Boicote

Stroganoff 2.0
(versão vegetaniana)

José Horta Manzano

Quase 20 anos atrás, na sequência do ataque terrorista que derrubou as torres gêmeas de Nova York, os EUA encasquetaram de invadir o Iraque de Saddam Hussein. Ao apresentar o projeto ao Conselho de Segurança da ONU, encontraram firme oposição da França. George Bush Júnior, então presidente americano, deu de ombros e foi em frente com sua guerra.

Mas a objeção francesa decepcionou a população americana e acabou gerando um sentimento antifrancês. Na ocasião, muitos bares e restaurantes reescreveram parte do cardápio. Batatas fritas, que tradicionalmente levam o nome de “French fries” (fritas francesas) passaram a se chamar “Freedom fries” (fritas da liberdade).

Os anos passaram, a guerra acabou, e não se falou mais do assunto. Acredito que a molecagem das batatas tenha sido abandonada e que elas tenham recobrado o nome tradicional.

Este terrível 2022, que era para ser alegre e marcar o fim da pandemia, acabou reservando ao mundo a pior das surpresas: uma guerra de conquista territorial em plena Europa. Um país soberano e democrático está sendo atacado por uma potência nuclear, dona do segundo maior exército do planeta. Uma covardia que, na Europa, não se via desde os anos sinistros da Segunda Guerra.

Muita revolta tem surgido, cada um reagindo à sua maneira. Pesadas sanções financeiras e econômicas estão sendo aplicadas ao país agressor, decisão que me parece sensata. Mas outras marcas de desapreço para com o invasor russo soam folclóricas, ainda que estejam mais pra ignorância que pra má-fé. Aqui estão algumas delas.

Faz duas semanas, a Universidade Bicocca, de Milão, anunciou o cancelamento de um curso, previsto havia meses, a ser dado pelo escritor Paolo Nori sobre a obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), considerado o maior romancista russo, falecido há 140 anos, antes do nascimento do avô de Vladímir Putin. A revolta contra o estúpido cancelamento foi tão clamorosa, que a universidade acabou voltando atrás e mantendo o curso. Repare que não foi o boteco da esquina, mas uma universidade que tinha decretado o bizarro boicote.

Semana passada, foi a vez de botecos de verdade porem as manguinhas de fora. Pelo menos dois estabelecimentos paulistas seguiram o caminho das “fritas da liberdade” de 20 anos atrás e alteraram o cardápio. Numa das empresas, o estrogonofe (às vezes grafado estroganofe ou ainda stroganoff) perdeu o sotaque russo e tornou-se picadinho. Na outra casa, um bar, o coquetel “Moscow mule” virou “Kiev mule”. Não creio que as mudanças tenham contribuído para a paz na Europa oriental, mas valeu a intenção. De qualquer modo, o protesto é infinitamente menos grave que o banimento de Dostoiévski da universidade.

No capítulo “boicotes bizarros”, o mais curioso, até o momento, ocorreu ontem. Por ordem do ditador Putin, Joe Biden ficou proibido de pisar território russo até segunda ordem. Nenhuma viagem aos gelos de Moscou estava prevista na agenda do presidente americano, mas fica o aviso: que nem pense em aparecer. Não consta que o banimento tenha sido considerado como afronta pela diplomacia americana.

Parece que a estupidez humana não tem limites. Quem diz isso não está muito longe da verdade.

Visto no passaporte

José Horta Manzano

Com frequência, ouvem-se reclamações de brasileiros que têm de tirar visto para viajar. Diga-se que, em geral, se trata de viagem aos EUA.

É verdade que é uma chatice. Mas sempre tem gente em pior situação que nós. Veja nos mapas reproduzidos abaixo a situação dos russos. Em matéria de viagem, não podem dar dois passos sem precisar de visto.

Em certa medida, isso explica por que os mais abastados empenham fortunas em países que garantem um “golden visa” (visto dourado, ou seja, autorização automática e permanente de residência) aos que comprarem imóveis ou se propuserem a investir valor significativo.

Portugal e Reino Unido estão entre eles. Dizem que pequenos países, como Chipre e Malta, chegam a “vender” a nacionalidade a estrangeiros muito ricos, que, com isso, se tornam cidadãos da União Europeia e ganham o direito de circular pelo mundo todo livres dessas dores de cabeça.

 

 

Vistos exigidos de cidadãos russos

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Vistos exigidos de cidadãos brasileiros

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Disclaimer: Essas informações são dadas a título ilustrativo. O blogue não se responsabiliza pela exatidão nem pela atualização dos dados. Para ter certeza, o melhor é consultar seu agente de viagens ou o consulado do país a visitar.

Que tal ir ao essencial?

José Horta Manzano

Não sou lulista nem nunca fui. Não sou bolsonarista nem nunca serei. Não acredito que o Lula, eleito, venha a fazer bom governo, visto que nunca fez. Não acredito que Bolsonaro, reeleito, venha a fazer bom governo, visto que nunca fez.

Se alguém tiver alguma dúvida, está convidado a percorrer este blogue, que já está completando dez anos. Aqui na coluna da direita, há um campo mostrando as “tags” mais frequentes. Basta clicar em “Lula”, por exemplo, e aparecerão todos os artigos em que o ex-presidente é mencionado. O mesmo vale para Dilma, Bolsonaro & tutti quanti. Fica a dica.

Gosto de deixar as coisas bem claras logo de entrada. Nestes tempos estranhos, muitos enxergam um mundo em preto e branco: quem não é de um lado só pode ser do outro. E vice-versa. Comigo não funciona assim. Sou capaz de encontrar (se bem que é difícil) algum detalhe positivo nos longos governos lulopetistas. Seria também capaz de encontrar (se bem que é quase impossível) algum detalhe positivo no interminável mandato do capitão.

Isso posto, vamos ao ponto. Estes dias, boa parte do Brasil pensante está indignada. Como fariseus, batem no peito e juram que jamais se comportariam assim. Refiro-me às viagens que um certo senhor Frias & assessores empreenderam aos EUA. Pelo que dizem, o indigitado senhor, encarregado de cuidar da cultura em nosso país(!), só não participou do segundo convescote por estar em licença-covid.

Um punhado de auxiliares teriam dado os dois passeios, um a Nova York e o outro à Cidade dos Anjos, como costumam dizer os franceses (Los Angeles). Leio hoje, em artigo da Folha, que um subsecretário gastou cerca de 20 mil reais numa estada de 5 dias em LA.

Ao câmbio atual, a quantia corresponde a 3.900 dólares. Não é dinheiro de pinga, é verdade, mas convenhamos, não me parece nenhum despropósito. Sem dúvida, o homem podia ter passado uma semana comendo hambúrguer, mas parece que engorda. Podia também ter viajado de ônibus, mas ia demorar mais. Além disso, pra atravessar a América Central, ia ter de se vacinar contra a malária; como bom discípulo do capitão, talvez recusasse a picada.

Enquanto isso, o capitão bloqueou o Aerolula por uma semana pra ir dizer pessoalmente a Vladímir Putin que se solidariza com ele, numa daquelas gafes pesadas, que esgarçam nossa imagem no exterior. Ele nos pôs no nível da Nicarágua, da Venezuela, da China, da Bielo-Rússia, do Cazaquistão e da Quirguízia: todos se solidarizam com a Rússia. Estamos em boa companhia.

Acho interessante que, enquanto estão todos crucificando o sub do sub por ter assimilado rápido as regras da casa e agido como agiria o chefe do clã, ninguém está fazendo as contas de quanto o vexame internacional moscovita custou aos cofres do país. Viagem presidencial começa uma semana antes, com os “batedores” que abrem a picada. E dá-lhe avião da FAB, diárias de hotel, restaurantes e gastos anexos. A comitiva presidencial compõe-se de dezenas de convidados, uns úteis (ex: grandes importadores e exportadores), outros inúteis (ex: o filho do capitão, vereador do RJ).

Bolsonaro jura que a hospedagem em Moscou, em suites com diária de 100.000 reais, foi mimo do governo russo. Pode até ser, mas fico de pé atrás. De qualquer maneira, não foi com o cartão corporativo de Putin que a multidão de acompanhantes pagou suas diárias. Nem a alimentação. Nem os extras. Nem as matriochkas que vieram na bagagem de volta.

