Quiproquó

José Horta Manzano

Quiproquó(*), substantivo dicionarizado, é a expressão latina quid pro quo nacionalizada. Em português, assim como nas demais línguas latinas, o sentido original foi mantido. O significado é ‘isto por aquilo’ ou ‘uma coisa pela outra’. A expressão é geralmente utilizada quando há troca acidental e involuntária.

Um quiproquó pode gerar situação cômica ou até uma baita encrenca. Se, na hora da troca de presentes de Natal, você se enganar e entregar ao sobrinho de 8 anos a bolsa de água quente que era destinada à vovó, o quiproquó vai terminar em gargalhadas. Já se você tiver a infelicidade de chamar a namorada pelo nome errado, pode ter certeza de que o quiproquó não vai sair barato.

Aqui do meu posto de observação, estou vendo nascer um quiproquó originado pelas (pobres) palavras presidenciais. Já faz tempo que doutor Bolsonaro clama pelo voto impresso. Embora venha sendo eleito e reeleito por três décadas pelo sitema eletrônico, mostra-se cético quanto à confiabilidade da urna eletrônica. E não perde ocasião para exigir o tal do ‘voto impresso’.

Nas análises que tenho lido, os autores parecem ter entendido que o presidente, movido talvez por impulso saudosista digno de um Itamar Franco, gostaria que tornássemos a votar por meio de cédula de papel, como se fazia nos tempos de antigamente. Os analistas comentam, então, que isso seria um retrocesso, uma tentativa de ressuscitar um passado morto e enterrado.

A mim, não parece ser esse o desejo do presidente. Pela minha decriptagem, ele não está pedindo que a urna eletrônica seja abolida; gostaria que lhe fosse acoplada uma mini-impressora. O eleitor votaria apertando botões, como está habituado. Só que, em vez de ir embora de mãos abanando, receberia, ainda dentro da ‘cabine’, um papelzinho impresso com o nome do(s) candidato(s) escolhido(s). Com isso, imagina o doutor, o eleitor teria certeza de que seu voto foi para o candidato certo.

Cartaz de meados dos anos 1920 que denunciava o ‘voto de cabresto’.

Quando se trata de acompanhar o raciocínio de Bolsonaro, todo cuidado é pouco. Em decorrência de sua mente pedregosa, seu raciocínio tortuoso e seu vocabulário indigente, a tarefa é árdua. Sua fala exige interpretação, como se ele se exprimisse numa daquelas línguas mortas que os linguistas tentam reconstruir. Se o que o presidente deseja é realmente o que entendi, o remédio é complexo e arriscado.

Em primeiro lugar, seria preciso investir uma nota para comprar uma impressora para conectar em cada uma das 400 mil urnas em uso. Se cada dispositivo custar 100 reais, o gasto será de 40 milhões. Sem contar a quantidade industrial de tinta e de minirrolos de papel. E o agravamento do problema de urnas enguiçadas.

Em segundo lugar, a novidade seria porta aberta para a volta do voto de cabresto, enterrado há décadas. Voto de cabresto ocorre quando o poderoso do lugar (prefeito, homem político influente, patrão de usina, fazendeiro ou o que for) intima a seus comandados que votem em tal candidato. Com a urna eletrônica, não há meio de controlar se a ordem foi cumprida. Já quando o infeliz volta com o papelzinho na mão, não tem como escapar: é obrigado a mostrar ao patrão. Caso não tiver votado conforme a ordem, sofrerá as sanções reservadas aos desobedientes.

Talvez, na mente delirante do doutor, seja exatamente essa a ideia – poder controlar o voto dos humildes, seja por via do patronato fiel à ‘causa’, seja pelos bons cuidados da seita evangélica à qual o eleitor está afiliado. Que São Judas Tadeu nos acuda!

(*) Desde que o malfadado Acordo Ortográfico (AO90) entrou em vigor, a palavra quiproquó perdeu o trema (era qüiproquó). Com isso, a lista de armadilhas e de inseguranças de nossa língua engordou. Meus cultos leitores sabem que não se pronuncia kiproquó, mas sim kuiproquó.

Vista a baixa frequência de uso desse termo, os mais jovens, que nunca viram um trema pela frente, não vão ter como memorizar. É permitido crer que, dentro de alguns anos, a pronúncia padrão terá virado kiproquó. A boa notícia é que, até lá, o doutor terá pendurado as chuteiras – uff! Estaremos lidando com problemas novos. Novos?

Banguecoque e Estugarda

José Horta Manzano

«A firma me propôs um estágio de três meses em Amesterdão. Fui e gostei muito de lá. Aproveitei para viajar um pouco. Conheci Copenhaga, Helsínquia e até Bordéus. Uma viagem e tanto.»

