Ho, ho, ho!

José Horta Manzano

Antes de se tornar frenesi comercial como conhecemos hoje, Natal já foi festa religiosa. Talvez os mais jovens não consigam dar-se conta disso.

Famílias reunidas – e com fome – iam à Missa do Galo, rito solene e demorado, que começava à meia-noite do 24 para o 25. Digo que iam com fome porque precisava estar em jejum pra receber a comunhão. O número de horas sem comer, que chegou a ser de 12 horas, foi-se afrouxando com o tempo. Depois da missa, ceia simples e levinha esperava em casa. A reunião familiar, de verdade, era para o almoço do dia 25.

É interessante saber também que, antes de ser comemoração religiosa, o fim de dezembro, período de solstício de inverno no hemisfério norte, era pontilhado por festas pagãs. O povo manifestava júbilo e alívio porque as longas noites iam começar a encurtar. A partir da época do Natal, os dias se alongam a olhos vistos. Dependendo da latitude, o período diurno vai mordiscando a noite e vai ganhando um, dois, quatro, cinco minutos por dia sobre o período de escuridão. O Natal anuncia a primavera e o renascimento.

A origem da figura do Papai Noel moderno é conhecida, mas não custa repetir. Até o começo do século XX, algumas regiões da Europa cultivavam a lenda do velhinho que vinha, na época do Natal, presentear as crianças bem-comportadas e castigar as que tivessem sido desobedientes.

Diferentemente do que ocorre hoje, presente de Natal não vinha automaticamente, não era uma evidência. Não bastava ser criança para merecer prêmio. Precisava ter-se comportado bem. Pequerruchos rebeldes arriscavam-se a levar umas chicotadas do velhinho. Era ensinamento útil. Inculcava, nos pequeninos, a noção de que não existe almoço grátis – para atingir um objetivo, há que se esforçar.

A imagem que hoje temos de Papai Noel nada mais é que fruto da imaginação de desenhistas americanos. Em 1921, por ocasião de uma campanha de propaganda encomendada pelos fabricantes de Coca-Cola, bolaram aquele velhinho gordo e sorridente, de bochechas rosadas, viajando num trenó puxado por renas. E dizendo “ho, ho, ho!”.

Na Holanda, identificavam o velhinho do Natal com São Nicolau e o chamavam Sinterklaas. Por influência de imigrantes holandeses, os americanos adotaram o nome depois de o terem anglicizado para Santa Claus. Nos EUA, esse é o nome de Papai Noel. Vai, aqui abaixo, uma pequena lista dos diferentes nomes que diferentes povos dão ao bom velhinho do “ho, ho, ho”.

Noël 8EUA:         Santa Claus      (São Nicolau)
França:      Père Noël        (Pai Natal)
Brasil:      Papai Noel       [francês traduzido pela metade]
Portugal:    Pai Natal
Rússia:      Санта Клаус      (Santa Claus)
Reino Unido: Father Christmas (Pai Natal)
Alemanha:    Weihnachtsmann   (Homem da noite de Natal)
Catalunha:   Pare Noel        (Pai Noel) [francês traduzido pela metade]
Dinamarca:   Julemanden       (Homem do Natal)
Lituânia:    Kalėdų senelis   (Vovô Natal)
Holanda:     Kerstman         (Homem do Natal)
Suécia:      Jultomten        (Gnomo de Natal ou Duende de Natal)
Bulgária:    Дядо Коледа      (Vovô Natal)
Noruega:     Julenissen       (Gnomozinho de Natal)
Romênia:     Moș Crăciun      (Antepassado do Natal)
Turquia:     Noel Baba        (Pai Noel) [francês traduzido pela metade]
Polônia:     Święty Mikołaj   (São Nicolau)

Publicado originalmente em 25 dez° 2014

Círculo Polar

José Horta Manzano

Nos últimos dias de junho, fomos castigados por uma onda de calor vinda direto do Saara. Aquela bola de fogo estacionou sobre a Europa central. Bem na época do solstício, em que os dias são mais longos, tivemos 8 dias de sufoco, sem vento, sem nuvens, com céu azul e sol brilhando das 5h da madrugada até as 9h30 da noite.

