socialista
De política e de pastel
José Horta Manzano
Estava lendo no Le Monde, diário francês de referência, artigo sobre nosso novo ministro da Fazenda. Bem-humorado, o articulista diz que o recém-empossado figurão foi campeão de remo na juventude, mas que por enquanto, no ministério… está remando.
Mas não é desse senhor que eu queria falar. De qualquer maneira, após tantos anos de gestão calamitosa e inconsequente, nem com varinha mágica seria possível consertar da noite pro dia. Quem estiver esperando que as coisas entrem logo nos eixos pode ir tirando o cavalo da chuva ‒ como dizem nossos amigos gaúchos.
Queria contar a vocês uma curiosidade. Cada um enxerga o mundo segundo os próprios parâmetros, é natural. Nos países europeus, parlamentos se dividem entre os eleitos de esquerda e os de direita. Até uma ou duas décadas atrás, o ideário de cada ala era bastante diferente.
Depois do desmanche do bloco socialista e da incontestável constatação de que o paraíso do proletariado não passava de lorota, as coisas começaram a mudar. A visão de mundo de esquerdistas e direitistas convergiu a ponto de ser hoje muito difícil apontar diferenças significativas. Cada uma das duas correntes de pensamento deu um passo em direção à outra.
Desencantados com experiências fracassadas, os socialistas (os «de esquerda») já não preconizam intervenção do Estado em todos os meandros da sociedade. Por seu lado, assustados com o liberalismo excessivo que levou ao baque econômico de 2008, os «de direita» já reconhecem a necessidade de uma certa dose de regulação por parte do Estado.
Falar em esquerda e direita faz menos sentido a cada dia que passa. Assim mesmo, clichês têm vida longa. Na Europa, jornalistas e analistas ainda fazem questão de colar uma etiqueta na testa de mandatários e de partidos. A força do hábito faz que apliquem automaticamente os mesmos parâmetros a políticos e à política de países longínquos.
O artigo que mencionei apresenta Madame Roussef como presidente «de esquerda». Na visão de um europeu, Evo da Bolívia, Maduro da Venezuela, os bondosos irmãos Castro de Cuba, Rafael Correa do Equador são classificados como políticos «de esquerda». Por seu lado, Michèle Bachelet do Chile, Mauricio Macri da Argentina, Horacio Cartes do Paraguai são «de direita».
Não compartilho dessa percepção. A linha divisória entre campos políticos na América Latina não passa entre esquerda e direita. Dizer que nossos mandachuvas se dividem entre sérios e populistas estaria mais próximo da verdade. Os europeus têm enorme dificuldade em se dar conta disso.
Os sérios podem ser partidários de maior ou menor intervenção do Estado ‒ não é essa a marca que os distingue dos outros. O mesmo vale para os populistas. A diferença mais marcante entre eles é que os sérios, que se tornaram mercadoria rara, vendem pastel com recheio. Já os populistas ‒ que, no Brasil, ocupam o topo da pirâmide há vários anos ‒ vendem pastel de vento.
Direito ou obrigação?
José Horta Manzano
Em meu artigo O voto e a roda, publicado no Correio Braziliense um ano atrás, dei a visão que tinha, àquela altura, sobre a questão de voto facultativo x voto obrigatório. Hoje volto ao assunto.
Na França, como na maior parte das democracias, o voto é um direito do cidadão. Como todo direito, seu exercício é facultativo: vota quem quer. Se assim não fosse, seria obrigação. Os dois conceitos são excludentes: se é direito, não é obrigação; se for obrigação, deixa de ser direito.
Acontece que a participação da população francesa decresce a cada escrutínio. Já está nas cercanias de 50%. Na prática, apenas a metade dos cidadãos exerce o direito de dar sua opinião na hora de escolher presidente, deputados, prefeitos. Muitos julgam negativo esse desinteresse popular.
Para remediar, entrou em pauta, estes dias, amplo debate sobre a matéria. Alguns acham oportuno acabar com o direito de votar, e torná-lo obrigação. Outros consideram que imposição do voto obrigatório desvirtuaria o princípio da democracia, onde cada um é livre de se exprimir – ou não.
Na França, qualquer fato político costuma assumir proporções gigantescas. Por um sim, por um não, figurões comparecem ao rádio e à tevê para dar opinião. Jornalistas, filósofos, sociólogos, atores, psicólogos, analistas, escritores, toda a nata da sociedade pensante espreme as meninges. Artigos inflamados e libelos pululam.
Como é de praxe, personalidades mais alinhadas com a esquerda veem com bons olhos a imposição do voto obrigatório. Mais Estado, mais obrigações, maior controle, mão firme e Big Brother em ação são traços distintivos do pensamento de socialistas, comunistas, trotskistas & afins.
Já os centristas e os que se afinam com a direita rejeitam a ideia. Menos Estado, maior liberdade individual, menos controle, menos imposições são características de liberais e de sociodemocratas.
