Busca e apreensão

José Horta Manzano

Muito esquisita a “breaking news” desta manhã de quarta-feira. Numa operação de busca e apreensão levada a cabo logo cedinho pela Polícia Federal, o braço direito do então presidente Bolsonaro, um tenente-coronel do Exército, foi preso preventivamente (por tempo indefinido). Outros personagens foram também levados de camburão. A residência de Bolsonaro, num condomínio de luxo de Brasília, sofreu perquisição que terminou com seu telefone celular sendo apreendido.

Oficialmente, a operação foi lançada para desmascarar e botar atrás das grades uma quadrilha de falsificadores de documentos públicos. Mais de quinze pessoas são acusadas de envolvimento na produção de falsos atestados de vacinação contra a covid. Parte da quadrilha estaria homiziada no próprio Palácio do Planalto na época em que Seu Jair era o dono do pedaço.

Tudo isso me parece um tanto estranho. Com tantas acusações de crime grave pesando sobre os ombros do ex-presidente, a PF preferiu deflagrar essa operação para investigar um crime francamente menor. Fraude em documento público pode dar até 4 anos de cana, mas cumplicidade na morte de centenas de milhares de cidadãos no auge da pandemia pode resultar em pena bem mais pesada.

Por que isso agora? A oposição dirá que é perseguição contra o cândido ex-presidente, alma boa e pura incapaz de fazer mal a um pernilongo. É verdade que o capitão deixou atrás de si um rastro de inimigos, de gente a quem insultou gratuitamente e que hoje não o olham com simpatia. Mas deixou também um rastro de atos e gestos indecorosos e criminosos que ainda hão de persegui-lo por anos.


Num primeiro momento, me ocorrem algumas reflexões.

Quando a pandemia se alastrou e pegou feio, o que todos queriam era esticar o bracinho pra receber a vacina salvadora – incluindo extremistas zumbificados. Até um general palaciano foi acusado de se ter vacinado escondido. Portanto, não faz sentido uma quadrilha se formar dentro do Planalto para emitir certificados de vacinação falsos.

Certificados para quem? Quando Bolsonaro esteve em Nova York para discursar na ONU, fez questão de apregoar seu status de não vacinado. Todos se lembram daquela cena surreal em que o chefe do Estado brasileiro e seu entourage aparecem mordiscando um triângulo de pizza gordurosa, com as mãos, todos de pé numa calçada nova-iorquina. Tanto ele não tinha sido vacinado, que não pôde entrar no restaurante. E se orgulhou disso. Ele, portanto, não precisava de certificado falso.

Por que, então, a operação de hoje?

1) A primeira possibilidade seria investigar a fundo e demonstrar que, apesar de afirmar o contrário, Bolsonaro se vacinou, sim, contra a covid. Nesse caso, imagina-se que ele sairia desmoralizado desse episódio perante seus adeptos. Não me parece que provar que ele se vacinou fizesse algum efeito. Os que não apreciam o capitão, não estão nem aí para seu estatuto vacinal; já seus zumbificados adeptos, que vivem num universo paralelo, se agarrariam a um pretexto qualquer para não acreditar na história.

2) Outra possibilidade poderia ser jogar holofotes sobre a estada de Bolsonaro nos EUA do fim de dezembro 2022 até fim de março 2023. Na ida, entrou no país em avião oficial, na qualidade de chefe de Estado estrangeiro, personagem de quem não se costuma pedir documento. No entanto, dois dias depois, ao fim de seu mandato, deixou de ser chefe de Estado e passou à condição de turista. Tendo assim perdido as prerrogativas, transformou-se em simples mortal, como qualquer um de nós. Foi nesse momento que o capitão entrou para a clandestinidade. A lei americana exige que todo visitante estrangeiro esteja vacinado. Bolsonaro não estava e nada fez para regularizar a situação.

Será que a PF está sugerindo às autoridades americanas que convoquem o capitão para esclarecer o caso? Se ele desdenhar do processo americano, acabará sendo julgado à revelia e poderá pegar 10 anos de cadeia entrar na lista vermelha da Interpol, o que o condenará a não mais sair do Brasil e a passar os próximos anos por aqui à espera do camburão. Será esse o raciocínio da PF?

3) Uma terceira possibilidade tem a ver com o telefone do ex-presidente, que foi apreendido. E se o objetivo maior de toda essa operação fosse simplesmente arrancar o celular das mãos de Seu Jair e mandá-lo para análise? Ele deve conter informações crocantes e apimentadas, daquelas que não saem no jornal. Enquanto estão todos discutindo se Bolsonaro se vacinou ou deixou de se vacinar, a PF está escrutando as entranhas do telefone ex-presidencial.

E como é que fica isso tudo? Veremos. O tempo dirá.

Fugir para a Arábia?

José Horta Manzano

Todo o mundo já sabe, mas não custa repetir para que fique bem claro: o maior pavor do capitão é a cadeia. Por certo, essa não é a preocupação maior nem do distinto leitor nem deste escriba. Mas o capitão arrasta um passado complicado. Ele deve conhecer os motivos pra tanto medo.

Em diversas ocasiões, ele já bradou que ninguém jamais o tiraria do palácio e que nunca iria preso. A contradição da primeira parte de sua profecia já está aí: vai sair do palácio sim, senhor. Falta a segunda parte. Minha avó dizia: “Quem não deve, não teme”. Por que será que ele teme – e treme?

As especulações correm soltas sobre uma eventual fuga de Bolsonaro para o exterior. Não será simples. Se decidir seguir esse caminho em busca de asilo, terá de escolher um país com o qual o Brasil não mantém tratado de extradição.

Uma fuga para um país governado por dirigente autoritário de extrema-direita pode ser uma opção. A Hungria ou a Polônia, por exemplo. Mas… e se o governo de lá mudar de cor política amanhã e anular o asilo, como é que fica? Bora fugir de novo de mala e cuia?

