O Google mostra o caminho

José Horta Manzano

Este blogue está no ar há dez anos e conta com um acervo de quase 5.500 posts. Há de tudo aqui dentro. Em maioria, são artigos meus, mas há também textos alheios, máximas latinas, provérbios, desenhos de humor, reproduções de pinturas.

Durante os primeiros seis anos, dei muita pancada em Lula, Dilma e no lulopetismo. Eram os tempos do petrolão e das passeatas multitudinárias do “Fora, Dilma!”. Me parecia que, em matéria de dirigentes incapazes, o Brasil se tinha precipitado no fundo do poço. Achei que mais não era possível. Engano meu.

Foi-se o petismo, entrou em cena um cafajeste que prometeu mudança e acabou seguindo a mesma trilha dos anteriores, em versão piorada. À incapacidade dos anteriores, acrescentou a violência. À ignorância dos anteriores, acrescentou a demolição da cultura. Ao iletrismo dos anteriores, acrescentou o negacionismo da ciência. Seu governo foi esse horror que estamos cansados de saber.

A plataforma WordPress, que hospeda este blogue, oferece informações interessantes. Posso saber, por exemplo, quantas visitas cada post recebeu a cada dia. Certos textos, escritos muitos anos atrás, costumam receber visitas o tempo todo. São uns 20 ou 30 que entraram para a categoria dos “most viewed” – os mais procurados. Não passa um dia sem que cheguem visitantes por ali. Esses posts, eu sei quais são.

O que tenho notado estes dias é que outros artigos, que foram lidos à época em que foram publicados e depois caíram no esquecimento, estão sendo obrigados a varrer a sala às pressas e tirar as teias de aranha porque há uma fila de visitantes novos a cada dia.

São textos que respondem às palavras-chave que os brasileiros devem estar lançando no Google estes dias. Não sei quais são esses termos de busca, mas suponho que sejam algo como: “Lula, Nicarágua” ou “Bolsonaro, fome” ou “Lula, corrupção” ou “Bolsonaro, corrupção”. E por aí vai.

Fico orgulhoso de que minhas opiniões possam servir para orientar quem está se sentindo um pouco fora de eixo. Quem procurar artigos que desancam o Lula, vai encontrar. Quem preferir artigos que surram o Bolsonaro, também vai encontrar. Podem vir, que tem pra todos. Este espaço é eclético.

A fome no mundo

José Horta Manzano

A agência de notícias EFE informa que o Brasil está exercendo a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU durante o mês de julho.

Ao assumir o encargo, Senhor Ronaldo Costa F°, nosso representante permanente junto à ONU, assegurou que “o Brasil vai promover a segurança alimentar que está em fase crítica em razão da guerra na Ucrânia”.

Nós todos aplaudimos de pé – quem não aplaudiria? Dá tristeza pensar nos milhões e milhões de humanos que logo logo vão começar a passar fome. São populações pobres da África e do Oriente Médio, cujo alimento básico é o pão, feito com trigo ucraniano.

Ao ler a notícia, pensei também nos 33 milhões de brasileiros que passam fome habitualmente, com guerra ou sem ela. O governo, que orienta seu representante a fazer declarações humanitárias na ONU, é o mesmo que despreza os famintos nacionais, porque são pretos, índios, pobres.

O Brasil vai “promover” a segurança alimentar no planeta. Eu me pergunto qual é o significado do verbo promover nessa frase. Vai despachar navios carregados de mandioca e milho para os famintos do mundo? Vai mandar uns trocados para assistir a esses infelizes? Ou vai ficar no discurso  estéril, só pra inglês ver?

A hipocrisia não tem limites.

Povo com fome

José Horta Manzano

Enquanto o capitão passeia de jet ski e de motocicleta, o mundo observa o drama deste país em que boa parte da população passa fome.

Acredito que o distinto leitor nunca tenha passado por esse tipo de aperto, de não ter o que pôr no prato. Ou de não saber se vai poder comer amanhã. É muito difícil imaginar.

O grau de civilização de uma sociedade se mede pelo cuidado que ela dedica a seus membros mais frágeis. Analisado por esse prisma, nosso país ainda está a anos-luz do objetivo.

Enquanto isso, o capitão passeia de jet ski.

A Amazônia Legal, que representa 60% do território nacional, tem zonas imensas onde o Brasil não chega. São regiões onde a lei não vigora, e manda quem tem garrucha e pontaria. A situação não é nova, mas o problema se agravou exponencialmente na era bolsonárica.

Enquanto isso, o capitão passeia de jet ski.

Cidades importantes, como o Rio de Janeiro, também comportam zonas onde a lei não vigora, e manda o mais forte. É o reino da bandidagem.

Enquanto isso, o capitão passeia de jet ski.

A fila do Auxílio Brasil (novo nome da Bolsa Família) aumentou. É fato inacreditável e sem sentido. Em programas desse tipo, o que se espera é que haja cada vez menos clientes e que a fila encolha, não que se alongue. O foco do governo tinha de estar dirigido para resolver essa disfunção.

Mas o capitão não tem apetência para acudir aos infelizes que sofrem. Prefere passear de jet ski. E, pra espairecer, organizar uma motociata.

Visto do Vietnã

Explosão da fome que atinge 33 milhões de brasileiros
Le Courrier du Vietnam, 10 junho 2022

 

José Horta Manzano


Notícia boa interessa pouca gente. É por isso que às vezes demora a chegar.

Notícia ruim atrai a atenção e chega rápido feito corisco.