Tenho dificuldade em entender por que razão os que têm voz se jogam em cima do peixinho e deixam escapar o tubarão. Será por medo? Falta de informação? Falta de vontade?

É bom ter em mente que, se o peixinho se permite desvios de comportamento é porque se sente coberto por seus superiores hierárquicos. Que também se sentem acobertados. E assim por diante, até chegar ao chefão. Isso não é “Lei de Murphy”, é simplesmente a realidade.

Tem outra coisa. No caso da viagem do sub do sub a Los Angeles, seria mais útil deixar de lado, por um instante, o custo da viagem e se interessar pelo objetivo do passeio. O que é que o rapaz foi fazer lá? Com quem se encontrou? Que pito toca essa pessoa? Há relatório escrito? Que diz esse relatório? Foram concluídos negócios? Foi assinado um protocolo de acordo? Quais são as perspectivas de futuro? Qual é o interesse do país nesse gasto de tempo, energia e dinheiro nosso?

Esse é o tipo de questionamento que está a fazer muita falta. Estamos nos perdendo nos considerandos sem nunca chegar aos finalmentes.

A razão da visita de Bolsonaro

José Horta Manzano

Parece que está esclarecida a disparidade de dimensões entre, de um lado, a mesinha de chá que punha Putin a meio metro de distância do argentino Fernández, e, de outro, a mesona de mármore que mantinha 6 metros de distância entre o russo e o francês Macron.

Segundo o próprio Kremlin, a razão é sanitária. Visto que Emmanuel Macron se recusou a passar pelos testes de detecção de covid exigidos pelo hospedeiro, este impôs distância física entre os dois. Vladímir Putin afasta todo risco a sua excelsa pessoa. Ameaçar vizinho de bombardeio pode (veja a Ucrânia), mas respirar bafo de colega não testado não pode.

Bolsonaro está de partida para Moscou. Agora, que as redes sociais já começam a estranhar a insistência do capitão em fazer essa viagem justo agora, quando o mundo faz novena pra evitar uma guerra na região, está começando a ficar realmente esquisito.

O presidente não é conhecido por ser homem corajoso. No dia a dia, vive transferindo as próprias culpas a terceiros e, quando obrigado a aparecer em público, vem regularmente escorado atrás de uma legião de seguranças. Se ele se expõe a atravessar uma região em conflito e passar uns dias nos gelos russos, com o risco de ser alvejado por um míssil, alguma razão muito forte haverá. Qual será?

Nem o Kremlin nem o Planalto vão confirmar. Resta conjecturar. Não custa nada, vamos lá.

O distinto leitor já há de ter ouvido falar em Pegasus, um spyware israelense de excepcional desempenho, capaz de se infiltrar em qualquer telefone celular e realizar tarefas de roubo de dados e monitoramento de voz. Meses atrás, fiquei sabendo que um dos bolsonarinhos, aquele que é deputado federal, estava interessadíssimo em adquirir a tecnologia. O objetivo evidente era espionar adversários, desafetos, ministros do STF, parlamentares da oposição, líderes de associações, ONGs e quetais. Talvez tenha sido essa uma das razões da viagem que uma alentada comitiva do Planalto fez a Tel Aviv meses atrás. O motivo declarado era buscar um spray nasal contra a covid, mas essa alegação podia ser mera cobertura.

Por mais que apreciem o clã Bolsonaro, os israelenses não são bobos. Sabem que, dentro em breve, serão todos varridos para a lata de lixo da história. Em resumo: não vão se comprometer vendendo tecnologia tão sensível a gente tão pouco estável – e nada confiável. Acredito que o negócio tenha dado chabu.

Por trás da visita “de cortesia” a Putin, o capitão pode estar com alguma ideia desse tipo. Embora a Rússia não tenha nunca admitido, o mundo ficou sabendo da insidiosa interferência de Moscou quando da corrida presidencial americana que elegeu Donald Trump. Interferência, se houve, foi muito benfeita. Tanto que, até hoje, todos desconfiam, mas ninguém foi capaz de comprovar.

Essa poderia ser a razão que está levando o capitão a procurar comprar ajuda russa para lhe dar uma mãozinha na tentativa de reeleição. Comprar ajuda russa com nosso dinheiro, saliente-se. Diante de uma reeleição quase impossível, ele há de estar apelando para todos os santos.

Depois de ter orgulhosamente anunciado ao mundo todo que não estava vacinado e que não pretendia vacinar-se, Bolsonaro está agora em situação delicada. Putin foge da covid como da peste. Para se aproximar dele, todo convidado tem de passar por meia dúzia de testes consecutivos, ainda que esteja vacinado. Como é que as coisas vão se desenrolar?

Macron, que está vacinado com três doses, recusou-se a passar pelos testes. Receia que seu ADN seja coletado pelo Kremlin para fazer sabe-se lá o quê. Como vai reagir Bolsonaro? Vai passar pela humilhação dos testes? Acho que será obrigado, se não Putin não o receberá nem com mesa de 6 metros. E quanto à ajuda que está buscando, vai conseguir? Teremos interferência russa nas eleições de outubro?

Tenho cá minha ideia. Não é porque Bolsonaro voou até Moscou que ele será agraciado com ajuda russa para reeleger-se. Acho que Putin, que pode não ser grande amigo da democracia mas bobo não é, vai recusar. Não vejo que interesse ele teria em ter o capitão por mais quatro anos no Planalto. Mais interessante para Moscou é ter em Brasília um amigo da Venezuela, que é atualmente afilhada da Rússia.

E o distinto leitor sabe qual dos candidatos à Presidência do Brasil é o mais próximo de Caracas, pois não?

Bolsonaro visita o tsar de todas as Rússias

José Horta Manzano

Não é a primeira vez que falo deste assunto, que me deixa bastante inquieto. Tenho a impressão de que a imprensa brasileira tem passado ao largo do desastre que está se preparando. Parecem todos mais preocupados com a ‘jequiata’ que Bolsonaro planeja do que com a ‘burrata’ que está prestes a cometer.

Imagine o distinto leitor que o Dalai Lama fizesse uma visita ao Principado de Mônaco. Ou que o papa Francisco desse um pulinho a Andorra. Um conversaria com o príncipe, o outro se encontraria com o chefe do governo. Conversariam amenidades, trocariam presentes, dariam passeio em carro aberto, escutariam coral de crianças agitando bandeirinhas. E pronto. Terminado o passeio, cada um voltaria pra casa. E a Terra não pararia de girar.

Fim de semana que vem, Bolsonaro embarca para uma visitinha dita ‘de cortesia’ à Rússia. Não é fácil explicar a razão pela qual os personagens mais vistosos a acompanhar o presidente – além dos intérpretes, evidentemente – serão Mário Frias, secretário de Cultura, e o “capitão Cultura”, um senhor que fiscaliza a Lei Rouanet. Vão aprender como montar uma companhia de dançarinos cossacos? Como de costume, a comitiva presidencial deverá ser rechonchuda, com dezenas de autoridades, convidados, xeretas e penetras.

Alguém precisa urgentemente contar ao capitão que a Rússia não é Mônaco nem Andorra. Uma visita desse quilate não passa despercebida. Tem significados, nem sempre aparentes, aos quais ele não parece estar dando a devida importância.

Pra começar, Jair Bolsonaro e Vladímir Putin não hão de ter grande coisa a conversar. O capitão não deve entender lhufas de política interna russa. Nunca deve ter ouvido falar no mundialmente conhecido Alexei Navalny, oponente e atual prisioneiro político, que foi vítima de tentativa de assassinato da qual escapou penosamente depois de meses de tratamento na Alemanha. Novichok, o veneno de que foi vítima, não se compra na farmácia da esquina. É substância desenvolvida pela indústria militar russa. Donde se conclui que a ordem de eliminá-lo partiu do chefe de Estado. Gente fina.