O enésimo acordo ortográfico que entrou em vigor faz alguns anos se propunha a encurtar a distância entre a escrita lusa e a nossa. Se o vão era de quilômetros, o acordo encurtou alguns centímetros, se tanto. O grosso da questão continua aberto.

O Acordo Ortográfico de 1990 é, a meu ver, o menos feliz de todos os que já conhecemos nos últimos cem anos. Incomodou a todos, sem resolver o problema de ninguém. Serviu, isso sim, para acentuar a insegurança ortográfica que nos persegue desde sempre. Os hífens, então, são uma catástrofe. Os que escrevem com frequência, como é meu caso, têm de conviver com um dicionário aberto e pronto a ser consultado a cada instante. Uma chateação.

Bem, desabafo feito, gostaria de ressaltar uma discrepância entre os falares de lá e de cá. Trata-se de certas cidades estrangeiras cujo nome se fixou de maneira diferente em Portugal e no Brasil. Pelo costume luso, sempre se escreveu Nova Iorque, enquanto, no Brasil, usa-se Nova York. No fundo, onde está o problema, se todos entendem?

Conheça Estugarda!

O exemplo que pus no cabeçalho deste artigo é uma amostra do nome que os portugueses costumam dar a cidades pra lá de conhecidas. São diferenças que resistem a todo engessamento produzido por acordos ortográficos.

Vai aqui uma lista longe de ser exaustiva:

Portugal       Brasil
==========================
Telavive       Tel Aviv
Banguecoque    Bangkok
Orleães        Orleans
Nova Orleães   New Orleans
Amesterdão     Amsterdã
Nova Iorque    Nova York
Bilbau         Bilbao
Helsínquia     Helsique
Zagrebe        Zagreb
Copenhaga      Copenhague
Nuremberga     Nuremberg
Moscovo        Moscou
Marraquexe     Marrakech
Bordéus        Bordeaux
Estugarda      Stuttgart

Tanto lá quanto cá, alguns nomes, por inusitados, surpeendem. Falta de hábito, nada mais. No final, a gente acaba se acostumando.

Acôrdo ortographico

Eduardo Affonso (*)

Uma comissão discute hoje na Câmara a revogação do Acordo Ortográfico de 1990 (esse que matou o trema, tirou o acento de ideia, fez as pazes com o K, o W e o Y, e nos tornou analfabetos em hífen).

Tudo bem que o acordo foi mal feito e que os portugueses se recusaram a adotá-lo (adoptá-lo) de fato (de facto). Em vez de unificar o idioma, o tiro ficou pior que o soneto e a emenda saiu pela culatra.

Mas se é para revogar por questões etimológicas ou por respeito a certas tradições, então revoga direito.

Podemos começar revogando a mudança feita em 1973, que aboliu unânimemente os acentos grave e circunflexo em palavras formadas pelo sufixo -mente e pelos sufixos iniciados por z. Voltemos a escrever sòzinhos, sem corretor ortográfico por perto, como fazemos ùltimamente.

Depois a de 1971, quando caiu o acento diferencial. Bora escrever que êste govêrno não tem pilôto (até porque – apertem os cintos! – não tem mesmo).

Em seguida, cancelamos a de 1945 e voltamos a escrever que êles teem sciencia de que a raínha ennegreceu o côco da Güiana. Ok, ninguém nunca jamais escreveu isso, mas era assim que se escreveria até aquele anno.

Recuemos a 1943, quando respirávamos a athmosphera, caprichávamos na caligraphia, usávamos o telegrapho, desenhávamos polygonos, nos falávamos ao telephone (que então só falava, não tirava photoghraphia), e comíamos vegetaes. Nosso idioma era o portuguez e assim é que devíamos escrevel-o, fosse no Alentejo, fosse no Piauhy.

Anulemos também a de 1911, que levou Fernando Pessoa a declarar que sua pátria era a língua portuguesa (ops, portugueza), e que não se incommodaria se tomassem Portugal, mas sentia odio (sem acento) da pagina (também sem acento) mal escripta, não de quem não soubesse syntaxe ou escrevesse em orthographia simplificada.

Foi nessa epocha que o escriptor Teixeira de Pascoaes choramingou:

“Na palavra lagryma, (…) a forma da y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.”

E bora anular também a reforma de 1907, quando tiveram fim a deshonra e a inharmonia, bem como as palavras começadas por Ç. Foi também quando o idioma ficou orpham do K, do W e do Y (excepto no vocabulário de origem indígena, que manteve suas characterísticas originaes). Foi n’aquelle anno que o Brazil virou Brasil.