Você conhece o Vietnã? Sabe apontar o país num mapa? Não é fácil. Fica lá na Cochinchina. Pensa que é brincadeira minha? Não é. Parte dos contornos do Vietnã atual coincidem com a costa que os navegadores portugueses visitaram 500 anos atrás e chamaram Cochinchina.

A linguagem popular costuma dizer “Conchinchina”, acrescentando um N que não aparece no original. Esse N sobra. É Cochinchina mesmo.

A origem do nome é curiosa. É obra dos navegantes portugueses. Quando aportaram naquelas costas, já fazia anos que tinham aberto um posto de comércio no litoral da Índia, junto à cidade de Cochim (Kochi em inglês). Não se sabe por que razão, chamaram a nova terra também Cochim. Para diferenciar as duas Cochins, esta ficou Cochinchina (= Cochim da China).

Com o declínio do poderio português, a região passou a ser cobiçada por outras potências europeias. A partir da metade do século 19, caiu aos poucos na órbita da França e e acabou tornando-se colônia. Conservou esse estatuto até 1954, quando, depois de 8 anos de guerra sangrenta, os vietnamitas conseguiram expulsar os colonizadores.

Os franceses se foram, mas a língua ficou. Cada vez perdendo mais terreno em relação ao inglês, é verdade, mas resistindo até hoje. Nas escolas do país, o francês ainda é ensinado como segunda língua.

Pois é. Nós não sabemos grande coisa sobre o Vietnã. Mas eles estão informados sobre as mazelas de nosso país, aquelas desgraças que nos incomodam mas que insistimos em negar.

A edição de ontem do Courrier du Vietnam, jornal online vietnamita redigido em francês, traz longo artigo sobre a “explosão de fome que atinge 33 milhões de brasileiros”. Até vietnamita se espanta com nossa assustadora realidade; só brasileiro é que ouve uma barbaridade dessas e continua seu caminho achando que é normal.

Minha gente, é o seguinte: são 15% dos conterrâneos passando fome. É um em cada sete. Da próxima vez que passar por uma rua movimentada, experimente contar. Deixe passar 6 indivíduos. No sétimo, anote: este aqui não tem comida suficiente. Faça esse exerciciozinho durante cinco minutos.

Aí você vai entender a extensão do drama. É de dar vertigem. É muita gente. Gente como nós, mas que sofre as consequências de um pecado original: nascer pobre num país onde a desigualdade social não incomoda ninguém.

Enquanto isso, o capitão passeia de motocicleta ou de jet ski para encanto dos devotos, o Lula dá festa de casamento com banquete para uma multidão de adoradores, parlamentares passam a mão no nosso dinheiro, servido sob forma de orçamento secreto.

Bolsonaro já está em fim de mandato e lega um país mais faminto do que encontrou ao assumir. O Lula e seus aliados estiveram 13 anos no poder e deixaram tudo do jeitinho que tinham encontrado. Os parlamentares estão há décadas se locupletando, indiferentes ao drama maior.

Mas deixe estar. As eleições vêm aí. Sabem como vai ficar depois de novembro? Vai mudar tudo!

1) O capitão vai se aposentar e ficar ruminando vingança, balançando numa rede, em regime de picanha macia.

2) O Lula, cercado de bajuladores, vai voltar a se esbaldar com o luxo e as benesses do poder, que é o que mais lhe interessa no Planalto.

3) Os parlamentares, cujo apetite é insaciável, continuarão arrancando significativos nacos do tesouro público. Afinal, são profissionais.

E o país vai continuar empacado.

A Coreia e a vacina

by Stéphane ‘Kadran’ Maignan, desenhista francês

José Horta Manzano

Assim que a pandemia de covid começou a se alastrar, Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte, tomou decisão drástica: mandou fechar as fronteiras. Fechar as fronteiras é redundância de expressão, que o país já vive trancado feito cofre-forte.

A linha de demarcação entre as Coreias do Norte e do Sul é uma das zonas mais vigiadas do planeta, permanentemente fechada e impermeável. Quanto às demais fronteiras, somente uma ponte comunica o país com a Rússia e outra, com a China. O resto dos limites está em regiões montanhosas e pouco habitadas.

Em cumprimento da ordem, as fronteiras foram fechadas. E nada mais passou: nem vírus, nem gente, nem mercadorias. Desde que a vacina ficou pronta, a Rússia ofereceu o imunizante, em diferentes ocasiões, à Coreia do Norte. A oferta foi sempre recusada. (Essa recusa faz lembrar a atitude de nosso capitão, pois não?) Paranoico como todo autocrata, o coreano Kim (que morre de medo de ser envenenado) não quis nem ouvir falar.

Só que tem um problema. A Coreia do Norte está longe de ser autossuficiente em alimentos. Não sobrevive sem os víveres que compra no exterior, principalmente na vizinha China. Sem serem repostos, por causa do fechamento das fronteiras, os estoques estão minguando e a penúria alimentar ameaça se instalar.

Descomplexado, o ditador já mandou alertar a população que vá se preparando, porque tempos difíceis vêm aí. Na verdade, tudo indica que o país está prestes a atravessar um estado de fome igual ao dos anos 1990. Naquele período terrível, calcula-se que até 3,5 milhões de coreanos tenham morrido de fome. Isso equivale a 15% da população do país à época. É como se, de repente, a desnutrição levasse 30 milhões de brasileiros.

Os russos continuam insistindo na oferta de vacinas, mas o governo norte-coreano não quer saber. Prefere deixar morrer uma parte da população, mas recusa-se a dar o braço a torcer e a confessar que precisa de ajuda estrangeira.

