A razão da visita de Bolsonaro

José Horta Manzano

Parece que está esclarecida a disparidade de dimensões entre, de um lado, a mesinha de chá que punha Putin a meio metro de distância do argentino Fernández, e, de outro, a mesona de mármore que mantinha 6 metros de distância entre o russo e o francês Macron.

Segundo o próprio Kremlin, a razão é sanitária. Visto que Emmanuel Macron se recusou a passar pelos testes de detecção de covid exigidos pelo hospedeiro, este impôs distância física entre os dois. Vladímir Putin afasta todo risco a sua excelsa pessoa. Ameaçar vizinho de bombardeio pode (veja a Ucrânia), mas respirar bafo de colega não testado não pode.

Bolsonaro está de partida para Moscou. Agora, que as redes sociais já começam a estranhar a insistência do capitão em fazer essa viagem justo agora, quando o mundo faz novena pra evitar uma guerra na região, está começando a ficar realmente esquisito.

O presidente não é conhecido por ser homem corajoso. No dia a dia, vive transferindo as próprias culpas a terceiros e, quando obrigado a aparecer em público, vem regularmente escorado atrás de uma legião de seguranças. Se ele se expõe a atravessar uma região em conflito e passar uns dias nos gelos russos, com o risco de ser alvejado por um míssil, alguma razão muito forte haverá. Qual será?

Nem o Kremlin nem o Planalto vão confirmar. Resta conjecturar. Não custa nada, vamos lá.

O distinto leitor já há de ter ouvido falar em Pegasus, um spyware israelense de excepcional desempenho, capaz de se infiltrar em qualquer telefone celular e realizar tarefas de roubo de dados e monitoramento de voz. Meses atrás, fiquei sabendo que um dos bolsonarinhos, aquele que é deputado federal, estava interessadíssimo em adquirir a tecnologia. O objetivo evidente era espionar adversários, desafetos, ministros do STF, parlamentares da oposição, líderes de associações, ONGs e quetais. Talvez tenha sido essa uma das razões da viagem que uma alentada comitiva do Planalto fez a Tel Aviv meses atrás. O motivo declarado era buscar um spray nasal contra a covid, mas essa alegação podia ser mera cobertura.

Por mais que apreciem o clã Bolsonaro, os israelenses não são bobos. Sabem que, dentro em breve, serão todos varridos para a lata de lixo da história. Em resumo: não vão se comprometer vendendo tecnologia tão sensível a gente tão pouco estável – e nada confiável. Acredito que o negócio tenha dado chabu.

Por trás da visita “de cortesia” a Putin, o capitão pode estar com alguma ideia desse tipo. Embora a Rússia não tenha nunca admitido, o mundo ficou sabendo da insidiosa interferência de Moscou quando da corrida presidencial americana que elegeu Donald Trump. Interferência, se houve, foi muito benfeita. Tanto que, até hoje, todos desconfiam, mas ninguém foi capaz de comprovar.

Essa poderia ser a razão que está levando o capitão a procurar comprar ajuda russa para lhe dar uma mãozinha na tentativa de reeleição. Comprar ajuda russa com nosso dinheiro, saliente-se. Diante de uma reeleição quase impossível, ele há de estar apelando para todos os santos.

Depois de ter orgulhosamente anunciado ao mundo todo que não estava vacinado e que não pretendia vacinar-se, Bolsonaro está agora em situação delicada. Putin foge da covid como da peste. Para se aproximar dele, todo convidado tem de passar por meia dúzia de testes consecutivos, ainda que esteja vacinado. Como é que as coisas vão se desenrolar?

Macron, que está vacinado com três doses, recusou-se a passar pelos testes. Receia que seu ADN seja coletado pelo Kremlin para fazer sabe-se lá o quê. Como vai reagir Bolsonaro? Vai passar pela humilhação dos testes? Acho que será obrigado, se não Putin não o receberá nem com mesa de 6 metros. E quanto à ajuda que está buscando, vai conseguir? Teremos interferência russa nas eleições de outubro?

Tenho cá minha ideia. Não é porque Bolsonaro voou até Moscou que ele será agraciado com ajuda russa para reeleger-se. Acho que Putin, que pode não ser grande amigo da democracia mas bobo não é, vai recusar. Não vejo que interesse ele teria em ter o capitão por mais quatro anos no Planalto. Mais interessante para Moscou é ter em Brasília um amigo da Venezuela, que é atualmente afilhada da Rússia.

E o distinto leitor sabe qual dos candidatos à Presidência do Brasil é o mais próximo de Caracas, pois não?

A floresta intocada

Bolsonaro mergulhado nos ouros e nos mármores do Oriente Médio.

José Horta Manzano

Bolsonaro, o indesejado das gentes, não é bem-vindo em nenhum país civilizado. Não recebe convite para visitar nenhum deles. Sem ter o que fazer, perambula pela periferia do mundo. E leva junto os bolsonarinhos, que também parecem não ter nada mais importante pra fazer na vida.

Estes dias, está fazendo turismo nos palácios de ouro e mármore que ditaduras hereditárias levantaram, com o dinheiro do petróleo, sobre as areias do desértico Oriente Médio.

Nenhum jornalista ousou fazer-lhe a pergunta fatal: “Então, presidente, aquela promessa de campanha de transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, como é que fica?”. Não convém reavivar memória de ofensas passadas, justamente quando se está de visita à casa dos ofendidos.

Em discurso pronunciado neste 15 de novembro, Bolsonaro garantiu, alto e bom som, que a Amazônia continua virgem e intocada, exatamente como a encontraram os primeiros exploradores portugueses chegados em 1500.

Distorcida pelo linguajar peculiar do capitão, a frase saiu picadinha. Mas o fundo de seu pensamento era esse. Garantiu, sem corar, que as queimadas são um mito. Em seu raciocínio, a floresta, sendo úmida, não pode arder. (Me fez lembrar aquele impagável discurso em que o Lula ensinava que só havia poluição no Brasil porque a Terra gira; não girasse, não haveria poluição.)

Por coincidência, no mesmo 15 de novembro, o Instituto de Pesquisas Espaciais anunciou a triste verdade: diferentemente do que anuncia o capitão, a floresta amazônica continua encolhendo. Só no mês passado (outubro), 876,5 km2 viraram pó.

No Brasil, país acostumado a cifras gigantescas – de população, superfície, assaltos e mortes por covid –, esse número não impressiona. Em outras partes do mundo, não é bem assim.

A Suíça, por exemplo, abriga 8 milhões de habitantes espalhados por 26 cantões. Pois saiba o distinto leitor que a superfície de floresta amazônica brasileira destruída no mês de outubro é exatamente a mediana da área dos cantões suíços. Isso quer dizer que metade dos cantões tem superfície menor que 876,5 km2, enquanto a outra metade tem superfície maior que a zona desmatada. “Ah, mas a Suíça é país pequeno!” – dirá um desmancha-prazeres. Ah, é? Então leia o que vem a seguir.

A superfície que foi desmatada só no mês de outubro pode não impressionar no Brasil, mas deixa de queixo caído em outras partes do mundo. É mais que 8 vezes a superfície do município de Paris, número que impressiona qualquer francês. É mais que 7 vezes a área do município de Milão, vastidão de deixar abobado qualquer italiano. Para todos eles, é aterrorizante imaginar que o Brasil destrói, a cada 3 dias, a cobertura vegetal de uma área do tamanho de uma grande metrópole.

Ao fim e ao cabo, a mentira presidencial tem perna curta. Doutor Jair Messias não é o único canal de informação da plateia que acompanhou seu palavrório nas Arábias. Como pessoas bem formadas e bem informadas que são, todos eles, a estas alturas, já devem estar a par dos números do Inpe. Já conhecem a verdade. Eles, sim, dispõem de canais que lhes dão informações eficazes.

