José Horta Manzano
O Blog do Noblat, alojado no jornal O Globo, está promovendo uma pesquisa. Claro, é dessas enquetes de internet, sem garantia e sem valor científico. Assim mesmo, especialmente quando o resultado faz a balança pender implacavelmente para um dos lados, esse tipo de consulta dá conta do espírito reinante na população.
A pergunta é: «Que achou do funcionário do Itamaraty que trouxe para cá, à revelia do governo boliviano e também do nosso, o senador asilado na embaixada do Brasil em La Paz?». Além do incontornável «não tenho opinião», duas respostas são propostas: «Ele agiu bem diante do risco de o senador se matar» ou «Ele agiu mal porque não tinha autorização dos seus superiores».

Enquete ― Blog do Noblat
Jornal O Globo
Talvez eu seja um dos raros a pasmarem diante do resultado. Mais de 87% dos primeiros 672 a responder optaram pela primeira opção: aprovaram a ação do funcionário insubmisso. Embora não seja prova irrefutável, é boa indicação de que praticamente 9 em cada 10 brasileiros acham que o senhor Saboia agiu bem.
É surpreendente. Fica a desagradável impressão de que a esmagadora maioria de nossos concidadãos está de acordo com o princípio de que os fins justificam os meios. Dado que a liberação do senador deu certo, pensam quase todos, que se passe o apagador por cima dos meios. Está justificada a insubordinação do funcionário. É uma lógica perversa e muito perigosa.
A destituição do presidente Collor foi justamente consequência de um fato de mesma natureza. Logo nos primeiros dias de seu governo, para lograr debelar a monstruosa inflação, o presidente aprovou a confiscação da poupança da população brasileira. O princípio era o mesmo: com vistas a atingir um objetivo nobre, meios tortuosos podem ser utilizados. Deu no que deu. Ninguém jamais esqueceu nem perdoou. Não demorou muito, o homem foi despachado de volta para suas Alagoas.
Que não me entendam mal. Não estou aqui a defender a permanência do senador boliviano num cubículo da embaixada ad vitam æternam. Acho uma crueldade o que fizeram com ele. A vergonha de ter usado um ser humano como joguete de interesses politiqueiros recai sobre o governo brasileiro tanto quanto pesa sobre o governo boliviano. O problema não é esse.
O senhor Saboia, certamente um homem de bons sentimentos, um dia decidiu empregar-se como funcionário de carreira dos serviços diplomáticos brasileiros. O estatuto de funcionário tem suas regalias e suas contrariedades. Do lado bom, estão um emprego garantido, um plano de carreira, um salário confortável, apoio do Itamaraty para problemas do dia a dia tais como escola para as crianças, moradia e assemelhados. Do lado menos simpático, estão as obrigações de todo funcionário: cumprir horários, respeitar ordens da hierarquia, seguir a orientação dos superiores.
Não se pode ficar só com a parte boa e recusar o que estorva. Ninguém é obrigado a ser funcionário. Está ao alcance de qualquer um montar uma barraquinha e sair vendendo sanduíches naturais. O autônomo assume os riscos de seu negócio, mas tem a vantagem de organizar sua vida como bem entende. O mesmo não acontece com um funcionário. Não se pode ter tudo na vida.
Uma sociedade tem de ser enquadrada por regras. E regras existem para ser cumpridas. Fora desse esquema, grassa a anarquia. A ninguém é permitido fazer justiça com as próprias mãos. Foi onde o senhor Saboia deslizou.
Tivesse ele, ao término de sua cinematográfica fuga da Bolívia, entregue o senador às autoridades brasileiras e, imediatamente, apresentado sua demissão ao Itamaraty, eu poderia ainda concordar. O que não me parece certo é que esse senhor cometa um importante ato de insubordinação e ainda pretenda conservar seu emprego como se nada tivesse acontecido.

Homem-aranha
Digo mais uma vez, só para que fique bem claro. No meu entender, o governo brasileiro deveria ter pressionado o folclórico Evo desde o primeiro dia para que concedesse um salvo-conduto ao refugiado. O problema, assim, teria sido resolvido em poucos dias, o senador estaria vivendo feliz e contente em Pindorama. No entanto, o Planalto decidiu seguir caminho diferente.
Eu, pessoalmente, se tivesse vocação para homem-aranha, teria ido raptar o senador na Embajada del Brasil em La Paz e o teria levado para o Brasil. Eu poderia fazê-lo, porque não sou funcionário do Itamaraty, portanto, não estou sujeito à hierarquia interna da instituição. O senhor Saboia não tinha esse direito.
Já imaginaram se for permitido a cada funcionário passar por cima da disciplina e tomar as atitudes que lhe parecerem mais adequadas? Será a anarquia garantida.
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