Falem bem, falem mal

José Horta Manzano

Falem bem, falem mal, mas falem de mim. Esse é o moto de todo político que se preze. Faz muito tempo que os mais espertos captaram a mensagem. Desde que a chegada do rádio e da televisão tornou o fluxo de informação mais caudaloso, a proximidade de um microfone ou de uma câmera passou a atiçar o marqueteiro que cochila dentro de cada figurão. Principiantes ou tarimbados, homens públicos logo se deram conta do potencial da voz e da imagem difundidas em escala nacional.

Um ex-presidente do Brasil tornou-se mestre na arte de fazer falar de si. Durante o período em que ocupou o trono do Executivo, não deixou escapar uma ocasião de autoincensar-se com o célebre «nunca antes nessepaiz». Mesmo apeado do pedestal e acossado pela justiça criminal, persiste em falar sem dizer, afirmar sem estar convencido, insistir sem ter razão. Continua vociferando, com ar sério, frases que, imagina ele, o «povo» quer ouvir. Embarcou até na canhestra ameaça feita por Mr. Trump à Venezuela para lançar palavras aos microfones. Qualquer pretexto é bom.

Num belo dia de 2014, dois deputados de nossa desengonçada Câmara Federal foram protagonistas de um grosseiro bate-boca. Doutor Bolsonaro dirigiu palavras ‒ desarticuladas mas aviltantes e vigorosamente ofensivas ‒ a uma colega, a doutora Maria do Rosário Nunes, aquela que começou a carreira no PCdoB e milita atualmente no PT. A inflamada troca de gentilezas foi parar nos tribunais.

Faz três anos que se fala nisso. Volta e meia, algum comentarista dá sua opinião sobre o fato de a deputada merecer ser estuprada ou não. Uma escaramuça de botequim transformada em verdadeira causa nacional. Gente de toda a paleta política já meteu o bedelho. Feministas, machistas, comunistas, liberais, lulopetistas, governistas, antigovernistas, todos continuam se pronunciando.

Acaba de sair a decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a demanda de reparação formulada pela deputada. A corte dá razão à doutora e mantém a condenação do ofensor a desembolsar dez mil reais pelos danos morais que causou.

Minha primeira consideração concerne à sobrecarga que estes três anos de processo trouxeram à Justiça. Quando se sabe que o Judiciário já anda entupido por dezenas de milhares de casos, soa indecente que dois representantes do povo, figurões que recebem polpudos salários e gozam de mordomias de marajá, contribuam para atravancar o andamento de outros casos quiçá mais prementes. Tudo isso por dez mil reais!

Fica a dúvida. Serão os nobres deputados tão carentes de bom senso? Por que terão dado preferência a uma estúpida queda de braço pública em vez de um acerto particular? A resposta está na própria pergunta. A Justiça, financiada com o dinheiro de todos nós, não traz ônus aos querelantes. Valendo-se disso, eles aproveitaram a ocasião para permanecer sob os holofotes durante três anos sem desembolsar um centavo. Marketing esperto pra ex-presidente nenhum botar defeito. Falem bem, falem mal…

A mão pesada da Justiça

José Horta Manzano

Juízes são formados para julgar seus semelhantes com base em leis. Em princípio, são imparciais, deixando-se guiar pela objetividade. Essa é a teoria. Na prática, como se sabe, a teoria pode ser ligeiramente distorcida.

Juízes são seres humanos como você e eu, sujeitos a emoções, a simpatias e antipatias, a humores, a pressões da opinião pública ou até da opinião familiar. Num futuro longínquo, talvez venha a ser inventado um juiz sintético, isento de paixões. Por enquanto, não é possível. Não há como ‘desumanizar’ alguém.

Ninguém aprecia ser levado no bico. Tribunais sentem especial ojeriza contra estelionatários e contra todos os que se aproveitam da boa-fé do próximo. Embora não se trate de crime de sangue, o embuste tem o poder de enraivecer. Até os que não estão diretamente envolvidos tomam as dores, como se eles mesmos tivessem sido engabelados.

