O bom-moço

Mr. Ben John na saída do tribunal

José Horta Manzano

A notícia saiu no Lincolnshire Live, um veículo regional da mídia inglesa. Nas terras da rainha, aprecia-se o bom humor, mas não se brinca com coisa séria.

Ben John, de 21 anos, é aluno de criminologia na Universidade de Leicester. Desde que completou 18 anos, passou a viver um tanto solitário, trancado em casa e mergulhado na internet. Deu de frequentar sites de extrema-direita, daqueles da pesada, que pregam supremacia da raça branca, antissemitismo, homofobia e xenofobia (ódio contra os estrangeiros). Chegou até a publicar nas redes um manifesto que mostra sua clara adesão a essas ideias.

Como se sabe, hoje em dia, atividades privadas e públicas andam enlaçadas, entremescladas, fusionadas. Não se sabe bem onde termina o que é íntimo e onde começa o que pode ser compartilhado. A cumplicidade das redes sociais contribui para apimentar o caldo. Do que se diz ou faz, nada mais fica em segredo, nada mais passa em branco.

A Inglaterra conta com institutos oficiais encarregados de prevenir atos violentos. O fato é que eles notaram a movimentação do rapaz e começaram a monitorá-lo. Não demoraram a descobrir que o envolvimento dele com esses grupos violentos está se intensificando. Nos últimos meses, Ben John superlotou o disco rígido de seu computador com cerca de 70 mil documentos de apoio e elogio ao regime nazista, de defesa do supremacismo branco e de divulgação do antissemitismo. Descobriu-se também que ele detinha informações importantes para fabricar explosivos caseiros que poderiam ser usados em atentado terrorista.

Como eu disse logo na entrada deste artigo, os britânicos não deixam barato esse tipo de coisa. O rapaz foi detido e seu caso foi a julgamento. Pelo conjunto de infrações e delitos, ele arriscava ser condenado a até 15 anos de prisão fechada. Talvez levando em conta a pouca idade do acusado, o juiz teve a mão leve.

Na Inglaterra, o simples fato de estar de posse de material que poderia servir para ato terrorista é passível de punição. Cabeça baixa, Ben John teve de escutar um longo sermão do magistrado. Entre outras reprimendas, ficou sabendo que a ideologia de extrema-direita é considerada uma ameaça à segurança nacional, e que o material que ele possuía, todo relacionado com essas ideias, é “repulsivo aos olhos de qualquer ser normal”. Teve de prometer solenemente deixar de ler documentos daquela natureza.

E não ficou por aí. Ben John foi condenado a dois anos de cadeia. A pena, no entanto, fica temporariamente suspensa, a depender de seu comportamento. Caso não cumpra o que prometeu ao juiz, vai para o cárcere imediatamente e passa para o regime fechado, onde permanecerá até o último dia. Terminados esses dois anos, terá ainda de se submeter a um ano de controle judiciário, período durante o qual terá obrigação de se apresentar à polícia periodicamente. Não termina por aí. A partir de agora e até 2026 (um período de 5 anos), deverá permitir que sua atividade na internet seja monitorada.

E mais dois detalhezinhos de sua condenação. O primeiro é a exigência de cumprir um programa de 30 dias de desintoxicação psicológica especialmente concebido para extremistas. O segundo é a obrigação de ler os grandes clássicos da literatura inglesa. (Yes! Obrigado a ler livros! Já imaginou essa pena entre nós?) O juiz já lhe deu uma primeira lista com os livros obrigatórios. E avisou que o rapaz será convocado três vezes por ano para ser interrogado e demonstrar que realmente leu os livros propostos (e não só o resumo da Wikipédia). Se você pensou em teste de múltipla escolha, esqueça. Não é isso.

Bem diferente do sistema brasileiro, não é mesmo? Pois achei a ideia excelente. Para introduzi-la entre nós teria de ser adaptada, visto que nem todos estão em condições de entender o que leem. Assim mesmo, o princípio deveria ser aplicado aos complotistas tupiniquins, aqueles que tramam contra a segurança da nação. Em terra tupiniquim, não se costuma fazer isso com bombas, como na Inglaterra, mas com manifestações pedindo o desmonte das instituições democráticas. É a mesma coisa, se não pior.