Nem no Piauí, nem no Ceará, nem no Tocantins faz calor assim. Duvida? Pois saiba que o Serviço Nacional de Meteorologia francês acaba de corrigir um dos dados publicados naqueles dias. O recorde de temperatura registrado no país não foi de 45,9°, mas exatamente de 46°. Quase cinquenta graus à sombra! Naturalmente, ninguém é obrigado a ficar à sombra.

Passados os primeiros dias de julho, acalmou. Não digo que esfriou, mas o tempo voltou ao habitual para esta época do ano. Quando todos já estavam guardando ventiladores e ventarolas no porão, catapum! Lá veio outra onda saariana. Começou anteontem e deve durar até sábado. De novo, noites mal dormidas, vegetação morrendo, racionamento de água, hospitais em alerta máximo. Em Paris, está previsto que o termômetro supere 40° hoje e amanhã. Em Genebra, 35°. Em vastas regiões da Alemanha, da Holanda e da Bélgica, 38°.

Escandinávia, 24 julho 2019
Temperaturas por volta do meio-dia

Até o extremo norte do continente está transpirando. Lá na Lapônia, no norte da nevosa Finlândia, pelas bandas onde Papai Noel vive, estão todos transpirando, inclusive as renas que servem ao bom velhinho. Coisa do outro mundo. Pra lá do Círculo Polar, a 70° de latitude, está fazendo hoje um calor de 29° ou 30°, fato jamais registrado. É a um pulinho do Polo Norte, minha gente! Muito impressionante.

Enquanto isso, com o planeta derretendo, o desmatamento da Amazônia come solto. E tudo segue tranquilo, sob a batuta de um Bolsonaro instalado em palácio, alheio ao que ocorre no mundo real, aplaudido e instigado pela corte de bajuladores.

Do jeito que vai, uma coisa parece certa: o presidente só tem alguma chance de ser reeleito se o adversário for um político identificado com o lulopetismo. Sempre que o planeta não se tenha incendiado daqui até lá, naturalmente.

Fim do voto eletrônico

José Horta Manzano

Dizem que o saco de Papai Noel anda meio vazio e que, este ano, muitos se deverão contentar com presente magro. Se presente houver. Bom, reconheçamos que todo ano dizem a mesma coisa. Assim mesmo, este Natal leva jeito de ser ainda menos folgado que os anteriores.

Papai Noel 4Na esfera pessoal, o que acabo de dizer é verdadeiro. No entanto, ainda que nem todos se deem conta, o bom velhinho já trouxe um presentão para o aperfeiçoamento da democracia brasileira: acabou-se o voto eletrônico! Não é esperança nem suposição: saiu no Diário Oficial de ontem. A maquineta de que meio mundo desconfia vai para o museu das antiguidades obsoletas. Fará companhia à palmatória, à galocha e ao toca-fitas.

De maneira sutil e elegante – atitude rara nestes tempos brutais – o abandono foi atribuído à falta de dinheiro. Tenho cá minhas dúvidas. Se as 400 mil urnas ainda tivessem de ser compradas, podia até ser. Mas elas já existem. Organizar a votação e a logística é gasto que terá de ser feito de qualquer maneira, seja o voto eletrônico ou tradicional.

Urna 9É permitido supor que o pessoal do andar de cima tem sentido a pressão da opinião pública. Anestesiada durante dez anos pela falácia de um governo que se autodefinia como «popular», a nação deu mostra de haver despertado. Começou, bruscamente, com os protestos de junho de 2013. Continuou com a monumental vaia à presidente no jogo de abertura da Copa. De lá pra cá, os escândalos do petrolão trouxeram a todos nós mais emoção que final de novela. Não passou uma semana sem revelação escabrosa. Coisa nunca antes vista nessepaiz.