Menos ainda deve nosso capitão entender do problema entre a Rússia e a vizinha Ucrânia. Com boa vontade, admito que já tenha ouvido falar da União Soviética, que finou 30 anos atrás. Mas não deve estar a par da importância que a Ucrânia representa para os russos, considerada por estes o berço da civilização nacional. Não deve ter a menor ideia de que, nas fronteiras russas, se prepara um afrontamento entre Rússia e Otan. (Estou supondo que saiba o que é a Otan, mas não tenho muita certeza.)

Essa visitinha presidencial me lembra aquela que o Lula fez, acompanhado de alentada comitiva, ao Oriente Médio. Tinha na cabeça uma ideia ambiciosa e genial: resolver a questão palestina, nada menos que isso. Imaginou que, com um jogo de futebol entre os adversários, tudo se resolveria. Santa ingenuidade! Deu tudo errado e ele teve de voltar com o rabo entre as pernas, quase escorraçado como inhambu em festa de jacu. Humilhação total. Nunca mais se falou no assunto.

Lula, o messias de Garanhuns, tinha a pretensão de salvar o mundo, mas faltava-lhe instrução e capacidade. Bolsonaro apesar de ser Messias de nome, é bobão. O momento é de quase-guerra entre Rússia e Ucrânia. Se não for para tratar de apaziguar os ânimos, o momento é péssimo pra qualquer visita, seja ela de cortesia ou de negócios. Quem não for lá pra ajudar só vai atrapalhar.

A visita de Bolsonaro a Putin (a versão 2.0 do tsar de todas as Rússias) não trará nada de bom para nosso país. Vejamos por quê:

• Uma viagem dessas implica logística complexa e custa os olhos da cara. Se não tiver um objetivo útil para o Brasil, é dinheiro jogado fora.

• A Rússia, que já é cliente dos frigoríficos brasileiros, não vai comprar nem um bife a mais.

• A Ucrânia, país que contribuiu para a formação do Brasil com mais imigrantes que a Rússia, vai ficar muito desagradada. Por que Bolsonaro visita Moscou, mas ignora Kiev? Não é inteligente indispor-se com um mercado de quase 45 milhões de consumidores.

• A União Europeia, que tem envidado esforços para garantir a paz na região, vai se sentir contrariada. Não convém indispor-se com a UE assim, sem nada, sem motivo válido, num momento de tanta tensão.

Os EUA já rogaram a Bolsonaro que desista da viagem. Nosso aliado tradicional são os Estados Unidos, não a Rússia. Isto aqui não é a Venezuela – Bolsonaro está confuso.

Já que ele bate o pé, me resta dar-lhe um conselho de bom samaritano.

Capitão, procure não repetir o vexame de Nova York, quando vosmicê e seus badalos se deixaram fotografar comendo pizza na calçada. E com as mãos! É verdade que, de quem come farofa com as mãos, tudo se pode esperar.

Mas olhe que em Moscou faz muito frio nesta época do ano. Quem, como vosmicê, está a caminho dos 70 anos e passou recentemente por meia dúzia de cirurgias devia evitar apanhar resfriado. Pode dar complicação. Se acontecer, não são seus seguranças nem o Centrão que vão acudir.

Ah, se inveja matasse!

José Horta Manzano

Se Bolsonaro pôde viajar a Nova York para comer pizza na calçada e, dias depois, fazer turismo na Itália para cuspir na tumba dos pracinhas, é sinal de que está apto a viajar para qualquer parte do globo. O chato é que ninguém o convida nem o quer receber.

Na verdade, ninguém quer saber dele. Aparecer em foto a seu lado? É o pesadelo de qualquer mandatário que se preze! O capitão é pestiferado, como aqueles infelizes da Idade Média, que, infestados pela bubônica, não tinham sequer permissão para pôr os pés no vilarejo onde viviam. Xô!

O máximo que o capitão conseguiu foi ser recebido nos ouros e nos mármores dos potentados médio-orientais, gente com petróleo de mais e escrúpulos de menos. Visitas assim rendem fotos cintilantes, mas não dão prestígio a ninguém – e Bolsonaro sabe disso.

Já o Lula, apesar de ter instaurado corrupção sistêmica no país e ter gramado ano e meio de masmorra (de 1ª. classe), ainda goza de boa imagem lá fora. Veja só, se um ex-presidiário condenado por corrupção é paparicado enquanto o presidente em exercício é enxotado, é porque este último é ruim de fato. Não tem nada que se aproveite.


“A França não é exemplo para nós, muito menos o seu Macron. Seu Macron está muito bem acompanhado do Lula, e Lula, muito bem acompanhado do seu Macron. Eles se entendem, falam a mesma linguagem.”


Essa foi a reação do capitão ao referir-se à acolhida do Lula pelo presidente da França, dias atrás. Ai, se inveja matasse!…

Em três anos de mandato, nenhum chefe de Estado ofereceu ao capitão hospitalidade tão prestigiosa quanto essa que o Lula acaba de receber de “seu” Macron. Aliás, que eu me lembre, tirando as viagens que fez a Netanyahu e a Trump logo no início do mandato, nenhum chefe de Estado jamais convidou o capitão.

Talvez seja uma das razões pelas quais nosso presidente se tranca no banheiro, de madrugada, para chorar, o pobrezinho. Não estou inventando, foi ele mesmo quem confessou. Não deve ser fácil pra ninguém se achar o rei da raspadinha e, ao mesmo tempo, ser rejeitado pelo mundo ingrato.

Vamos esperar que nenhum dos dois ETs, nem o Lula nem o Bolsonaro, venha a ser o próximo presidente da República. É verdade que o Brasil tem carma pesado, mas nossa geração já pagou boa parte da dívida. Que sobre um pouco para a próxima.

Quatorze anos de PT, mais dois de Temer, mais quatro de Bolsonaro: são vinte anos! Há duas décadas estamos resgatando os pecados cometidos ao longo dos últimos 5 séculos. Bem que podia dar uma refrescadinha. Que venha um outro qualquer. Desde que não seja malandro como um nem maluco destrambelhado como o outro, terá o apoio da nação agradecida.

Para explicar o título
“Ah, se inveja matasse”, o capitão estaria em estado de rigidez cadavérica, pronto pra receber sete palmos de terra por cima. Sem choro nem vela.

A floresta intocada

Bolsonaro mergulhado nos ouros e nos mármores do Oriente Médio.

José Horta Manzano

Bolsonaro, o indesejado das gentes, não é bem-vindo em nenhum país civilizado. Não recebe convite para visitar nenhum deles. Sem ter o que fazer, perambula pela periferia do mundo. E leva junto os bolsonarinhos, que também parecem não ter nada mais importante pra fazer na vida.

Estes dias, está fazendo turismo nos palácios de ouro e mármore que ditaduras hereditárias levantaram, com o dinheiro do petróleo, sobre as areias do desértico Oriente Médio.

Nenhum jornalista ousou fazer-lhe a pergunta fatal: “Então, presidente, aquela promessa de campanha de transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, como é que fica?”. Não convém reavivar memória de ofensas passadas, justamente quando se está de visita à casa dos ofendidos.

Em discurso pronunciado neste 15 de novembro, Bolsonaro garantiu, alto e bom som, que a Amazônia continua virgem e intocada, exatamente como a encontraram os primeiros exploradores portugueses chegados em 1500.

Distorcida pelo linguajar peculiar do capitão, a frase saiu picadinha. Mas o fundo de seu pensamento era esse. Garantiu, sem corar, que as queimadas são um mito. Em seu raciocínio, a floresta, sendo úmida, não pode arder. (Me fez lembrar aquele impagável discurso em que o Lula ensinava que só havia poluição no Brasil porque a Terra gira; não girasse, não haveria poluição.)

Por coincidência, no mesmo 15 de novembro, o Instituto de Pesquisas Espaciais anunciou a triste verdade: diferentemente do que anuncia o capitão, a floresta amazônica continua encolhendo. Só no mês passado (outubro), 876,5 km2 viraram pó.

No Brasil, país acostumado a cifras gigantescas – de população, superfície, assaltos e mortes por covid –, esse número não impressiona. Em outras partes do mundo, não é bem assim.