Stade de France

O orçamento francês tem um subitem ‒ a bizarra grafia está correta, acredite. Eu preferia sub-item, mas… que é que se há de fazer? Vamos recomeçar. Eu dizia que a previsão de gastos anuais do governo francês inclui o FGTI (Fundo de Garantia das Vítimas de Atos Terroristas). Todo cidadão que considere ter sido prejudicado por atentado terrorista pode se candidatar a receber uma indenização. Cada caso é julgado individualmente.

Em 13 de novembro de 2015, terrível atentado ocorreu em Paris. Quase ao mesmo tempo, foram atacados a casa de espetáculos Bataclan e o Stade de France, estádio onde estava para ser disputado um amistoso de futebol entre França e Alemanha. Nos dias que se seguiram, um casal se candidatou a ser indenizado por dano moral, Alegavam ter estado presentes no estádio naquele momento. Conseguiram receber 60 mil euros, cerca de 200 mil reais, uma bela quantia.

Em 14 de julho de 2016, o mundo se estarreceu quando o caminhão de um terrorista invadiu uma avenida de Nice em plena comemoração da festa nacional deixando balanço final de 86 mortos e 435 feridos. Nas semanas seguintes, centenas de cidadãos se anunciaram às autoridades requerendo indenização. E não é que nosso casal, o mesmo que já havia sido ressarcido pelo susto levado no estádio em Paris, se apresenta de novo? Desta vez, alegaram ter estado presentes na orla marítima de Nice justo na hora da passagem do caminhão assassino.

Autoridades não são ingênuas como alguns imaginam. Cruzando os dados, deram-se conta de que o mesmo casal tinha sido vítima dos dois atentados. A coincidência era grande demais. Interrogados, os estelionatários confessaram o embuste. Foram a julgamento em dezembro passado para responder pelo primeiro estelionato, o do estádio. Considerados culpados, foram condenados a pena pesada de prisão em regime fechado: seis anos para ele e três para ela.

Neste 19 de abril, saem da cela para nova visita ao tribunal. Desta vez, já na qualidade de reincidentes, serão julgados pela trapaça que perpetraram ao se apresentar como vítimas do atentado de Nice. Imagina-se que sejam condenados a uns vinte anos de sossego atrás das grades. E à devolução da indenização recebida, naturalmente.

Nota
A mão pesada dos juízes franceses se explica pelo que eu dizia no início do post. Devem ter sentido raiva como se tivessem sido pessoalmente ludibriados pelo casal. O mesmo raciocínio se aplica aos juízes que decidem, no âmbito da Lava a Jato, o destino dos que colaboraram com a rapina e com o estelionato. Daí a mão pesada que se tem visto. É benfeito(*).

(*) Essa grafia é de arrepiar, não? Mas é o que determina o mal costurado Acordo Ortográfico de 1990. Melhor obedecer pra evitar mão pesada de juiz.

Os coxinha

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que ascensão social não rimava necessariamente com geladeira em casa nem se restringia a adquirir bens de consumo. Gente fina sabia se comportar. Quem não sabia fazia questão de imitar a boa postura e o falar que lhe pareciam corretos. Palavrão e palavreado chulo, nem pensar: eram reservados pra discussão de boteco.

As pessoas de poucas letras procuravam se esmerar. Conheci gente simplesinha que, num fenômeno que gramáticos chamam de hipercorreção, pronunciavam «galfo» em vez de garfo. Era na intenção de não fazer feio. Em resumo, a evolução não devia se limitar ao aumento do saldo bancário ‒ devia atingir diferentes facetas.

Faz uns meses, o Brasil inteiro tomou conhecimento de conversa telefônica entre dona Marisa Lula da Silva e um dos filhos. O palavreado não era edificante. Entendo que a família Lula da Silva tenha origem humilde. Isso não é defeito nem doença ‒ tem remédio e tem cura.

Marisa Leticia 1O fragmento de diálogo deixou claro que os mais de trinta anos de ascensão social não foram suficientes para elevar o nível de compostura da família. Terão certamente adquirido geladeira e talvez tenham até dispensado o pinguim que costumava morar em cima. Mais que isso, dizem as más línguas que têm apartamento na praia, sítio com pedalinhos e até algumas dezenas de milhões encafuados por aí.

Quanto ao palavreado entre mãe e filho, é consternador. Não se bonificou com a ascensão da família. Meus distintos leitores com certeza ficaram chocados. Durante os oito anos(!) em que foi primeira-dama do país, aquela senhora permaneceu enclausurada em inexplicável mudez. Hoje, entende-se por quê. Foi melhor assim.