Já disse e repito que nunca ouvi falar de país, além do nosso, que se valha unicamente do voto eletrônico – sem controle e sem comprovante – para eleger representantes. É, como se diz, uma ‘jabuticaba’, uma exclusividade nacional. Jabuticaba bichada.

Urna 5Se o voto tradicional, com cédula e urna transparente, for mantido nas eleições de 2018, pode o distinto leitor ter certeza: saberemos, finalmente, quem são os escolhidos pelo povo brasileiro. Dificilmente serão os mesmos que hoje lá estão. As dúvidas sobre a lisura do pleito desaparecerão.

Alegremo-nos, irmãos, com a melhor notícia do mês – verdadeiro presente de Natal adiantado!

Falam de nós – 14

0-Falam de nósJosé Horta Manzano

Fosse um furacão, não causaria tanto estupor. Fosse um “malfeito” qualquer, ninguém se espantaria. Fosse uma roubalheira a mais, todos dariam de ombros, resignados. Mas quando algum problema ronda as festas de Natal, aí a coisa pega.

Em todo o Velho Continente – especialmente na Europa central – festas de Natal são sagradas. Menos por religiosidade, mais por tradição. Três fatores contribuem para reforçar a importância simbólica dos festejos natalinos:

Interligne vertical 121. Coincidem com o fim do ano civil, época em que muitos fazem exame de consciência e formulam propósitos virtuosos para o período seguinte.

2. No Hemisfério Norte, coincidem com o solstício de inverno, o período do ano em que os dias são mais curtos. O Natal prenuncia o alongamento da luz diurna e o renascimento da natureza.

3. A importância das festas é amplificada pelo marketing onipresente, obra de industriais e comerciantes.

Portanto, todo problema que possa perturbar a alegria e a paz do período provoca comoção.

Papai Noel 2Existe, no Rio de Janeiro, uma escola de Papai Noel, você sabia? Pois eu não. Fiquei sabendo pela profusão de artigos alarmantes publicados estes dias na imprensa europeia.

A escola oferece curso de 40 dias a homens de mais de 50 anos, de preferência corpulentos. Este ano, o aumento do desemprego fez dobrar o número de candidatos. Para todos eles, é importante ser contratado para representar o bom velhinho. É bico importante pra diminuir o sufoco habitual.

A perspectiva de que a crise político-financeira que atinge o Brasil possa prejudicar as festas natalinas é descrita com acentos de incredulidade e compaixão pela mídia daqui. Vejam só:

Jornal 20 Minutes (Suíça)
«La crise touche même le Père Noël au Brésil»
«No Brasil, a crise atinge até Papai Noel»

Canal de tevê BFM TV (França)
«Le Père Noël bientôt au chômage au Brésil?»
«Dentro em breve, Papai Noel desempregado no Brasil?»

Papai Noel 3Jornal Le Figaro (França)
«Le Père Noël touché para le chômage au Brésil»
«Papai Noel afetado pelo desemprego no Brasil»

Revista L’Hebdo (Suíça)
«Les temps sont durs pour le Père Noël au Brésil»
«Tempos difíceis para o Papai Noel no Brasil»

Jornal 24 Heures (Suíça)
«La crise touche même le Père Noël au Brésil»
«No Brasil, a crise atinge até Papai Noel»

Jornal La Libre Belgique (Bélgica)
«Au Brésil, la crise économique n’épargnera pas le Père Noël»
«No Brasil, a crise econômica não poupará Papai Noel»

Papai Noel 4Jornal Le Dauphiné Libéré (França)
«La crise touche même le Père Noël au Brésil»
«No Brasil, a crise atinge até Papai Noel»

Portal informativo Romandie (Suíça)
«Les temps sont durs pour le Père Noël au Brésil»
«Tempos difíceis para o Papai Noel no Brasil»

Jornal Tribune de Genève (Suíça)
«La crise touche même le Père Noël au Brésil»
«No Brasil, a crise atinge até Papai Noel»

Ho, ho, ho!