Cada grupo tem seus argumentos. Todos devem ser ouvidos, pesados, avaliados. Há pontos positivos em ambas as visões.
O voto obrigatório tem a vantagem indiscutível de alcançar número maior de eleitores. Em princípio, o resultado reflete melhor a pluralidade nacional. No entanto, muitos dos eleitores votam sem ter percepção exata do alcance do ato que estão praticando. O resultado pode ser desastroso, como já provou, no Brasil, a eleição de palhaços, modistas, artistas, futebolistas e outras figuras que, embora ultraconhecidas, não estão aptas a fornecer o trabalho que delas se espera.
O voto facultativo elimina, em teoria, essa obra de “engraçadinhos” que, desinformados e desinteressados, se abalam até à secção eleitoral unicamente por origação. Mas o voto opcional também tem seu lado sombrio. Em países como o Brasil, onde persistem, no seio da população, tremendas diferenças de nível financeiro, basta oferecer transporte, sanduíche, boné e camiseta para mobilizar multidões – que seguirão, naturalmente, a orientação de voto que lhes tiver sido dada.
Atenção: isso vale para todos os candidatos – não só para os daquele partido em que, tenho certeza, o distinto leitor pensou. Afinal, não precisa assaltar nenhuma petroleira pra reunir dinheiro suficiente pra sanduíche e camiseta.
Isso dito, como é que ficamos? Há prós e contras nas duas visões.
No fundo, no fundo, talvez convenha aguardar tempos melhores. No dia em o nível civilizatório do povo brasileiro se tiver aperfeiçoado, na hora em que cada um tiver consciência plena das consequências de sua escolha, será chegado o momento de revogar a obrigatoriedade do voto. Até lá, ainda tem chão.
Medida interessante
José Horta Manzano
Apesar de se enquadrar perfeitamente no Zeitgeist — nos ventos que sopram atualmente sobre a humanidade — a consciência ecológica não traz no seu bojo todo o lastro necessário para assumir o comando de um país.
É importante estar consciente dos riscos que corremos. Perturbações climáticas, secas, enchentes, poluição das águas, desertificação, uso abusivo de pesticidas, alimentação animal inapropriada, o rosário de perigos é extenso. É função dos ecologistas alertar governos, autoridades e povo.
De fato, a cada ano que passa, pipocam novos partidos preocupados com a preservação da saúde do planeta e de seus habitantes. É preciso tomar consciência de que os recursos naturais são finitos, a contaminação da atmosfera está ocorrendo em ritmo acelerado, a desertificação ganha terreno em muitos cantos do globo.
Essas ideias, conquanto sejam essenciais para a conservação da vida, não constituem uma ideologia em si, uma linha de governo. Eis a razão pela qual as agrupações ecologistas — ou verdes, como são chamadas em certos lugares — são obrigadas a aliar-se a partidos politicamente fortes e bem implantados.
Na França e também no resto da Europa, os verdes tendem a aliar-se aos socialistas. Em princípio, poderiam optar por aproximar-se da direita. Nada impede que ainda venham a fazê-lo no futuro.
O peso do eleitorado verde ainda não conferiu aos movimentos ecologistas massa crítica suficiente para vencerem eleições majoritárias — a presidência da República, por exemplo. No entanto, os eleitores sensíveis a temas de proteção da natureza não deixam de formar uma minoria cada vez mais importante. Todos os governos fazem o possível para agradar esse grupo de cidadãos. Ou, pelo menos, para não os desgostar.
A medida foi decidida já faz alguns anos, mas só entra em vigor agora. A partir deste primeiro de outubro, as empresas de transporte francesas estão obrigadas a informar ao viajante a «empreinte carbone» correspondente ao percurso.
Francês inventa palavra para tudo. Às vezes fica difícil traduzir. Eu sugeriria «rastro de carbono», ou seja, a quantidade teórica de carbono que o viajante «despejará» na atmosfera em razão daquele percurso. Conto-lhes o exemplo dado hoje pela Rádio France-info, aquela que dá notícias 24h por dia, uma espécie de CBN francesa. Antes mesmo de comprar sua passagem, o viajante poderá tomar conhecimento da quantidade de CO2 que será lançada na atmosfera. Para uma viagem de trem de Paris a Berlim, uma pessoa despeja 12kg de carbono na atmosfera. Se percorrer o mesmo trecho de avião, rejeitará 121kg. Se preferir ir de automóvel, serão 145kg.
Essa informação constará obrigatoriamente no site da empresa transportadora e também no bilhete de passagem. Parece-me uma excelente iniciativa. Não faz mal a ninguém e vai incitando as novas gerações a entender que a natureza é frágil.
Quem cuida, tem. Se não cuidarmos, vamos legar a nossos descendentes um mundo em estado calamitoso.