração isentando o empregador de responsabilidade por eventuais acidentes de que pudessem ser vítimas no trabalho. Senti um aperto no peito ao buscar os termos mais adequados para traduzir essa intenção e tentei me livrar dele pensando com meus botões que, fosse como fosse, o documento não teria validade jurídica em nenhuma corte nacional nem internacional.

Não me arrependo de nada
Sonhei que estava em Nice e era contratada pelo dono da empresa de transportes para traduzir um comunicado público, através do qual ele pretendia “dourar a pílula” de sua responsabilidade pela tragédia do 14 de julho. Continha frases como “já transportamos cargas e cargas de alegria, esperança e vida”, “caminhões são apenas ferramentas”, “não podemos responder legalmente pelo mau uso de nossos veículos”, “o motorista não fazia parte de nossos quadros”, etc.
O crescente incômodo com aquelas tentativas vergonhosas de livrar a própria cara acabou me forçando a interromper o trabalho. Resolvi telefonar para o proprietário e alertá-lo sobre as consequências negativas para a imagem de sua empresa. Lembrei a ele que muitas famílias traumatizadas poderiam acioná-lo judicialmente pela insensibilidade de não oferecer ajuda. No limite, disse, ele estaria dando um tiro no próprio pé, correndo o risco de nunca mais conseguir alugar seus caminhões para boa parcela da população local. Arrogante, ele enfatizou que cabia a mim apenas a tarefa de colocar em palavras exatas de outro idioma o que estava contido no documento original. Que, por não ser advogada, não me cabia julgar a adequação da conduta da empresa.

Cidade de Nice, que já foi grega, romana, ostrogótica, genovesa, saboiana, piemontesa e italiana.
Hoje faz parte da República Francesa.
Indignada, informei então que estava desistindo da tarefa que me fora confiada. Ele reagiu com indiferença. Desliguei o telefone e sai à rua, tentando me acalmar. Meu cérebro, no entanto, não me dava sossego. A pergunta circulava com velocidade cada vez maior na minha cabeça: “Afinal, não foi isso o que você sempre fez e sempre se orgulhou de fazer? Convencer as pessoas com palavras bonitas de que suas intenções são nobres?”
Acordei encharcada de suor. Pensando bem, talvez tenha sido esse, de fato, o propósito de todo meu labor. Mas, se isso é verdade, o que dizer das palavras que meu anjo sopra em meu ouvido quando estou perdida? Será que ele não passa de um embusteiro, um demônio provocador?
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.
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