De ex-primeira-dama flagrada soltando palavrão, seria de esperar que se envergonhasse e se escondesse debaixo da cama até baixar a poeira. Com o tempo, tudo se esquece. Espantosamente, não é o que se viu. A referida senhora teve a petulância de pleitear, junto à União, indenização por danos morais. Reclama trezentos mil reais.

É o mundo de ponta-cabeça. O maltratado cidadão brasileiro, chocado e machucado pelo palavreado chulo da ex-primeira-dama, é conclamado a abrir a carteira para indenizá-la. É caso paradoxal em que o ofendido é obrigado a ressarcir o ofensor.

Observação
A Advocacia-Geral da União acaba de dar parecer contrário ao pleito da ex-primeira-dama.

Entrou muda e saiu falando

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Este blogue faz questão de utilizar palavreado conveniente. Embora, por vezes, dê até vontade de baixar o nível, a gente evita descambar. É questão de respeito para com o distinto leitor.

Saiu ontem notícia com o título: «Marisa e Lulinha pedem indenização à União». Como é que é? Passado o susto, consegui trocar em miúdos.

Telefone 4Todos se lembram da gravação, difundida por toda a mídia brasileira, de edificante conversa telefônica entre dona Marisa da Silva ‒ aquela senhora de 66 anos que já foi a primeira-dama do Brasil durante oito anos ‒ e um dos filhos. Todos se lembram de que a espontaneidade da conversa banal revela a naturalidade com que mãe e filho se comunicam em linguajar grosseiro.

Pois acho indecente que gente desse tipo pleiteie que a União os indenize por danos morais que a divulgação das gravações lhes pudesse ter causado. Como é que é? Danos morais? A ordem dos fatores está invertida e, neste caso, altera o produto.

Lembremos, nunca é demais, que essa história de «exigir dinheiro da União» é forma chique de dizer «extorquir dinheiro dos brasileiros». As caixas da União são alimentadas com os impostos que todos pagamos, do primeiro ao último cidadão. Portanto, o “dinheiro da União” é nosso dinheiro.

Isso dito, vamos ao que penso. Na minha opinião, dona Marisa é quem devia ser processada por todos os brasileiros que tiveram de passar pelo constrangimento de ouvir palavrão pronunciado por antiga primeira-dama do país, pessoa de quem, no mínimo, se esperava recato.

Telefone 5Começo a compreender por que essa senhora, quando o marido exercia a chefia do Executivo, entrou muda e saiu calada, como se diz. Hão de ter-lhe recomendado que nunca abrisse a boca, de medo que alguma inconveniência pudesse escapar.

Estava eu nessas conjecturas quando apareceu meu amigo Sigismeno. Fazia tempo que não nos encontrávamos. Aproveitei para comentar com ele sobre minha indignação.

‒ Você viu, Sigismeno, esse cinismo de membros do clã de nosso guia reclamarem que paguemos indenização pelo despudor deles mesmos?

Meu amigo, que é menos ingênuo do que parece, tinha resposta pronta.

‒ Ora, mas você não se dá conta do ardil?

‒ Que ardil, Sigismeno?

‒ Mas é evidente, meu caro. Com tantos bilhões que esvoaçam por aí na esteira desses escândalos, não são os míseros trezentos mil reais exigidos que vão fazer diferença.

‒ Ué, mas por que então exigem esse reparo?

‒ É simples. Não passa de mais uma desastrada tentativa de desviar o foco das atenções. Como as notícias de rapinas, roubalheiras e escândalos vários não saem das manchetes, hão de ter imaginado que era boa ideia passar por vítimas. Mesmo sabendo que chocaram a nação com seu palavreado chulo, tentam mostrar-se ofendidos. Mas deu tudo errado. O pedido de indenização não rendeu mais que nota de rodapé. O foco continua, firme e forte, no que interessa: roubalheiras, traições e destituição iminente da presidente. E ainda vão perder o processo, pode ter certeza.

É mesmo. A sagacidade do Sigismeno continua me impressionando.