A visão que o ditador Kim tem do próprio povo é semelhante à de nosso capitão. Para ambos, o povo é uma simples variável de ajuste. Se morrerem alguns milhões, não faz diferença para eles. Ambos rejeitam a imunização da população. As razões de cada um podem ser diferentes, mas o resultado é o mesmo.

No Brasil, temos sorte de nosso regime “aproveitadorial” não ter (ainda) virado ditatorial. Os aproveitadores de sempre continuam aproveitando para sugar impunemente o fruto do trabalho de todos. O caso norte-coreano deveria nos servir de exemplo do que pode acontecer a um povo entregue nas mãos de um psicopata.

Brazilian lives matter

VIDAS BRASILEIRAS CONTAM

 

José Horta Manzano

Quando se fala em populações que passam fome, nós, os bem alimentados, costumamos imaginar que isso só ocorre em terras distantes – Etiópia, Sudão do Sul, Eritreia – lugares que a gente só conhece de ver no mapa.

Temos dificuldade em admitir que nosso país abriga legiões de malnutridos. Não estou a falar dos que sofrem as consequências de eventual catástrofe; falo dos famintos crônicos, pessoas com quem cruzamos na rua, que vivem nas mesmas cidades que nós, gente que carrega uma chaga invisível que temos grande dificuldade em reconhecer. São um mundaréu de gente que ninguém vê.

Ainda que pareça exagero, a verdade é que o Brasil é um país onde a fome é crônica. Sempre foi assim, e continua. Os dirigentes lulopetistas, mais preocupados em meter a mão nos cofres da República, demoraram mais de 13 anos no andar de cima, mas não resolveram o problema. Bolsonaro, mais preocupado em comprar apoio (com nosso dinheiro) para perpetuar-se no poder e assim escapar de futuros processos, não está nem aí para o drama dos que têm fome dia após dia. A pandemia, por seu lado, só fez piorar o quadro.

Nós nos recusamos a enxergar, mas os estrangeiros veem. A artista americana Beyoncé acaba de lançar uma campanha de assistência às famílias brasileiras que passam fome. Dá muita vergonha ver nosso país na situação dos que têm de estender a mão pra poder sobreviver. Exatamente como os paupérrimos Sudão e Eritreia – é assim que somos vistos.

No entanto, dinheiro há. O que não há (nem nunca houve) é o desejo sincero de resolver o problema da pobreza no Brasil. Se outros países que já foram pobres lograram eliminar a miséria, por que não conseguimos nós?

Em 1970, nosso PIB per capita era de US$ 450, ou seja, 60% maior que o da pobre Coreia do Sul, com seus US$ 280. Passaram-se 50 anos. O Brasil descobriu petróleo, se livrou do regime militar, mandou até um astronauta passear (de carona) no espaço. A população mais que dobrou de tamanho. E o país não deslanchou. Em 2018, nosso PIB per capita foi de US$ 9.080. Por seu lado, com investimento maciço na Instrução Pública, a Coreia conseguiu, no mesmo ano, um PIB de US$ 32.730, ou seja, quase 4 vezes o do Brasil.

Faço votos para que a campanha de dona Beyoncé traga algum alívio às barrigas que roncam em nossa terra porque, se depender de nossos eleitos, vão continuar roncando.

Bolsonaro e a fome

José Horta Manzano

Parece que faz uma eternidade, mas foi em julho do ano passado, não mais que nove meses atrás. A história se passou durante um café da manhã que doutor Bolsonaro ofereceu a jornalistas da imprensa internacional. Naquele tempo, o presidente ainda convidava jornalistas para encontro face a face e ainda se dignava de responder às perguntas.

Quando um dos profissionais levantou o problema da pobreza e da fome no país, o doutor respondeu de bate-pronto: «Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira!» E ensinou que não precisa nem de dados estatísticos; basta prestar atenção no fato de não se ver «gente pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países por aí pelo mundo».

Duzentos e sessenta dias e uma pandemia depois, muita coisa mudou. Já faz tempo que o doutor deixou de receber jornalistas sérios. Se já não lhe agradava ter de responder a perguntas, hoje agrada ainda menos. De lá pra cá, a pandemia pegou forte, ministros caíram, Trump se foi, o Exército está se esquivando das locuras federais, a aposta no Centrão está se revelando um furo n’água.

Faz alguns dias, o Instituto PoderData publicou pesquisa feita em mais de 500 municípios de todas as unidades federativas. O que se buscava saber era como a pandemia tinha afetado a alimentação dos brasileiros. O resultado é triste de fazer dó.

Adicionando os que têm comido menos que de costume e os que têm passado fome, chega-se a assustadores 36%. Isso significa que 1 em cada 3 brasileiros estão em situação crônica de insegurança alimentar. Com ou sem pandemia. Um em cada três cidadãos!

Pra se dar conta do mundaréu de gente que isso significa, o distinto leitor está convidado a passear a pé pelo centro de sua cidade. Vá andando e observando os que vêm em sentido contrário. E vá contando: ‘este não, este não, este sim. (O sim corresponde aos que estão na corda bamba, sem dinheiro suficiente pra matar a fome hoje.) Pode continuar: ‘este não, este não, este sim, ‘este não, este não, este sim, ‘este não, este não, este sim. Não é angustiante?

Isso significa que nosso doutor chegou ao mais alto encargo da República sem ter noção do mal maior que aflige o povo que o elegeu. Como ele é meio duro de cabeça, é bem capaz de não ter aprendido até hoje, passados dois anos. Pra dizer a verdade, a vidinha do brasileiro comum não parece fazer parte das preocupações maiores do doutor. Se ele tivesse disposição de cuidar dos que o puseram lá, sua atitude com relação à pandemia teria sido diferente.