José Horta Manzano

Antes de se tornar frenesi comercial como conhecemos hoje, Natal já foi festa religiosa. Talvez os mais jovens não consigam dar-se conta disso.

Noël 6Famílias reunidas – e com fome – iam à Missa do Galo, rito solene e demorado, que começava à meia-noite do 24 para o 25. Digo que iam com fome porque precisava estar em jejum pra receber a comunhão. O número de horas sem comer, que chegou a ser de 12 horas, foi-se afrouxando com o tempo. Depois da missa, ceia simples e levinha esperava em casa. A reunião familiar, de verdade, era para o almoço do dia 25.

É interessante saber também que, antes de ser comemoração religiosa, o fim de dezembro, período de solstício de inverno no hemisfério norte, era pontilhado por festas pagãs. O povo manifestava júbilo e alívio porque as longas noites iam começar a encurtar. A partir da época do Natal, os dias se alongam a olhos vistos. Dependendo da latitude, o período diurno vai mordiscando a noite e vai ganhando um, dois, quatro, cinco minutos por dia sobre o período de escuridão. O Natal anuncia a primavera e o renascimento.

A origem da figura do Papai Noel moderno é conhecida, mas não custa repetir. Até o começo do século XX, algumas regiões da Europa cultivavam a lenda do velhinho que vinha, na época do Natal, presentear as crianças bem-comportadas e castigar as que tivessem sido desobedientes.

Diferentemente do que ocorre hoje, presente de Natal não vinha automaticamente, não era uma evidência. Não bastava ser criança para merecer prêmio. Precisava, além disso, ter-se comportado bem. Pequerruchos rebeldes arriscavam-se a levar umas chicotadas do velhinho. Era, a meu ver, prática útil. Inculcava, nos pequeninos, a noção de que não existe almoço grátis – para atingir um objetivo, há que se esforçar.

Noël 7Não tem nada que ver com Natal, mas, como não sei ver defunto sem chorar, repito: os programas assistenciais implantados estes últimos anos no Brasil vão na contramão desse ensinamento básico. O sistema atual dá aos cidadãos a certeza de que é natural que Papai Noel distribua suas benesses sem pedir nenhum esforço em troca. É pena que crianças cresçam nessa ilusão, porque, na vida real, as coisas não funcionam exatamente assim.

A imagem que hoje temos de Papai Noel nada mais é que o fruto da imaginação de desenhistas americanos. Em 1921, por ocasião de uma campanha de propaganda encomendada pelos fabricantes de Coca-Cola, bolaram aquele velhinho gordo e sorridente, de bochechas rosadas, viajando num trenó puxado por renas. E dizendo “ho, ho, ho!”.

Os holandeses identificavam o velhinho do Natal com São Nicolau e o chamavam Sinterklaas. Por influência dos imigrantes batavos, os americanos adotaram o nome depois de o terem anglicizado para Santa Claus. Nos EUA, esse é o nome de Papai Noel. E, no resto do mundo, como fica? Que nome se dá ao bom velhinho do “ho, ho, ho”?