Trabalho escravo

José Horta Manzano

Interligne vertical 13Interligne vertical 13«Em Angola, segundo as reclamações trabalhistas, vários operários adoeceram, alguns com suspeita de febre tifoide, em razão das péssimas instalações sanitárias nas obras e das condições de higiene precárias na cozinha do canteiro. Como os banheiros eram distantes do local de trabalho e permaneciam cheios e entupidos, operários eram obrigados a evacuar no mato. A água não era potável, e a comida, muitas vezes, estragada. Na cozinha, era comum a presença de ratos e baratas.»

Esta aí um trecho do relato feito pelo jornal O Globo sobre trabalho escravo em Angola. “Coisa de país africano atrasado” – pode ser a primeira reação de quem lê. Pois não é bem assim, distinto leitor.

O fato é que, por detrás dessa barbaridade, está o dedinho… adivinhe de quem? De nosso conhecido Grupo Odebrecht, sim, senhor.

Por meio de uma nebulosa de empresas, a empreiteira baiana associou-se a uma empresa angolana cujos proprietários são dois generais e o próprio vice-presidente daquele país. É acerto de bom tamanho. Deram as mãos para construir uma usina açucareira.

Escravidao 1Os operários – 400 homens de origem humilde, aliciados em vários estados brasileiros – foram despachados para a África para trabalhar em condições análogas às da escravidão. Passaporte confiscado e vigias armados reforçam a suspeita de que o ambiente estava mais pra campo de concentração do que pra parque de diversão.

Denúncia ao MPT (Ministério Público do Trabalho) rendeu frutos: julgado, o conglomerado Odebrecht foi condenado a pagar indenização de 50 milhões de reais. Ainda não definitiva, a sentença admite recurso.Lula caricatura 2

Não é impossível que o negócio tenha sido intermediado por conhecido figurão que atua como lobista da empreiteira baiana. Sabe-se que o homem em questão andou intermediando operações do grupo em terras africanas. Em Angola, especificamente.

Na sentença proferida, um detalhe me surpreende. O montante exigido da empresa condenada é chamado de indenização. Todo dicionário confirma que indenizar é ressarcir, compensar alguém por um mal que lhe tenha sido causado. O Ministério Público do Trabalho reserva-se o direito de reverter os milhões para projetos e iniciativas, assim como para dar publicidade à decisão de justiça.

Corrente 1Se assim for, indenização não será. O nome adequado para esse tipo de condenação é multa. No meu modesto entender, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Nada impedia que o conglomerado, além de ser multado, também tivesse sido condenado indenizar a parte prejudicada.

Com a decisão, os 400 infelizes que sofreram na pele a cupidez, a ganância e a avareza dos megaempresários (e de seus lobistas) ficarão a ver navios. Certas decisões de justiça são, no mínimo, curiosas.

Vox populi

José Horta Manzano

Desagradado com o teor do artigo de capa da mais recente edição da revista Veja, Luiz Inácio da Silva mandou dizer que vai processar os autores do texto.

A notícia foi repercutida por dezenas de veículos. Achei interessante percorrer os comentários de leitores. Francamente, não são simpáticos ao antigo presidente. Vox populi, vox Dei – a voz do povo é a voz de Deus. Aqui está um apanhado do que colhi por aí.

Comment 3Interligne vertical 11bJornal O Tempo
Em vez de processar revista, que tal explicar as acusações? Se jornalista tem que se pautar pela verdade, político não?

Portal Conjur
Basta olhar feio para “Álvares Cabral” do séc. XXI, que ele processa.

Rede Brasil Atual
Mas quando a mesma revista Veja apresentou matéria contra o presidente Collor, o sr. Lula utilizou a mesma revista como referência…

Portal Imprensa
Odorico Paraguaçu: «Vamos botar de lado os entretantos e partir para os finalmentes.»

Jornal O Tempo
Pressuposto para sofrer dano moral é o ofendido ter moral.

Comment 2Interligne vertical 11bPortal Vox
O maior dano moral que o País já sofreu foi no dia em que elegeram esse canalha presidente da República, o maior ato de estupidez coletiva de uma nação!

Diário do Grande ABC
Nossa, coitado! E ainda é petulante.

Jornal O Povo
É ele quem deveria indenizar a revista por danos morais.

Portal Conjur
Será que o Judiciário será igualmente rigoroso com o assédio processual do ex-presidente?