Dificilmente quem está lendo este artigo tem ideia do que seja ir pr’a cama com fome. Tirando aquele dia em que o jantar queimou e a pizzaria estava em reforma, nenhum de nós sabe o que significa ter fome crônica, não ter comida suficiente para alimentar a família, ter de pôr as crianças pra dormir com a barriga roncando.

O Lula, sim, sabia o que é passar fome. Quando no governo, criou um arremedo de solução que lhe foi assaz benéfica em termos eleitorais. No entanto, não pôs fim à insegurança alimentar no país. Mitigou o problema, reelegeu-se, fez a sucessora, ficaram 14 anos no poder, mas o problema da fome continua inteiro, exatamente como era antes.

Já Bolsonaro, com o negacionismo que é característica incrustada de sua personalidade, nega tudo o que não lhe convém. Assim como nega hoje a pandemia, negou e continuará negando a fome crônica do brasileiro pobre. Se o problema, para ele, não existe, não há razão para se preocupar com essas miudezas.

Pode ser que, quando Bolsonaro tiver sido condenado pelo Tribunal Penal Internacional e estiver encarcerado na Holanda, esqueçam um dia de levar-lhe a quentinha. Talvez lhe acuda então à memória o que afirmou aos jornalistas naquele longínquo café da manhã. Ou talvez não queira se lembrar.

Presidente espada em punho

José Horta Manzano

Na manhã de sexta-feira passada, doutor Bolsonaro mandou arrumar a mesa com cuidado evitando expor latinha de leite condensado. Preparou-se pra tomar café em companhia de jornalistas estrangeiros.

Ele teria preferido que os convidados lhe fizessem perguntas amenas sobre o sol de Copacabana, a última vitória do Palmeiras, o turismo no Pantanal, a esperança de ratificação-relâmpago do acordo comercial Mercosul-UE. Mas… que remédio? Por dever de ofício, jornalista é formatado a ser inconveniente. Os estrangeiros principalmente. As perguntas pisaram os calos presidenciais. Direto, com força e com vontade.

Bolsonaro diz que desmatamento da Amazônia é mentira
BBC, Reino Unido

Os questionamentos giraram em torno do desmatamento que governo nenhum, inclusive o de doutor Bolsonaro, conseguiu conter até hoje. Há que frisar que o fato é incompreensível para cidadãos de países mais avançados. Como é que pode? – se interrogam eles. O governo central do país não tem força pra impor lei e diretivas em todos os pontos do território nacional?

Para Bolsonaro, o desmatamento da Amazônia é ‘fake news’
AGC News, Itália

Perguntaram também sobre os bolsões de pobreza, borrões que arruínam qualquer quadro geral de prosperidade que se queira mostrar. O contingente de população que depende da bolsa família é prova escancarada da evidente pobreza de um naco enorme de brasileiros. Para quem vive num país mais adiantado, é um mistério que os impostos coletados dos abastados não seja suficiente pra alavancar a ascensão social dos desfavorecidos. Onde vai parar essa dinheirama? Em que finalidade é gasto?

Esses dois pontos são básicos. Quer o presidente aprecie, quer não, voltarão sempre à mesa. Pode ser café da manhã, almoço, jantar ou até entrevista nos jardins da Casa Branca. Jornalistas do Primeiro Mundo vão continuar a pedir explicações sobre o que não conseguem entender. Não é pra encher o picuá. É porque não conseguem entender que, entra governo, sai governo, e as coisas não mudam.

A Amazônia é do Brasil, não de vocês! – diz Bolsonaro aos europeus.
Bloomberg, EUA

Doutor Bolsonaro tem as certezas só permitidas aos ignorantes. Incapaz de interpretar as razões da inquietação dos estrangeiros, toma as perguntas por ofensa grave. Logo desembainha a espada e põe-se a defender a pátria de uma agressão que só existe em sua imaginação. «A Amazônia é nossa e não cabe a ninguém nos ensinar como cuidar dela» – é o mantra rebatido nessas ocasiões. O caminho não é esse. Negar a realidade não a faz desaparecer.

Somos todos cidadãos do mesmo planeta. O bom senso ensina que é como se fôssemos viajantes de um mesmo barco. Ninguém quer ver o barco afundar. Ninguém quer ver a comida acabar. Ninguém quer sofrer incêndio a bordo. Ninguém quer que o ar condicionado enguice. Ninguém quer enfrentar tempestade.

Apesar das afirmações de Bolsonaro, a Amazônia pertence a todos
Taipei Times, Taiwan (Formosa)

A Amazônia está sob nossa guarda, mas a saúde do planeta depende da saúde da floresta equatorial. O clima mundial já não anda lá essas coisas. O avanço do desflorestamento nas regiões equatoriais só pode piorar uma situação já fragilizada. Vem daí a preocupação dos estrangeiros. Pouca diferença faz que doutor Bolsonaro os receba com aparato ou com leite condensado no pão. Enquanto os grandes problemas brasileiros persistirem, todos continuarão a se perguntar por quê. Menos acanhados, jornalistas estrangeiros continuarão ousando perguntar em voz alta.

A dura semeadura

José Horta Manzano

Em artigo publicado esta semana, o diário espanhol El Pais deu conta do terrível calvário que o povo venezuelano está sofrendo em decorrência da corrupção generalizada que assola o país. A situação é inimaginável. A vida de nossos infelizes vizinhos do norte se está dissolvendo numa implacável geleia geral.