As reformas têm sido desde sempre um desacordo só. A de 1911 foi adoptada só por Portugal. Houve um acôrdo em 1931, que não deu em nada. Este facto levou à convenção ortographica de 1943, que tampouco deu em alguma coisa – tanto que foi feita outra em 1945, com o mesmo triste fim.

Se é para unificar, melhor rebobinar a 1500, quando a língua chegou aqui, e encontrou homeës pardos todos nuus sem nenhuűa cousa que cobrisse suas vergonhas. traziam arcos nas maãos e suas see tas. vijnham todos Rijos pera o batel e nicolaao co elho lhes fez sinal que posessem os arcos, e eles os poseram. aly nom pode deles auer fala nem antë dimento que aproueitasse polo mar quebrar na costa. soomente deu;hes huum barete vermelho e huűa carapuça de linho que leuaua na cabeça e huűsombreiro preto. E huűdeles lhe deu huűsombreiro de penas daues compridas com huűa copezinha pequena de penas vermelhas e pardas coma de papagayo e outro lhe deu huűramal grande de comtinhas brancas meudas que querem pareçer daljaueira asquaes peças creo que o capitam manda a vossa alteza e com isto se volues aas naaos por seer tarde e nom poder deles auer mais fala por aazo do mar.

De lá pra cá, somos dois fados desencontrados, dois amantes desunidos. Eles lá, agarrados ao latim e ao grego; nós aqui, aos abraços e beijos com o tupi, o guarani, o quimbundo, o quicongo e o umbundo (sem contar os adultérios posteriores, com o francês e o inglês).

Vai dar certo trabalho aprender a falar como Camões, Cabral e Caminha. Mas não tendo hífen, é lucro.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Nomes delicados ‒ 2

José Horta Manzano

O Acordo(1) Ortográfico de 1943 estipulou que nomes geográficos cuja grafia já estivesse consagrada pela tradição podiam conservar a escrita antiga, ainda que contrariasse a norma. A concessão tinha endereço certo: visava a conservar a grafia de Bahia ‒ que, por sinal, é o único exemplo dado.

Outras localidades brasileiras entraram pela brecha. Entre elas, os municípios de Paraty, que se costuma escrever à antiga até hoje. Outro que se encaixou na exceção autorizada foi o município mineiro de Piũi, que aceitou perder o ípsilon final mas recusou o til em cima do u. Em vez do antigo Piumhy, grafa-se hoje Piumhi.

Ao topar com essa palavra, um estrangeiro não familiarizado com nossa escrita há de tropeçar na pronúncia. Aliás, até nós hesitamos. Imagino que, para não-iniciados, deva ser complicado decifrar Itaquaquecetuba, Pindamonhangaba e outras palavras cheias de letras. Cada língua tem seu espírito.

Na série de lugares com nome surpreendente a nossos ouvidos, aqui estão mais alguns exemplos curiosos.

ZORRA
Na província de Ontário (Canadá), encontra-se a pequena localidade de Zorra. O lugarejo, situado numa região eminentemente rural, oferece numerosas casas que se alugam para temporada. Diferentemente do que o nome sugere, Zorra e seus arredores tranquilos convidam ao sossego e ao descanso.

Imagem Google – clique para ampliar

PUTA
O Azerbaidjão, república que fez parte da antiga União Soviética, é um pequeno país à beira do Mar Cáspio. Encerra grandes reservas de petróleo. Nos arredores de Baku, a capital, está uma vilazinha chamada Puta. A região é extremamente árida e desprovida de cobertura vegetal.

Quando algum indivíduo originário do lugarejo se expatria, prefere ser considerado «filho do Azerbaidjão», evitando toda menção ao nome da vila onde nasceu.

CONDOM
Na bela Gasconha, região de vales e colinas do sul da França, está a cidadezinha de Condom, com sua majestosa igreja e suas ruelas medievais. Acontece que condom, em inglês e em outras línguas germânicas, é o nome que se dá ao preservativo.

Em folhetos destinados a turistas britânicos, vem sempre anotado que o nome do lugar não tem conotação erótica. Vem de Condatómagos, denominação dada há dois milênios pelos romanos. Com o tempo, evoluiu para Condatóm e acabou virando Condom. Uma atração turística do lugar é o Museu do Preservativo, criado há quase quinze anos.

UYUMBICHO
Nas cercanias de Quito, no Equador, está a aprazível cidadezinha de Uyumbicho, situada num vale verdejante e cercada de colinas suaves. Fica aqui nossa sugestão para que instalem um jardim zoológico. Levará, naturalmente, o nome da cidade: Jardim Zoológico Uyumbicho. Atrairá turistas e divisas. Garantido.

(1)«Acordo» não é nome adequado, dado que acordo não foi. Na verdade, a reforma de 1943 não foi adotada em Portugal nem nos demais países onde o português é língua oficial. Entrou em vigor apenas no Brasil. Portanto, não se deveria falar em acordo mas em reforma ou norma.