Não faço ideia de quem prepara os discursos do capitão. Há de ser gente que nunca sai da bolha. Eles parecem acreditar que o mundo é composto de devotos que bebem unicamente as “verdades” espalhadas pelos canais bolsonaristas.

Enganam-se, fazem o presidente dar vexame. De tabela, envergonham a todos nós.

A Cruz Vermelha e a pirataria informática

Emblemas oficiais da Cruz Vermelha Internacional – ano de introdução

José Horta Manzano

O emblema da Cruz Vermelha é coisa séria. Introduzido em 1864 e confirmado por sucessivas convenções internacionais, a conhecida cruz de cor vermelha inscrita num quadrado de cor branca nada mais é que a bandeira suíça com as cores invertidas. O conjunto guarda as mesmas proporções da bandeira. Sua função é identificar, em zonas de conflito, os serviços sanitários e os sacerdotes militares, que estão lá para ajudar a quem precisa, pouco importando a cor do uniforme dos feridos.

Visto que a Suíça tem se mantido tradicionalmente neutra em conflitos, a bandeira com as cores invertidas foi escolhida com o propósito de sublinhar a neutralidade da Cruz Vermelha. Tanto na guerra quanto na paz, a organização se abstém de tomar partido por este ou por aquele lado.

Além da cruz propriamente dita, também é reconhecida oficialmente a Meia-Lua Vermelha (ou Crescente Vermelho). Utiliza-se em países de cultura maometana, onde a cruz pode ser percebida como símbolo imperialista. Outras regiões do mundo tentaram obter autorização para diferentes símbolos, mas o Comitê Internacional da Cruz Vermelha enxergou ali um risco de indesejável banalização do emblema.

Para resolver o problema de países que não desejassem utilizar nem cruz, nem meia-lua, o Comitê Internacional criou, em 2005, um terceiro emblema: o Cristal Vermelho – símbolo sem conotação religiosa. Ele é muito pouco utilizado, quase todos optando pela cruz ou pela meia-lua. A exceção é Israel, que, dentro de seu território, usa a estrela de Davi; em operações internacionais, ostenta o Cristal Vermelho.

A pirataria informática é uma praga de nossos dias. Ataques cibernéticos ameaçam desde corporações gigantescas até pequenas empresas. O objetivo dos piratas atuais (em português, hackers) é tão torpe quanto o de seus predecessores de três séculos atrás: chantagear as vítimas ao ameaçar de divulgar os dados surrupiados, na intenção de extorquir-lhes importantes somas em dinheiro. É moderna versão do antigo “A bolsa ou a vida!”. Ninguém está a salvo, nem mesmo o solitário indivíduo que trabalha diante de seu computador.

À vista disso, o Movimento Internacional da Cruz Vermelha, sediado em Genebra, está preocupado. Desde meados do século 19, a organização cresceu e está hoje estabelecida em praticamente todos os países do globo. Já vão longe os tempos em que sua ação se limitava a cuidar de feridos nas batalhas. Seu raio de ação abrange hoje não somente socorros urgentes prestados sob o fogo dos canhões, mas cuidam também de minorar o sofrimento dos que sobrevivem aos conflitos.

Cuidam com especial atenção das populações mais carentes, fornecendo próteses para amputados (mãos, braços, pés), serviços hospitalares, banco de sangue. Têm também programas de combate a endemias e epidemias, prevenção de propagação de doenças infecciosas em países miseráveis, amparo à maternidade, à miséria e à velhice, ajuda em caso de catástrofes naturais – enfim um grande volume de ajuda aos que precisam.

Essas atividades fazem que a Cruz Vermelha detenha dados pessoais de boa parte daqueles que recebem algum tipo de ajuda, o que significa um montão de gente. O comitê central está em pleno trabalho de reflexão sobre a melhor maneira de proteger todos esses indivíduos contra eventual exposição de seus dados pessoais provocada por algum crapuloso ataque cibernético.

Para isso, várias soluções estão sendo estudadas, entre elas, a criação de uma “Cruz Vermelha virtual”, ou seja, um marcador informático que pudesse agir como a cruz estampada nas ambulâncias que transportam feridos em campo de batalha. Buscam algo que fizesse saber a um eventual hacker que ele está a ponto de ultrapassar o limite de um território protegido e inviolável.

Considerando a enormidade das ramificações com que conta a Cruz Vermelha, o trabalho é gigantesco. Se estão fazendo isso, é porque ainda acreditam que um pirata, por mais pirata que seja, tira o chapéu quando entra na igreja. Em outras palavras: respeita o que tem de ser respeitado. Afinal, o emblema da cruz vermelha e o da meia-lua vermelha indicam aquilo que não deve ser violado.

Sabendo que, no Brasil, bandidos assaltam hospital, invadem delegacia, roubam merenda escolar e afanam placa de túmulo, fico com um pé atrás. Desejo pleno sucesso ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha, mas acredito que, na escala de valores da bandidagem, a ganância fala mais alto que a ética.

Passaporte vacinal

José Horta Manzano

Até dois dias atrás, vacinação era miragem distante, coisa de país rico. Ontem, o Brasil foi o 52° país a dar início à vacinação, transformando a miragem em realidade. Estivéssemos num contexto menos pedregoso, seria um momento de alegria e de alívio no estilo “agora, vai!”. Infelizmente, o país atravessa tempos estranhos, agressivos, emperrados, emburrecidos. Estamos em fase de demolição, não de construção. É bom tomar cuidado, que é sempre possível despencar um fragmento de parede lá de cima.

Até que o último brasileiro seja imunizado vai levar entre um e dois anos, mas o importante é que, finalmente, a roda começou a girar. Percalços, haverá muitos. É bom não esquecer que temos no Planalto um clã inteiro de Bolsonaros. Desgraça pouca é bobagem, como diz o outro. Um Bolsonaro incomoda muito a gente, dois Bolsonaros incomodam muito mais. E assim por diante.

Na Europa, a vacinação começou faz mais de mês. Pesquisas detectam que, à medida que o programa avança, baixa o número de antivax – aqueles que recusam a imunização. Trata-se de efeito manada virtuoso. Ao constatarem que o amigo, a vizinha, o colega ou a vovó se vacinaram e não sucumbiram, vão-se animando e deixando pra lá conselhos perniciosos como os de nosso sábio presidente. No fundo, fica claro que a aversão à vacina era apenas a face visível de um inconfessado medo de injeção, coisa de criança.

Na Europa, já se discute a criação de um passaporte vacinal, um documento a comprovar que o titular foi imunizado contra a covid. Determinados países exigem que todo visitante prove ter sido imunizado contra a febre amarela, exigência que não choca ninguém, pois não? Imagine agora o quadro. Um país como Israel, que dentro em breve terá vacinado toda a população, não vai querer que estrangeiros infectados reintroduzam o vírus no país. É permitido crer que vão logo passar a exigir que visitantes provem ter sido vacinados.

Mesmo no interior de um país, a questão vai surgir e impactar a circulação das gentes. Passados os primeiros tempos, parte da população terá sido imunizada, enquanto outra parte continuará desprotegida e exposta ao vírus. Companhias aéreas, empresas de transporte, teatros, restaurantes, faculdades não desejam que seus veículos ou seus estabelecimentos voltem a ser focos de infecção. Assim, vão pressionar para a criação de algum tipo de documento que garanta que o titular está imunizado. Estes serão admitidos, enquanto os demais darão com o nariz na porta.

Há que ter em mente uma verdade científica. Quanto mais tempo um vírus circula, mais risco há de ele sofrer mutações. Um dia, uma delas pode bem revelar-se mais contagiosa que as anteriores, como aconteceu na Inglaterra. Pode também surgir uma mutação que provoque quadro ainda mais grave de infecção – atingindo, inclusive, populações mais jovens. São cenários que a Saúde Pública de todo país ajuizado quer absolutamente evitar.

Eis por que, na sociedade pós-covid, nova segregação periga juntar-se às existentes: a discriminação contra os não-vacinados.