La vindicte populaire

José Horta Manzano

Os franceses, que têm palavra e expressão pra tudo, dizem vindicte populaire. O termo vindicte é especializado e só costuma ser usado nessa locução. A tradução mais próxima é justiçamento popular ou simplesmente justiçamento, entendido como forma violenta e atabalhoada de exercer justiça. Oposto à justiça oficial, que respeita regras e rituais gravados na pedra da lei, o justiçamento popular é desordenado, atropelado, desobrigado de toda sujeição ao ordenamento legal.

Hoje em dia, sinais herdados desse modo ancestral de julgar e condenar ainda são encontrados em países atrasados. Em determinados Estados petroleiros do Oriente Médio, por exemplo, cabe à família do ofendido conceder (ou não) o perdão ao condenado. Afora isso, só zonas em conflito costumam recorrer a julgamentos tumultuados e sumários que conduzem, com frequência, a linchamento.

Linchamento simbólico está ocorrendo no Brasil estes dias. Refiro-me ao caso Neymar. O Instituto Paraná, respeitada instituição de pesquisa de opinião pública, divulgou consulta saída do forno. Perguntou-se a mais de duas mil pessoas, residentes em 180 municípios espalhados pelo território nacional, se achavam que o astro do futebol é culpado ou não da acusação de estupro. Maioria de quase dois terços absolveu o moço. Por via de consequência, a vítima foi condenada em rito sumário. Tem mais. Se o rapaz é inocente, deduz-se que a garota está mentindo e deverá ser processada por calúnia e por denúncia de crime inexistente.

O poder que têm as pesquisas de opinião de influenciar o povo é imenso. Brilhante exemplo se viu nas últimas eleições, em que doutor Bolsonaro navegou na crista das sondagens e acabou eleito. Não tivessem sido publicadas pesquisas, o resultado do primeiro turno poderia ter sido bem diferente, deixando chance a outros candidatos talvez mais qualificados para o cargo.

Que se façam pesquisas sobre candidatos a eleição é aceitável. No campo judiciário, são outros quinhentos. Dado seu tremendo poder de influência, não me parece justo nem aceitável publicar sondagens sobre casos correntes ainda não julgados. O discernimento dos juízes profissionais a quem cabe decidir pode até se alterar. No presente caso, com a publicação dessa pesquisa, o julgamento já está irremediavelmente prejudicado.

O Instituto Paraná não informa quem encomendou a pesquisa sobre o caso Neymar. É permitido suspeitar que o mandante tenha sido o próprio futebolista. Seja como for, não é boa coisa fazer pesquisas desse tipo. Se o código de ética dos institutos de pesquisa não é forte o bastante para coibir essa prática, acredito que o legislador deveria cuidar do assunto. Não faz sentido insuflar a vindicte populaire num Estado de direito dotado de tribunais profissionais.

Castigo

José Horta Manzano

Huancavelica é uma pequena cidade peruana, capital da região de mesmo nome. A vida não é fácil naquelas alturas. A mais de 3.500 metros de altitude, o clima é rigoroso. No mês mais quente do ano, a temperatura máxima raramente chega a 20 graus. Neve e gelo são ocorrências corriqueiras. Terremotos são registrados com espantosa frequência.

Como em toda parte, em Huancavelica também há jovens descabeçados. Numa fria madrugada de outubro passado, Jhonatan Michael(sic) e Michael Jordan(sic), rapazes de pouco mais de 20 anos de idade, tiveram a péssima ideia de assaltar um cidadão que, sentado num banco da praça, telefonava para a namorada. Roubaram-lhe o celular.

Indignado, o cidadão deu queixa, e os ladrões acabaram descobertos e presos. Levados a julgamento, receberam pena de 4 anos em regime fechado. No entanto, magnânima, a juiza ofereceu-lhes uma alternativa pra escapar da cadeia. Se aceitarem, terão de cumprir regras de conduta rigorosas. Não poderão frequentar discotecas nem bares de reputação duvidosa. Terão de retomar estudos universitários. E, cereja em cima do bolo, estão obrigados a ler o livro O Alquimista, de Paulo Coelho. A leitura de outro livro, escrito por autor americano, também faz parte das obrigações impostas. As duas obras deverão ser lidas no prazo de um ano.

Portal RPP, Peru

A mídia peruana está elogiando a bondade da juíza. Não é todos os dias que se assiste a uma conversão de pena tão generosa. Quanto a mim, concordo que cadeia em regime fechado pode não ser a pena adequada a todos os casos. No entanto, não acho que a juíza tenha sido tão bondosa assim. Retomar estudos, evitar lugares duvidosos, cumprir regras de conduta – ainda vá lá. Mas ler Paulo Coelho? Cruzes! É cruel demais! A juíza revelou seu lado sádico.

