Saltando do barco

José Horta Manzano

As pesquisas, a persistirem no ritmo atual, apontam para inevitável derrota do capitão em outubro.

Os parlamentares mais firmes, aqueles dotados de estofo ideológico, não arredam pé de suas convicções.

Já os que nadam na geleia geral – e que constituem o abundante ventre flácido da República – estão se preparando para saltar do barco. Efetivamente, diz-se que os ratos são os primeiros a saltar. (Peço desculpas aos ratinhos, que entraram neste parágrafo como Pilatos no Credo.)

Na foto vemos o presidente da Câmara, bolsonarista desde criancinha, que de bobo não tem nada. Sua Excelência entendeu de que lado sopram os ventos e já prepara sua reconversão.

Dois dias atrás, foi comer brigadeiro na festinha de aniversário de Zeca Dirceu. O homenageado é deputado federal pelo PT do Paraná. Além disso, é filho do José Dirceu, companheiro que tem sido, há décadas, fiel aio do Lula.

Este blogue dá os parabéns ao aniversariante. Em troca espero ser nomeado para uma sinecura. Afinal, é dando que se recebe.

Disclaimer:
Este artigo contém ironia.

Festa da cumeeira

José Horta Manzano

Você sabia?

Na Idade Média, os grandes profissionais especializados eram dois: o ferreiro e o moleiro (ou moendeiro, ou moageiro). Todo vilarejo maiorzinho tinha sua forja e seu moinho. O ferreiro era aquele que, sabendo trabalhar o ferro, fornecia ferraduras, enxadas, caldeirões, pregos e todos os petrechos metálicos. O moleiro era o dono do moinho que, tocado pela força do vento ou da água corrente, permitia moer trigo e fabricar farinha.

by Jos Goemaer (séc. XVI), pintor flamengo
Faz parte do acervo do Museu da Gulodice, na Bélgica

Tirando esses profissionais maiores, praticamente todos os demais aldeães eram autossuficientes e praticavam agricultura de subsistência. No entanto, havia certos trabalhos que um homem não era capaz de executar sozinho. Construir uma casa, por exemplo. Nessas horas, precisava da ajuda de vizinhos, parentes e conhecidos. Todos punham a mão na massa. Quando a casa ficava pronta, a tradição mandava que o dono oferecesse uma festa aos que haviam ajudado. Era a forma de agradecer.

Junto a uma das paredes da casa, estava instalada a lareira encimada pela respectiva chaminé para evacuação da fumaça. O calor da lenha queimada tanto servia para aquecer a morada como para cozinhar a sopa. O caldeirão pendia da viga mestra sustentado por uma corrente de ferro. Para aumentar a fervura, baixava-se o caldeirão, aproximando-o do fogo. E vice-versa, quando era necessário fogo brando.

Telha de cumeeira

Quando a casa ficava pronta, o último apetrecho a ser instalado era justamente a corrente que sustentava o caldeirão. Era sinal de que a morada podia ser habitada. Era hora de oferecer uma refeição de festa aos que haviam dado uma mão. Em terras francesas, esse costume gerou uma expressão: «Pendre la crémaillère» ‒ pendurar a corrente.

Hoje, já não se cozinha em caldeirão de ferro pendurado na viga mestra, mas a expressão permaneceu. Quando alguém se muda de casa, organiza uma festinha para os amigos e manda convites para comparecerem à «pendaison de la crémaillère» ‒ a pendura da corrente.

Alemanha: instalação da viga mestra

Com pequenas diferenças, a inauguração de casa nova mantém a simbologia e continua sendo ocasião de festinha (ou festança) até hoje em muitos lugares do mundo. Os americanos dão às festividades o nome de «house-warming party» ‒ festa de aquecimento da casa. Vem do antigo costume de cada convidado trazer um feixe de lenha para a lareira. O aquecimento tanto servia no sentido próprio de trazer calor ao ambiente quanto no sentido simbólico de afugentar maus espíritos.