Beicinho

José Horta Manzano

Como se ainda precisasse, doutor Bolsonaro deu mais uma prova de não ter entendido em que consiste sua função. Para o bem ou para o mal, ele representa nosso país perante as demais nações do planeta. Nossa Constituição estipula que, além de chefe do governo, ele é chefe do Estado brasileiro – realidade que ainda não lhe entrou na cabeça. São dois bonés. A cada momento, precisa saber qual deles enfiar no cocuruto.

A função de chefe de Estado é honra suprema. Governos são efêmeros, o Estado fica. Mas nossa Constituição determina que assim seja; não há nada que se possa fazer, a não ser mudar a Lei Maior. Enquanto isso não acontece, temos de ir levando o barco com os remos que temos.

O chefe de Estado é o representante maior do povo brasileiro. Em relações exteriores, principalmente, não convém misturar as duas funções. Governo, com suas futricas, intrigas e conchavos, é uma coisa; Estado é bem diferente.

Faz algumas semanas, señor Fernández foi eleito presidente da Argentina, país vizinho e hermano. É praxe que se prestigie a tomada de posse de todo novo dirigente de país vizinho e hermano. Não se espera que doutor Bolsonaro compareça pessoalmente à cerimônia de entronização de todos os presidentes do mundo. Fizesse isso, passaria o tempo todo viajando, coisa que, em princípio, não é conveniente. Para nós, no entanto, a Argentina não é um país qualquer. Terceiro parceiro comercial do Brasil, sócio no Mercosul, vizinho de parede. O par Brasil – Argentina corresponde ao casal França – Alemanha: vizinhos, rivais tradicionais, sócios, parceiros inseparáveis.

Ao ser informado de que Lula da Silva e Evo Morales perigam aparecer na hora da festa, doutor Bolsonaro fez beicinho e bateu o pé: «Eu não vou, nem ninguém do governo vai.»

O que é isso, santo Deus? Tomada de posse de presidente não é festa de família, em que parentes brigados não comparecem, com medo de dar de cara. Doutor Bolsonaro não se dá conta de que, ao se comportar dessa maneira, dá recado errado. É como se o Brasil inteiro estivesse menosprezando o chefe do Estado vizinho. O Brasil inteiro fazendo beicinho e batendo o pé. Isso é coisa de adolescente espinhudo que ainda não consegue entender o mundo em que vive.

O próprio Bolsonaro já fez coisa parecida, se não pior. Quando tomou posse, todos hão de se lembrar que o convidado de honra era Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, pessoa detestada por meio mundo. Que se saiba, nenhum convidado deixou de comparecer em virtude da antipatia do hóspede incômodo. É sempre possível evitar aparecer na mesma foto que um desafeto. Presidentes dispõem de um exército de assessores justamente pra cuidar dessa parte.

Pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia por Lula da Silva nem por Evo Morales. Mas, gostemos ou não, ambos foram presidentes. Por muitos anos. Não me parece anormal que sejam convidados para a cerimônia em Buenos Aires.

Mas não adianta. Ainda que passasse anos no Planalto, doutor Bolsonaro dificilmente se compenetraria do alcance de suas palavras e da solenidade de suas funções. Ele não consegue desgrudar do chão e alçar voo majestoso para mostrar que está acima dessas platitudes. Um presidente que faz beicinho para o vizinho… Mas vejam só. Só faltava essa.

Pior a emenda

(Adendo acrescentado em 10 dez° 2019)

Depois de levar uma cotovelada de alguém de bom senso, doutor Bolsonaro resolveu mandar o vice-presidente como representante do Brasil na cerimônia de tomada de posse de señor Fernández. Seria mal menor, mas o estrago já estava feito. Não tivesse feito beicinho e batido o pé, até seria uma saída honrosa mandar o segundo personagem do Estado. Mas… honra é artigo raro na prateleira de qualidades presidenciais. Fazer o quê?

Golfo Pérsico

José Horta Manzano

Nosso inconsequente aprendiz de presidente teve de se dobrar.

•Apesar de ter jurado que mudaria de endereço a embaixada brasileira em Israel;

• apesar de ter asseverado que bastava estar bem com Israel para nosso comércio exterior com o Oriente Médio estar garantido(!!!);

• apesar de ter menosprezado o poderoso conjunto dos países árabes, dizendo que «não precisamos dessa gente»,

foi obrigado a se humilhar.

Desagravo indispensável

O que não deveria passar de uma rotineira visita de Estado transformou-se num ritual expiatório. Passando por cima das imposições de seu guru boca-suja, vergou-se a uma verdadeira visita de desagravo ao Oriente Médio. Não conseguiu suportar o peso econômico dos países do Golfo Pérsico. Depois de levar um choque de realidade, foi forçado a penitenciar-se.

Um dia, quem sabe, doutor Bolsonaro aprenderá que política externa não se faz insultando parceiros, nem menosprezando clientes. Ou, quem sabe, não dará tempo de aprender. Cada um que escolha a opção que lhe parecer mais realista.

Nota geográfico-linguística
Faz meio século, desde o surgimento do pan-arabismo e do sentimento nacionalista – impulsionado pelo petróleo, que lhes trouxe riqueza – os países árabes, majoritários na região, sentem-se incomodados com a tradicional denominação daquele mar interior: Golfo Pérsico.

«Por que só pérsico» – perguntam –, «se banha também uma pancada de países árabes como o Iraque, o Kuwait, a Arábia Saudita, o Sultanato de Omã, os Emirados?» Alternativas criativas têm sido propostas, como «Golfo Islâmico» ou até «Golfo Muçulmano», expressões que soam estranhas, como se aquele braço de mar fosse a entrada de um templo.

O formato atualmente aceito sem muita cara feia é Golfo Árabo-Pérsico. Pra não ofender ninguém, a mídia francesa costuma utilizar essa forma. Quanto a nós, um nome que não desagradaria e certamente pegaria bem seria «Golfo das Mil e Uma Noites». Já pensou? Dá quase pra ouvir Xerazade contando histórias.

Crista alta

José Horta Manzano

Talvez o distinto leitor já se tenha dado conta: doutor Bolsonaro está mais manso. Oh, não digo que se tenha civilizado de todo. Longe disso! Continua soltando coices, dando pinotes e relinchando feito potro bravo. Mas, aos poucos, vai-se amansando.

Lembram-se da bravata inicial, aquela da transferência da embaixada em Israel de Tel-Aviv pra Jerusalém? Essa provocou até a visita do premiê israelense, única personalidade não latino-americana presente à cerimônia de tomada de posse. Pois a veleidade já foi pra lata do lixo.

De lá pra cá, à força (ou por falta de força), fanfarronices e outras farofas têm sido varridas. A Cancún brasileira na baía de Angra dos Reis, em área de reserva natural? Pode esquecer! E por quê?

by Alisson Affonso (1979-), artista gaúcho

Porque, caso ele ousasse mandar tocar um projeto desse calibre, o mundo civilizado lhe desabaria sobre o cocuruto. Receberia ameaças de toda parte. Tratados de cooperação seriam denunciados. Ajuda financeira seria cortada. Retaliação pesada viria por aí.

O planeta tem regras, algumas escritas, outras habituais ainda que não contratuais – customary, como dizem os ingleses. Só quem pode passar por cima delas é quem tem muuuito poder. Donald Trump, por exemplo, que tem nas mãos as rédeas da maior potência do planeta.

Estados estão sujeitos a um emaranhado de leis, obrigações, dívidas, deveres. Não dá pra fazer de conta que o Brasil é um planeta à parte. Não é assim que funciona. Doutor Bolsonaro é café pequeno perto dessa gente graúda. Vai ter de se amansar, goste ou não.