Rede Brasil Atual
Todos sabemos que Lula é ladrão desonesto, pois ninguém enriquece como ele e sua trupe. Vá enganar os trouxas, safado! Votei nele a vida toda e fui enganada. Quero que o País me perdoe por ter colocado essa corja no poder.

Diário de Pernambuco
Impressionante! Um ladrão recorrendo à Justiça!

Comment 1Interligne vertical 11bYahoo Notícias
E eu? Posso processar o Congresso e a campanha mentirosa da Dilma?

Jornal O Povo
Moral? E ele sabe o que é isso? Quem mente e rouba toda uma nação não tem moral.

Rede Brasil Atual
Enquanto este monstro da corrupção estiver vivo, não haverá paz nem tranquilidade neste país.

Portal Brasil 247
Guerreiro do povo brasileiro…corrupto até a medula.

Yahoo Notícias
Mercenário! Até caindo tenta levar alguma coisa.

Carta aberta a um desembargador

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Excelência,

Começo me desculpando por não lembrar seu nome. Sem dúvida, ele foi citado nas muitas reportagens que li, vi ou ouvi a respeito do rumoroso caso que o envolve, mas, perdão mais uma vez Excelência, minha memória é muito ardilosa. Prega-me peças praticamente todos os dias, insistindo em só reter aquilo que lhe apraz. Confio que, em sua excelsa generosidade, Sua Excelência saberá compreender que limitações como essa são típicas da falibilidade da pessoa humana. Isso sem contar que várias outras deficiências nos vão sendo agregadas com a idade.

Tribunal 4Valho-me desta para felicitá-lo por sua recente façanha. Em uma só penada, o senhor conseguiu demonstrar algo que há muito tempo venho defendendo com veemência: juízes pertencem de fato a uma condição supra-humana. Embora muitos céticos ousem contestar fato tão evidente, fácil será entender que juízes não podem estar sujeitos às mesmas leis que regulam a convivência do populacho. Se esses abnegados servidores da Justiça dedicam boa parte da vida à leitura e compreensão minuciosas da Lei, como poderiam eles ter sua honradez conspurcada por alguém que sequer imagina como lidar com os meandros do Direito?

Essa agente de trânsito que, além de reles mortal é do gênero feminino – portanto, enredada na instabilidade emocional que lhe é característica – ousou zombar da supra-humanidade de um dos seus e Sua Excelência a devolveu de imediato ao seu lugar. Na sua ingenuidade, essa senhora acreditou que poderia tolher a liberdade de ir e vir de um Magistrado! Elencou inacreditavelmente uma série de critérios esdrúxulos para sustentar essa crença: ausência de placas no veículo, ausência da documentação do mesmo e ausência da Carteira Nacional de Habilitação. Imaginou que, por esses motivos, ela estava autorizada a tratar um juiz como uma pessoa qualquer! Parabéns, mais uma vez, Excelência, por ter nos ilustrado com seu douto saber.

Confesso, Excelência, um tanto envergonhada, que, no início, ainda sob o impacto do sensacionalismo com que a imprensa brasileira noticiou o incidente, cheguei a acreditar que o senhor havia exagerado um tantinho na sua sentença, condenando-a a pagar quantia vultosa a título de danos morais. Imaginei por um instante que, magnânimos como certamente são Sua Excelência e o senhor juiz envolvido no caso, poderiam ambos abrir mão da cobrança e decretar o perdão judicial. Perdão novamente. É que, sendo eu igualmente humana e igualmente mulher, não pude deixar de sentir um pontinha de piedade pela fragilidade financeira dessa senhora.

TribunalConfesso também que, no meu estado de choque inicial, fui ainda mais longe, Excelência. Cheguei a lembrar de um artigo da Constituição de nosso país que sempre me pareceu fundamental: aquele que diz que todos são iguais perante a lei. Talvez tenha eu sido inspirada naquele momento por uma mistura de ingenuidade, perplexidade e limitação intelectual. Entretanto, já recuperada desse surto de infantilidade, reafirmo o que disse de início: acredito piamente que juízes e desembargadores são – e demonstram cabalmente ser – supra-humanos.

Termino felicitando-o por ter guindado nosso país mais uma vez à posição de republiqueta de bananas. Um feito digno de constar nos anais da magistratura brasileira e internacional e que talvez só encontre paralelo na coragem de um presidente de nossa república em confrontar um tribunal italiano, acusando-o de ter feito um julgamento político de um cidadão condenado por vários assassinatos, inclusive o do Primeiro Ministro.