Nota
Este artigo foi amplamente inspirado num excelente blogue espanhol, o Fronteras Blog. Aqui fica meu agradecimento.

A mão pesada da Justiça

José Horta Manzano

Juízes são formados para julgar seus semelhantes com base em leis. Em princípio, são imparciais, deixando-se guiar pela objetividade. Essa é a teoria. Na prática, como se sabe, a teoria pode ser ligeiramente distorcida.

Juízes são seres humanos como você e eu, sujeitos a emoções, a simpatias e antipatias, a humores, a pressões da opinião pública ou até da opinião familiar. Num futuro longínquo, talvez venha a ser inventado um juiz sintético, isento de paixões. Por enquanto, não é possível. Não há como ‘desumanizar’ alguém.

Ninguém aprecia ser levado no bico. Tribunais sentem especial ojeriza contra estelionatários e contra todos os que se aproveitam da boa-fé do próximo. Embora não se trate de crime de sangue, o embuste tem o poder de enraivecer. Até os que não estão diretamente envolvidos tomam as dores, como se eles mesmos tivessem sido engabelados.

Stade de France

O orçamento francês tem um subitem ‒ a bizarra grafia está correta, acredite. Eu preferia sub-item, mas… que é que se há de fazer? Vamos recomeçar. Eu dizia que a previsão de gastos anuais do governo francês inclui o FGTI (Fundo de Garantia das Vítimas de Atos Terroristas). Todo cidadão que considere ter sido prejudicado por atentado terrorista pode se candidatar a receber uma indenização. Cada caso é julgado individualmente.

Em 13 de novembro de 2015, terrível atentado ocorreu em Paris. Quase ao mesmo tempo, foram atacados a casa de espetáculos Bataclan e o Stade de France, estádio onde estava para ser disputado um amistoso de futebol entre França e Alemanha. Nos dias que se seguiram, um casal se candidatou a ser indenizado por dano moral, Alegavam ter estado presentes no estádio naquele momento. Conseguiram receber 60 mil euros, cerca de 200 mil reais, uma bela quantia.

Em 14 de julho de 2016, o mundo se estarreceu quando o caminhão de um terrorista invadiu uma avenida de Nice em plena comemoração da festa nacional deixando balanço final de 86 mortos e 435 feridos. Nas semanas seguintes, centenas de cidadãos se anunciaram às autoridades requerendo indenização. E não é que nosso casal, o mesmo que já havia sido ressarcido pelo susto levado no estádio em Paris, se apresenta de novo? Desta vez, alegaram ter estado presentes na orla marítima de Nice justo na hora da passagem do caminhão assassino.

Autoridades não são ingênuas como alguns imaginam. Cruzando os dados, deram-se conta de que o mesmo casal tinha sido vítima dos dois atentados. A coincidência era grande demais. Interrogados, os estelionatários confessaram o embuste. Foram a julgamento em dezembro passado para responder pelo primeiro estelionato, o do estádio. Considerados culpados, foram condenados a pena pesada de prisão em regime fechado: seis anos para ele e três para ela.

Neste 19 de abril, saem da cela para nova visita ao tribunal. Desta vez, já na qualidade de reincidentes, serão julgados pela trapaça que perpetraram ao se apresentar como vítimas do atentado de Nice. Imagina-se que sejam condenados a uns vinte anos de sossego atrás das grades. E à devolução da indenização recebida, naturalmente.

Nota
A mão pesada dos juízes franceses se explica pelo que eu dizia no início do post. Devem ter sentido raiva como se tivessem sido pessoalmente ludibriados pelo casal. O mesmo raciocínio se aplica aos juízes que decidem, no âmbito da Lava a Jato, o destino dos que colaboraram com a rapina e com o estelionato. Daí a mão pesada que se tem visto. É benfeito(*).

(*) Essa grafia é de arrepiar, não? Mas é o que determina o mal costurado Acordo Ortográfico de 1990. Melhor obedecer pra evitar mão pesada de juiz.

Orthographia ‒ 2

José Horta Manzano

Como bem sabem meus cultos leitores, o AO90 ‒ acordo ortográfico assinado 25 anos atrás ‒ entrou em vigor definitivamente, no Brasil, dia 1° jan° 2016. Aqui está a homenagem de G. Passofundo, desenhista gaúcho.

by Geraldo 'Passofundo' Fernandes, desenhista gaúcho

by Geraldo ‘Passofundo’ Fernandes, desenhista gaúcho

Annus horribilis

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 2 jan° 2016

Em discurso pronunciado por ocasião das celebrações de seus quarenta anos de reinado, Elizabeth II, com ar sinceramente compungido, qualificou o ano que corria, 1992, como «annus horribilis». A expressão pescada no latim contrapunha-se a «annus mirabilis» ‒ ano maravilhoso ‒, título de notável poema escrito trezentos anos antes por conterrâneo seu.