A Suíça, por exemplo, abriga 8 milhões de habitantes espalhados por 26 cantões. Pois saiba o distinto leitor que a superfície de floresta amazônica brasileira destruída no mês de outubro é exatamente a mediana da área dos cantões suíços. Isso quer dizer que metade dos cantões tem superfície menor que 876,5 km2, enquanto a outra metade tem superfície maior que a zona desmatada. “Ah, mas a Suíça é país pequeno!” – dirá um desmancha-prazeres. Ah, é? Então leia o que vem a seguir.

A superfície que foi desmatada só no mês de outubro pode não impressionar no Brasil, mas deixa de queixo caído em outras partes do mundo. É mais que 8 vezes a superfície do município de Paris, número que impressiona qualquer francês. É mais que 7 vezes a área do município de Milão, vastidão de deixar abobado qualquer italiano. Para todos eles, é aterrorizante imaginar que o Brasil destrói, a cada 3 dias, a cobertura vegetal de uma área do tamanho de uma grande metrópole.

Ao fim e ao cabo, a mentira presidencial tem perna curta. Doutor Jair Messias não é o único canal de informação da plateia que acompanhou seu palavrório nas Arábias. Como pessoas bem formadas e bem informadas que são, todos eles, a estas alturas, já devem estar a par dos números do Inpe. Já conhecem a verdade. Eles, sim, dispõem de canais que lhes dão informações eficazes.

Não faço ideia de quem prepara os discursos do capitão. Há de ser gente que nunca sai da bolha. Eles parecem acreditar que o mundo é composto de devotos que bebem unicamente as “verdades” espalhadas pelos canais bolsonaristas.

Enganam-se, fazem o presidente dar vexame. De tabela, envergonham a todos nós.

Baú de memórias ‒ 7

Soldado alemão
by Alfred-Georges Hoën (1869-1954), artista francês

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Dizem os psicanalistas que a especialidade da histérica é colocar-se repetidas vezes e voluntariamente dentro da boca do leão. Por temerem a exposição a situações que poderiam lhes causar perda do autocontrole, os histéricos inconscientemente – e paradoxalmente – manobram suas experiências de vida para cair de cabeça, sem paraquedas, justamente nas situações que mais temem.

Ao longo dos meus muitos anos de terapia, minha psicoterapeuta por diversas vezes me questionou: “Qual é sua cena temida?”. Eu nunca sabia responder com clareza. Falava vagamente do meu medo da nudez pública, dos “brancos de memória” em uma prova, do desconforto de falar em público e, especialmente, do pavor de que outras pessoas descobrissem um dia que eu não passava de uma fraude – ou seja, uma pessoa sem uma base sólida de conhecimento para se apresentar como autoridade ou especialista de qualquer área. Mas quase nunca meus temores encontravam alívio revivendo simbolicamente cenas como essas.

O primeiro livro “adulto” que li, lá por volta dos 12 anos, foi O Diário de Anne Frank. Mal consigo descrever em palavras o impacto que ele me causou. A Segunda Guerra estava a apenas uma década de distância, o nazismo havia deixado marcas profundas de culpa no subconsciente coletivo, minha melhor amiga de infância vinha de uma família de judeus poloneses que haviam sido forçados a emigrar para escapar da sanha destruidora das forças da SS e continuavam a viver escondidos, assombrados com a possibilidade de serem denunciados e repatriados.

Além da empatia que desenvolvi para com o sofrimento dessa família e minha posterior identificação com muitos dos traços da cultura judaica, pairava no ar em nossa própria casa a suspeita de que o sobrenome Suplicy fosse de origem judaica (o que mais tarde foi confirmado através de uma pesquisa do lado materno de nossa árvore genealógica). Tudo isso contribuiu, é claro, para que eu sentisse desde muito cedo uma profunda aversão por movimentos totalitários, de supremacia racial.

Já adulta e trabalhando para uma empresa de pesquisa de mercado e opinião pública, fui convidada para ser a representante brasileira em um seminário internacional sobre técnicas projetivas [minha especialização] em pesquisa qualitativa, que aconteceria em Paris. Entusiasmada, decidi juntar a participação no workshop com minhas férias, para aproveitar ao máximo a estada no continente europeu. Durante o seminário, todas as noites os participantes saíam em grupos para confraternizar, jantar e se divertir. Nessas ocasiões, travei contato mais próximo com um colega austríaco que me intrigava por ser uma pessoa muito comedida e reservada, embora demonstrasse ser dono de uma mente brilhante, de uma curiosidade inesgotável e estivesse sempre pronto a debater com empolgação seus trabalhos na área.

Por outro lado, ele parecia nunca se sentir à vontade para se referir à sua vida particular. Trancava-se em copas sempre que o assunto derivava para hábitos e interesses pessoais, formas preferidas de lazer e entretenimento ou detalhes sobre a vida familiar. Algo me dizia que não era questão de timidez nem a circunspecção esperada de um psicólogo clínico. Eu preferia apostar que se tratava de um traço comportamental característico da formalidade saxônica ou derivado de sua faixa etária, mais alta do que a nossa. Seja como for, aos poucos fomos desenvolvendo uma relação mais calorosa e, tão logo soube que eu visitaria outros países na sequência, ele insistiu em me convidar para sua casa quando eu chegasse a Viena.

Meu primeiro ponto de parada na Áustria foi a encantadora Salzburg. Mesmerizada com a beleza das paisagens de montanha e com a singeleza do casario urbano, a imponência dos castelos e igrejas e, em especial, com a história de vida de Mozart, eu me sentia vivendo um conto de fadas ou fazendo parte do elenco do filme A Noviça Rebelde. Deixei a cidade a contragosto e, ainda embalada pelas delícias da cultura musical e gastronômica austríaca, cheguei a Viena num dia de forte nevasca. O taxi que me levou até o hotel mal conseguia circular em linha reta e derrapou infinitas vezes, quase batendo em outros carros estacionados ao tentar se desviar das grossas camadas de neve suja que se acumulava nas ruas. O frio era terrível e o aquecimento do meu quarto estava com problemas.

Desapontada e irritada com tanto desconforto, resolvi ligar para meu colega, antecipando uma noite de animadas conversas, muita cerveja e comidas apetitosas. Ele se prontificou de imediato a me pegar no hotel e me levar até sua casa. Quando lá chegamos, sua esposa me recebeu nitidamente constrangida, já que não falava inglês e eu não falava alemão. Tentávamos nos entender com sorrisos e gestos, mas tudo o que posso dizer é que o clima geral de retraimento combinava em cheio com aquele apartamento escuro e apertado. Sem graça, eu explorava com o canto dos olhos o local para tentar descobrir mais pistas sobre as razões da sisudez do dono.

Ao examinar uma mesinha lateral repleta de fotos de família, vi horrorizada o retrato esmaecido de um senhor vestido com o uniforme de oficial nazista. Embora não fosse uma imagem de glorificação da suástica nem trouxesse o braço estendido em saudação ao Führer, congelei de imediato. Um quase-pânico tomou conta de mim ao perceber que eu havia me colocado inadvertidamente dentro do covil de inimigos ideológicos. Devo ter ficado muito pálida porque meu anfitrião logo se deu conta do meu desconforto. Com uma voz cansada e triste, ele disse simplesmente: “É meu avô…”. Sem saber como prosseguir com a conversa, optei por não fazer mais perguntas e me calei. Mesmo assim, ele prosseguiu numa espécie de desabafo, me passando alguns detalhes de sua vida na infância e adolescência. Contou como havia sido alvo de bullying na escola por ser neto de uma figura tão odiada, a dificuldade de relacionamento com as meninas da mesma idade, o retraimento da família diante de vizinhos e como esse isolamento compulsório havia sido decisivo para ele escolher a psicologia como profissão.