Aliás, já deve estar se dando conta de que cada pronunciamento seu é um desastre que acaba sendo prejudicial pra ele mesmo. Embora não seja um luminar, tampouco é totalmente tapado. Portanto, aos poucos, de tanto levar pancada, vai acabar aprendendo. Vai baixar a crista e acabar se tornando um presidente comum. E que tome cuidado e ande na linha, que é pra não terminar em Curitiba, como um conhecido antecessor.

O crustáceo censurado

José Horta Manzano

A mídia israelense não deixou barato – crucificou o conterrâneo deles que atualmente ocupa a função de embaixador em Brasília. Talvez o distinto leitor já tenha tomado conhecimento através de redes sociais. Se não for o caso, conto a história.

Desde que o ainda candidato Bolsonaro, sem atinar com as consequências do que dizia, declarou que, se eleito, transferiria a embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém, o alto escalão israelense ficou alvoroçado. Se Bolsonaro fosse eleito e cumprisse a promessa, a mudança de endereço da embaixada do Brasil seria um importantíssimo gesto de apoio à política do país.

Doutor Bolsonaro acabou eleito. No dia da tomada de posse do cargo – um incômodo primeiro de janeiro que atrapalha todo o mundo – Israel foi o único país não latino-americano a prestigiar o evento com a presença do chefe de governo. Enquanto os demais países enviavam ministros, encarregados de negócios, chefes de gabinete, Israel mandou um sorridente Benjamin Netanyahu, tratado aqui como convidado VIP.

O tempo passou, a ideia de mudança de endereço da embaixada foi colocada no fundo da geladeira, e ninguém por aqui fala mais nessa tolice. Acontece que o governo israelense não esqueceu. Assunto importante para eles, continua na pauta. Nesse cenário, o embaixador de Israel em Brasília almoçou domingo passado com doutor Bolsonaro, antes de irem juntos assistir ao jogo da Seleção.

Na refeição, nada de pão com leite condensado como nos tempos de demagogia forçada. O chef preparou lagosta – coisa fina e cara. (Mas quem paga é a viúva.) Como é moda nestes tempos de selfies pra cá e pra lá, uma foto imortalizou a cena da refeição. A forma dos copos revela que ambos se hidratam com sorsos alternados de vinho tinto e de uma bebida escura que lembra suco de uva ou coca-cola. (Deve substituir o leite condensado ausente.)

Ao aceitar compartilhar um prato de lagosta regado a vinho, o embaixador mostra não seguir a linha ortodoxa da religião hebraica. Não é tão grave assim, mas, como integrante da casta dos dirigentes do país, não lhe cai bem mostrar desabrido desrespeito à dieta kosher, sob pena de chocar parte importante do eleitorado. Ora, lagosta, assim como tudo o que vem do mar e não tem escamas nem nadadeiras, é alimento proibido pelas regras religiosas. Antes de tuitar a foto, a embaixada de Israel em Brasília não teve dúvidas: borrou grosseiramente os pratos pra esconder a transgressão alimentar.

Acontece que, talvez por ser domingo, o especialista em photoshop devia estar de folga. Os borrões pretos pintados em cima dos crustáceos são tão malfeitos que deixam aparecer parte da cor típica do alimento refinado que pretendiam esconder. Clique na foto pra ampliar e comprovar. Pegou mal pra caramba. As redes sociais não perdoaram. O almoço com lagostas ao molho de photoshop foi ridicularizado. Até (ou principalmente) a imprensa israelense deu cobertura à gafe. Aqui está o artigo do The Times of Israel.

Ah, essas redes sociais! Quando a gente está crente de abafar, dá o maior furo… Como diz o outro, ‘em boca fechada, não entra mosca’. Atualizando, fica assim: ‘Em almoço sem foto, ninguém fica sabendo qual foi o prato’. De qualquer modo, amanhã todos terão esquecido. E a conta, naturalmente, vem pra nós.

Deportação e extradição

José Horta Manzano

«Battisti foi extraditado imediatamente pelo governo boliviano» ‒ li nalgum lugar. Bobeou quem escreveu isso. Confundiu atos distintos.

Deportação
É a expulsão sumária de indivíduo indesejado no país ‒ o mais das vezes, por ter entrado irregularmente. Frequentemente, brasileiros incapazes de demonstrar possuir meios de subsistência durante a estada no país são deportados da Espanha, de Portugal, dos EUA. Em geral, não chegam nem a sair do aeroporto.

Extradição
É processo muito mais complexo que a simples deportação. A extradição de um indivíduo se concede em atendimento a pedido de país estrangeiro. Só é autorizada depois de exame aprofundado da documentação enviada pelo governo requerente. Via de regra, os extraditandos são pessoas condenadas ou acusadas de crime.

O caso Battisti
Culpado de ter adentrado o território boliviano irregularmente, Battisti foi deportado pelo governo daquele país. Os policiais italianos, que por acaso passavam por ali, ofereceram-se para escoltar o clandestino de volta à pátria. Agradecidas, as autoridades bolivianas entregaram o homem.(*)

Comentário malicioso
No oficial, o governo de Evo Morales entregou o criminoso de mão beijada, sem contrapartida. No paralelo, não é proibido imaginar que tenha recebido um agradozinho. Aviões costumam levar muitas malas ‒ e o trimotor da aeronáutica militar italiana era bem grandinho.

(*) No rigor jurídico, o terrorista foi mesmo é sequestrado pela polícia italiana, enfiado num avião militar e carregado à Península. Guardadas as devidas proporções, lembra o caso de Adolf Eichmann, nazista de alto coturno sequestrado na Argentina em 1960 por agentes secretos israelenses e levado a Israel, onde foi julgado, condenado e executado.

Cada um por si

José Horta Manzano

Saiu hoje a notícia fresquinha: acompanhando os EUA, o Paraguai decidiu transferir sua embaixada em Israel para Jerusalém. As novas instalações devem ser inauguradas hoje, com a presença de Horacio Cartes, presidente do Paraguai. Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, também assistirá ao evento.

Há quem se alegre com o fato de os Estados Unidos terem transferido a embaixada para Jerusalém, reconhecendo assim, de facto, que a cidade é a capital de Israel. Há também quem rejeite a decisão americana. Todos terão bons argumentos. Até aí, tudo bem.

O que mais me perturba nessa história não é tanto os EUA terem tomado a atitude polêmica. O que me incomoda de verdade é ver o Paraguai, um dos quatro sócios do Mercosul, tomando unilateralmente uma decisão desse quilate.

Cada um é dono de seu nariz. Ninguém pode tolher do país vizinho a liberdade de plantar embaixada onde bem entender. Só que tem um detalhe: quando se faz parte de uma sociedade, convém combinar com os sócios antes de se posicionar em assuntos internacionais.

Ninguém imagina um dos membros da União Europeia tomar esse tipo de iniciativa ‒ está fora de cogitação. Por que, então, no Mercosul pode?

Se o objetivo for desbotar a imagem e enfraquecer a coesão do (já debilitado) bloco, o Paraguai ajudou a dar um grande passo.

Integração furada

José Horta Manzano

Pela 51a. vez, os líderes do Mercosul se encontraram em reunião de cúpula. Realizada desta vez em Brasília, a cimeira se propunha a avaliar o balanço do período de gestão temporária exercida pelo Brasil e para entregar a batuta ao presidente paraguaio, cujo país presidirá o bloco pela próxima temporada.

Engana-se quem imaginar que esses encontros se realizem em comitê restrito, a portas fechadas, com a presença apenas dos quatro presidentes mais um ou dois assessores. Membros do Mercosul e Estados associados se fazem acompanhar por alentada comitiva. A enorme sala de reuniões do Itamaraty dá justinho pra acomodar a tropa toda.

Cúpula do Mercosul, 20-21 dez° 2017

Como sói acontecer, o volumoso número de participantes está na razão inversa dos resultados. Trocam-se amabilidades, tiram-se fotos de família, assinam-se documentos preparados com grande antecedência, e vamos ficando por aí. Resoluções, no duro, não se tomam. Querem a prova?