Um caminhão que percorre os 800km que vão de Táchira a Caracas com uma carga de 3000kg de bananas chega ao destino com 300kg a menos. É a regra e já faz parte da rotina. Postos de polícia cobram «pedágio» de todos os caminhões que trafegam. Todos têm de pagar o dízimo.

Um mês atrás, produtores de queijo do Estado de Apure passaram duas noites num cárcere por se terem recusado a entregar dez por cento da carga que levavam. O confisco generalizado conta com o apoio de policiais e de prefeitos municipais, todos alinhados com o tiranete Maduro. A mercadoria sequestrada será vendida no mercado negro a peso de ouro.

by Darío Castillejos, desenhista mexicano

A situação, grave e revoltante, desanima os agricultores. Os que costumavam cultivar para vender desistem e acabam plantando para sobreviver. A produção encolhe a olhos vistos. Faltam sementes. Faltam insumos. O assalto generalizado gera escassez e provoca violenta subida dos preços, alimentando a já descontrolada inflação.

Quinze anos atrás, a produção agrícola da Venezuela cobria 70% das necessidades da população. Em 2017, a produção nacional mal deu pra suprir 25% do consumo.

A vida no Brasil, ainda que nos pareça dura, é verdadeiro paraíso aos olhos de um venezuelano. Nossa corrupção, que corrói o fruto do trabalho de todos, é menos visível. Na Venezuela, esse tipo de criminalidade é escancarado, onipresente. O baque é mais violento. Como se sabe, violência gera violência, num círculo infernal.

Os infelizes vizinhos que fogem do país para refugiar-se em Roraima têm fome. Por maiores que sejam nossos problemas, passar fome, para nós outros, é inconcebível.

Quando se assiste a esse drama, dá um tremendo alívio. Se não tivéssemos afastado do governo o lulopetismo ‒ cujo chefe chegou a dizer um dia que «a Venezuela tem democracia em excesso» ‒, poderíamos estar na mesma situação.

Escapamos! Deus é brasileiro.

Tomataço

José Horta Manzano

Uma coisa que me revolta é desperdício de comida. Quando de recente visita que doutor Gilmar Mendes, ministro do STF, fez a São Paulo, um grupo de manifestantes se valeu da ocasião para demonstrar desagrado com determinadas decisões do magistrado. Para isso, não encontraram melhor maneira que lançar tomates em frente ao edifício onde se encontrava o referido doutor.

Num país onde parte significativa da população ainda depende de uns caraminguás da bolsa família para sobreviver, a iniciativa é mais que escandalosa: é indecente. Jogar comida fora quando tem gente passando necessidade? É surreal.

Na China e em outras regiões do mundo que trazem na memória coletiva o terrível espectro de séculos de fome e privações, jamais viria à mente de um cidadão desperdiçar alimento. Seria ato impensável, de uma estupidez inimaginável. Por que razão isso não deixa ninguém indignado no Brasil?

Chamada Estadão, 9 out° 2017

Mesmo se fôssemos ricos ‒ o que está muito longe de acontecer ‒ já seria irrespeitoso. Quando se sabe que, a algumas centenas de metros do local do «tomataço», famílias vegetam debaixo de viadutos, abrigadas por pranchas de papelão e cobertores ralos, é incompreensível.

Ainda que o magistrado fosse o único culpado pela miséria nacional ‒ o que não é verdade ‒ o desbaratamento de gêneros alimentícios não se justificaria.

É questão de coerência e de bom senso. Que se manifestem com bandeiras, cartazes, passeatas. Que gritem palavras de ordem, que berrem ao megafone. Que se unam em «tuitaço» de repúdio. Que organizem petição de reclamação. Há mil maneiras civilizadas de protestar. Desperdiçar comida num país como o nosso? É pecado mortal. Não tem alcance e só serve pra dar trabalho extra a mal pagos garis.

Nota
Não sou advogado do magistrado. Aliás, estou frequentemente em desacordo com posições dele. Nem por isso acho correto atirar-lhe tomates, ovos ou qualquer outro tipo de comida.

O distinto leitor há de se lembrar do dia em que, diante das câmeras do mundo inteiro, um manifestante atirou um maço de cédulas falsas sobre o então presidente da Fifa. Achei fantástico. Aquela chuva de «dinheiro» doeu mais que uma tomatada. E fez efeito: pouco tempo depois, o dirigente pediu as contas.

A fome ‒ fruto da imprevidência

José Horta Manzano

Dia 8 de agosto, os chanceleres do Brasil e de mais dezesseis países americanos ‒ do Canadá à Argentina ‒ reuniram-se em Lima (Peru) para avaliar a situação da Venezuela, país à beira da insurreição.

Diferentemente do que acontece nas festivas reuniões de G7, G20 & congêneres, a foto de família mostra caras sisudas, expressões fechadas. Não fosse a roupa vermelha de uma das participantes, daria até para imaginar que o orador estivesse pronunciando o elogio fúnebre de algum figurão. Infelizmente, não se chora o falecimento de um cidadão, mas a morte de um país inteiro. Dá muita pena.

Declaração de Lima, agosto 2017
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Diferentemente dos emirados do Golfo Pérsico, cuja única riqueza ‒ o petróleo ‒ jaz debaixo de solo arenoso e estéril, a Venezuela tem múltiplos trunfos. Debaixo dos pés, está a maior reserva de petróleo conhecida no planeta, mais importante que a da Arábia Saudita. Já no lugar da areia infértil dos desertos médio-orientais, está a exuberância da flora e da fauna equatoriais. Vegetação, terra boa, chuva, sol o ano todo, superfície equivalente a três Itálias, população razoável de 30 milhões de viventes deveriam ter produzido uma potência tropical.