Quando me acalmei, entendi que não estava diante de um apoiador entusiasmado do regime nazista, mas que, ao contrário, ele havia dedicado sua vida a tentar compreender as motivações psíquicas que haviam levado seu avô a aderir à ideologia supremacista. De qualquer forma, meu constrangimento persistia. Quando a conversa se esvaiu, saímos para jantar em uma famosa cervejaria na periferia da cidade. Meu anfitrião nitidamente se esforçava em trazer alguma leveza e descontração para nossas conversas, mas logo o clima mudou de novo. Quase engasguei com a comida quando mais uma vez ele sem querer fez referência ao nazismo, me contando que aquele local era frequentado habitualmente pela alta cúpula da SS.

Tudo acabou se juntando na minha cabeça para determinar um dos piores fins de noite da minha vida: o frio congelante, a dificuldade de locomoção, a dificuldade de comunicação, a falta de ar naquele apartamento sombrio, as histórias igualmente sufocantes da família, a falsa descontração à mesa e a quebra de expectativa com a cidade de Viena, praticamente uma antípoda da alegria ingênua de Salzburg. No dia seguinte logo cedo, arrumei minhas malas e fui embora com a sensação de página virada na minha angústia existencial. Nunca mais soube daquele homem de olhar perdido, sobrecarregado com tantas memórias tristes.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Au pair

José Horta Manzano

Pouco conhecida entre nós, a expressão au pair define uma atividade difundida e bastante apreciada pelos jovens europeus. A falta de intimidade com a expressão, faz que ela seja às vezes traduzida por ‘babá’, o que não corresponde necessariamente à realidade.

A imagem de um rapaz (mais frequentemente de uma moça) au pair surge no século 19. A construção de estradas de ferro facilitou muito as viagens. Trechos que demandavam dias de estrada passaram a ser percorridos em poucas horas – um achado. O mundo ficou mais perto, e a mocidade se empolgou.

Aos poucos, foi se firmando nova atividade para a juventude. A jovem au pair é aquela que passa algum tempo – geralmente um ano – no exterior, hospedada na casa de uma família com crianças. O trato é paritário (=au pair), ou seja: a moça tem casa, comida e roupa lavada; em troca, dá um pouco do seu tempo para cuidar das crianças e ajudar na arrumação da casa.

Em geral, o principal interesse da jovem au pair não é tanto cuidar de criança, mas aprender a língua, num regime de mergulho total. A família costuma pagar o curso intensivo de língua e dar horas livres para a hóspede poder frequentá-lo. A jovem recebe, além disso, uma mesada, coisa pouca, que não chega a ser um salário, mas dinheiro de bolso.

De origem francesa, a expressão au pair é utilizada na maioria das línguas, sem tradução nem adaptação. Na origem, o termo era usado unicamente em economês, para tratar de paridade entre moedas.

Até pouco tempo atrás, grande parte das jovens candidatas a uma colocação como au pair sonhavam com a Inglaterra. É natural, a atração da língua inglesa supera a das demais. Só que, passado o Brexit, as autoridades britânicas tomaram uma decisão polêmica.

Talvez com intenção de melhorar as estatísticas de desemprego, decidiram despertar à força vocações de mocinhas britânicas candidatas a uma colocação au pair dentro das fronteiras do Reino Unido. Para aumentar a atratividade da “profissão”, promoveram-na à categoria de profissão especializada, com piso salarial fixado em 20 mil libras por ano.

Não sei se vai dar certo. Por um lado, jovens britânicos não parecem muito interessados em mergulhar no ‘aprendizado’ da própria língua materna; preferem estudar na Espanha, na França ou na Itália. Por outro, o elevado piso salarial é proibitivo para uma família inglesa comum. O interessante da atividade era justamente essa informalidade, esse toma lá dá cá (no bom sentido).

As novas regras britânicas vão conseguir frustrar nas duas pontas. As famílias inglesas que gostariam de contratar uma estrangeira para cuidar das crianças não vão mais poder fazê-lo. E os jovens europeus, que adorariam passar um ano no Reino Unido aprendendo inglês, vão ter de saciar sua sede de viagens em outro lugar.

De quebra, fecha-se um canal barato de projeção da língua inglesa. Está aí uma decisão mal ajambrada, em que todos saem perdendo.

Inefável presidente

José Horta Manzano

Pessoas públicas – em especial as que ocupam cargos majoritários, como prefeito, governador e presidente – vivem sob os holofotes. É natural. Se quisessem passar a vida incógnitos e abrigados pela sombra discreta de uma mangueira, não se candidatariam.

Uma vez eleitos, conquistam privilégios e mordomias que não são accessíveis à plebe. Em compensação, sua existência perde a privacidade garantida aos demais mortais. Daí dizermos que são ‘pessoas públicas’. Antigamente bastava dizer homens públicos, mas a a linguagem politicamente correta de hoje quer que se mencionem todos os gêneros, sem deixar nenhum de fora; a palavra ‘pessoa’ cumpre a exigência.

Personagens públicos têm agenda pública, são vigiados da manhã à noite, seus deslocamentos são acompanhados. Até suas férias são esquadrinhadas. Ainda que andem na linha, serão analisados e criticados. Se saírem do bom caminho, então, serão alvo de uma torrente de críticas, que podem tomar o rumo perigoso da destituição do cargo.

Políticos mais espertos, que conseguem ser discretos, escapam desse olhar desconfiado e inquiridor. Já os outros, estabanados, se expõem demais da conta. Nesta última categoria, está nosso inefável(*) presidente da República.

Se fizesse um esforço pra conter a língua, seus defeitos, que são incompatíveis com o exercício do cargo, ficariam na sombra. Ao não se dar conta disso, o moço tropeça em perna de cadeira, procura casca de banana pra escorregar, se aventura de chinelão em solo ensaboado. Resultado: dia sim, outro também, tropica. E se esborracha que dá gosto.

Idade Média: vassalo prestando juramento a seu suzerano.

Com a perda de seu mentor americano, ficou ‘aborrecido’ – é o que disse a mídia. Tenho a impressão de que o buraco é bem mais profundo que um simples aborrecimento. Para doutor Bolsonaro, a queda de Donald Trump é a notícia mais pavorosa que podia ter ouvido. Ele há de estar se sentindo muito, mas muito, deprimido.

Basta uma rápida comparação para ver que, entre os dois, há numerosos pontos comuns. ‘Falem bem, falem mal, mas falem de mim’ – é o lema de ambos. Os dois não toleram ser contraditos; assessor que não lhes disser amém será demitido. Em matéria de política externa, nenhum deles tem a mais remota ideia do que seja o frágil equilíbrio entre as nações; vai daí, tratam o assunto a bofetadas. Têm ambos a desagradável tendência a só falar para seus devotos, alheios ao fato de terem de governar todo um país. Poderia enfileirar mais uma dúzia de convergências entre eles.

Há, no entanto, um ponto em que divergem: é o olhar que cada um dirige ao outro. Trump sempre guardou altivez no trato com Bolsonaro, mostrando pouco-caso pelo brasileiro e deixando claro quem é que manda no pedaço. Já nosso presidente visitou o colega americano quatro vezes, sendo que, na última delas, ficou hospedado ‘de favor’ na propriedade particular do anfitrião – um cúmulo de despudor. Trump nunca se dignou de vir ao Brasil.

Doutor Bolsonaro sempre se conformou em ocupar posição submissa, de admirador servil, de lambe-botas do americano. Todos se lembrarão do dia em que se fez fotografar quando assistia, orgulhoso, a uma aparição do ídolo na televisão.

É por isso que, muito mais que ‘aborrecido’, Bolsonaro há de estar deprimido, aterrorizado, catastrofado. Como diria o outro, sente-se perdido como cãozinho caído do caminhão de mudança. Deve estar pensando: ‘Se aconteceu com ele, pode acontecer comigo também’. Essa ameaça é de tirar o sono.

Bolsonaro não tem jeito, que fazer? Como dizia o Barão de Itararé, «de onde menos se espera, daí é que não sai nada».

(*) Inefável é aquilo que não pode ser descrito com palavras. O termo é perfeitamente adequado a nosso presidente. A descrição de seu comportamento e de suas falas não cabe em palavras. Embora extenso, o vocabulário da língua portuguesa é finito; a imbecilidade do doutor, infelizmente, é infinita.