Se o distinto leitor não leu, recomendo dar uma espiada no texto que publiquei no ano passado sobre o livro O Alquimista. É uma análise, feita por J. Milton Gonçalves, que ressalta os erros gramaticais cometidos por senhor Coelho. É impressionante constatar a que ponto esse senhor trata a língua a bofetões. Imagino – e espero – que a tradução para o espanhol tenha corrigido os escorregões do autor. Sorte de nossos ladrões de celular, que lerão a obra num castelhano castiço e expurgado de pedregulhos.

Pasteurização da informação

José Horta Manzano

Terça-feira passada, quando saiu o veredicto do STJ sobre o recurso interposto pela defesa de Lula da Silva, não ocorreu a nenhum jornal brasileiro botar na manchete que o tribunal havia confirmado a condenação do ex-presidente por corrupção. Todos pularam esse “detalhe” e passaram direto ao ajuste da extensão da pena imposta ao condenado. Assim, as manchetes variaram em torno do tema da dita dosimetria. Caciques petistas, por má-fé ou ignorância, chegaram a festejar a decisão como se de vitória se tratasse. Quem não tem cão…

Por que terá acontecido isso? A meu ver, a explicação é uma só. Na cabeça de todos, a confirmação da condenação já eram favas contadas. Sobre esse ponto não havia suspense. Ninguém, em sã consciência, imaginava que o STJ pudesse inocentar o Lula. Condenado estava e condenado continuaria, esse era o entendimento geral. A expectativa estava mesmo em torno da manutenção ou de um ajuste da pena, daí a ênfase dada à adaptação dela.

A imprensa mundial foi contaminada pelo anticlímax. Todos deram a notícia segundo a receita nacional, ou seja, ressaltando que, por unanimidade, o tribunal havia reduzido a duração da pena de prisão de Lula da Silva. A confirmação da sentença sumiu do radar ou ficou em segundo plano.

Gazzetta del Mezzogiorno, Bari (Itália)

Topei com uma única exceção. Trata-se da Gazzetta del Mezzogiorno, pequeno órgão da longínqua cidade de Bari, região da Puglia (ou Apúlia, como preferem os puristas). Para quem olha para o mapa, essa região forma o salto da bota italiana. Sabe-se lá por que prodígio, o jornal deu a manchete: «Alta Corte conferma condanna Lula per corruzione – Corte Superior confirma a condenação de Lula por corrupção». A redução da pena só apareceu no subtítulo.

A dez mil quilômetros de distância, um pequeno jornal provinciano conseguiu escapar da uniformização esparramada pela grande mídia. Parabéns.

A hora da matrícula

José Horta Manzano

O distinto leitor já há de se ter inscrito mais de uma vez. Para prestar um concurso, para tirar passaporte, para votar, para seguir um curso, para abrir conta num banco. Em cada ocasião, havia uma lista de requisitos a preencher. Somente postulantes que respondessem a todas as exigências poderiam ser aceitos, o que é natural e entendido por todos.

A idade, por exemplo, é imposição comum. Certas atividades exigem que o candidato seja maior de 18 anos, ou menor de 45, ou os dois. Em outros casos, há que ter mais de 60 anos. Nacionalidade e formação profissional são outros requisitos corriqueiros. Em casos menos comuns, é requerido um atestado de antecedentes criminais ‒ necessariamente negativo. Em cada um dos casos mencionados, o postulante tem de atender a todas as exigências, caso contrário, sua inscrição será rejeitada.

Ora, muito bem. Para registrar candidatura a um posto eletivo ‒ vereador, prefeito, deputado, senador ou presidente da República ‒ as exigências variam. Quanto à idade, do candidato a vereador exige-se apenas que seja maior de 18 anos. Já o candidato a presidente da República tem de ter 35 anos completos. Um deputado pode ser brasileiro naturalizado, enquanto o presidente será necessariamente brasileiro nato. E assim por diante, as exigências variam.

Há um requisito, no entanto, que não varia. É imposição absoluta e comum a todos os cargos: inscrição de candidato condenado por tribunal colegiado não será aceita. É de lei. Ponto e basta. Favor não insistir.