Reinos, sultanatos e emirados do Oriente Médio são outra opção. Por lá, o risco de mudança de regime é quase inexistente. Mas… não deve ser fácil ter de passar o resto da vida numa bolha de ar condicionado, com samambaias artificiais, rodeado de deserto por todos os lados, com temperatura externa próxima de 50 graus. Tem quem aguente: Juan Carlos, que foi rei da Espanha, envolveu-se há dois anos num escândalo de corrupção e refugiou-se no emirado de Abu Dabi. Está lá até hoje.

O site Metrópoles informa que os filhos n°01 e n°03 do presidente estiveram na embaixada da Itália em Brasília terça-feira passada para tentar apressar o processo de reconhecimento da cidadania italiana para o clã. Entrevistado, o filho mais velho disse que deram início ao processo em 2019. Não explicou a razão da súbita pressa em ver o fim do túnel.

É permitido especular que, longe de cogitar uma aposentadoria na gelada Hungria ou no escaldante Oriente Médio, Bolsonaro esteja de olho na obtenção do passaporte italiano para dar o fora daqui. Num primeiro momento, até que parece boa ideia, mas o porto não é tão seguro como ele está imaginando.

Aconteceu não faz dez anos. Nos tempos em que a Lava a Jato comia feio, um senhor chamado Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil, encontrava-se em situação semelhante à do capitão hoje: era alvo da justiça brasileira e possuía dupla nacionalidade – italiana e brasileira. Às vésperas de ser preso, fugiu para a Itália.

Despistou a PF, saiu em direção à Argentina e de lá tomou avião para a Itália. Imaginou-se para sempre a salvo. Estava enganado. Quando souberam de seu paradeiro, as autoridades judiciárias de Brasília requereram sua extradição. Pizzolato tinha confundido a lei brasileira com a lei italiana. Imaginou que, como o Brasil, a Itália não extraditasse seus nacionais. Não é bem assim que funciona.

A lei italiana não impede a extradição de cidadãos do país. Com base no Acordo de Extradição firmado entre a Itália e o Brasil em 1989, cada caso será estudado individualmente. O fujão permaneceu dois anos na Península enquanto a batalha judicial corria solta. Num primeiro momento, sua extradição foi negada pela justiça italiana. O Brasil entrou com recurso, o caso foi para Roma, e a Corte de Apelação finalmente concedeu a extradição. Com o rabo entre as pernas, Pizzolato foi trazido pela PF a Brasília. De jatinho. Do aeroporto, foi direto para a Papuda purgar sua pena.

Se você, distinto leitor, for íntimo do clã do (ainda) presidente, procure fazer chegar este recado à família: “Lembrem-se do Pizzolato!”.

Se fugir já é uma vergonha, imagine só o que deve ser fugir, ser apanhado e trazido de volta pela PF. Vexame supremo! O capitão não vai querer arriscar. Ou vai?

Na ilustração, o avião que trouxe Henrique Pizzolato de volta para o Brasil.

A deposição do presidente

José Horta Manzano

Envolvido no inquérito que procura esclarecer os comos e os porquês de uma troca de comando na PF, ocorrida um ano atrás, Bolsonaro foi compelido a prestar depoimento. Tergiversou quanto pôde, mas acabou cumprindo a ordem ontem.

Em princípio, a não ser que, por alguma razão, o depoente esteja impossibilitado de se locomover, depoimento se presta nas dependências da polícia. Ou diretamente no tribunal, a depender do estágio do processo.

Em atenção ao fato de Bolsonaro se encontrar atualmente investido da função de presidente da República, foi-lhe concedida deferência especial. Para evitar o transtorno de se locomover até a PF, foi-lhe permitido depor em casa, no Palácio do Planalto.

A transcrição do depoimento está na rede, pra quem quiser conferir. Por minha parte, não achei que valesse a pena ler palavra por palavra. Depoimento de acusado costuma seguir a tradição de alegar inocência. Vai caber ao juiz sopesar fatos e dar decisão.

Quanto à descrição do ocorrido, a imprensa se dividiu em duas metades “de tamanho desigual”, se é que assim me posso exprimir.

A “metade maior” optou por dizer que o presidente “depôs à PF” ou “prestou depoimento à PF”, (o que é a mesma coisa).

Só uma “metade menor” preferiu mencionar o local do depoimento e omitir a PF. Ficou assim: “depôs no palácio” ou “prestou depoimento no palácio”.

Gramaticalmente falando, quem teria razão? A metade maior ou a menor?

Uma consulta ao Dicionário de Regência Verbal de Celso Luft explica. O verbo depor tem numerosas acepções, poucas de uso corrente. Uma delas, pertencente ao vocabulário jurídico, aparece com frequência, confirmando o grau de judiciarização do Brasil. É justamente o caso de que estamos falando.

O dicionário ensina que, no sentido de declarar em juízo (prestar depoimento em juízo), o verbo depor é intransitivo. Portanto, não se deve dizer que Fulano “depôs à PF”. Se ele for do andar de baixo, terá ido à PF para depor; se for do andar de cima, como nosso capitão, terá tido o privilégio de depor em casa ou no palácio. Mas não depôs a ninguém. Simplesmente depôs, prestou depoimento.

A gramática ensina que é correto dizer:

Fulano foi chamado a depor.
O presidente prestou depoimento em casa.
Seu João teve de tomar ônibus para depor na PF.

Já o traquejo político inteligente (friso bem: inteligente) ensina que é bobagem tentar se esquivar, por um ano, de prestar depoimento, uma vez que tenha havido convocação. O capitão espichou o assunto de maneira boba, mas não escapou e acabou sendo obrigado a depor. Que é que ele ganhou com isso?