No entanto, a abundância de petróleo, em vez de ajudar, atrapalhou. De um século para cá, sucessivos governos se apoiaram mais e mais na exploração e na exportação do mineral bruto, descurando as demais fontes de riqueza. O que tinha de acontecer aconteceu. O valor do petróleo caiu no mercado internacional. Ao mesmo tempo, o governo foi tomado por uma clique sem eira nem beira, sem âncora ideológica, sem tino comercial, interessada apenas no enriquecimento pessoal. O apeamento do lulopetismo do governo brasileiro e a aproximação entre Cuba e os EUA deram o golpe final. Deu no que deu: o país está isolado na cena internacional.

Doha, Catar

Enquanto isso, os estados da Península Arábica, mais previdentes, não dormiram no ponto. Cientes de que a riqueza mineral vai se extinguir mais dia menos dia, aproveitaram para investir a fortuna amealhada nos tempos de vacas gordas. Deram ao imenso capital destino diversificado. Além de aplicar haveres fora do país, fomentaram a implantação de capitais estrangeiros sobre as areias escaldantes. Têm hoje linhas aéreas poderosas, filiais de universidades de renome, centros de pesquisa avançados. Ainda que o petróleo deixasse de jorrar amanhã, o futuro dos pequenos emirados estará garantido.

Na infeliz Venezuela, nada disso aconteceu. Usaram o rendimento do petróleo para enriquecer figurões e para importar tudo aquilo de que necessitavam, de gêneros alimentícios a papel higiênico. O resultado da negligência e de crônicos erros de gestão estão aí: milhões de hermanos passam fome. Literalmente.

A reunião de chanceleres em Lima não podia ir além de declaração de princípios. Unanimemente, rechaçaram a ditadura iniciada por señor Chávez e consolidada por señor Maduro. Como ajudar os venezuelanos? Não vejo outra saída senão a derrubada do regime. Intervenção militar externa está fora de moda. Assim sendo, é triste constatar, mas não há outro jeito: eles terão de se livrar sozinhos da clique dirigente. Mas a coisa anda tão feia que não deve demorar.

Comida robada

José Horta Manzano

Para continuar no país vizinho, uma notícia comovente. Aconteceu na cidade de Posadas, província de Misiones, Argentina ‒ situada a uma centena de quilômetros da fronteira brasileira.

Uma sexagenária foi flagrada roubando mercadoria de um supermercado. A segurança do estabelecimento chamou a polícia. Aos policiais, a aposentada contou, aos prantos, que tinha tentado roubar comida porque estava com fome e não tinha o que comer nem dinheiro pra comprar. Disse também que, além de se encontrar em situação de extrema pobreza, tem em casa dois parentes inválidos que dependem dela para sobreviver.

Ao ouvir o relato, os policiais se comoveram. Fizeram uma vaquinha e pagaram, do próprio bolso, a despesa da acusada. Em seguida, conduziram a idosa até a casinha modesta onde vive, na periferia da cidade.

A história, trivial em nossa parte do mundo, dá dois recados. O primeiro é dramático: em pleno século XXI, ainda há gente que passa fome. O segundo é mais animador: quando confrontado com a aflição de um necessitado, o homem é capaz de gesto altruísta.

Vamos torcer para que, tanto lá quanto cá, haja cada vez menos necessidade de gestos pessoais altruístas para dar de comer a quem tem fome.

Reclamar do quê?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 31 dez° 2016

Os brasileiros vivem num país gigantesco. Para a maioria, fronteira não passa de conceito vago, um ponto perdido no meio da Amazônia, afundado no Pantanal ou açoitado pelo pampeiro nos pastos sulinos. Mal e mal, nos inteiramos do que se passa do lado de cá. Acompanhar o que acontece além-fronteira, então, já é pedir demais. No entanto, lá como cá, há mundo. Por toda parte, gente ama e briga, se entristece e se alegra, nasce e morre. Vale a pena dar uma espiada no que se passa do outro lado.

Fim de ano é momento de balanço. Neste finalzinho de 2016, tenho visto muito desencanto. «O ano que não terminou» é a tônica das análises. O gosto de inacabado, a apreensão com o que está por vir, a carestia e a perda de vigor da economia, os relatos sobre o aumento do desemprego, a recapitulação do nome dos figurões já encarcerados e dos que o serão em breve, o embate entre os Poderes da República ‒ eis os temas dominantes. Todos eles deprimentes, desacoroçoados e angustiantes. Ânimo, minha gente! Ou, como diriam os antigos: sus! Basta olhar em roda pra ver que, se nosso país atravessou um ano difícil, há quem esteja pior que nós. Não acredita?

tanque-de-guerra-1No Brasil, 2016 já começou com cara de golpe. Revolução à antiga, com obuses e trincheiras, anda meio «démodée» por aqui. Mas muita gente imaginava que meia dúzia de brucutus surgiriam a qualquer hora pra derrubar o governo e tomar o poder. Pois não aconteceu! A destituição da presidente e a consequente assunção do substituto legal se deram dentro da mais estrita ordem constitucional. Tirando pequenos engasgos, normais e desculpáveis em situações insólitas, o processo deslizou sem tropeços. Reclamar do quê?