Noël 8EUA:         Santa Claus      (São Nicolau)
França:      Père Noël        (Pai Natal)
Brasil:      Papai Noel       [francês traduzido pela metade]
Portugal:    Pai Natal
Rússia:      Санта Клаус      (Santa Claus)
Reino Unido: Father Christmas (Pai Natal)
Alemanha:    Weihnachtsmann   (Homem da noite de Natal)
Catalunha:   Pare Noel        (Pai Noel) [francês traduzido pela metade]
Dinamarca:   Julemanden       (Homem do Natal)
Lituânia:    Kalėdų senelis   (Vovô Natal)
Holanda:     Kerstman         (Homem do Natal)
Suécia:      Jultomten        (Gnomo de Natal ou Duende de Natal)
Bulgária:    Дядо Коледа      (Vovô Natal)
Noruega:     Julenissen       (Gnomozinho de Natal)
Romênia:     Moș Crăciun      (Antepassado do Natal)
Turquia:     Noel Baba        (Pai Noel) [francês traduzido pela metade]
Polônia:     Święty Mikołaj   (São Nicolau)

O jogo e a paz

José Horta Manzano

Ingenuidade é característica da infância. É enternecedor ler cartinhas escritas por crianças e endereçadas ao Papai Noel. Cada época da vida tem seus atributos. E é muito bem que assim seja.

À medida que o tempo vai passando, os marcadores vão-se modificando. À pureza infantil, segue-se a rebeldia do adolescente, a sensação de onipotência do jovem adulto, o realismo próprio da maturidade.

Carta a Papai Noel

Carta a Papai Noel

Assim deveria ser. No entanto, como já dizia o outro, na prática, a teoria é outra. Não é raro que adultos já bem crescidinhos conservem traços infantis. Não é perigo tão grande: cada um tem suas idiossincrasias.

Bem mais grave é ver a casta dirigente de um país ―todos à beira de uma idade provecta ― ser regida por delírios infantis. É assombroso constatar que os que têm nas mãos as rédeas do País continuam acreditando na existência do bom velhinho, aquele que ri «ho, ho, ho».

Em 2004, na certeza de que seria bom para nosso País, nossos mandachuvas insistiram para que nos fosse garantida participação significativa na Minustah, força de intervenção da ONU destinada a fazer reinar a ordem no pobre e atormentado Haiti.

Os mandarins do Planalto, comandados à época por um enfatuado presidente, imaginaram que a situação se resolveria num piscar de olhos. Um jogo de futebol para encantar e uma tropazinha de algumas centenas de soldados para distribuir barrinhas de cereais entre os miseráveis deveriam bastar. Ademais, seria um passo de capital importância para a obtenção de cadeira cativa no Conselho de Segurança da ONU, neurose obsessivo-compulsiva do presidente de então.

As grandes potências, cujos dirigentes são menos deslumbrados, ficaram felizes em livrar-se do abacaxi. Aceitaram rapidinho.

Já vai para dez anos que isso se passou. O Haiti continua ocupando o pouco invejável lugar de país mais pobre das Américas. A calma por lá é só aparente ― todos sabem que terminará no exato instante em que as tropas de ocupação se retirarem. O Brasil continua tão distante da cobiçada cadeira cativa no Conselho de Segurança quanto estava em 2004.

A intervenção, que o Planalto acreditava ser coisa de poucos meses, não dá sinal de chegar ao fim. O erário ― cofre onde se guardam os impostos, diretos e indiretos, pagos por todos os habitantes do território nacional ― continua sendo sangrado. Não se sabe direito quantos bilhões a aventura terá custado até agora. De qualquer maneira, dar esmola com chapéu alheio não dói no bolso, não é mesmo?

Minustah Missão de estabilização no Haiti

Minustah
Missão de estabilização no Haiti

Reportagem da Folha de São Paulo esclarece que perto de 700 milhões de reais já foram gastos só com adicionais de soldo pagos aos militares estacionados lá. Só adicionais! Esse total, evidentemente, não inclui o montante gasto com transporte, armamentos, alimentação, logística, e tudo o mais que um deslocamento de tropa pode custar.

Resultado da façanha: gastamos rios de dinheiro e continuamos no ponto zero. Fica reforçada a impressão de nosso País vem sendo governado por cortesãos ingênuos e incapazes.