Se tivesse prestado logo seu depoimento na época em que foi convocado, a página já estaria virada há um ano. Hoje, como estamos mais perto da eleição, o risco de repercussão negativa é maior. Pouca visão e maus conselheiros acabam piorando os problemas.

Não por acaso, dei a este artigo o título de A deposição do presidente. Deposição é o testemunho que se dá perante o juiz. Mas é também a destituição (de alguém) do cargo que ocupa.

Eu preferia que ontem, em vez de ter assinado uma declaração, o capitão tivesse assinado a renúncia ao cargo, aprontado as malas e embarcado para uma ilha paradisíaca, bem longe daqui. Que tivesse renunciado ou até mesmo que tivesse sido deposto por incompetência.

Ainda não foi desta vez. Fica pr’a próxima.

O Zé suave

José Horta Manzano

Às vezes aparecem na mídia notícias que não contam tudo, deixando em branco parte da história. Todos os jornais informaram que um cidadão conhecido pelo suave apelido de Zé Trovão “se entregou espontaneamente à PF de Joinville (SC)”.

Como o Brasil inteiro está sabendo, fazia semanas que o moço vivia sob ameaça de encarceramento, visto que pesava contra ele um mandado de prisão expedido diretamente pelo STF. Não é qualquer um que tem prisão decretada pela Corte Maior, deferência reservada para infratores da mais elevada categoria. Coisa fina!

Soube-se que o exaltado caminhoneiro, quando se viu acuado, não ousou enfrentar a Justiça para responder, peito aberto, de seus malfeitos. Decidiu dar um passeio no exterior. Chegou a pedir asilo político (sic!) no México. Não tendo sido atendido e não enxergando outra via de saída, achou melhor voltar pra casa.

É aqui que a história contada pela imprensa é vaga. Ninguém informa como é que o rapaz se virou pra voltar. Suponho que não tenha vindo do México a pé, nem de bicicleta através do que ainda resta de floresta amazônica. É quase certeza que veio de avião.

Esse avião terá pousado no Brasil, num aeroporto internacional, daqueles em que gente comum tem de fazer fila, passar pelo guichê e apresentar passaporte. Como é que ele fez? Como é possível que o suave Zé, procurado por todas as polícias do mundo e com o rosto estampado em toda a mídia do país, tenha passado em branco sem ser reconhecido por ninguém?

Tem mais. As notícias informam que ele se apresentou à PF de Joinville por ser morador daquela cidade catarinense. Sabe-se inclusive que deu as caras no posto de polícia às 14 horas. Aqui vai nova suposição minha: imagino que tenha passado a noite (ou pelo menos algumas horas) em casa.

Agora vem a pergunta: ninguém viu o homem chegar do exterior? Ninguém controlou nem verificou quando entrou em casa? De táxi, a pé, acompanhado de um cúmplice?

Como é possível que o domicílio de um afamado foragido da justiça não seja objeto de monitoramento 24h por dia? O domicílio é conhecido. O procurado é um indivíduo importante, visto ter prisão decretada pelo STF, o que não é pra qualquer capiau. E ninguém manda vigiar a casa do homem?

Se alguém tiver mais informações, peço encarecidamente que mande cartas para a Redação.

Caladão

José Horta Manzano

Convocado a depor, ministro Weintraub mantém-se calado.

Cá entre nós, não é banal ser convocado a dar explicações à polícia por ter feito travessuras. Quando se está ministro, então, é mais grave. Quando se é ministro da Educação, ser chamado à ordem por ter proferido insultos é vexame a figurar em futuros livros de história.

Ajuizados, os romanos já haviam previsto a situação. Veja:

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Tuíte – 14

José Horta Manzano

Ontem, a PF lançou operação de busca e apreensão contra os governadores do RJ e de SP. Doutor Bolsonaro apresentou seus cumprimentos à PF.

Hoje, a mesma PF lançou operação de busca e apreensão contra cinco apoiadores do presidente. Até o momento, não se tem notícia dos cumprimentos de doutor Bolsonaro.

Será que a PF só é boa quando age no meu interesse? Vai pegar mal.

Tuíte – 9

José Horta Manzano

Sergio Moro acaba de dar demissão ao vivo. Durante os 16 meses em que esteve à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, engoliu cobras, lagartos, sapos e pernilongos. Foi humilhado dezenas de vezes pelo capitão. Dizia-se à boca pequena que ele estava apequenado, que se agarrava ao emprego.

De repente, caiu a gota d’água, aquela que fez transbordar o pote até aqui de mágoa. Entornou tudo, até a última gota. O ex-magistrado disse, com todas as letras, que saía porque doutor Bolsonaro não havia cumprido a palavra dada.

Pegou mal pra caramba, talquei? Que o doutor fosse homem em quem não se deve confiar, todos já sabiam. Mas ele nunca havia sido malhado dessa maneira, em praça pública, em rede nacional, por personagem tão admirado pela população.

Agora todos ficaram sabendo por que o doutor quis trocar o chefe da PF: a fim de proteger a si e aos filhos de perigosa proximidade com a Justiça, prefere dar o cargo a um amigo.

Mas a hora do acerto de contas vai chegar um dia. E esse dia pode estar mais próximo do que imagina o capitão. Quem tem rabo preso, não adianta fugir – tudo acaba aparecendo.

A coroa do rei

José Horta Manzano

Quando prenderam o Lula, o Brasil se dividiu. De um lado, ficaram os que não gostavam do antigo presidente, assim como os que acreditavam que lugar de bandido é cadeia. Do outro, se colocaram os que gostavam dele e todos os que receavam ser atingidos pela Justiça. Minha explicação está bem simplificada mas, tirando floreios, a verdade não está longe.

