José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 23 fevereiro 2019.
Até o fim do século 20, a extrema-direita francesa se confinava às beiradas do eleitorado. Nas asas da crise econômica e sob a batuta do impagável Le Pen, deixou de ser movimento folclórico. Saiu da margem para inserir-se no tabuleiro político. Como adolescente que desabrocha, o partido espichou. Nas presidenciais de 2002, o timoneiro deu um susto ao guindar-se ao segundo turno. Não foi mais longe, que ainda não era hora. Na reta final, foi esmagado por Chirac. Aliviada, a nação sossegou.
Passados quinze anos, veio nova presidencial. Um Le Pen aposentado confiou as rédeas do partido à filha ‒ numa mostra de que o fantasma da monarquia hereditária de direito divino ainda assombra os palácios de Paris. (Não só de Paris, diga-se.) De novo, cidadãos descontentes viram no discurso extremista o remédio contra todos os males e alçaram Madame Le Pen ao segundo turno. A maioria dos eleitores, porém, não digeria a ideia de ver candidata extremista na Presidência. Assim, o turno final foi acachapante: 66% para Macron x 34% para Le Pen.
Recém-eleito, Monsieur Macron deixou-se embalar pela brisa leve da vitória confortável. Esquecido de ter-se beneficiado do voto antiextremista, acreditou que dois terços dos franceses fossem realmente seus eleitores de raiz. A arrogância custou-lhe caro. O namoro que costuma unir o povo ao presidente recém-chegado tem prazo de validade restrito. No caso Macron, durou pouco. Desabusados, os eleitores que lhe haviam dado voto unicamente para afastar a ameaça extremista constataram que as reformas não estavam saindo como desejavam. Era hora de levantar protesto. Nasceu assim o Movimento dos Coletes Amarelos, que aporrinha o governo há meses. Passou o encanto. Por contaminação, até os próprios apoiadores do presidente ‒ aqueles que votaram nele por convicção ‒ começam a duvidar. Fosse hoje a eleição, é provável que aquele que venceu com 66% dos votos fosse reprovado e despachado à vidinha de cidadão comum.
Fenômeno semelhante ocorreu no Brasil na última presidencial. Beneficiado pela repulsa a um partido identificado com rapina desembestada ao erário, doutor Bolsonaro foi eleito por confortável maioria. Releve-se o fato de ter atravessado período conturbado em decorrência do atentado de que foi vítima durante a campanha. O povo, um tanto esquizofrênico, ao mesmo tempo que se condói do sofrimento do presidente, impõe que ele deixe o leito e acuda o país. Já vamos pra dois meses da diplomação e a realidade é cruel. Apesar de o maestro ter estado de recesso, atos e fatos do andar de cima têm sido, para o bem ou para o mal, a ele tributados. E o que tem ocorrido não é belezura.
Atropelos, quiproquós, indecisões, fofocas, injúrias, traições, cotoveladas ‒ uma constrangedora vitrine da miséria humana vem sendo exposta. Mais exigentes e menos pacientes, os que votaram em Bolsonaro de nariz tapado, no objetivo único de barrar caminho à corrupção, se exasperam: «Então era essa a alternativa ao descalabro petista?» ‒ impacientam-se. A pública lavagem de roupa suja tem sido tão enervante que até mesmo os que votaram no presidente por convicção já se perguntam se fizeram bem em confiar as chaves do Planalto a amadores deslumbrados.
Nestes tempos em que tuitadas preenchem o espaço político e ameaçam encolher prazo de validade de homens de poder, que se cuide o presidente. A paixão do povo, se é que um dia existiu, caminha rápido para o vencimento. Maiorias parlamentares, flutuantes e infiéis, deixaram de ser garantia absoluta. Pra provar, está aí a recente defenestração do inoxidável presidente do Senado, homem cuja reeleição perpétua era tida como garantida até a véspera. Na França, os Coletes Amarelos não vão conseguir derrubar o presidente, que isso não está nos costumes do país. No Brasil, no entanto, presidente corre sempre perigo. É bom que ele trate logo de botar ordem na casa, ou o povo depressa lhe mostrará quanto dura uma paixão.