Elizabeth II 1Tinha razão a rainha. Coisas nunca dantes vistas naquele país tinham sobrecarregado o ano e abalado a monarquia. Divórcios no seio da real família, escândalos mercadejados pela imprensa, querelas palacianas expostas à luz do dia e até um ruinoso incêndio numa de suas residências tinham-lhe anuviado o horizonte.

Bola cristal 1Mas tudo é relativo. Acontecimentos valem dentro do contexto em que ocorrem. Se a rainha fosse daquelas de conto de fadas, com poder de enxergar o futuro em bola de cristal ‒ e se tivesse pressentido o sufoco que o ano de 2015 estava reservando para o Brasil ‒, teria classificado seu 1992 como mero «annus placidus».

Para nós, que não temos reis nem castelos, os engasgos do ano que acaba de expirar foram desesperadores. Não se passou semana sem novo escândalo. E dizem que isso foi só aperitivo. Sabe Deus o que vem por aí!

Em meio a tamanha atribulação, poucos se lembraram de que, neste primeiro de janeiro, entrou oficialmente em vigor a grafia imposta pelo AO 90 ‒ aquele acordo ortográfico engendrado e firmado faz mais de um quarto de século. Apreciadas por alguns, execradas por muitos, as novas regras são agora norma oficial. Ai de quem ousar afrontar a lei! Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

AO 90 1Pessoalmente, tenho duas objeções. São estéreis, visto que o que foi decidido, decidido está. Assim mesmo, quero deixá-las aqui consignadas como derradeiro desabafo. Isso feito, não se volta mais ao assunto, pelo menos até a próxima alteração das regras.

Minha primeira bronca é com a dança dos hífens. Onde antes havia certezas, hoje sou obrigado a conferir no dicionário a grafia de cada palavra composta. Os arquitetos do acordo perderam excelente ocasião para eliminar de vez o fugaz e irritante tracinho.

O segundo dissabor que o AO 90 me causou foi o banimento do trema, aqueles dois simpáticos pontinhos que, além de ser úteis, conferiam ar chique e internacional à nossa escrita ao aproximá-la do alemão, do francês, do espanhol e até do sueco.Quinquelingue Torcendo pra que o revisor deixe passar, ouso escrever, pela última vez, aquela que creio ser a única palavra que levava três tremas: qüinqüelíngüe. Não era um charme? Abrigada sob para-sol de seis pontinhos, essa preciosidade designa um poliglota versado em cinco idiomas. O acordo ortográfico, de certa maneira, acentuou a insegurança linguística de que sofremos todos. Fazer o quê?

Como contrapeso, os acontecimentos do ano de 2015 enriqueceram nosso vocabulário. Fatos tão extraordinários ocorreram que jornalistas, analistas e comentaristas foram impelidos a vasculhar fundos de baú à cata de palavras para descrevê-los. Termos que cochilavam foram desempoeirados e trazidos à luz do dia.

Desatino, desvario, bulha, impudência, banzé, desacerto, conspurcação, devaneio foram ressuscitados. Aprendemos que tanto é lícito agir diuturna como noturnamente ‒ um achado! A tragédia de Mariana, aquele mar de lama que, no sentido figurado, tinha forçado o velho Getúlio Vargas a entrar para a história ressurgiu como realidade palpável, mortífera, surreal.

Bicicleta 10Não há hoje um brasileiro medianamente instruído que não saiba o que vem a ser crime de responsabilidade ‒ conceito obscuro até um ano atrás. Outra conquista da língua popular foi a sutil diferença entre desenvolvimentismo e populismo. A nuance ainda não está muito clara, mas logo logo vamos descobrir. (Se é que diferença existe, naturalmente.) Outro ganho vocabular foi a descoberta de que pedaladas não se restringem ao universo do ciclismo.

Fato extraordinário: «Verba volant, scripta manent», máxima latina pra lá de sofisticada, entrou para o vocabulário comum. Uma vitória! Por seu lado, captamos a diferença entre o mandato que se cassa e o mandado que caça, especialmente se for mandado de prisão.

Museu 1No finzinho de um ano generoso para nossa língua, porém, uma nota de tristeza: o incêndio do Museu da Língua Portuguesa. Foi sinal a insinuar que língua, como todo organismo vivo, não merece ser encerrada em gaiola nem em museu. Mais vale desenjaulá-la e deixá-la propagar-se firme, forte, livre e solta.

Que 2016 seja um «annus laetus et faustus» ‒ alegre e venturoso. Sorte a todos! Precisamos.