De lá pra cá, a casta dos políticos e dos empresários interessados em negociatas esperneou. Se o Lula foi preso, pensaram, qualquer um pode acabar no xilindró. Com frequente cumplicidade do STF, pregos e tachinhas têm sido espalhados pelo caminho com a evidente intenção de estourar os pneus da Lava a Jato. O resultado tem sido contrastado. Grandes beneficiários da corrupção como doutor José Dirceu estão livres e soltos, gozando as delícias do patrimônio acumulado à custa do suor alheio. Ao mesmo tempo, vários doleiros ‒ que não são corruptores nem beneficiários, mas meros intermediários ‒ estão há anos vendo o sol nascer quadrado.

Estes últimos meses, desde que doutor Moro subiu a rampa e se tornou ministro, a Lava a Jato andava raquítica, anêmica, desmilinguida, sem fôlego. A espetaculosa prisão de doutor Temer traz de volta o vigor antigo. Quarenta anos de negócios escusos e de desvios chefiados pelo ex-presidente começam a ser servidos ao distinto público. Todo o mundo já desconfiava, mas agora é oficial. O velho político, embora seja apenas mais um a passar por exame de corpo de delito, vale por dez.

Com a ação de ontem, ganha o Brasil decente. Volta a esperança de que, apesar dos percalços destes últimos meses, a caça aos corruptos vai continuar. É difícil apanhar todos ‒ Sarney, por exemplo, deve escapar. Mas ainda há muita gente fina com contas a acertar com a Justiça. Ninguém se esquece, por exemplo, da doutora Dilma, envolvida até o pescoço no descalabro que foi a compra da refinaria de Pasadena, que sugou um bilhão do erário. A partir da prisão de Temer, a velha senhora vai precisar tomar chazinho de camomila pra dormir.

Mais uma vez, tem-se a prova de que o Brasil vem sendo dirigido, há anos, por quadrilhas de assaltantes. O destino dos seis últimos presidentes da República (de Collor a Temer) é eloquente. Um morreu. Dois passaram por impeachment e foram destituídos. Dois estão na cadeia por corrupção. Só um vive aposentadoria presidencial tranquila como manda o figurino. Ninguém poderá dizer que a Justiça não funciona no país. Quatro entre seis presidentes receberam punição, o que dá uma boa média. E que sirva de aviso para doutor Bolsonaro & descendência. Ninguém está a salvo.

Como disse o outro, não há risco de a prisão de doutor Temer alevantar clamor popular. Ninguém gosta do homem. Não haverá vigília nem acampamento diante da PF do Rio.

Inconfidência

José Horta Manzano

Tirando diplomados na matéria, o povão e eu não somos especialistas em processo penal. Tampouco somos conhecedores íntimos de todos os ritos da Justiça. É por essa razão que nos surpreendemos com frequência. De fato, dado o grau de judiciarização da sociedade brasileira atual, não se passa um dia sem que a grande imprensa publique atos jurídicos. Estonteante!

Está disponível nas redes o depoimento do agressor de doutor Bolsonaro. Em cores, com som e imagem. É de embasbacar que se divulguem informações desse calibre. Eu imaginava que instrução de processo criminal fosse rigorosamente confidencial. Entendo que toda publicidade antecipada pode ser prejudicial à causa em geral e ao acusado em particular. Pelo jeito, delegados e juízes não pensam assim.

Ouvi ontem trechos do mais recente depoimento de doutor Antonio Palocci. Parece que passou até no Jornal Nacional. Com que então o preso depõe, conta o que tem de contar, e os juízes, em vez de se recolherem para estudar o caso e decidir o caminho a tomar, entregam o material à mídia para difusão nacional! Os delatados ‒ que tanto podem ser culpados como inocentes ‒ tomam conhecimento da grave acusação pela imprensa. Pode? Estupefaciente!

Nesta terça-feira, a Lava a Jato lançou enésima operação. Foi preso doutor Richa, ex-governador do Paraná. A notícia correu a mídia. Podia ter parado aí. Não parou. A PF informou também que a operação visava a prender um empresário que não foi localizado. Assim mesmo, seu nome foi anunciado. Por quê? Agora o Brasil e o mundo estão a par. Sabedor de que está sendo procurado, o indivíduo poderá agora destruir provas, cooptar testemunhas, até fugir do país. Assombrosa imprudência!

Visto que situações como as que descrevi se repetem diariamente, calculo que tudo esteja dentro da lei e das regras. Só pra comparar, conto o que aconteceu esta semana na França. Coméço do comêço.

Faz um ano, uma menininha foi sequestrada e assassinada, num crime que causou comoção nacional. Um mês mais tarde, as investigações da polícia científica levaram à identificação e à prisão de um indivíduo. Semanas depois, confrontado com o óbvio, o homem não teve como escapar: confessou ser o autor do crime. Mas ressalvou que a criança tinha sido morta ‘por acidente’. Não deu maiores explicações.

Faz uns dias, a mídia anunciou que uma reconstituição do crime estava marcada para tal dia, tal hora, em tal lugar. O juiz que instrui o caso ficou enfurecido que a informação tivesse vazado. Imediatamente cancelou a reconstituição e instaurou inquérito administrativo para encontrar o autor do vazamento.

Contei essa historinha só pra dar uma ideia da confidencialidade com que a instrução de um processo criminal é tratada em outras terras. A discrição é favorável a todos: tanto à Justiça, quanto ao acusado. O Brasil, francamente, não é para principiantes. Desconcertante!

Inconfidência
Na escola, estudamos a Inconfidência Mineira. Foi episódio importante que prenunciava o divórcio entre a colônia e a metrópole ‒ a independência, que viria 30 anos depois. Só que, curiosamente, não nos ensinam o significado da palavra inconfidência.