Fica difícil entender todo esse zum-zum-zum em torno da pretensa candidatura de Lula da Silva à presidência. No guichê, basta que o atendente que receber os documentos confira o atestado de antecedentes. Se lá constar a condenação em segunda instância, a inscrição será rejeitada. Não deveria ser mais complicado que isso.

No frigir dos ovos, a polêmica merece até ser observada pelo avesso. Se a inscrição de condenado por tribunal colegiado for aceita, quem estará infringindo a lei é quem tiver acolhido a candidatura. O ato deverá ser declarado nulo, e o autor fatalmente responderá a processo administrativo.

Observação
O desenrolar dos fatos que descrevi acima seria o caminho único e evidente se o Brasil fosse um país civilizado. Dado que ainda não é, a coisa periga ser um pouco mais complicada.

Confirmada a sentença, vai em cana

José Horta Manzano

O Instituto Paraná Pesquisas deu a público um estudo que botou termômetro na percepção dos brasileiros sobre a prisão de condenados em segunda instância.

Já é de conhecimento geral, mas não custa lembrar. Condenados em segunda instância são os réus que, depois de terem recebido sentença proferida por um juiz solitário, recorrem a tribunal de apelações e de novo perdem. O tribunal que julga recursos ‒ dito de segunda instância ‒ é constituído de um colegiado de juízes. Eles têm latitude tanto para absolver o réu quanto para confirmar a condenação do primeiro juiz. Podem ainda reformar a pena, tornando-a mais branda ou agravando-a.

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É de notar a homogeneidade das respostas dos pesquisados. Sexo, faixa etária e nível de formação escolar não influem nos resultados. Com pequena variação de um segmento a outro, constata-se que pelo menos 2/3 dos brasileiros são a favor da execução da pena a partir da condenação por tribunal de segunda instância.

O resultado final, de praticamente 70% favoráveis, é inapelável. Resta a Suas Excelências do STF tomar nota e agir de acordo com a vontade do povo brasileiro. Afinal de contas, é para isso que estão lá. Não são ‒ ou não deveriam ser ‒ ativistas partidários.

Novela interminável e cansativa

José Horta Manzano

Quem diria?

Dois anos atrás, ninguém acreditava que o Lula fosse indiciado em processo criminal. Foi.

Dois anos atrás, ninguém imaginava que eventual processo pudesse prosperar nem que o homem pudesse ser interrogado. Foi.

Dois anos atrás, era impensável que fosse jamais julgado. Foi.

Dois anos atrás, nenhum habitante deste país ‒ nem o mais ingênuo ‒ sonhava que o homem pudesse ser condenado. Foi.

Dois anos atrás, nenhum vivente ousava antever que eventual condenação viesse a ser confirmada por tribunal colegiado. Foi.

Dois anos atrás, nenhum brasileiro acreditava que o temível «exército do Stédile» fosse apenas figura de linguagem. Foi.

Dois anos atrás, era inconcebível que um pedido de habeas corpus para livrar o guru da prisão fosse negado. Foi.

Chegamos ao antepenúltimo ato de uma tragicomédia de mau gosto. O capítulo desta semana é o lançamento de um livro atribuído ao Lula, embora tenha sido escrito por fiéis escudeiros. A obra traz palavras surpreendentes imputadas ao demiurgo.

Contrariando o que, dois anos atrás, seria simplesmente impensável, o ora condenado garante que está pronto para ser preso. Esquecido de alguns episódios pouco gloriosos do passado, nosso guia declara ainda que a palavra fugir não existe em seu dicionário. Assegura, por via de consequência, que não vai tentar escapar ao encarceramento.

Quem viver, verá.

Frase do dia — 347

José Horta Manzano

Não há registro histórico de um regime autoritário que não tenha subjugado ao menos uma de duas instituições basilares da democracia: Justiça e imprensa independentes. Pois o sr. Luiz Inácio Lula da Silva põe ambas sob suspeição no Brasil.

É um perigoso sinal emitido por alguém que, a despeito dos gravíssimos crimes pelos quais responde judicialmente – já tendo sobre si uma condenação, em primeira instância, a 9 anos e 6 meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro –, quer voltar à presidência da República.

Trecho de editorial do Estadão, 22 jan° 2018.