O termo inefável pertence a vigoroso tronco com muitas ramificações. Provém do verbo latino fari, que significa falar, dizer, conversar. Além de inefável (que não pode ser descrito com palavras), a família tem outros membros em nossa língua: afável (pessoa de conversa cortês), fama / famoso / famigerado (coisa ou pessoa falada), infante/infantil (que ainda não fala), ênfase (conceito proferido com destaque), fábula (narração inventada), fonético (que é próprio da voz), difamar / infame (falar mal, mal falado). A lista não é exaustiva.

Fim do Mercosul?

José Horta Manzano

Uma maldição pesa sobre chefes de Estado quando fazem visita ao estrangeiro. Não acontece só com o Brasil, mas com o planeta inteiro. Faz alguns anos, o papa fez declarações de arrepiar os cabelos quando de um voo transatlântico. Jacques Chirac e François Hollande, que foram presidentes da França, fizeram o mesmo: abriram-se em confidências que nunca deveriam ter saído dos salões aveludados do governo francês. Até nosso Lula da Silva andou confessando o que não devia, faz muitos anos, quando de viagem à Inglaterra.

Doutor Bolsonaro não escapa à maldição. No caso dele, o problema é duplo. De ordinário, seu quotidiano já costuma ser recheado das barbaridades que profere – e que convivem com as cobras e os lagartos criados no gabinete do ódio, vizinho ao seu. Quando viaja, então, nosso presidente se torna perigo maior. Ao ver-se rodeado de jornalistas nacionais e estrangeiros, empolga-se, solta o verbo e profere desatinos pesados.

O mais recente exemplo de disparate acaba de ser proferido no Japão. Doutor Bolsonaro confessou ter mandado avaliar os comos, os porquês e as consequências de uma saída do Brasil do Mercosul. Consistente, valeu-se da ocasião para criticar de novo o mais que provável próximo governo argentino.

A queda do Brasil derrubaria todos os vizinhos

Não passaria pela cabeça de nenhum empresário, ainda que fosse medíocre, ofender seu terceiro maior cliente. Muito menos assim, gratuitamente, sem ter sido provocado. Só a cabeça de um incapaz pode parir esse tipo de coisa. Pois é justamente o que Jair Messias faz, em nosso nome, contra o terceiro parceiro comercial do Brasil. O drama é que esse incapaz ainda vai segurar, por algum tempo, as rédeas de nosso destino coletivo.

«Sair do Mercosul», como planeja Sua Excelência, significa acabar com o bloco, enterrá-lo e rezar missa de réquiem. O Brasil representa mais de 70% do peso demográfico e econômico do Mercosul. Os parcos 30% que restariam não dão camisa a ninguém. Sem o Brasil, o mercado comum não se sustenta.

Espero que o sistema de pesos e contrapesos da República não permita que esse presidente sem eira nem beira destrua um edifício que vem sendo construído, com muita dificuldade, há quase 30 anos. Seria o tipo de coisa em que não haveria vencedor: Brasil e demais sócios sairiam perdendo. Decisão dessa magnitude não pode ser tomada por um só, ainda que fosse indivíduo extremamente capaz. E nosso presidente, infelizmente, não é.

Nada é eterno, doutor!

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 abril 2019.

Para quem se apresentava como o único candidato capaz de acabar com política contaminada por ideologia, doutor Bolsonaro está saindo melhor que a encomenda. Por detrás de cada ato, de cada nomeação, de cada pronunciamento, cochila um laivo doutrinário. As viagens presidenciais ao exterior, por exemplo, têm vindo embaladas pra presente, descritas como importantes para reforçar laços comerciais. Rasgado o invólucro vistoso, aparece o papel pardo de armazém chinfrim a denunciar que a motivação era, na realidade, ideológica.

Uma regra não escrita determina que a primeira viagem de todo presidente nosso seja a Buenos Aires. A razão é simples: ainda que não seja o maior cliente de nossas exportações, a Argentina é nosso mais importante vizinho de parede. Ainda que acontecimentos extraordinários deixem o mundo de ponta-cabeça, nossos hermanos estarão sempre ali, colados, do outro lado da fronteira. Pra viver em harmonia, convém tratar bem a vizinhança. Doutor Bolsonaro preferiu passar por cima dessa lógica trivial. Reservou a primeira saída internacional para uma visita ao Chile. Na volta, a geografia não havia mudado: a Argentina continuava vizinha. Vizinha e de nariz torcido.

Faz uns vinte anos, formou-se nos EUA o Congresso Mundial das Famílias, movimento ultraconservador dirigido contra os homossexuais, contra o divórcio, contra direitos LGBTs, contra o aborto, contra tudo que escape aos rígidos limites do que entendem ser a família tradicional. Desconfio um pouco desses movimentos que são contra. É mais produtivo ser a favor. As armas para lutar em prol de alguma coisa são sempre menos agressivas do que as que se utilizam pra lutar contra. Ser contra tanta coisa ao mesmo tempo só pode ser fonte de mau humor. Nas reuniões desse movimento, sorriso há de ser artigo raro. Vade-retro!

Cruzada medieval

Os congressos mundiais do grupo têm lugar anualmente. Dos três últimos, realizados na Geórgia, na Hungria e na Moldávia, pouco se falou. Este ano, dado que a honra de acolher a edição coube à Itália, o evento cresceu em importância. Quando alguém declara não ter «nada contra homossexuais, cada um que viva a vida que escolheu», fique de pé atrás, distinto leitor. É quase certo que se trata de alguém digno de ostentar carteirinha de sócio do Congresso das Famílias. Usando declaração desse teor como guarda-chuva, Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro da Itália, avalizou o evento com sua presença. Impossibilitado de comparecer, doutor Bolsonaro fez-se representar pela secretária nacional da Família – que prestigiou o congresso com um discurso. Para um presidente que prometia acabar com ideologias, está de bom tamanho.

Faz dez dias, na preparação de nova estrepolia, doutor Bolsonaro mandou um dos filhos em viagem exploratória a países da Europa, selecionados a dedo, que pretende visitar ainda este ano. São a Polônia e a Hungria, destinos que, somados, respondem por 0,4% de nossas exportações. Já se vê que a motivação comercial é pouca pra abalar presidente. À boca pequena, corre explicação mais convincente. O objetivo é inscrever nosso país no bloco ultraconservador cujos contornos já se desenham em forma de «cinturão bíblico» a proteger a Europa contra hipotéticas hordas de incréus. E lá vamos nós comprar mais uma guerra que não é nossa.

Mas a história é cíclica e o destino inexorável de todo bloco é o desmanche. Os de direita e os de esquerda se desfazem. Tanto o temível eixo Berlim/Roma quanto a poderosa URSS desmoronaram bonito. A vertigem do poder costuma cegar e impedir os ungidos de enxergar essa evidência. No entanto, se os filhos ainda não têm maturidade para entender, doutor Bolsonaro já tem idade e experiência pra se convencer de que o importante é melhorar as condições de vida do povo brasileiro, objetivo maior de seu mandato. Blocos, fugazes por natureza, fazem-se e desfazem-se ao sabor da alternância de dirigentes. O que vale hoje pode já não valer amanhã. Penduradas as chuteiras, melhor será ser lembrado por ter construído um Brasil melhor do que por ter sido membro de um grupo que virou pó.

Da Vice-Presidência

José Horta Manzano

Uma de minhas birras recorrentes liga-se à figura bizarra do vice-presidente da República. O Artigo 79 da Constituição, o único que explica para que serve o vice, diz o seguinte: «Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente». É só, mais nada. Outras atribuições do vice ficaram pra ser especificadas em lei complementar, lei esta que nunca foi votada.

Assim sendo, além de aparecer nas fotos e consumir dinheiro público com salário, mordomias, transporte, segurança e manutenção do Palácio do Jaburu e da respectiva criadagem, o vice só serve pra substituir o titular em caso de impedimento deste. A palavra impedimento, para o pessoal do andar de cima, parece ter significado diferente do que lhe atribuímos nós outros, do andar térreo. É curioso.