Uma consulta ao dicionário informa que inconfidência significa abuso de confiança, revelação de segredo, deslealdade para com o Estado, vazamento de informação sigilosa. É surpreendente que um ato fundador da pátria leve um nome tão negativo.

Cadeia com caviar

José Horta Manzano

Desde que Lula da Silva foi preso, quase três meses atrás, analistas políticos e cronistas policiais não deixam passar um dia sem reclamar a transferência dele para a cadeia de São José dos Pinhais, na periferia de Curitiba.

De fato, é surpreendente que tenham esquecido o prisioneiro no prédio administrativo da Polícia Federal, alojado numa suite transformada em cela. Todos os condenados da Lava a Jato que foram despachados para o Paraná estão em Pinhais. Se todos estão lá, por que Lula da Silva não estaria?

Durante semanas, eu também fiz essa pergunta a mim mesmo. Por quê? Pois o mistério acaba de se dissolver este fim de semana. O distinto leitor há de se ter inteirado da carta de 47 páginas que escapou da unidade prisional que abriga, entre centenas de presos, os da Lava a Jato.

Não se sabe quem escreveu a carta nem como saiu do presídio. A missiva é violenta delação (premiada?). O autor está longe de ser amigo dos penitenciários do andar de cima. Os fatos dedurados são impressionantes. Os presos «lava-jatenses», que devem ter guardado muito dinheiro de origem duvidosa, levam vida de marajá.

De fato, vivem como se estivessem num spa de luxo. Têm celular, internet, visitas íntimas, assessores, cozinheiros, comida especial e exclusiva, agentes de segurança, zeladoria. Têm até laranjas que os substituem em trabalhos que visam a reduzir o tempo de prisão.

Agora dá pra entender por que guardaram o Lula na cela improvisada na PF ‒ isso explica aquilo. Se o tivessem mandado para o Complexo Médico-Penal de Pinhais, o risco era grande de que nosso guia não só se integrasse rapidamente, como também assumisse a chefia da república dos presos privilegiados.

Agora fica a dúvida. Se o Lula não foi tranferido para Pinhais, é porque o pessoal da PF e a juíza encarregada da execução da pena estavam a par do que acontece no Complexo. Se assim for, é gravíssimo. E afligente. Com que então, esse povo, não contente com roubar nosso dinheiro, ainda zomba de nós ao gastar o produto do assalto com mordomias no cárcere?

Lula da Silva, por seu lado, periga continuar preso na PF de Curitiba por um bom tempo.

 

Bobo da corte

José Horta Manzano

«Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu.»

Tem dias em que a gente se sente como bobo da corte, isso sim! Cedinho nesta quinta-feira, as manchetes do Estadão eram edificantes. Vamos pela ordem, se é que há ordem nesta República.

Chamada Estadão, 7 jun 2018

Temer, Moreira e Padilha
A Polícia Federal acaba de pedir ao Supremo Tribunal que suspenda o sigilo das comunicações e autorize acesso à lista de chamadas feitas e recebidas por três figurões do andar de cima. São peixes graúdos: o presidente da República e dois de seus ministros. Não é correto prejulgar, mas, como dizem os espanhóis, «por algo será» ‒ alguma razão deve haver.

Gilmar
A força-tarefa da Operação Lava a Jato assegura que a Federação do Comércio de São Paulo pagou 50 mil reais a um instituto ligado a doutor Gilmar Mendes. Saudade do tempo em que Gilmar era o festejado goleiro da Seleção.

FHC
A Polícia Federal (olhaí, de novo ela!) informa que Fernando Henrique pediu socorro a Marcelo Odebrecht e enviou-lhe seus dados bancários. Por que razão os terá enviado? Ganha uma passagem de ida simples pra Pyongyang quem adivinhar.

Urnas
Supremo Tribunal decidiu suspender implantação do voto impresso. Sem contraordem até outubro, as eleições se farão no escurinho, como de costume. Este blogueiro já se manifestou sobre o assunto e persevera: o voto eletrônico devia ser abolido. Se piratas informáticos conseguem introduzir-se nos computadores da CIA, nada garante a inviolabilidade do sistema eleitoral eletrônico brasileiro. A melhor arma contra fraudes ainda é o voto em cédula de papel, como se faz na imensa maioria dos países civilizados.

Conclusão
As demolidoras notícias de hoje confirmam a desagradável intuição que nos devora: são todos podres, não se salva um. E essa história de proibir voto impresso não me cheira bem. O futuro dirá.

Ricos novos e novos-ricos

José Horta Manzano

Novo-rico é a forma aportuguesada da expressão francesa nouveau riche. Tem conotação fortemente pejorativa exatamente como o original. Designa todo indivíduo de origem modesta que enricou em pouco tempo mas que, embora tendo atingido condição social e financeira superior, não adquiriu cultura nem boas maneiras condizentes com a nova situação. Outra palavra francesa de mesmo significado é parvenu, também dicionarizada.

De riquinhos que chegaram a amealhar alguns milhares de reais, o mundo está cheio. Não é desses que falo aqui. Refiro-me aos que juntaram centenas de milhões ou, em alguns casos, bilhões. Pra quem passou infância remediada, a tentação é grande de gritar a todos: «Cheguei lá!». Há mil maneiras de animar esse circo de vaidades.

Lamborghini semelhante à que Senhor Batista exibia na sala

Lamborghini semelhante à que Senhor Batista exibia na sala

Hoje caiu um pouco de moda, mas, algumas dezenas de anos atrás, compravam-se títulos de nobreza. Tivemos, no Brasil, diversos casos de descendentes de imigrantes italianos que se mostraram simpáticos ao rei da Itália e conseguiram nobilitar-se. Foi o caso de Francisco Matarazzo, que começou como mascate e chegou a ter o maior império industrial da América Latina em meados século passado. Foi “enobrecido” com o título de conde.