Lula e a segunda instância

José Horta Manzano

Tem coisas que escapam ao entendimento do comum dos mortais. Desde os tempos do velho Getúlio, a população não se repartia em facções tão ostensivamente antagônicas: os que gostam do Lula e os que dele não gostam. Esse “gostar” e esse “não gostar” vão além de simples preferência. Não funciona como gostar do amarelo ou preferir o azul. Tanto o gostar quanto o detestar são potencializados.

Os que apoiam o demiurgo, que seja por simpatia ou por interesse, o fazem com paixão de devoto que abraça uma causa. Nada nem ninguém poderá demover o adepto da seita abraçada. Nenhuma revelação de malfeitos ou crimes cometidos pelo guru abalará os adeptos. São fiéis autoenredados por fé cega. Ou por interesse inamovível.

Já os que estão no campo oposto vão além da detestação do ex-presidente. Sentem arrepio à simples menção de seu nome. Irritam-se com o som de sua voz. Não suportam vê-lo nem em foto. Torcem para que desapareça de vez do cenário político da nação. “Que se vá e nos esqueça!” ‒ é expressão que resume o estado de espírito dos opositores.

O tribunal de Porto Alegre encarregado de julgar o recurso interposto pelo Lula contra a condenação a quase dez anos de cadeia não é composto por magistrados ingênuos. Lá, exatamente como aqui, todos estão cientes da tensão que esse processo tem gerado.

Volto agora ao que dizia no início: certas notícias têm o condão de deixar qualquer um embasbacado. Concretamente, pergunto: por que razão terão marcado, com três meses de antecedência, o dia em que será proclamado o julgamento do recurso? Dezenas de recursos de acusados na Lava a Jato já passaram por aquele tribunal. Que se saiba, não é costume anunciar dia e hora em que a palavra final será tornada pública. Por que fazê-lo neste caso?

Terá sido por vaidade dos juízes? Não acredito. Não me parece que a divulgação antecipada da data lhes possa inflar o ego. Se a intenção era gerar um crescendo de tensão nacional, conseguiram o intento. Se a intenção era pôr o demiurgo sob a luz dos holofotes, foram bem-sucedidos. Se a intenção era insuflar ânimo nos movimentos ditos «sociais», conseguiram também.

A decisão do colegiado ‒ sejamos realistas ‒ já há de estar tomada há tempos. Segundo a imprensa, um dos desembargadores até já emitiu seu voto, embora não o tenha tornado público. Inverídico, portanto, será dizer que o recurso será “julgado” dia 24 de janeiro. Julgado ele já foi. No dia aprazado, o resultado será publicado, nada mais.

Por que então ‒ pergunto de novo ‒ marcar dia? O momento político pede mais é serenidade. Atos que não fazem senão exacerbar os ânimos deveriam ser banidos.

Integração furada

José Horta Manzano

Pela 51a. vez, os líderes do Mercosul se encontraram em reunião de cúpula. Realizada desta vez em Brasília, a cimeira se propunha a avaliar o balanço do período de gestão temporária exercida pelo Brasil e para entregar a batuta ao presidente paraguaio, cujo país presidirá o bloco pela próxima temporada.

Engana-se quem imaginar que esses encontros se realizem em comitê restrito, a portas fechadas, com a presença apenas dos quatro presidentes mais um ou dois assessores. Membros do Mercosul e Estados associados se fazem acompanhar por alentada comitiva. A enorme sala de reuniões do Itamaraty dá justinho pra acomodar a tropa toda.

Cúpula do Mercosul, 20-21 dez° 2017

Como sói acontecer, o volumoso número de participantes está na razão inversa dos resultados. Trocam-se amabilidades, tiram-se fotos de família, assinam-se documentos preparados com grande antecedência, e vamos ficando por aí. Resoluções, no duro, não se tomam. Querem a prova?

A cúpula se desenrolou dias 20 e 21 de dezembro. Por coincidência, a ONU tinha marcado para 21 de dezembro o voto de uma resolução de repúdio à decisão dos EUA de reconhecer em Jerusalém a capital de Israel. Embora o resultado do voto não tenha o poder de fazer os EUA voltarem atrás, reveste-se de alto simbolismo. Evidencia a rejeição a uma decisão que contraria jurisprudência da própria ONU.

Como eu, o distinto leitor há de ter imaginado que a data não podia cair melhor. O fato de os quatro presidentes do Mercosul estarem reunidos ‒ e rodeados de dezenas de assessores ‒ favoreceu um entendimento a fim de todos votarem uniformemente, certo? Errado!