Interligne 37c


Interligne vertical 5Nota de pé de página:
Em 18 de agosto de 2004, realizou-se o «jogo da paz». O povão, naturalmente, foi escorraçado do estádio. De qualquer maneira, não teriam dinheiro para pagar a entrada. O Brasil ganhou por 6 a zero. Mas a paz não veio.

Intermediários inúteis

José Horta Manzano

Os religiosos diriam «aqui se faz, aqui se paga».

Espíritos mais científicos lembrariam que toda ação engendra reação oposta e de igual intensidade.

Franceses explicariam que não se pode, ao mesmo tempo, ter a manteiga e o dinheiro da manteiga.

Os antigos já sabiam que não se pode ter tudo na vida.Interligne 18b

Todos têm razão. Está aí, em versões variadas, um extrato da sabedoria que a humanidade vem destilando desde que Lucy desceu da árvore, 3 ou 4 milhões de anos atrás. Muita gente aprendeu a lição. Outros são mais recalcitrantes. As manifestações de ontem reforçam o que acabo de dizer.

Manifestantes do bem by Ricardo Ferraz

Manifestantes do bem
by Ricardo Ferraz

Nesta sexta feira logo de manhã, aqui na Europa, os jornais falados do rádio informaram que as manifestações da quinta-feira no Brasil não tinham tido o sucesso esperado por seus organizadores. Não chegaram a dizer que tinha sido um fiasco, mas não fez falta: todos entenderam.

A leitura dos principais jornais brasileiros me confirmou o que o rádio já tinha adiantado. Muita ameaça e pouco efeito. Cão que ladra não morde.

Na época em que um antigo operário de apelido Lula fazia discursos inflamados na porta das fábricas, as passeatas organizadas por sindicatos tinham conteúdo, eram credíveis. Embora não fosse exatamente seu objetivo, também contribuíram para enterrar o então já moribundo regime ditatorial.

O tempo passou e todos sabem o que aconteceu. Faz mais de dez anos que o sindicalista que eletrizava as massas foi elevado a importantes funções políticas. Para garantir apoio, distribuiu benesses àqueles cuja conivência lhe parecia essencial.

Grandes empresários e miseráveis deserdados (pobres, mas numerosos!) foram alvo preferencial. Aos grandes, generosidade e facilidades financeiras. À gente miúda, migalhas suficientes para garantir fidelidade na hora de depositarem voto na urna. Políticos e sindicatos foram cooptados com cargos e também com favores em espécie.

Milagres, ninguém faz. Para encher um pote, tem de esvaziar outro. Muito dinheiro foi necessário para sustentar esse modo estranho de fazer política. Para que um ganhe, é preciso que outro perca. E quem saiu perdendo foram os que não faziam parte das categorias acariciadas pelo governo: as classes médias e os trabalhadores, submetidos a impostos escorchantes.

Malabarismos de marketing e militantismo remunerado anestesiaram muita gente durante anos. Mas, como tudo o que é artificial, essas jogadas tinham prazo de validade. O prazo venceu e a mágica acabou. Deu no que deu: um pequeno e corriqueiro aumento no preço das passagens de ônibus foi o estopim para manifestações espontâneas às quais o País estava desabituado. E que ninguém esperava.

O susto tomou conta de muitas confrarias. Governo federal, Congresso, políticos vários e, naturalmente, centrais sindicais se sentiram incomodados.

Mas falemos dos sindicatos, que esse é o assunto do dia. Seus dirigentes, que vinham de anos e anos de inércia, sustentados no bem-bom por obesos favores oficiais, deram-se de repente conta de que haviam-se tornado inúteis.

Manifestantes do bem by Ricardo Ferraz

Manifestantes do bem
by Ricardo Ferraz

Pânico! Descobriram, de repente, que o bom jardineiro deve cuidar de suas plantas se quiser ter flores vistosas. Não tinham sido bons jardineiros. As flores haviam murchado. Abandonada à própria sorte, a tropa havia desertado para cantar em outra freguesia.