Outro que ainda hoje exibe o título adquirido é o conde Francisco Scarpa(*), aquele que outro dia chamou a mídia para assistir ao enterro de um automóvel de luxo no jardim. Na intenção de expor riqueza, acabou mostrando que a estupidez humana não tem limites. Teria sido mais elegante e útil leiloar o carro e doar o dinheiro ao Hospital do Câncer.

Hoje em dia, as poucas casas reais que sobram na Europa já não distribuem alvarás de nobreza como nos bons tempos. Para se destacar da multidão, novos-ricos têm de bolar outros métodos.

Estes dias, tem-se falado muito num certo senhor Batista, que chegou a possuir a maior fortuna do país, uma das maiores do planeta. Como legítimo representante da casta dos novos-ricos, esse senhor teve estapafúrdia iluminação: expôs um automóvel de luxo em plena sala de estar, ideia que Freud não teria dificuldade para explicar.

Parece, no entanto, que sua propalada fortuna não passava de vento, de puro gogó. Na verdade, o dinheiro era nosso. Desmascarado, o homem está fazendo atualmente um retiro espiritual no Complexo de Gericinó. Terá tempo de sobra para analisar as façanhas que cometeu.

Donald Trump: apartamento familiar

Donald Trump: apartamento familiar

«Un bien mal acquis ne profite jamais à celui qui le possède» ‒ um bem mal adquirido não beneficia jamais àquele que o possui, diz um sábio provérbio francês. Deus sabe por onde andará o automóvel de luxo, aquele da sala de estar, hoje devidamente confiscado. De qualquer maneira, o moço já não precisa dele: anda agora de carona nas elegantes peruas da PF.

Na outra ponta, no rol dos ricos novos que não se deixaram tentar pelo exibicionismo, temos Herr Ingvar Kamprad, de quem dificilmente o distinto leitor terá ouvido falar. Trata-se do criador da IKEA, rede de 330 enormes lojas de móveis distribuídas por 28 países, com cerca de cem mil funcionários. O faturamento anual é próximo de 30 bilhões de euros.

Originário de um vilarejo sueco, o homem está com 90 anos. Cresceu em ambiente modesto. Todo o dinheiro que ganhou veio do trabalho e não de trambiques com cumplicidade do governo. Dizem que levou vida simples e sempre viajou de classe econômica. Ano sim, outro também, aparece na lista dos mais ricos do mundo.

Cada um faz o que quer com o próprio dinheiro, isso é fato. No entanto, conforme o destino que cada um dá à própria fortuna, é fácil constatar o grau de sabedoria do afortunado: se é rico novo ou apenas novo-rico.

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(*) Em italiano, Scarpa quer dizer sapato, curioso sobrenome para um membro da nobreza, né não? De toda maneira, títulos nobiliárquicos não têm mais validade oficial na Itália atual.

O presidente do Senado e o pijama

José Horta Manzano

«Criança que brinca com fogo faz pipi na cama!» ‒ era o pito que levavam os pequeninos quando, principalmente em época de São João, fabricavam balões ou manipulavam bombinhas e busca-pés. Ainda que não se tenha notícia de pequerrucho acordando de pijama molhado depois de ter soltado rojão, a advertência costumava funcionar. O medo do castigo bastava pra refrear ardores piromaníacos.

A língua está cheia de ditados que incitam à prudência. «Não se cutuca onça com vara curta» ‒ previnem uns. «Quem tem telhado de vidro não atira pedra na casa do vizinho» ‒ advertem outros. Parece até que nem precisava, pois são coisas tão evidentes! Quem tem rabo comprido deve tomar cuidado ao fechar a porta pra evitar que o rabo fique lá fora.

balao-1Por tudo isso, parece incrível que ainda haja gente que não dá ouvidos a esses conselhos. Um caso surpreendente está acontecendo estes dias. Estamos assistindo a uma turra entre os três Poderes da República. Briga de gente fina. Resumindo em três palavras, foi assim:

• A Polícia Federal ‒ órgão vinculado ao Executivo ‒ cumpriu missão surpresa dentro do Senado e prendeu membros da polícia interna daquela Casa. Polícia prendendo polícia é meio estranho, mas assim aconteceu.

• O presidente do Senado ‒ braço do Legislativo ‒, o inefável senhor Calheiros, não apreciou e decidiu encarar. Soltou o verbo. Valendo-se de termos pejorativos, desancou Executivo e Judiciário.

• A presidente do STF ‒ instância maior do Judiciário ‒ sentiu o baque. Tomando as dores do juiz ofendido por Calheiros, declarou que todo ultraje a magistrado constituía automaticamente ofensa ao STF.

A estas alturas, depois de todos descarregarem o excesso de tensão, seria de imaginar que o termômetro baixasse. Não foi o que aconteceu. Senhor Calheiros preferiu dar sequência às hostilidades.

Chamada do Estadão, 27 out° 2016

Chamada do Estadão, 27 out° 2016

Será por excesso de confiança, dizem uns: o homem se sente inatingível. Já outros julgam que, ao contrário, é desespero de quem se sabe condenado e vê sua hora chegando. Como não tem mais nada a perder, escolhe cair atirando. Difícil saber. Uma coisa é certa: senhor Calheiros se esqueceu dos conselhos de prudência apregoados pela sabedoria popular.

Em vez de esperar que a poeira baixasse, o senador preferiu martelar para enfiar o prego ainda mais fundo. Anunciou «pacote de reação» em represália à ação da Polícia Federal. Num momento em que o melhor a fazer seria tirar duas semanas de férias, sumir de cena, viajar para um paraíso tropical e esperar que o ambiente se acalmasse, senhor Calheiros fez o inverso. Mostrado os músculos, chamou os holofotes para si. Pode ser que ganhe a queda de braço, mas é pra lá de duvidoso.

fogos-artificio-3Esse senhor fechou a porta muito rápido e esqueceu o rabo de fora. Está, assim, de rabo preso. Mais dia, menos dia, a enchente vai-lhe bater nas canelas. É terrível imprudência indispor-se com aqueles que podem, amanhã, vir a julgá-lo. Brincando com fogo desse jeito, periga acordar de pijama molhado.