Mostrando mais uma vez que não tem vocação para se inserir nos negócios do mundo, o Mercosul fez cara de paisagem. Não ocorreu a ninguém combinar um voto homogêneo. A debandada foi vexaminosa: Brasil e Uruguai votaram a favor da moção, enquanto Argentina e Paraguai se abstiveram.

Pega mal. Um bloco que não consegue nem pôr os próprios membros de acordo num voto simbólico na ONU não pode ser levado a sério pelo resto do planeta. Quem é que lhe vai dar crédito?

Se nem isso conseguem, por que insistir em levar adiante esse arremedo de organização regional? Depois de um quarto de século e 51 reuniões de cúpula, o que é que sobra? Se espremer, não sai muito caldo. Melhor seria que acabassem com esse circo e que cada um seguisse seu caminho. Daria mais certo.

Nota
Só para constar, o resultado final do voto de condenação à atitude americana de reconhecer Jerusalém como capital de Israel foi o seguinte:

A favor:    128 países
Contra:       9 países
Abstenções:  35 países

Em todas as línguas

José Horta Manzano

News, Austrália

Clarín, Argentina

Der Spiegel, Alemanha

De Redactie, Bélgica

Nachrichten, Áustria

Le Monde, França

The Guardian, Inglaterra

Nova, Bulgária

El Comercio, Peru

Deník, República Tcheca

La Repubblica, Itália

De Morgen, Holanda

TVN24, Polônia

Público, Portugal

Stiri, Romênia

Agência Tass, Rússia

Sveriges Radio, Suécia

Tages Anzeiger, Suíça

Bir Gün, Turquia

Hrodmadske, Ucrânia

The Washington Post, EUA

Channel News Asia, Singapura

South China Morning Post, Hong Kong (China)

Cuba Sí, Cuba

Radio New Zealand, Nova Zelândia

Al Jazeera, Catar

HVG, Hungria

Telegram, Croácia

Irish Times, Irlanda

15min, Lituânia

Politis News, Grécia

Dagens Næringsliv, Noruega

DW, Indonésia

EWN, África do Sul

El Universal, Venezuela

O lado bom

José Horta Manzano

«À quelque chose, malheur est bon», dizem os franceses – mesmo o pior dos desastres tem seu lado bom.

1001 noites 1Tem presidente da República sendo acusado de crime de responsabilidade(1). A expressão, de aparência inofensiva, dá nome a um dos piores crimes que alta autoridade possa cometer. Comprovada a denúncia, o acusado será punido com perda do mandato.

Tem gente graúda sendo presa, aos montes. Para escapar a condenação pesada, tem acusado implorando lhe seja concedido o benefício da delação premiada.

1001 noites 2Tem preso propondo devolver dezenas ou centenas de milhões de dinheiro roubado, numa comprovação evidente de que pilhagem gigantesca houve. Tem gente sem dormir, como disse um senador da República.

Tem dezenas de políticos fazendo novena pro santo das causas perdidas – São Judas Tadeu ou Santo Expedito, ao gosto do devoto. É capaz de ser tarde demais.

A Petrobrás, que tinha levado sessenta longos anos para firmar imagem mundial de solidez e seriedade, voltou rapidamente a ser vista como empresinha de segunda classe.

1001 noites 3Aquela que já foi a maior companhia nacional(2), aquela que tem Brasil até no nome, arrasta, em sua derrocada, a imagem do País. A notícia de que o próprio governo brasileiro se servia nos cofres da estatal reforça a reprovação que pesa sobre nós desde sempre: é prova definitiva de que o Brasil, apesar da grandiloquente conversa fiada oficial, continua empacado no estágio de republiqueta de bananas.

Arca 1Mas nem tudo está perdido. Alguém se lembra do pré-sal? Aquela fa-bu-lo-sa descoberta que prometia garantir o aprovisionamento energético do país por um século? Aquele achado que prometia transformar o Lula em xeique das 1001 noites e todos os brasileiros em milionários?

Pois é. Se realmente existe petróleo debaixo daquela montanha de sal e se sua explotação for um dia possível, não é na semana que vem que o óleo começará a jorrar. E isso é excelente notícia por dois motivos.