PT ou BR

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 jun 2015

Ortografia 2Dia 13 de maio, comemoramos a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão oficial e entrou para a hagiologia nacional. Em Portugal, o 13 de maio celebra a Virgem de Fátima. Este ano, porém, um clamor quase empanou o fervor. É que, justamente nesse dia, entrou oficialmente em vigor, em terras lusas, a grafia determinada pelo Acordo Ortográfico alinhavado em 1990 pelos integrantes do clube lusófono.

No Brasil, a resistência ao AO90 foi pouca, não passou de protestos frouxos. O adiamento da entrada em vigor, programada agora para o fim deste ano, nem tinha razão de ser. Na prática, Inês é morta: a nova grafia já mandou a antiga às favas.

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

Mais do que pelo sol tropical, o brasileiro tem o couro curtido pelas lambadas que levou ao longo dos séculos. Revoluções, golpes de Estado, implantação e supressão súbita de leis, reviravoltas políticas repentinas e constantes, insegurança jurídica causam aflição crônica. Com paciência beneditina e resignação bovina, aprendemos a engolir pronunciamientos e a lidar com eles. Dançar conforme a música não é, entre nós, mera figura de estilo.

Calejados por sucessivas reformas ortográficas, não opusemos grande resistência a essa enésima modificação. O que mais nos incomoda é o pouco tempo que tem decorrido entre remodelações. Pessoas que, em 1990, tinham 55 anos ou mais viram-se obrigadas a aprender a escrever pela quarta vez! Alfabetizadas pela antiga grafia pseudoetimológica, já tinham sido forçadas a se adaptar à reforma de 1943 e à de 1971. A de 1990 amolava, sim, ainda que o desconforto não se tenha convertido em rebelião.

Orthographia 1Já em Portugal, a perspectiva de alterar hábitos de escrita encontrou oposição vigorosa. A resistência não se prendia aos mesmos motivos que provocavam mau humor no Brasil. O problema estava mais para orgulho ferido que para simples aborrecimento.

De um século para cá, houve numerosas tentativas de harmonização da escrita entre Brasil e Portugal. Nenhuma vingou. Em 1907, a Academia Brasileira de Letras propôs novas regras, que não foram seguidas nem mesmo no Brasil. Em 1911, Lisboa alterou profundamente a escrita – mas a novidade só valeu para Portugal. Em 1931, nova tentativa de aproximação gorou. O Brasil fez grande reforma em 1943, ignorada por Portugal. Em 1945, foi a vez de Portugal remodelar sua escrita, sem que o Brasil acompanhasse.

Placa 15O AO90 propunha-se a acertar o passo desse fado do linguista doido. Mas a medida – ressentida em Portugal como insuportável intromissão estrangeira na língua, um crime de lesa-pátria, um terremoto – mexeu com os brios da nação e levantou protesto maciço. Nem a finalidade explícita da reforma, a unificação da língua escrita, aplacou os ânimos.

Conceda-se que, em Portugal, a reforma desfigura uma batelada de palavras de uso frequente, o que explica a grita, os libelos inflamados e a objeção indignada. Gente de peso, figuras públicas, escritores, políticos, linguistas opuseram-se ostensivamente às novas regras. Blogues de resistência cívica continuam na luta ainda agora.

Peço ao distinto leitor a amabilidade de lançar uma vista a estes dois fragmentos.

Interligne vertical 12«Minha mulher a dias, que labuta asinha mas esbanja lixívia em sanitas e autoclismos, queixou-se do novo lanço com portagem que lhe cabe enfrentar, com a carrinha, na hora de ponta. Posto que o trecho tenha ficado giro, sabe a desperdício. Deixa a molesta sensação de cobres terem sido deitados fora.»

«O abaixo assignado promette aos seus freguezes que todas as encommendas effectuar-se-hão com a maior promptidão e exactidão. Tambem encarrega-se de n’ellas ageitar quaesquer eventuaes concertos.»

O primeiro parágrafo, que segue escrupulosamente as normas do AO90, foi escrito em português europeu. Qualquer cidadão luso o lerá sem perder uma palavra. O segundo trecho, calcado em anúncio publicado num jornal brasileiro faz 150 anos, foi grafado no estilo antediluviano da época – mas em português do Brasil.

by Alexandre Affonso, desenhista

by Alexandre Affonso, desenhista

Essas duas passagens mostram que, para a mútua compreensão, pouco conta a grafia. Ainda que se alcançasse a harmonização, o efeito seria o de emplastro em perna de pau. Por mais que se reforme a escrita, a variante europeia e a brasileira seguirão, impávidas, inexorável rota de afastamento.