Frase do dia — 316

«Se Lula denuncia Sérgio Moro ao mundo e pretende interditá-lo como seu juiz, deve se preparar para fazer o mesmo com vários outros juízes, procuradores, delegados da PF e auditores da Receita. Para tentar se salvar e salvar o PT, Lula precisa interditar as instituições do país, talvez interditar o país inteiro.»

Eliane Cantanhêde, em sua coluna do Estadão, 23 set° 2016.

Cara de paisagem

José Horta Manzano

Melhor fazer cara de paisagem.

Deixa como está pra ver como fica.

Faz de conta que não é comigo.

Cocô, quanto mais se mexe, mais fede.

Não estou nem aí.

A arma mais contundente é o desprezo.

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Todas as línguas têm uma coleção de ditos que giram em torno do mesmo assunto. Apesar disso, tem gente que não aprendeu a lição. Eu aprendi faz muitos anos.

Numa certa época, eu tinha um chefe muito chato. Severo, insistente, difícil de suportar. Como não sou de levar desaforo pra casa, costumava contestar toda ordem que colidisse com minha maneira de ver. Vivíamos, assim, em constante estado de beligerância, feito cão e gato, cada um com quatro pedras no bolso, pronto a atirar. A coisa ia de mal a pior até o dia em que um colega me deu um conselho pra lá de útil.

Tribunal«Quando o chefe lhe pedir pra fazer alguma coisa, ainda que você não esteja de acordo, não discuta. Faça de conta que concorda, diga que vai fazer e pronto» ‒ disse ele.

«Mas e se eu concordar, vou ter de fazer mesmo sem ter vontade, não?» ‒ respondi.

E ele: ‒ «Não, não necessariamente. Faça de conta que você concordou. Não reclame. Não discuta. Não conteste. Se você deixar de transformar cada conversa em conflito, pode escrever: meia hora depois de pedir, o chefe terá esquecido do assunto. E não virá cobrar.»

E não é que funciona, gente? Desde então, já testei inúmeras vezes. Não costuma falhar. Quanto menor importância se der ao assunto, mais rapidamente ele sairá da atualidade. Dito assim, parece uma evidência. No entanto, há gente que parece não ter entendido.

Estes dias, em manifestação de rua, apareceu um boneco inflável que, embora não esteja identificado, lembra muito o presidente do STF. As decisões de qualquer tribunal sempre alegram uns e desagradam outros. É da vida. O STF não escapa desse ritual.

Pixuleco 7Quanto ao boneco, nenhuma reação seria de esperar de parte dos juízes-mores, figuras ilustres que, imagina-se, estão acima dessas estudantadas. Em situações como essa, mais vale fazer cara de paisagem. Dois dias depois, com a avalanche de fatos novos que se atropelam, ninguém mais se lembraria do boneco.

O augusto tribunal não entendeu assim. Pediu que a PF investigue e faça luz sobre hipotética «campanha difamatória». Na hora, ficou claro que… a carapuça tinha servido.

Resumo da ópera
O boneco, que nada mais é que manifestação bem-humorada, ainda vai dar pano pra mangas. Enquanto o povo vai-se esquecendo de outros bonecos ‒ o do Lula e o de dona Dilma ‒ esse aí pode ter vindo pra ficar.

Na fila dos passaportes

José Horta Manzano

Até em Cuba os ventos estão mudando de quadrante. A cerca de arame farpado virtual que constringia os cidadãos e os impedia de deixar a ilha está-se afrouxando. Nos tempos em que as farpas da cerca eram ainda mais afiadas, aquela blogueira que afrontava o regime teve de ter muita paciência e insistir durante anos pra conseguir um visto de saída.

Passaporte brasileiro 2O Brasil nunca foi de segurar cidadãos. Desde que os primeiros aventureiros e piratas aqui aportaram, entrou e saiu quem quis. Desde que o cidadão tivesse meios de financiar a viagem, tinha liberdade pra ir e pra vir. Mas as coisas mudam ‒ e nem sempre na boa direção.

Saiu estes dias uma informação que nos aproxima da Cuba dos anos mais espinhudos. Passaporte solicitado à PF na cidade de São Paulo leva quatro meses para ser emitido. Trocado em miúdos, se o distinto cidadão se candidatar agora, tem chances de receber o documento em novembro. Enquanto isso, pode esperar sentado.

A razão da demora? Falta papel. Falta papel… Falta competência, cáspite! Não consta que tenha havido aumento brusco na demanda de passaportes. Portanto, o problema não vem de lá. O que se deduz é tremenda falta de planejamento. Alega-se que, na Casa da Moeda, uma máquina deixou de funcionar. Toda máquina é susceptível de enguiçar hoje ou amanhã. Prevendo isso, toda organização séria tem, guardado na gaveta, um plano B. Na Casa da Moeda, ainda acreditam em Papai Noël.

Fila do passaporte, São Paulo

Fila do passaporte, São Paulo

Foi a PF quem teve de improvisar seu plano B. Mediante cobrança de uma «taxa de emergência», expede o documento em prazo mais curto. Atenção: não se trata de passaporte de emergência, aquele que sai em 24 horas. É modalidade intermediária, uma novidade. Mostra que toda lei é feita pra ser burlada.

Não sei o que ressente o distinto leitor. Quanto a mim, tenho às vezes a sensação de estarmos andando pra trás.