Tribunal 5Quando o recurso que essa senhora pretende interpor for julgado, Excelência, não se acanhe. Reafirme o status superior de seus colegas de Ordem. O senhor sabe: o tempo é o senhor da razão. Manda quem pode e obedece quem tem juízo. Os cães ladram e a caravana passa.

Pois imagine o senhor que, por infortúnio, um de meus cães ladrou a noite toda. A minha irritação com a insônia foi tal que eu me lembrei de uma frase estampada num cartaz carregado por um manifestante no enterro de Margareth Thatcher: “Respeito não se exige, conquista-se”.

Sinta-se à vontade para usar esse argumento, se lhe aprouver.

Atenciosamente.

Interligne 18b

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Uma reflexão para o 13 de maio

José Horta Manzano

Os primeiros europeus a desembarcarem na ilha Hispaniola estavam a serviço da coroa espanhola. Cristóvão Colombo em pessoa pisou aquelas praias em 1492. Aventureiros logo apareceram à cata de metais preciosos. Encontraram ouro na parte oriental da ilha.

Como no restante das terras americanas, também em Hispaniola grande parte dos indígenas sucumbiu às doenças trazidas pelos estrangeiros. Os poucos que escaparam mostraram-se inaptos ao trabalho servil e preferiram refugiar-se nas zonas montanhosas. Para explorar suas minas, os espanhois recorreram à mão de obra africana, importada em condições de escravidão.

A parte ocidental da ilha, desprovida de riqueza mineral, foi abandonada. Acabou colonizada por franceses, que lá criaram grandes plantações de tabaco e de cana de açúcar. Como os espanhois, também eles se valeram de escravos trazidos da África.

No fim do séc. XVIII, a Revolução Francesa inaugurou um período conturbado. Na confusão daqueles anos, a parte oeste da ilha, depois de muitas peripécias, conseguiu expulsar os cultivadores franceses e declarar sua independência em 1804. Era o nascimento do Haiti, primeiro país negro independente.

Nenhuma potência colonial europeia apreciou. Muito menos a França, que levou mais de 20 anos para reconhecer a perda da antiga colônia e só o fez com uma condição: a de que o novo país pagasse uma indenização de 90 milhões de francos à antiga metrópole. O dinheiro era destinado a ressarcir os plantadores que haviam perdido suas terras. Haiti pagou.

Crédito: Gonzalo Fuentes, Reuters

Crédito: Gonzalo Fuentes, Reuters

Dois séculos se passaram. Alguns anos atrás, o presidente Chirac decidiu designar o 10 de maio como dia comemorativo da abolição da escravidão.

Haiti, como país independente, nunca deu certo. Desde a partida dos colonos, ditaduras, golpes de estado, catástrofes naturais se abateram sobre o país, numa série ininterrupta de infelicidades.

No 10 de maio deste ano, uma ong francesa chamada Cran (Conselho Representativo das Associações Negras) prestou queixa contra a Caixa de Depósitos, estabelecimento bancário estatal francês equivalente a nossa Caixa Econômica. Acusam o banco ― que é um dos braços financeiros do governo francês ― de cumplicidade de crime contra a humanidade.

Referem-se aos milhões que o Haiti pagou para conseguir ter sua independência reconhecida. Segundo o Cran, o montante não foi inteiramente redistribuído aos plantadores, tendo sobrado um saldo que a Caixa embolsou. Calculam que os 90 milhões da época equivalem a 21 bilhões de dólares atuais, montante considerável.

O próprio presidente Hollande já declarou que a queixa não será levada em consideração. Não entendi bem o objetivo real da iniciativa, mas qualquer um percebe que ela não tem a menor chance de prosperar. É mais uma daquelas ideias despropositadas que dão a seus autores 5 minutos de exposição midiática, nada mais.

Concordo que se possa, em parte, atribuir o atraso do pequeno país caribiano ao montante exorbitante pago à antiga metrópole. No entanto, em vez de uma queixa de crime contra a humanidade, melhor seria se pedissem que o governo francês lhes desse uma mão para melhorar a Instrução Pública haitiana.