Quando o presidente viaja para o exterior, servem-nos o requentado prato da despedida ao pé do avião, aformoseada com a cerimônia da transmissão de poder do titular ao vice. A transferência de poder é perfeitamente dispensável na era da comunicação planetária instantânea. Onde quer que esteja o presidente, as informações de Brasília lhe chegarão na hora, permitindo tomada de decisão imediata. Um vice imbuído de poderes presidenciais só traz confusão: durante esse período, o país conta com dois presidentes, ambos válidos e legítimos.

Quando Sua Excelência é internado para operação severa que o deixará fora do ar por semanas, aí sim, seria hora de o vice assumir as rédeas. No entanto, que vemos? Um presidente acamado, entubado, febril, doente, mas oficialmente em função. E um vice-presidente serelepe, pimpante, falante, sorridente, livre, desimpedido, mas… sem função de mando nem autoridade para tanto.

Se esta não é a hora de passar por cima de resistências do clã presidencial e transmitir logo os poderes ao vice, quando será?

Davos 2019

José Horta Manzano

Presidente ilegítimo
Hoje, abre-se em Davos (Suíça) mais uma edição do WEF ‒ World Economic Forum, encontro annual dos grandes deste mundo, na politica e principalmente na economia. O Brasil está representado por um presidente… ilegítimo.

De fato, minutos antes de embarcar, doutor Bolsonaro transferiu seus poderes ao vice-presidente. A partir daí, general Mourão passou a ser o legítimo presidente do Brasil. Jair Messias entrou num território esquisito, como quem está entre parênteses. Surgem duas hipóteses.

A primeira considera que os poderes presidenciais são unipessoais, ou seja, só podem ser exercidos por uma única pessoa de cada vez. Se assim for, o presidente em exercício é Mourão, o que ficou em Brasília segurando as rédeas. Aquele que será apresentado ao distinto público de Davos não passa de impostor. O que ele disser e os papéis que assinar não terão validade. A voz do Brasil não é ele.

A segunda hipótese concede que os poderes presidenciais sejam exercidos por dois indivíduos ao mesmo tempo. Dado que, em nosso país, vigora regime presidencial, essa ideia é esdrúxula. Se, por hipótese, os dois tomarem atitude diferente diante de um mesmo fato, qual das decisões prevalecerá? A do que largou os poderes e se foi para a Suíça ou a do que ficou tomando conta do forte? Convenhamos : ter dois presidentes ao mesmo tempo é folclórico. Resquícios de um passado que morreu.

Agasalho
Espero que doutor Bolsonaro & excelentíssima equipe tenham trazido bons agasalhos. Hoje de manhã, fazia 13,5° abaixo de zero em Davos. Saiu um solzinho chocho, que fez subir a temperatura. Às duas da tarde, no melhor momento do dia, o mercúrio subiu para 3,5° abaixo de zero. A partir daí, recomeçou a descer rumo às profundezas do inverno alpino.

Luzerner Zeitung (Lucerna, Suíça), 21 jan° 2019

Convidado de honra
Nem Mr. Trump nem Monsieur Macron estarão presentes. As senhoras May (UK) e Merkel (Alemanha) também decidiram não comparecer. O presidente da Rússia, o número um da China e o primeiro-ministro da Índia mandaram avisar que não virão. Assim, por falta de concorrentes, doutor Bolsonaro foi promovido a convidado-vedette.

Sua fala está marcada para amanhã à 15h30. Os encontros do Fórum de Davos se realizam em quatro salas. Normalmente, há eventos simultâneos, frequentemente quatro de uma vez só. Na meia hora dedicada a doutor Bolsonaro, uma concessão especial: nenhum outro evento ocorrerá ao mesmo tempo. O mundo econômico vai parar, por meia hora, pra ouvir o que tem a dizer o doutor.

Etiqueta grudada
Quando uma etiqueta gruda firme, não há solvente que dê conta de a retirar. Falando da vinda do presidente do Brasil a Davos, o jornal suíço Luzerner Zeitung publica um artigo com título bombástico: «Stargast am WEF hat keine Ahnung von Wirtschaft ‒ Convidado-vedette do WEF não tem nenhuma noção de economia».

O autor da boutade foi o próprio doutor Bolsonaro quando, ainda em campanha, confessou nada entender do assunto. Sinceridade é bom, mas sincericídio mata. Foi ingênuo, o doutor. Podia ter dado uma pirueta e respondido algo como: “Nesse campo, as competências de Paulo Guedes são superiores às minhas. Sugiro-lhe fazer a pergunta a ele”. Teria sido menos impactante.

É um perigo dizer o que passa pela cabeça, sem refletir nas consequências. Segundo os chineses, há quatro coisas que não se podem recuperar: a pedra lançada, a ocasião perdida, o tempo passado e a palavra pronunciada.

Sexta-feira 13

José Horta Manzano

Hoje é sexta-feira 13. Para uns, é dia de jogar na loteria ou fazer uma fezinha na Paratodos. Para outros, é dia de tomar cuidado ao sair de casa. Os mais exagerados preferem nem pôr os pés na rua. E se calha de cruzar com um gato preto? É azar garantido por sete anos. Te esconjuro!

Não sei se por sorte ou azar, temos hoje nova presidente da República. Não se trata da ressureição da doutora de triste memória, felizmente. Quem está hoje no trono é a discreta ministra Cármen Lúcia, do STF. Em realidade, ela é a quarta na linha sucessória da presidência. Só assume por estarem ausentes do país os três precedentes.

O primeiro sucessor é o próprio doutor Temer, que se tornou presidente permanente desde a destituição da doutora. O segundo é doutor Maia, presidente da Câmara. O terceiro é doutor Eunício Oliveira, presidente do Senado. Por razões que lhes são próprias, todos os três estão fora do país. Eis por que dona Cármen Lúcia é nossa presidente por um ou dois dias.

Ao embarcar para o exterior, doutor Temer entregou o poder a dona Cármen. Em princípio, ele vai levar a voz do Brasil à reunião de cúpula que terá lugar em Lima, no Peru. Só que a situação é grotesca. O bom senso ensina que é impossível ser e não ser ao mesmo tempo. Ora, a partir do instante em que entregou o poder a dona Cármen, doutor Temer deixou de ser presidente do Brasil. Quem vai à reunião de Lima é o cidadão Temer que, embora seja figura conhecida, não é o presidente da República. Trata-se de um usurpador. Bizarro, não?

O instituto da vice-presidência é uma excrescência, uma reminiscência que já devia ter sido abandonada há tempos. Fazia sentido no passado, quando uma viagem ao exterior do imperador ou do presidente podia levar semanas ou meses, período durante o qual o viajante ficava incomunicável. Hoje, com o avanço tecnológico, nenhuma viagem interfere no exercício da função. O presidente, ainda que esteja do outro lado do globo, dispõe das mesmas facilidades de que disporia se estivesse no gabinete.

As funções do vice-presidente estão vagamente estipuladas no Artigo 79 da Constituição. Diz lá que o vice «auxiliará o presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais». Mais vago, impossível. O vice, portanto, não tem função definida a não ser ficar, como urubu, à espreita da vacância do cargo maior. Apesar de não ter deveres nem obrigações, goza de todas as (caríssimas) benesses do cargo: um palácio só pra ele com a respectiva principesca mordomia.

Assim que baixar a poeira que atualmente estagna sobre a Praça dos Três Poderes, seria bom começar a pensar na eliminação do inútil cargo de vice-presidente. E do de vice-governador. E também vice-prefeito. É tão simples: na vacância do cargo principal, convoca-se nova eleição e estamos resolvidos.

Se não tivéssemos tido vice quando a doutora foi apeada, três meses mais tarde teríamos elegido novo presidente e muitos problemas teriam sido evitados.

Se liberan a sí mismos

José Horta Manzano

Señor Antonio Ledezma é advogado e homem público venezuelano. Na política desde os tempos de estudante, já foi deputado, governador, senador e prefeito da capital do país ‒ um currículo sólido. Há muitos anos, faz parte da importante franja de políticos que se opõem ao desmonte da nação instaurado pelo regime «bolivariano» de Hugo Chávez e reconduzido por Nicolás Maduro.