A cúpula se desenrolou dias 20 e 21 de dezembro. Por coincidência, a ONU tinha marcado para 21 de dezembro o voto de uma resolução de repúdio à decisão dos EUA de reconhecer em Jerusalém a capital de Israel. Embora o resultado do voto não tenha o poder de fazer os EUA voltarem atrás, reveste-se de alto simbolismo. Evidencia a rejeição a uma decisão que contraria jurisprudência da própria ONU.

Como eu, o distinto leitor há de ter imaginado que a data não podia cair melhor. O fato de os quatro presidentes do Mercosul estarem reunidos ‒ e rodeados de dezenas de assessores ‒ favoreceu um entendimento a fim de todos votarem uniformemente, certo? Errado!

Mostrando mais uma vez que não tem vocação para se inserir nos negócios do mundo, o Mercosul fez cara de paisagem. Não ocorreu a ninguém combinar um voto homogêneo. A debandada foi vexaminosa: Brasil e Uruguai votaram a favor da moção, enquanto Argentina e Paraguai se abstiveram.

Pega mal. Um bloco que não consegue nem pôr os próprios membros de acordo num voto simbólico na ONU não pode ser levado a sério pelo resto do planeta. Quem é que lhe vai dar crédito?

Se nem isso conseguem, por que insistir em levar adiante esse arremedo de organização regional? Depois de um quarto de século e 51 reuniões de cúpula, o que é que sobra? Se espremer, não sai muito caldo. Melhor seria que acabassem com esse circo e que cada um seguisse seu caminho. Daria mais certo.

Nota
Só para constar, o resultado final do voto de condenação à atitude americana de reconhecer Jerusalém como capital de Israel foi o seguinte:

A favor:    128 países
Contra:       9 países
Abstenções:  35 países

Turismo à nossa custa

José Horta Manzano

Corrupção, peculato, prevaricação, concussão, malversação são termos que se ouvem quotidianamente. Embora se os chame pudicamente «malfeitos», são atos criminosos tipificados pelo Código Penal Brasileiro no capítulo que trata dos crimes praticados por funcionário público(*) contra a administração.

Estes últimos anos, o aumento de volume deles coincidiu com a expansão vertiginosa da propagação de notícias. O resultado é um jorro contínuo de coisas tortas. Francamente, não dá pra esconder mais nada. Mesmo assim, na maior parte do tempo, terminam em nada. Ou em pizza, se preferirem.

O exemplo mais recente de malversação de dinheiro público está sendo dado estes dias por ninguém menos que o presidente da Câmara Federal ‒ o primeiro nome na atual linha sucessória da presidência da República. Doutor Maia convocou a esposa e mais nove(!) deputados federais para um giro de uma semana por Oriente Médio, Itália e Portugal. A orla mediterrânea tem clima muito quente no verão, razão que deve ter levado Sua Excelência a escolher este comecinho de novembro. Passeia-se mais à vontade.

A razão oficial da viagem não ficou clara. Falou-se vagamente em «motivação diplomática», seja lá o que isso queira dizer. Vários indícios põem em dúvida a alegação. O primeiro-ministro de Israel recusou-se a receber os parlamentares. O prefeito de Jerusalém idem. Dois ou três encontros com parlamentares locais foram de mera cortesia e não duraram mais que 20 minutos. Na maior parte do trajeto, a presença de jornalistas e de fotógrafos não foi admitida.

A viagem se fez em avião da FAB. Hospedagem em hotel de cinco estrelas e alimentação também vão para a conta do contribuinte brasileiro. O deputado Orlando Silva, do Partido Comunista, faz parte da comitiva. É aquele que foi ministro do Esporte tanto do Lula quanto da doutora. O moço é lembrado por ter usado cartão corporativo do governo federal, certa ocasião, para pagar uma tapioca. Supõe-se que, no Oriente Médio, não se tenha contentado com churrasquinho grego. Por lá, há restaurantes supimpas. Os preços são elevados, mas… que importa? Quem paga somos nós.

Sabe o distinto leitor o que vai acontecer com esses parlamentares quando voltarem? É claro que sabe: nada.

Malversación
Semana passada, os deputados regionais da Catalunha (Espanha) votaram a independência do território. Considerando que os parlamentares cometeram uma ilegalidade e violaram a Constituição, a Justiça nacional abriu processo contra os principais implicados.

Entre os crimes dos quais são acusados, está a malversação, o desbarato de dinheiro do contribuinte. De fato, o plebiscito que organizaram, à valentona, em 1° de outubro custou mais de um milhão de euros aos cofres públicos. Caso sejam considerados culpados com circunstâncias agravantes, a pena pode chegar a oito anos de prisão acrescida de perda dos direitos civis por um prazo de até 20 anos.

Se o mesmo rigor fosse aplicado aos parlamentares brasileiros, não sobraria muita gente no Congresso.

(*) Funcionário público
No Artigo 327, o Código Penal Brasileiro define como funcionário público, para efeitos penais, «quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública». Durante o exercício do respectivo mandato, portanto, todo parlamentar é funcionário público.

Requiescat in pace

José Horta Manzano

Certos personagens não sobrevivem senão debaixo dos holofotes. É o caso de diversos figurões e homens políticos deste país. O exemplo maior é o Lula. «Falem bem, falem mal, mas falem de mim» parece ser o mote dessa gente. Caso se apagassem as luzes, desvaneceriam qual mariposas. Para não cair no ostracismo, têm necessidade permanente da ribalta, do incenso e dos aplausos. Em casos desesperados, até apupos servem para mantê-los em vida. Mais vale ser vaiado que esquecido.

Já alguns poucos atores do mundo político são personagens das sombras. Deles, embora pouco se fale e pouco se ouça, vêm diretivas que norteiam quadrantes inteiros da política nacional. Um deles fechou os olhos para sempre ontem. Foi Marco Aurélio Garcia, aquele que teve de carregar, ao longo dos dez últimos anos de vida, o incômodo apodo de «top-top», que lhe foi atribuído desde que o flagraram em gesto obsceno, na esteira de um acidente de avião que matou duzentas pessoas.

A decência recomenda não chutar cachorro morto, coisa mais feia. A honestidade, no entanto, me obriga a ressaltar que esse senhor foi ator de destaque na descida da diplomacia brasileira rumo à insignificância. Verdadeiro ministro de Relações Exteriores bis, doutor Garcia esteve entre os pouquíssimos que permaneceram no cargo do primeiro dia do governo do Lula até a derrocada da doutora Dilma. E olhe que não ocupava um desses cargos políticos que se barganham no balcão federal de negócios, como é o caso de ministros. Era dono de um posto de assessor especial ‒ que as más línguas chamam de aspone ‒, cargo de confiança que não tinha nada que ver com troca de favores.

Doutor Garcia, pouco imbuído dos sutis códigos diplomáticos, agia sem visão de mundo, movido apenas por empoeirada ideologia estacionada nos anos 60. Por razões que não cabe aqui analisar, esteve por detrás de bizarras tomadas de posição da política exterior brasileira. Ainda estão presentes na memória coletiva numerosos vexames internacionais aos quais nosso país foi submetido. Entre eles: aquele incompreensível mas explícito apoio a señor Zelaya na Nicarágua; o fiasco da pueril tentativa de intromissão brasileira no conflito entre Palestina e Israel; a benevolência para com terroristas das Farc; a aproximação tentada pelo Planalto com sanguinárias ditaduras africanas; a entrada (pela janela) da Venezuela no Mercosul.

O mundo não é bobo. Depois do momento de surpresa e simpatia que se seguiu à primeira eleição do Lula, caíram todos, pouco a pouco, na real. Deram-se conta de que, por detrás da bondosa fachada de distribuição de migalhas para combater a fome, havia o oco total. Como em cenário de cinema, as casas não tinham fundos. Atrás do frontispício, nada. Depois de repetidos desastres, o Brasil acabou descartado e regrediu décadas na visão do mundo civilizado. Em vez de destacar-se como locomotiva da América Latina, dissolveu-se no caldeirão comum e voltou a ser visto como país grande, não como grande país.