Pragmáticos e despidos de exaltações nacionalistas, softwares continuam a oferecer ambas as variantes: português-pt e português-br, à escolha do freguês. O AO90 ilustra a desabusada tirada de Horácio: «Parturient montes, nascetur ridiculus mus» – a montanha pariu um ridículo camundongo.

À portuguesa, com certeza

José Horta Manzano

Interligne vertical 14Interligne vertical 15«A firma me propôs um estágio de três meses em Amesterdão. Fui e gostei muito de lá. Aproveitei para viajar um pouco. Conheci Copenhaga, Helsínquia e até Bordéus. Uma viagem e tanto.»

Um enésimo (e desastrado) acordo ortográfico foi assinado faz já um quarto de século por dirigentes políticos dos países que conferem à língua portuguesa estatuto oficial. Embora já amarelecido pelo tempo, continua dando pano pra mangas. Seguindo o mesmo caminho de seus malogrados antecessores, tampouco este último acerto logrou pôr de acordo os diferentes povos que se exprimem, por escrito, em língua lusitana.

Entre numerosas discrepâncias, sobressai a que contempla nomes geográficos, principalmente de cidades. Pelo costume luso, sempre se escreveu Nova Iorque, enquanto, no Brasil, usa-se Nova York. No fundo, onde está o problema, se todos entendem?

Conheça Estugarda!

Conheça Estugarda!

O exemplo que pus na entrada deste artigo é uma amostra do nome que os portugueses costumam dar a cidades pra lá de conhecidas. Algumas denominações provocam, em nós, efeito singular.

Vai aqui uma lista não exaustiva:

   Portugal        Brasil
   ========        ======
   Telavive        Tel Aviv
   Banguecoque     Bangkok
   Orleães         Orleans
   Nova Orleães    New Orleans
   Amesterdão      Amsterdã
   Nova Iorque     Nova York
   Bilbau          Bilbao
   Helsínquia      Helsique
   Zagrebe         Zagreb
   Copenhaga       Copenhague
   Nuremberga      Nuremberg
   Moscovo         Moscou
   Marraquexe      Marrakech
   Bordéus         Bordeaux
   Estugarda       Stuttgart

Tanto lá quanto cá, alguns nomes, por inusitados, surpeendem. Falta de hábito, nada mais. No final, a gente acaba se acostumando.

Frase do dia — 183

«Com todo o respeito que tenho por Antônio Houaiss, sua iniciativa para padronizar a escrita dos países lusófonos foi um desastre. Passados 24 anos da assinatura do acordo, as ortografias adotadas no Brasil e em Portugal continuam diferentes e nós, do lado de cá do Atlântico, passamos pelo levemente traumático, relativamente custoso e absolutamente inútil processo de reaprender a escrever.»

Hélio Schwartsman, filósofo, colunista da Folha de São Paulo, 20 set° 2014.

Polícia cartorial

Credito: Lego & Ricardo.ch

Credito: Lego & Ricardo.ch

José Horta Manzano

Acabo de voltar de férias no planeta Marte, onde passei estes dias que ligam o ano velho ao ano-novo.(*) Devo estar ainda com a cabeça nevoada ― a viagem é longa e cansativa.

Li hoje que o governo paulista proíbe sua polícia de socorrer vítimas de crimes graves, tais como tentativa de homicídio. Levei um susto. Achei que fosse algum delírio resultante da viagem interplanetária. Reli. Não, não havia engano. O relato do jornalista era esse mesmo.

Parece que a intervenção de policiais periga alterar a cena do crime. Se entendi bem, socorristas e urgentistas estão mais bem treinados que o corpo policial para intervir em caso de ocorrência violenta sem perverter o cenário.

Pervertido está o bom senso. Se a ajuda sanitária está capacitada para intervir sem alterar cenas de crime, com maior razão a polícia também deveria estar. O que não faz sentido é deixar que um cidadão agonize na sarjeta, que se esvazie de seu próprio sangue, sem que nenhum auxílio lhe seja prodigado.

Em vez de serem proibidos de socorrer feridos, os policiais deveriam, isso sim, ser treinados a desempenhar corretamente seu papel sem desfigurar o cenário de um suposto crime. É inconcebível que essa competência não faça parte de sua formação.

Não se pretende transformar as forças da ordem em urgentistas diplomados, mas noções básicas de primeiros socorros não fazem mal a ninguém. São ainda mais necessárias e úteis a profissionais cujo ofício os leva a defrontar quotidianamente acidentes, crimes e mortes.

(*) Não se assustem, que não é pilhéria. Ano velho se escreve assim, separado. Ano-novo pede hífen. Sabe Deus por quê. São caprichos de nossa grafia, que a reforma manquitola de 1990 não ousou enfrentar.