Primeiramente, porque o petróleo é material precioso demais para ser desperdiçado como combustível para automóveis. É riqueza finita, não renovável, e vai acabar logo, logo. Sua queima polui nossa atmosfera. Daqui a duzentos anos, quando todas as reservas se tiverem esgotado, os bisnetos de nossos bisnetos vão-nos agradecer por termos conservado o precioso estoque. Há de servir pra finalidade mais útil que virar gasolina.

Prisioneiro 3Segundamente – e é o ponto mais importante – imagine o distinto leitor que, por um descuido da Providência, o processo de contratação de empreiteiros para explorar o pré-sal já estivesse em curso. A gatunagem estaria provocando desfalque duas, três ou quatro vezes mais importante. Os salafrários estariam afanando não bilhões, mas, talvez, trilhões!

Nem sempre é fácil, mas, com boa vontade, sempre se encontra um lado bom.

Interligne 18b

(1) Editorial do Estadão de 16 nov° 2014 vê crime de responsabilidade na atitude dos dois últimos presidentes da República.

(2) Artigo da Folha de São Paulo de 15 nov° 2014 informa que, em valor na Bolsa, a Petrobrás caiu para o 3° lugar atrás de Ambev e Itaú.

Mais alto é o coqueiro…

José Horta Manzano

Quando as condições de vida melhoram, a gente tem tendência a esquecer rápido dos tempos em que batalhava para sobreviver. Uns mais, outros menos, todos nós temos esse pendor.

No tempo das vacas magras, países europeus passaram apertado. Na esteira de demografia galopante, de colheitas perdidas, de conflitos intermináveis, nem sempre tinham com que alimentar seus filhos. Foi quando as Américas receberam ― de bom grado ― imigrantes dos quatro cantos da Europa, na maioria gente desvalida, de pouco ou nenhum estudo, de escarsa formação profissional.

Coqueiro torto

Coqueiro torto

O tempo passou e o cenário se inverteu. Os países ibéricos, desde que descartaram seus respectivos ditadores, puderam aderir à União Europeia. Na garupa dessa junção, foram agraciados com investimentos, empréstimos sem obrigação de reembolso, dinheiro a rodo. De repente, se sentiram ricos e logo esqueceram os tempos de penúria quando tinham de exportar povo.

O novo status atraiu estrangeiros em busca de vida melhor. Surpreendentemente, esses novos imigrantes foram mal recebidos. A riqueza caída do céu havia transformado os povos recém-enriquecidos em novos-ricos de escassas qualidades e pesados defeitos. Conterrâneos nossos ― às vezes intelectuais que vinham para um curso ou uma conferência ― foram barrados como clandestinos, escorraçados e despachados de volta ao Brasil. Uma vileza.

A sabedoria popular diz que tudo o que sobe tem de descer um dia. A crise financeira fez que a bolha ibérica, sustentada principalmente pelo imobiliário, estourasse. O que era vidro se quebrou. O milagre se dissolveu e os novos-ricos voltaram a empobrecer. Hoje são eles que batem à nossa porta. E serão bem recebidos, que brasileiro não é gente rancorosa.

Interligne 18g

A família de um dos condenados no processo do mensalão apelou para a caridade pública para ajudá-los a pagar a multa aplicada ao patriarca pelo STF. Organizaram uma vaquinha. Ninguém jamais saberá se houve doadores ou não. A esse respeito, guardo reserva ― fico com um pé atrás, como diz o outro. Tenho dificuldade em imaginar alguém enfiando a mão no bolso e tirando uma esmola para «ajudar» um figurão da política nacional.

Seja como for, vale o que já diziam os antigos: nada como sentir na carne a dor alheia. Enquanto viajava por cima da carne-seca, durante os 20 anos em que foi deputado federal, o mandachuva, que se saiba, não apresentou projeto de lei visando a mitigar o dia a dia dos encarcerados. Agora, que passou por lá, tomou consciência do problema e decidiu que o excedente recolhido na vaquinha será destinado a reformar estabelecimentos penitenciários.

Coqueiro alto Crédito: Baixaki

Coqueiro alto
Crédito: Baixaki

Por feliz coincidência, o valor arrecadado ultrapassa ― de bem pouquinho ― o montante exigido pela Justiça. Num gesto magnânimo, o condenado abriu mão desses trocados. Todos os jornais noticiaram. Palmas para ele.

Como se diz na França, «à quelque chose, malheur est bon». Não me ocorre um equivalente em nossa língua. Vale dizer que, pelo menos, as vicissitudes do medalhão terão servido para alguma coisa.