Interligne 18cNota difícil de acreditar
Atualmente, há 191 mil pessoas na fila, todas esperando pelo precioso documento. Um número pra cubano nenhum botar defeito.

Nota birrenta
O assunto saiu da atualidade. Assim mesmo, fico me perguntando se a família Lula da Silva devolveu os passaportes diplomáticos que nosso guia concedeu ‒ indevidamente ‒ a todos os membros da famiglia, no seu último dia de mandato. Abuso de autoridade não é crime? Taí mais um pra adicionar ao prontuário do chefe-mor.

Um elenco de golpistas

Ruy Castro (*)

Já vivi vários golpes de Estado e todos me pegaram de surpresa. Nada demais nisto, nunca participei de qualquer governo, nem podia saber que havia um golpe em curso. O incrível é que esses golpes pegaram de surpresa também os governos que derrubaram. Claro ‒ ou não seriam golpes.

O golpe que vem sendo denunciado pelo governo Dilma é diferente. Dá-se à luz do dia, tramado por 73% da população, que desaprova o dito governo, sob as barbas do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, de membros do STF, da Procuradoria Geral, do Ministério Público, da Polícia Federal, da OAB e de outras instituições da República, que nada fazem para impedi-lo, e obedece a um complexo ritual de trâmites, todos com data marcada com meses de antecedência.

E, contrariando a natureza dos golpes, em que os golpistas atuam embuçados e na sombra, neste eles vêm à boca de cena e se identificam publicamente.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Na terça última (29), inúmeras categorias profissionais ocuparam as páginas dos jornais dizendo que gostariam de ver a presidente pelas costas. E se assinaram: fabricantes de sorvete, chocolate, biscoitos, balas, doces e derivados; plantadores de milho, cana e amendoim e produtores de óleos e azeites, leite, soja e macarrão.

Sindicatos das indústrias de tintas e vernizes, cerâmicas e olarias, parafusos, porcas, rebites e similares, de artefatos de metais ferrosos e não ferrosos, de curtimento de couros e peles e de extração de mármores, calcários e pedreiras.

Industriais da cerâmica de louça e porcelana, da recauchutagem de pneus e retífica de motores e do beneficiamento de fibras vegetais e descaroçamento de algodão. Alfaiates, gráficos, farmacêuticos, misturadores de adubos, criadores de suínos e controladores de pragas urbanas. Etc. etc. etc.

Nunca se viu um elenco tão variado de golpistas.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. O texto foi publicado na Folha de São Paulo.

O quatro de março

José Horta Manzano

Lula caricatura 2Dia 11 de setembro de 2001, o mundo assistiu, estupefato, ao orquestrado ataque terrorista desfechado contra os EUA. O distinto leitor seguramente há de se lembrar onde estava quando recebeu a notícia.

São momentos fortes que marcam muito. Na mesma gaveta da memória em que guardamos a notícia, amarzenamos também as circunstâncias que nos envolviam no momento em que tomamos conhecimento.

Para mim, o 4 de março de 2016 ficará numa gaveta muito especial. É o dia em que nosso guia foi apeado do pedestal. Ele «não está imune à investigação», como bem disse o juiz encarregado do caso. Disse e demonstrou, aliás.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

A prova de que o despacho do magistrado não eram palavras ao vento foi a condução coercitiva(*) do antigo presidente para fins de deposição. Se a Polícia Federal continuar sinceramente disposta a investigar, nosso guia já pode ir arrumando a malinha: há de passar umas férias junto com os companheiros. Tudo gente fina, como se sabe.

Como diz o outro, «no Brasil de hoje, a corrupção só não é encontrada onde não é procurada». Quem procura acha. Logo…

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(*) No breve discurso que pronunciou neste marcante 4 de março, o presidente do PT, num lapsus linguæ revelador, substituiu a condução coercitiva por «detenção coercitiva». Discurso visionário.

Reação tardia ou intencional?

José Horta Manzano

«A presidente Dilma Rousseff vai editar um decreto de programação financeira com bloqueio de R$ 10,7 bilhões em despesas discricionárias como água, luz, fiscalização da Receita, da Polícia Federal a partir de 1º de dez°. A decisão segue a orientação do TCU e põe o governo em estado de calote.»

Tricher 1Acabo de citar matéria do Diário do Poder. Se for verdade – e tudo indica que é – está aí a evidência de que nosso Executivo sulca o Mar dos Sargaços, aquele atoleiro marinho que tanto assustou navegadores no século XVI. A água entorno está coalhada de algas traiçoeiras que perigam, a todo momento, se enroscar na hélice e paralisar a nave.

Teria o distinto leitor ideia do que sejam 11 bilhões de reais? Dificilmente. Tirando meia dúzia de terráqueos do tipo Bill Gates e Warren Buffett, essa quantia está fora de nosso referencial. A imagem mais aproximada é a de um quarto cheio de notas graúdas. Do chão ao teto.

Em vez de cortar na própria carne, como seria razoável, dona Dilma decidiu cortar em carne alheia. Não cogita dispensar funcionários supérfluos nem extinguir boquinhas tão apetitosas quanto inúteis. O corte será feito em despesas essenciais como água, luz e… Polícia Federal. É sintomático.

Tricher 2Embaixadas e representações brasileiras no exterior já foram avisadas que a torneira secou. Como todos sabem, dona Dilma, alérgica a relações exteriores, considera inútil toda despesa feita nesse ramo. A menos que se destine a ditaduras companheiras naturalmente.

Já a diminuição de verbas da Polícia Federal não é de natureza ideológica – o buraco é mais fundo. Dona Dilma há de supor que a supressão de verbas vá frear o ímpeto da PF. Os do andar de cima andam apavorados com a ideia de não mais serem os eternos vencedores do jogo de cartas marcadas ao qual se acostumaram estes últimos anos.