O remendo

O remendo 1José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 janeiro 2013

A língua portuguesa escrita não está longe de completar um milênio. Nos primeiros séculos, escrever não estava ao alcance de qualquer um. Só os eclesiásticos e os bem-nascidos eram letrados. Naquele contexto, a grafia das palavras dependia do gosto do freguês. Cada escriba manejava sua pluma da forma que melhor lhe aprouvesse.

Hoje e oj eram equivalentes; ver e veer também; coraçon e corazon eram aceitos indistintamente. A escrita não estava codificada, nem muito menos normatizada. Era o paraíso dos escritores, que, livres e soltos, não precisavam consultar dicionários, nem gramáticas. O distinto público leitor era, de qualquer modo, minguado. E dicionários e gramáticas ainda não haviam surgido.

O tempo passou, Gutenberg redefiniu a arte de imprimir, a escrita pôde enfim se popularizar. A estagnação medieval foi perdendo sua característica de imutabilidade das gentes e das coisas. Copérnico e Galileu movimentaram planetas, e o universo deixou de ser estático.

O uso de nossa língua também se acelerou. Num movimento espontâneo, a grafia foi-se fixando. Na ausência de normas, a escrita se propagou por imitação. Oj, veer e corazon foram rareando, suplantados pelos modernos hoje, ver e coração.

O 7 de setembro nos separou da metrópole, mas não influenciou a língua. Durante os 50 anos seguintes, famílias abastadas continuavam a mandar seus rebentos a Coimbra. Mesmo assim, a distância linguística entre Portugal e o Brasil foi aos poucos se alargando.

No limiar do século 20, tanto lá quanto cá, muita coisa havia mudado. A produção literária se avolumava. A instrução pública havia dado alguns passos tímidos na difusão da alfabetização. A população brasileira crescia a taxas elevadas e já havia superado a de Portugal. Nossa imprensa, refletindo o falar nacional, já tomava certas liberdades com relação ao rigor da escrita lusa.

Parecia importante que a escrita dos dois países seguisse o mesmo diapasão. No entanto, entre reformas e acordos, o que se viu foi uma inacreditável sequência de contrarreformas e desacordos. De 1907 para cá, a história registra desencontros tais como: reformas impostas aos brasileiros mas não aos portugueses (1971), reformas impostas aos portugueses mas não aos brasileiros (1973), acordos cumpridos pelo Brasil mas não por Portugal (1943), acordos cumpridos por Portugal mas não pelo Brasil (1945), acordos ignorados por ambos (1931). Uma verdadeira casa de mãe joana.

Em 1990, foi costurado um enésimo «acordo», surpreendentemente tímido, confuso e ambíguo. As aberrações se exacerbam quando se chega ao capítulo dos hífens. Sabia o caro leitor que maria-sem-vergonha deve ser escrita assim, com hífen, enquanto maria vai com as outras não admite o tracinho? Sabia que para-choque se escreve separado, enquanto paraquedas se escreve de uma tacada só?

O governo brasileiro, no apagar das luzes de 2012, adiou por 3 anos a obrigatoriedade da nova escrita. A meu ver, fez muito bem. Poderia fazer melhor ainda: deixar o dito pelo não dito e simplesmente revogar esse famigerado «acordo».O remendo 2

Já tivemos reformas suficientes estes últimos 70 anos : 1943, 1971, 1990. Um cidadão de 80 anos está enfrentando seu quarto aprendizado de escrita. Quem tem mais de 50 anos está aprendendo a escrever pela terceira vez. É muita coisa.

O inglês da Inglaterra difere consideravelmente do inglês americano. Há diferenças lexicais, sintáticas, prosódicas e, last but not least, gráficas. Isso não impede que o inglês seja, de facto, a língua universal.

A argumentação dos que alinhavaram nossa nova reforma era de unificar a escrita dos dois lados do Atlântico. No entanto, o volume de exceções é tão grande que a justificativa inicial perde a força. Com ou sem acordo, a escrita de lá será sempre diferente da de cá.

Outra alegação era de que a unificação nos facilitaria a obtenção de cadeira cativa no Conselho de Segurança da ONU. Balela. Nem que a escrita fosse idêntica ― o que não está previsto no acordo ― nosso País estaria em condições de ser aceito naquela confraria. Há outras condições que, infelizmente, não preenchemos.

Quando o remédio parece pior que o mal, como é o caso do AO90, é melhor deixar como está para ver como fica. Se nunca nos pusemos de acordo antes, por que nos poríamos agora? Com acordo ou sem ele, teremos sempre diferenças gráficas entre as duas variantes de nossa língua.

Deixemos que o tempo faça seu trabalho. O que não tem remédio remediado está. No próximo século, voltamos ao assunto.