O Brasil se aferrou, durante os anos lulopetistas, a tentar dividir o planeta em blocos heteróclitos do tipo Brics. A assunção de Mr. Trump ao topo da hierarquia dos EUA mostrou que a formação de blocos político-comerciais é frágil e sujeita a chuvas e tempestades. De uma canetada, o homem retirou seu país do Tratado Transpacífico. Fez mais. Renegou o Acordo sobre o Clima assinado em Paris por quase 200 países depois de longas e ásperas negociações.

Culto, esperto, visionário ‒ e principalmente bem assessorado ‒, Monsieur Macron lançou, no começo de junho, convite a todos os cientistas americanos para que viessem trabalhar na França, onde as torneiras que Mr. Trump estava fechando seriam abertas para deixar jorrar fartos incentivos. Passou por cima de G8, G20, Otan e todas essas criações artificiais que atravancam mais do que ajudam. Em contraposição irônica ao slogan de campanha do colega americano, o presidente francês, que domina a língua inglesa, propagou «Make our planet great again» ‒ Vamos restituir a grandeza a nosso planeta.

O governo francês reservou orçamento de 60 milhões de euros à operação. E não é que está dando certo? Mês e meio depois do convite, centenas de cientistas de alto coturno já se candidataram. Vêm do mundo inteiro. Entre eles, 150 estão interessados em estabelecer-se na França por longo período. Metade desses 150 são americanos. Com uma pontinha de inveja, Frau Merkel se prepara para repetir, na Alemanha, a iniciativa de Monsieur Macron.

Está aí um pequeno exemplo de política exterior visionária, de longo prazo e voltada para o bem do povo em contraposição a política ideológica e capenga, meramente voltada para mesquinhos interesses presentes. Ao atrair cientistas, a França dá lastro ao futuro do próprio país, enquanto o nosso arrogante Planalto gastou bilhões surrupiados do sofrido povo para construir o porto de Mariel, em Cuba. Tristes trópicos.

Nota
Requiescat in pace, frequentemente abreviado em R.I.P., é fórmula latina usada em referência a pessoa falecida. Significa que repouse em paz.

É difícil escapar

José Horta Manzano

É extensa a lista de presidentes, primeiros-ministros e dirigentes máximos que, em algum momento, estiveram enrolados com a justiça. Não estou me referindo aos que foram derrubados por revolução, como aconteceu com Luís XVI na França, Benito Mussolini na Itália ou Nicolae Ceaușescu na Romênia. Esses são casos extremos ocorridos durante período de comoção nacional, quando fica difícil distinguir o certo do errado e o justo do arbitrário.

Numerosos figurões do mundo inteiro tiveram problemas judiciais por motivos variados e muitos deles terminaram seus dias na cadeia. Alguns ainda estão atrás das grades atualmente. Entre eles, há nomes pouco conhecidos, como um antigo líder de Hong Kong e uma ex-presidente das Filipinas. Há outros mais próximos de nós como, por exemplo, Reynaldo Bignone, o último general sobrevivente da ditadura argentina. Pérez Molina, ex-presidente da Guatemala e Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru fazem parte dos que ainda estão purgando a respectiva pena.

Se incluirmos os que já acertaram as contas com a justiça e já foram liberados, a lista se alonga. José Sócrates, antigo primeiro-ministro de Portugal, está entre eles. Três(!) ex-presidentes da Coreia do Sul engrossam a fila ‒ aliás, a mais recente chefe do Executivo daquele país acaba de ser encarcerada. Um presidente e um primeiro-ministro de Israel também já passaram algum tempo nas masmorras.

Temos atualmente, no Brasil, um antigo presidente enrolado com a justiça. Lula da Silva já coleciona meia dúzia de processos cujo desfecho, caso lhe seja desfavorável, pode render-lhe pena de prisão em regime fechado. Muita gente se surpreende e se pergunta como é possível que alguém que já exerceu função tão elevada possa terminar seus dias de modo tão desonroso.

A resposta é simples. Embora possam estar imunes enquanto ocupam função elevada, presidentes e altos dirigentes voltam a ser cidadãos comuns no exato instante em que descem do pedestal. O fato de ter estado lá em cima por algum tempo não lhes garante imunidade perpétua. Se, no entendimento dos juízes, nosso guia tiver cometido delitos, pode ser condenado. Não há nisso nada de extraordinário.

Como diz o outro, aqui se faz, aqui se paga.

Falam de nós – 20

0-Falam de nósJosé Horta Manzano

Eles também contaram
O quotidiano austríaco Der Standard informou que o presidente do Brasil perdeu o quinto ministro em seis meses de governo. Inclui na conta a demissão de senhor Calero, aquele que, noviço no universo político, surpreendeu-se ao descobrir a realidade nua, crua e… um tanto malcheirosa.

O jornal dá um breve resumo do que aconteceu em Brasília nos últimos seis meses. Não deixa de mencionar os protestos ‒ incompreensíveis para muitos ‒ protagonizados por astros da música e das artes nacionais. Chega a relembrar o vexame dos cartazes brandidos por aclamadas estrelas no tapete vermelho do Festival de Cannes, numa demonstração nunca dantes vista naquela escadaria.

O jornal não diz, mas as manifestações de nomes conhecidos das artes populares brasileiras em favor da permanência da doutora deixaram uma impressão de troca de favores. Enquanto sondagens mostravam que 80% ou 90% da população queriam ver a presidente pelas costas, certos personagens opuseram-se ostensivamente ao povo, justamente àqueles que, em última instância, lhes tinham dado fama e dinheiro.

Ficou esquisito e pegou mal pra caramba. Ninguém é perfeito, é verdade, mas também não precisavam deixar uma mancha assim tão gritante na biografia.

Primeira congregação judaica das Américas Recife (PE), fundada em 1636

Primeira congregação judaica das Américas
Recife (PE), fundada em 1636

Imigração em aumento
Todo judeu tem direito à nacionalidade israelense. A lei do país tem a peculiaridade de dividir estrangeiros em duas categorias: os judeus e os demais. O direito ao passaporte nacional se estende a todos os imigrantes judeus, venham eles de onde vierem.

Os países das Américas, quando passaram a ser independentes, atravessaram situação semelhante. Todos os habitantes de então tornaram-se automaticamente cidadãos do novo país. Israel foi mais longe. Estende a facilidade, em caráter permanente, a todo judeu que venha a se estabelecer no país. Esse tipo peculiar de imigração leva o nome de «aliya».

O jornal Jerusalem Post informa que a imigração de brasileiros tem aumentado exponencialmente nos últimos anos. Três anos atrás, apenas 200 cidadãos brasileiros optaram por transferir-se a Israel. Este ano deverá fechar com 700 novos imigrantes provenientes de nosso país.

O artigo frisa que, diferentemente de outros recém-chegados, os brasileiros não decidem se estabelecer lá por razões políticas nem de perseguição religiosa. A razão principal é econômica. O descalabro que vem castigando o Brasil está na raiz da decisão. Não é fácil deixar o país de origem, enfrentar clima novo, costumes diferentes, inserir-se num mercado de trabalho diverso. O aprendizado da língua é barreira considerável.

Os brasileiros que se decidem a dar o grande passo ‒ está aí a grande ironia ‒ são descendentes daqueles que um dia encontraram no Brasil um porto seguro e promissor. A vida dá voltas, que fazer?

Les jeux sont faits

José Horta Manzano

Pelos próximos quatro anos, se o destino não bancar o desmancha-prazeres e não der uma foiçada, Donald Trump exercerá a presidência dos EUA. Assim que a notícia se espalhou, metade dos americanos abriu o champanhe enquanto os demais abriram o armarinho do banheiro à cata de aspirina.