Na primeira metade do ano, conforme iam se aproximando os Jogos Olímpicos, a ansiedade crescia. Até policiais, agentes e peritos do exterior foram convocados para reforçar o time nacional e garantir paz e segurança aos atletas e ao público. Bilhões de olhos ao redor do planeta se encantavam com as imagens do Rio de Janeiro. Cada um torcia por seus atletas. Tudo ao vivo. De novo, tirando escorregões de pouca monta, tudo deu certo, sem catástrofes. Reclamar do quê?

O povo da França, da Índia, do Egito, da Bélgica, de numerosos países africanos e até da Alemanha foi castigado por atentados que deixaram centenas de mortos, milhares de feridos e um cruel sentimento de impotência. Tanto os do andar de cima quanto os do porão se sentem igualmente desarmados, perdidos. No Brasil, tirando a violência à qual, de tão corriqueira, ninguém mais presta atenção, nenhum atentado aconteceu. Reclamar do quê?

Os que vivem na infeliz Venezuela, nossa vizinha de parede, esses, sim, têm do que se lamentar. A situação lá anda tão feia que impele cidadãos a escapar do país para conseguir alimento. Nem comida eles têm! Preferem tornar-se flanelinhas clandestinos em Roraima e dormir ao relento a passar fome no país de origem. Nas grandes cidades da república bolivariana, não há passeata ou manifestação popular que não deixe rastro de mortos e feridos. Do lado de cá da fronteira, não nadamos em dinheiro, é verdade. Mas, ao menos, não vivemos em penúria alimentar. Reclamar do quê?

flanelinha-1Na República Democrática do Congo ‒ país africano de 85 milhões de viventes ‒, o presidente foi batido nas urnas quando buscava reeleger-se. Em vez de passar o poder ao vencedor, como manda o figurino, agarrou-se ao trono. A confusão e a violência se instalaram no país. Pressões externas estão tentando conciliar os dois presidentes autoproclamados. Pra evitar mal maior, cogita-se dar o cargo de presidente a um deles e o de primeiro-ministro ao outro. No Brasil, faz uma pancada de décadas que passação de mando se tornou rotina sem surpresas. Reclamar do quê?

E os apuros dos pobres 80 milhões de turcos? Depois de mal explicada tentativa de golpe de Estado, milhares de cidadãos foram encarcerados. Ninguém sabe o total, mas fontes confiáveis estimam que cem mil estejam presos. Com vocação para ditador, o presidente aproveitou para expurgar o país dos cidadãos que o incomodavam. Fechou jornais e prendeu multidão de jornalistas. Semana passada, na esteira do assassinato do embaixador da Rússia em Âncara, mais 17 mil turcos foram enjaulados. Dezessete mil! Na aprazível Terra de Santa Cruz, abençoada por Deus e bonita por natureza, não temos nada disso. Reclamar do quê?

Feliz ano-novo, brava gente!

Brasil faminto

José Horta Manzano

Fome 1Época de Natal amolece os corações, é certo. Estas semanas que antecedem o 25, o correio traz bateladas de pedidos de socorro. Chegam envelopes com algum mimo dentro e um pedido de ajuda.

O mimo, em geral, é um calendariozinho ou um par de cartões de Natal. Algumas cartinhas são mais secas, sem mimo. Quanto ao pedido, há quem já especifique quanto quer – 20, 30, 40 dólares. Outros, mais recatados, preferem não sugerir montante e deixar a decisão ao bom grado do doador.

Fome 3Quem pede? A paleta é larga. Começa com grandes instituições como Unicef, Médicos sem Fronteira. Passa por ongs médias, daquelas que obram em favor de velhinhos, de enfermos, de incapacitados, de atletas desamparados, de dependentes químicos. E vai até pequenas e obscuras ongs. Tem até uma que, ano após ano, pede dinheiro para comprar livros para Ruanda. Imagino que a biblioteca já esteja alentada.

Entidades mais poderosas chegam a fazer anúncio por rádio e por televisão. Na rádio francesa, tenho ouvido diariamente o pedido de uma delas. Uma voz masculina dramática conta que acaba de chegar de uma viagem à Índia e ao Brasil, países onde foi testemunha de espetáculo triste de gente passando fome. Em seguida, dá as coordenadas para que cada ouvinte possa remeter seu dom.

Fome 5É constrangedor, mas a gente sabe que não é mentira. Nunca botei muita fé nesse partido que nos governa, mas imaginava que, como mínimo, os doze anos que passaram no comando fossem suficientes para erradicar a fome e a pobreza extrema. No entanto, continuamos a projetar ao mundo a imagem (verdadeira) de país faminto. Aos olhos dos estrangeiros, estamos em pé de igualdade com a Índia, veja você. Somos sócios do pouco invejável clube dos países onde se passa fome, onde disputamos lugar com a Etiópia, o Haiti, o Bangladesh.

E não me venham dizer que o saqueio da Petrobrás tem algo que ver com essa situação. Não tivesse sido surrupiado, o dinheiro da petroleira teria servido para outros fins, não para aplacar a fome dos desamparados.

Fome 4Por coincidência, saíram estes dias os resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Diz lá que ¼ dos brasileiros ainda vive em estado de insegurança alimentar – são aqueles que não têm certeza de que vão ter suficiente pra comer no dia seguinte. Um em cada quatro, minha gente! Dentre eles, sete milhões de infelizes passam fome regularmente.

Fome 2É revoltante saber que, enquanto o pessoal do andar de cima assalta estatais em escala industrial, os humildes que os elegeram continuam descamisados, desdentados, desprezados, famintos. Pior que tudo: sem perspectiva de melhora.