Para juntar meia dúzia de gatos pingados, os sindicatos se viram obrigados a recorrer a «manifestantes» remunerados. Um constrangimento. Pior: repórteres descobriram a tramoia. A Folha de São Paulo e o Estadão botaram a boca no trombone. Vexame total. O movimento sindical no Brasil perdeu sua razão de existir. Não conseguem sequer reunir seus integrantes para uma boa passeata. Os antigos aderentes, que bobos não são, já se deram conta de que há caminhos mais eficientes para reclamar.

Conformemo-nos, que a vida é assim mesmo. Não estamos todos no mesmo estágio de desenvolvimento intelectual. Se, por um lado, todos os humanos já se acostumaram a andar sobre duas patas, o desenvolvimento da inteligência não tem sido uniforme em todos os indivíduos.

Alguns ainda acreditam em Papai Noel. Mas estão caindo do cavalo ― ou do trenó, que fica mais natalino.

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«Povo não precisa de carro de som.»

Mayara Vivian, do Movimento Passe Livre

O desleixo

No Brasil, o desleixo é marca nacional. Poucos povos serão tão negligentes quanto o nosso. Para quem passou a vida em terras de Pindorama, o que digo pode parecer um exagero. No entanto, aqueles que tiveram ocasião de viver alguns anos fora do País hão de se dar conta da veracidade de minha afirmação.

O tristemente conhecido «jeitinho» brasileiro é caminho obrigatório para paliar consequências e efeitos colaterais do desmazelo nacional. Tem-se muitas vezes de apelar para soluções não convencionais ― às vezes até ilegais ― para compensar falhas de planejamento. Em resumo: aquele que tinha sido pago para planejar não fez sua parte direito; esse desleixo deu origem a um mau funcionamento da coisa planejada; o problema terá de ser resolvido, em caráter de urgência, por meio de um jeitinho qualquer.

Nosso País funciona à base de remendos. O descaso faz a vida parecer uma colcha de retalhos. Para dar um exemplo atual, todos sabemos que o País não tem infraestrutura decente para acolher Copas do Mundo. Mas todos ― a começar pelas autoridades maiores ― fecham um olho, fazem de conta que acreditam que tudo está em ordem, e vamos que vamos. Na última hora, se o milagre não acontecer, inventaremos um remendo, uma solução temporária.

Enquanto isso, o erário, fruto do trabalho suado dos brasileiros, continua sangrando. O que escapa ao assalto das quadrilhas de mandachuvas oficiais acaba escorrendo pelo ralo da incúria. Os remendos e os emplastros de última hora saem muito caro.

Qual é a solução? Só há um caminho: conscientizar a população para o problema. Para chegar lá, é preciso alargar a capacidade do povo de entender as falhas que se repetem cronicamente. Só a elevação do nível geral de instrução permitirá chegar lá.

É demorado? Um pouco, sim. Não se preenche em uma semana o vazio deixado pelo descaso de meio milênio. No entanto, vai bastar uma fagulha inicial, que terá de partir, necessariamente, da Autoridade central. Em seguida, acreditem: uma coisa puxa a outra. A universalização e, principalmente, a valorização do ensino tende a alargar as mentes. Profissões Pere Noeltécnicas, hoje desprezadas, também têm de ser valorizadas. Não há por que considerar que um artesão que trabalha com suas mãos vale menos que um intelectual que trabalha com seu cérebro.

No Brasil atual, o título parece ter mais importância que a formação do titulado. Qualquer dia lhes falo da formação profissional na Europa e na Suíça, em particular. Um povo pouco instruído tende a perpetuar esse secular desleixo. E, pior que isso, a porta continua escancarada para oportunistas de todo gênero: gurus, homens providenciais e autodeclarados salvadores da pátria.

Um povo pouco instruído vai continuar acreditando em Papai Noël. Combina com esta época do ano. No debería serlo, pero así nos están saliendo las cosas. Desgraciadamente.