Muita gente foi apanhada de calça curta. Como em outras votações polêmicas, todos os institutos de pesquisa se enganaram. Até mesmo sondagens de boca de urna ainda mantinham Hillary Clinton na dianteira. O resultado final deixou muita gente atordoada.

eleicao-3Independentemente de ter torcido para este ou para aquele candidato, o distinto leitor há de estar surpreso. Não se sinta solitário, que uma multidão está no mesmo caso. No entanto, pensando bem… sabe quem levou o susto maior? Pois foi exatamente Mister Trump. Ele também sabe ler pesquisas. Já tinha até dado sinais de estar-se preparado para atacar a lisura do processo de apuração.

Para o moço, o importante era ganhar. Governar não estava exatamente nos seus planos. Nascido em berço confortável, deu continuidade ‒ com sucesso ‒ ao espírito empreendedor dos antepassados. Venceu sempre. Desta vez, sua intenção era de mostrar que era o maior, que podia chegar ao posto máximo mesmo sendo absolutamente carente de experiência política. Conseguiu. E agora?

Agora é que são elas. Ataques de palanque, frases de efeito, atitudes ensaiadas, ameaças, xingamentos, invectivas e ofensas ficaram pra trás. Mister Trump terá de usar sua esperteza para cercar-se de gente competente. O maior risco que ele corre nesse sentido é deixar-se levar pelo orgulho e agir como nossa mais recente presidente destituída: só nomear assessores que lhe digam amém. Se fizer isso, será desastroso.

cassino-1Seja como for, no fim das contas, pouco deve mudar para quem vive fora dos EUA. Com ou sem Mister Trump, o país continuará sendo, por muito tempo ainda, a maior potência econômica e militar do planeta. O Reino Unido seguirá firme o caminho do Brexit. A Rússia não abrirá mão da Crimeia. Palestinos e israelenses não farão as pazes. Alguns latino-americanos continuarão a tentar a atravessar o Rio Grande na calada, enquanto outros continuarão a frequentar a Disneylândia.

No Brasil, a mudança será pouca, quase nada. Desde que o lulopetismo cortou o cordão umbilical que nos unia ao mundo dito «ocidental» para fazer ligação direta com a China, decisões tomadas em Pequim têm maior influência sobre nós do que as que são tomadas em Washington.

Interligne 18c

Les jeux sont faits, rien ne va plus!
A expressão que usei como título do artigo é difícil de traduzir ao pé da letra. É repetida pelos crupiês, nos cassinos franceses, a cada vez que a roleta é posta a girar. Significa que quem jogou, jogou; não se aceitam mais apostas para esta rodada.

O embaixador e o banco

José Horta Manzano

Desastres raramente são fruto de causa única. Uma sequência de más decisões, aliadas a erros e apimentadas com inabilidade: está aí a melhor receita para um fracasso anunciado.

Quando o primeiro-ministro de Israel anunciou, em mensagem pelo tweeter, que um certo senhor Dayan tinha sido escolhido para ocupar o cargo de embaixador de seu país em Brasilia, cometeu o primeiro erro. Os sutis códigos diplomáticos recomendam que o Estado que vai receber o emissário seja avisado em primazia.

Tweeter 1O fato de o designado embaixador ser ativista na causa da implantação de colônias em território ocupado não agradou ao governo brasileiro. O Brasil, como a maioria dos países, não abraça essa política de colonização. Ao ser oficialmente notificada, Brasília respondeu com um longo silêncio que, na linguagem da diplomacia, significa desaprovação.

A coisa poderia ter terminado por aí. Ao dar-se conta da recusa, as autoridades israelenses podiam ter proposto outro nome. Teriam evitado constrangimento maior e a coisa teria passado batida, sem repercussão. Mas a série de más decisões continuou. O primeiro-ministro Netanyahu, conhecido por ser cabeçudo, recusou-se a retirar o nome do indicado.

Knesset - parlamento israelense

Knesset – parlamento israelense

Por seu lado, senhor Marco Aurélio «top-top» Garcia, fazendo jus ao histórico de trapalhadas que o caracteriza, houve por bem tornar pública a desavença. A partir daí, o caso assumiu proporções de escândalo internacional. Cada um se sentiu no direito de dar opinião. Jornais daqui e de lá argumentaram, comentaram e palpitaram. Qualquer desfecho que se desse ao caso frustraria uma das partes.

O quotidiano The Jerusalem Post, em editorial sensato e equilibrado, conta a história e dá a receita para um final suave. Propõe que senhor Dayan, rejeitado por Brasília, seja designado para o prestigioso posto de cônsul-geral em Los Angeles. O fato de esse senhor, que passou a infância na Argentina, falar castelhano é trunfo importante na California, onde reside importante contingente de origem hispano-americana.

Diz ainda o jornal que as relações de Tel Aviv com Brasília são demasiado importantes para serem perturbadas por essa queda de braço. Propõe que Israel envie ao Brasil um diplomata de carreira, afastado de correntes políticas. E completa lembrando que nosso país ‒ sétima ou nona economia do mundo, segundo o método de cálculo ‒ representa mercado importante para Israel. As relações bilaterais devem permanecer acima de querelas menores. Para coroar, a comunidade judaica brasileira conta com 120 mil membros, número significativo.

Banco 10Quando estourou a crise financeira sete anos atrás, o UBS, o maior banco suíço, balançou. Sob o argumento de que aquele estabelecimento era «too big to fail»grande demais para ir por água abaixo, o governo suíço injetou a respeitável quantia de dois bilhões de dólares para evitar a catástrofe.

O Jerusalem Post adapta o raciocínio ao caso do embaixador. Diz que «the Brazil relationship is too important to lose»as relações com o Brasil são importantes demais para serem postas a perder. Sosseguemos. Solução virá e, por certo, não vai custar dois bilhões de dólares.

O agrément do embaixador

José Horta Manzano

Faz um mês, escrevi um artigo concordando com a decisão do Planalto de não conceder o agrément ao novo embaixador de Israel em Brasília. Em correspondência particular, um distinto e fiel leitor, com argumentação muito bem construída, discordou de minha opinião.

Ele tem lá suas razões, admito de bom grado. No entanto, acho que, para ser plenamente entendido, o incidente atual tem de ser considerado como novo capítulo de uma novela que se vem desenrolando faz vários anos.

O assunto é interessante. Assim, gostaria de aproveitar a oportunidade para aprofundar, em atenção a outros distintos leitores, minha visão sobre o acontecido. Eis por que decidi tornar pública a cartinha que acabo de escrever a meu correspondente. Aqui está ela.

Interligne 18h

Prezado amigo,

Peço desculpas antecipadas para a eventualidade de algum propósito meu lhe parecer demasiado cru. Sem chegar ao hiperrealismo, acredito que, em certas ocasiões ambíguas, cada boi deve levar seu nome.

Discussão 1Logo de início, uma premissa tem de ser posta: Estados não têm sentimentos, têm interesses. Nesse nível, relacionamentos não passam pelo coração, mas pelo cérebro. E, naturalmente, pelo bolso…

Imigrantes italianos, alemães e japoneses são componentes pra lá de importantes dos alicerces de nossa nação. Imigrantes franceses, britânicos e americanos foram bem menos numerosos. Se dependesse de razões afetivas, o Brasil, na última grande guerra, teria integrado o eixo Berlim-Roma-Tóquio. No entanto, os interesses do Estado brasileiro falaram mais alto, daí o governo da época ter escolhido o campo aliado.

Discussão 2Ao Estado brasileiro, no fundo, pouco se lhe dá que os ânimos entre israelenses e palestinos se acirrem ou se acalmem. Dito assim, pode até ser chocante, mas, convenhamos, é a realidade. Fazendo abstração do aspecto humanitário, os fatos políticos daquela lonjura não acarretam maiores consequências para nós.