No discurso em que festejou a reeleição, dona Dilma prometeu fazer melhor. Quem sabe vai dar um jeito de soerguer os desamparados, de dar-lhes um rumo na vida.

Você acredita? Nem eu.

Bulindo com a bala

José Horta Manzano

Desde que a peça teatral L’Arlésienne, do escritor e dramaturgo francês Alphonse Daudet (1840-1897), foi encenada pela primeira vez, a palavra arlésienne entrou na linguagem comum do país.

L'Arlésienne com dedicatória do autor

L’Arlésienne
com dedicatória do autor

Em sentido próprio, designa uma mulher originária da cidade de Arles, no sul da França. Na peça, é o nome de uma personagem que não aparece nunca, que ninguém vê. Desde então, quando quer se aludir a algo ou a alguém que não se vê, que não periga aparecer, diz-se que «c‘est comme l‘arlésienne», é como a arlesiana.

Estes dias, foi anunciado o enésimo adiamento do leilão em que se pretende confiar, a um consórcio de empresas, a construção do famigerado trem-bala ligando Campinas ao Rio de Janeiro, via São Paulo. Lembrei-me da arlesiana. Com sua sabedoria do século XIX, minha avó diria que esse trem aí só será inaugurado no dia de São Nunca.

O tempo passa e as coisas mudam. Quando esse projeto foi concebido, o País vivia tempos de euforia. Presidente taumaturgo, economia florescente, dinheiro entrando a rodo, céu de brigadeiro. Foi nessa onda que pareceu a nossos mandarins uma excelente ideia investir o que fosse necessário para convencer Fifa e CIO que os próximos megaeventos planetários tinham de se realizar no Brasil.

Trem de São Nunca

Trem de São Nunca

Não deve ter sido difícil convencer os comandantes mundiais do esporte. São gente muito compreensiva e bastante flexível. Aliás, desde que os fenícios inventaram a moeda, ficou bem mais fácil convencer.

No embalo de copona, copinha, jogos olímpicos, veio também o trem-bala. Sem falar em transposição(*) de rios. Obras faraônicas, de prestígio, vistosas, imponentes, que nem os generais chegaram a ousar nos tempos do Brasil grande.

Os ventos mudaram. Hoje seria impensável impor ao povo brasileiro o gasto de bilhões de reais em façanhas de tão pouca utilidade. Enfim, o que está feito, está feito. Não faz sentido demolir estádios modernosos nem anular a copa. No entanto, o trem-bala, que nem começado está, de certeza nunca se fará.

Bala

Bala

O artigo 5° de nossa Constituição deixa bem claro que todos os brasileiros nascem livres e iguais. Num país em que falta giz nas escolas e esparadrapo nos hospitais, numa terra onde milhões de cidadãos vivem expostos à fome, ao medo, à insegurança, ao atraso cultural, à desesperança, seria inadequado ― para dizer o mínimo ― torrar 35 bilhões na construção de um trem de luxo para beneficiar uma meia dúzia.

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(*) Transposição, palavra pomposa, não é o termo mais adequado. Bipartição, tripartição ou simplesmente partição reflete a realidade com mais precisão e cai muito melhor.

Invasão estrangeira?

José Horta Manzano

Há muito lixo circulando pela internet. Às vezes, aparece também alguma coisa interessante. O difícil é fazer a triagem, eliminar o joio e deixar só o trigo.

Outro dia recebi de um amigo um texto um tanto indignado reclamando da distribuição geográfica de ongs estrangeiras no Brasil. Desconheço quem possa ser o autor do libelo. Só sei que ele se insurge contra o fato de certas regiões do País estarem mais bem amparadas que outras.

Aqui vai uma versão recompilada.

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Por que não há nenhuma ong no Nordeste seco? Será que ninguém precisa delas por lá? Vamos analisar.

Quantas vítimas da seca crônica se podem contar? Por alto, uns 10 milhões de infelizes. Todos subnutridos, muitos com fome e com sede. No entanto, nenhuma ong estrangeira apareceu por lá para dar uma mão.

Por que há tantas ongs na Amazônia? Por que são tão necessárias? Vamos analisar.
Quantos índios há por lá? Fala-se em 230 mil. A população não sofre desnutrição. Nenhum deles passa fome nem sede. No entanto, cerca de 350 ongs estrangeiras estão por lá dando uma mão.

De onde vem esse desequilíbrio? Dizem alguns que, por detrás de ongs de aspecto inocente, escondem-se grandes grupos interessados nas riquezas minerais e vegetais do Norte úmido. Já o Nordeste seco atrai muito menos cobiça.

Dizem até que há mais ongs estrangeiras na Amazônia brasileira do que em todo o continente africano ― compreensivelmente mais necessitado que nosso «inferno verde».

Fim de citação.

Não tenho como comprovar esses números, mas tenho dificuldade em acreditar que nenhuma ong estrangeira se interesse pelo NE. Nem umazinha? Estariam então todas a serviço de interesses escusos? Teríamos aí a prova cabal de que uma conspiração de louros de olhos azuis está preparando o terreno para uma invasão de extensa porção do território nacional? Sei não.

Talvez a explicação seja menos cabeluda, bem mais chã. Admitindo-se que haja mais estrangeiros apoiando gente na Amazônia do que no Nordeste, por que não imaginar que o verde da floresta, a água onipresente, a abundância de alimento, o canto dos pássaros sejam o verdadeiro ímã? Afinal, toda ong é composta por gente como nós. Quarenta graus na poeira do interior do Piauí ou do Ceará é calor pra afugentar qualquer legionário.

Melhor ser otimista. Ou não?