Dado que a Justiça do país se encontra dominada pelo Executivo, prevalece sempre a vontade do príncipe. Em 2015, o príncipe agiu como de costume quando alguém lhe pisa os calos: ordenou que señor Ledezma fosse encarcerado. Desde então, o prefeito foi mantido em prisão domiciliar. A acusação? Um pretenso e nebuloso complô para derrubar Maduro ‒ alegação sem consistência e impossível de ser comprovada.

Caracas – Cúcuta: trajeto de 900km
imagem Google

Instalou-se, desde então, uma rotina. Todos os dias, a polícia bolivariana batia à porta de Antonio Ledezma às oito da manhã e às oito da noite. Vinha constatar a presença do prisioneiro. Como prova, os guardas levavam as impressões digitais do encarcerado para mostrá-las aos superiores. Rígido nos primeiros meses, o ritual foi-se afrouxando. Os policiais acabaram rareando a visita noturna. Davam expediente só pela manhã. Afinal, quase 1000 dias já se tinham passado sem nenhum incidente.

Durante várias semanas, o preso preparou um plano de fuga. Contou ‒ é certeza ‒ com uma rede subterrânea de cúmplices. Por razões de segurança, o nome dos colaboradores não foi nem será publicado. No dia acertado, logo após a passagem matinal dos agentes de Maduro, Ledezma embarcou num automóvel para uma longa viagem de 900km até a fronteira colombiana. O trajeto levou 15 horas. Vinte e nove postos de controle foram enfrentados sem o menor problema, num sinal de que cumplicidade havia.

Um rio marca a fronteira entre Venezuela e Colômbia. Do lado colombiano está a cidade de Cúcuta. A mídia não menciona, mas é plausível que o fugitivo já estivesse sendo ali aguardado para ser transportado a Bogotá, a capital do país. De lá, tomou um avião de carreira com destino a Madrid, onde desembarcou neste sábado de manhã. Ao chegar, foi acolhido pela esposa e pelas filhas, que já vivem na capital espanhola há tempos.

Tirando a rainha da Inglaterra, nenhum viajante intercontinental costuma embarcar sem passaporte. Dado que seu documento de viagem havia sido confiscado por Maduro, como é possível que Ledezma tenha podido viajar? Esse detalhe não foi (nem deverá ser) esclarecido.

No aeroporto de Madrid, uma multidão de repórteres, microfone em punho, aguardava pelo político. Perguntas choveram. De repente, o recém-chegado se surpreendeu ao ouvir que «estava fugindo» da Venezuela. Na lata, retrucou: «Los presos políticos no se fugan, se liberan a sí mismos» ‒ presos políticos não fogem, libertam-se.

Adicionando a massa de refugiados que escapam diariamente em direção à Colômbia e ao Brasil, os mais afortunados que já se foram para Miami e os políticos que se libertam, a Venezuela está chegando ao ponto em que vale a máxima: «Que o último a sair apague a luz».

Viagem à Rússia

José Horta Manzano

Doutor Temer está de viagem para longe. Vai visitar a Noruega e a Rússia, países vizinhos, ambos a dois passos do Polo Norte. O que é que há de comum entre eles? Bem, tirando a fronteira de pouco mais de 200km, a característica mais saliente é que são ambos grandes produtores de petróleo. O objetivo oficial da visita presidencial resume-se a vagas ‘tratativas comerciais’. O detalhe não foi explicado tim-tim por tim-tim.

Não dá pra acreditar que o presidente de um país cuja maior empresa petroleira tem sido tão maltratada vá dar lições de administração àqueles brancos de olhos azuis. A empresa Gazprom, gigante do petróleo russo, vai bem apesar da corrupção que, dizem, é imensa. Os russos devem ser mais competentes em matéria de rapina. Tiram o leite sem matar a vaca.

Há outro motivo que está atraindo muitos visitantes à Rússia estes dias. Está-se desenrolando lá a Copa das Confederações, aquela que se disputa um ano antes da Copa do Mundo. O Brasil não participa, dado que o representante da América do Sul é o Chile. Isso explica o desinteresse da mídia nacional pelo evento. Será nosso presidente fervoroso amante do futebol? Será que sua paixão pela bola rolando o levaria a deixar o conforto de Brasília pela poltrona de um estádio? Difícil acreditar.

Dança cossaca

Doutor Temer saiu ameaçando processar aquele atrevido que o denunciou, o moço de nome simplório e sobrenome pio. «Me segura, que eu bato!» ‒ parecia dizer, à espera da turma do deixa disso. Como é curioso… Faz mais de um mês que veio a público a ousada gravação feita na calada. O Brasil inteiro ficou sabendo. Naquele momento, a resposta presidencial não passou de um desmentido. Foi veemente e vigoroso, mas não passou disso.

Todo cidadão que se considera injuriado, difamado ou caluniado costuma tomar providências jurídicas imediatas. Doutor Temer não tomou nenhuma. Passado um mês, sai para um passeio escandinavo-siberiano de uma semana deixando no ar a ameaça: «Ainda vou processar aquele indivíduo!»

Por que não o fez até hoje? Há de ser porque Temer teme. Num processo dessa natureza, certos podres não revelados antes perigam vir à tona. Melhor não abrir processo antes de combinar com os russos. Talvez seja justamente essa a razão da viagem a Moscou: combinar com os russos.

Natal na barca

Lygia Fagundes Telles (*)

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe nenhuma palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

barco-1Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

‒ Tão gelada ‒ estranhei, enxugando a mão.

‒ Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

‒ De manhã esse rio é quente ‒ insistiu ela, me encarando.

‒ Quente?

‒ Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

‒ Mas a senhora mora aqui perto?

‒ Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje…

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

‒ Seu filho?

‒ É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre… Mas Deus não vai me abandonar.

‒ É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

‒ É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito… Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

‒ E esse? Que idade tem?

‒ Vai completar um ano.

E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro:

‒ Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado… A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

barco-2‒ Seu marido está à sua espera?

‒ Meu marido me abandonou. Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

‒ Há muito tempo? Que seu marido…

‒ Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio… Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

‒ A senhora é conformada.

‒ Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

‒ Deus ‒ repeti vagamente.

‒ A senhora não acredita em Deus?

‒ Acredito ‒ murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por que, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas…

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

‒ Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto… Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

barco-3Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.

‒ Estamos chegando ‒ anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

‒ Chegamos!… Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

‒ Acho melhor nos despedirmos aqui ‒ disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

‒ Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

‒ Acordou?!

Ela sorriu: ‒ Veja…

Inclinei-me. A criança abrira os olhos ‒ aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

‒ Então, bom Natal! ‒ disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

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(*) Lygia Fagundes Telles (1923-), considerada por muitos a maior escritora brasileira viva, é membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa. Este conto foi publicado pela Editora Ática em 1989, no livro ‘Para gostar de ler’.

O aprendizado é longo

José Horta Manzano

Viagem de chefe de Estado ao estrangeiro não é algo banal. Por razões de segurança, importante preparação logística precede a visita. Tudo é estudado, pensado, inspecionado ‒ desde o alojamento onde o visitante vai-se hospedar até a comida que lhe será servida.

Um dos momentos mais observados, que fará certamente manchete na mídia, é a descida da escadaria do avião. Todo um ritual envolve a recepção. Não se deve descer escadaria de avião presidencial como quem descesse a escada de casa, indo do quarto para a sala.

Chegada de Michel Temer a Goa (Índia), 15 out° 2016

Chegada de Michel Temer a Goa (Índia), 15 out° 2016

Essa tropa que se vê na foto, descendo todos ao mesmo tempo como um bando de turistas, pega mal pra caramba. Mostra que nossos especialistas em cerimonial ainda não apreenderam certas sutilezas. Ou, pior, deixa claro que o andar de cima ainda não absorveu a lição.

Comportamentos que se podiam relevar num Lula ou numa Dilma são inadmissíveis numa equipe civilizada.

Observe o distinto leitor como fazem outros chefes de Estado. Além da esposa ‒ e, eventualmente, de membros da família ‒, ninguém mais desce a escada ao mesmo tempo. Primeiro, espera-se que o número um seja recebido. Só então, sai o resto da turma. Preste atenção.

Ainda não chegamos lá.