Em condições normais, é mais que provável que a nomeação de novo representante israelense para a embaixada em Brasília passasse totalmente despercebida, fosse quem fosse o indicado. Mas as condições não eram normais, aí está o nó. A história se desenvolve num continuum. Ao isolar um fato, perde-se o fio, e o relato perde coerência. Para entender o imbróglio, não precisa voltar aos tempos bíblicos nem mesmo à criação do Estado de Israel. Basta relembrar o que ocorreu poucos anos atrás, nos tempos do Lula.

Sob inspiração de seus áulicos, o então presidente deu demonstração de que ingenuidade aliada a ignorância e apimentada por mau aconselhamento só pode dar, digamos, desasseio ‒ pra evitar palavra malcheirosa. É inacreditável, mas nosso guia acreditou que, com uns dois jogos de futebol e três tapinhas nas costas, poria fim ao conflito. E que ainda faria jus ao Prêmio Nobel.

Sua intrusão espetaculosa no conflito causou irritação em Israel e em outros atores que, há anos, pelejam para ajeitar a situação. O Lula foi rapidamente instado a descer do imaginário pedestal e a dar-se conta de que sua intromissão não era bem-vinda. A contragosto, o folclórico personagem encolheu-se. Seu entourage engoliu a derrota mas guardou rancor.

Discussão 3Poucos anos mais tarde, em julho de 2014, uma exacerbação no contencioso médio-oriental deu motivo ao Planalto para exteriorizar o rancor refreado. Considerando que Israel usava força desproporcional na Faixa de Gaza, chamou para consultas o embaixador brasileiro em Tel Aviv. Na aveludada linguagem diplomática, isso significa forte desagrado.

Até lá, convenhamos, os acontecimentos eram banais. Não havia ofensa nem descompostura. Foi aí que, destemperado, o governo israelense tropeçou. Em declaração confiada ao porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, proclamou ao mundo que «This is an unfortunate demonstration of why Brazil, an economic and cultural giant, remains a diplomatic dwarf»esta infeliz demonstração dá a prova de que o Brasil, gigante econômico e cultural, permanece um anão diplomático. Ao insulto desnecessário, o porta-voz acrescentou, dias depois, zombaria ainda menos diplomática. Em entrevista à televisão, não hesitou em reforçar a humilhação que o Brasil acabara de sofrer na Copa do Mundo. Disse: «This is not football. In football, when a game ends in a draw, you think it is proportional, but when it finishes 7-1 it’s disproportionate»isto não é futebol. No futebol, quando um jogo termina empatado, o resultado é equilibrado, mas quando termina 7 x 1, é desproporcional.

A fala arrogante e prepotente foi mal recebida por Brasília. É compreensível. O homem, além de dar um tapa na cara, ainda cuspiu em cima. A formulação não ficou bem na boca de quem, dias antes, pretendia nos dar lições de diplomacia. Não é surpreendente que o Brasil tenha guardado sabor amargo.

A recusa do agrément ao novo embaixador proposto por Israel tem de ser analisada na sequência desse diferendo. Estivesse o horizonte desanuviado, ninguém se preocuparia com o fato de o diplomata ser militante e porta-estandarte de uma causa que o Brasil não apoia.

Dislike 2Mas o molho é ainda mais apimentado. Com a intenção de criar fato consumado, Tel Aviv mais uma vez fugiu aos códigos diplomáticos. Em vez de comunicar o nome do novo embaixador a Brasília em primeiro lugar, como manda o figurino, o governo israelense vazou a informação primeiro à imprensa. Foi a conta. O Planalto não estava preparado para nova humilhação.

Portanto, há que relativizar. O Lula trocou os pés pelas mãos, é indiscutível, mas não insultou. Já a reação do governo israelense agrediu e ofendeu. O que vemos hoje se inscreve na continuação daquele desagradável episódio.

Mas não há que botar mais gasolina na fogueira. A melhor resposta que Israel poderia dar seria deixar vago o posto de embaixador no Brasil por longos meses. Com isso, sem voltar a insultar, mostraria seu descontentamento. Passado algum tempo, quando a poeira tiver baixado, volta-se ao assunto.

De qualquer maneira, entre mortos e feridos, todos se salvarão. A meu ver, é muito discurso pra pouco defunto.

Um abraço cordial.

PS: Um artigo do Washington Post de 25 jul° 2014 dá uma panorâmica dos fatos. Está aqui.

Impávido colosso

José Horta Manzano

Meus distintos leitores já devem ter-se dado conta de que estou longe de admirar o desempenho de senhor Marco Aurélio «top-top» Garcia, aquele assessor atarraxado há uma eternidade ao Planalto. De fato, atribuo à má influência desse senhor muitos dos tropeções de nossa diplomacia e boa parte dos vexames internacionais que nos têm humilhado.

O governo israelense tratou um dia o Brasil de «anão diplomático». Se o fez, foi em virtude de nossa errática e inconsequente política externa, da qual «Top-top Garcia» é um dos principais mentores. A ofensa nos foi feita quando um Lula, inebriado pelo incenso dos cortesãos, tinha-se imaginado capaz de resolver, em três tempos, o conflito entre árabes e israelenses. Quanta pretensão…

Embaixador nos tempos de antigamente

Embaixador nos tempos de antigamente

Naquela época, não havia dúvida: o pronunciamento do porta-voz israelense, embora brutal, tinha fundamento. Era como quem advertisse: «Não se meta onde não foi chamado.»

Hoje a situação é outra. Como já comentei duas semanas atrás, Brasília se recusa a conceder o agrément ao novo embaixador designado por Israel. Traduzido da linguagem diplomática para o falar nosso de cada dia, isso quer dizer que o governo brasileiro não aceita aquele diplomata.

De fato, o nomeado é figura de proa do movimento que milita pela implantação maciça de israelenses em territórios ocupados. Como o Estado brasileiro não concorda com essa política do Estado israelense, a rejeição do novo embaixador exprime o desagrado. Como já disse, nossa reação é sensata e respeita os aveludados códigos diplomáticos.

Prédio que abriga a embaixada do Brasil em Tel Aviv

Prédio que abriga a embaixada do Brasil em Tel Aviv

Inconformado com a recusa, o governo israelense decidiu reagir. Segundo nos informa o jornal The Times of Israel, o embaixador enjeitado exige que seu governo dê resposta forte ao que considera uma afronta. A argumentação do diplomata é marota e faz lembrar o artifício habitual de nosso guia quando, na hora do aperto, distribui parte da culpa a outros.

O ex-futuro embaixador passa por cima do fato de ser ativo militante da ala dos favoráveis a novas implantações em terra alheia. Com falsa modéstia, dissolve sua responsabilidade entre todos os moradores das colônias da Cisjordânia ao perguntar se «as portas da diplomacia estariam fechadas a 700 mil israelenses».

O diplomata sabe perfeitamente que Brasília se recusa a aceitá-lo não porque ele habite aqui ou ali, mas por ser porta-bandeira assumido da política de implantações, julgada inaceitável pelo Estado brasileiro. Nem o Lula encontraria argumento mais manhoso. A tentativa de vitimização faz lembrar o “nós x eles” e os olhos azuis.

Tel Aviv

Tel Aviv

Na intenção de pressionar Brasília, o governo israelense já preveniu que a rejeição do embaixador trará graves consequências para as relações entre os dois Estados. Espero que o Planalto tenha a força de resistir e de se manter firme na decisão de não acolher o diplomata. Se se dobrarem à exigência de Israel, aí, sim, estarão comprovando que o Brasil não só é «anão diplomático», como também timorato e frouxo.

Interligne 18b

PS: Impávido, palavra de uso raríssimo, deriva do verbo latino paveo (=tremer de medo). A mesma raiz deu pavor, pavoroso, espavento, apavorar, espavorido & companhia. Portanto, impávido é aquele que não tem medo. Chegou a hora de mostrar ao mundo se o Brasil é impávido colosso ou anão frouxo.