Alemães (Richtfest) e escandinavos (Inflyttningsfest) também organizam festa nessa ocasião. No Brasil, o equivalente é a Festa da Cumeeira(*). Costuma traduzir-se por churrasco dedicado aos artesãos que construíram a casa. É oferecido logo após a colocação da fieira de telhas que coroa a viga mestra.

(*) Cumeeira é o ponto mais elevado do telhado, a linha que marca a repartição entre duas águas.

Artigo publicado originalmente em 8 out° 2017.

Festa da cumeeira

José Horta Manzano

Você sabia?

Na Idade Média, só havia dois profissionais especializados: o ferreiro e o moleiro (ou moendeiro, ou moageiro). Todo vilarejo maiorzinho tinha sua forja e seu moinho. O ferreiro era aquele que, sabendo trabalhar o ferro, fornecia ferraduras, enxadas, caldeirões, pregos e todos os apetrechos metálicos. O moleiro era o dono do moinho que, tocado pela força do vento ou da água corrente, permitia moer trigo e fabricar farinha.

by Jos Goemaer (séc. XVI), pintor flamengo
Faz parte do acervo do Museu da Gulodice, na Bélgica

Tirando esses profissionais, os demais aldeães eram autossuficientes e praticavam agricultura de subsistência. No entanto, havia certos trabalhos que um homem não era capaz de executar sozinho. Construir uma casa, por exemplo. Nessas horas, precisava da ajuda de vizinhos, parentes e conhecidos. Todos punham a mão na massa. Quando a casa ficava pronta, era tradição que o dono oferecesse uma festa aos que haviam ajudado. Era forma de agradecer.

Junto a uma das paredes da casa, estava instalada a lareira encimada pela respectiva chaminé para evacuação da fumaça. O calor da lenha queimada tanto servia para aquecer a morada como para cozinhar a sopa. O caldeirão pendia da viga mestra por uma corrente de ferro. Para aumentar a fervura, baixava-se o caldeirão, aproximando-o do fogo. E vice-versa, quando era necessário fogo brando.

Telha de cumeeira

Quando a casa ficava pronta, o último apetrecho a ser instalado era justamente a corrente que sustentava o caldeirão. Era sinal de que a morada estava habitável. E era hora de oferecer uma refeição de festa aos que haviam dado uma mão. Em terras francesas, esse costume gerou uma expressão: «Pendre la crémaillère» ‒ pendurar a corrente.

Hoje, já não se cozinha em caldeirão de ferro pendurado na viga mestra, mas a expressão permaneceu. Quando alguém se muda de casa, organiza uma festinha para os amigos e manda convites para comparecerem à «pendaison de la crémaillère» ‒ a pendura da corrente.

Alemanha: instalação da viga mestra

Com pequenas diferenças, a inauguração de casa nova mantém a simbologia e continua sendo ocasião de festinha (ou festança) até hoje em muitos lugares do mundo. Os americanos dão às festividades o nome de «house-warming party» ‒ festa de aquecimento da casa. Vem do antigo costume de cada convidado trazer um feixe de lenha para a lareira. O aquecimento tanto servia no sentido próprio de trazer calor ao ambiente quanto no sentido simbólico de afugentar maus espíritos.

Alemães (Richtfest) e escandinavos (Inflyttningsfest) também organizam festa nessa ocasião. No Brasil, o equivalente é a Festa da Cumeeira(*). Costuma traduzir-se por churrasco dedicado aos artesãos que construíram a casa. É oferecido logo após a colocação da fieira de telhas que coroa a viga mestra.

(*) Cumeeira é o ponto mais elevado do telhado, a linha que marca a repartição das duas águas.

Pra estragar o carnaval

José Horta Manzano

Estes dias de carnaval anestesiam o Brasil. Políticos entram em recesso, a classe média tira férias, o povão tem folga. O país vive entre parênteses e (quase) chega a esquecer as mazelas. Fica a impressão de que, por um momento, o país sossegou.

Infelizmente, não passa de ilusão. Olhos estrangeiros, estranhos aos excessos momescos, permanecem alertas. Além-fronteiras, nossos problemas continuam (bem) visíveis. Eis um apanhado de manchetes de ontem.

Carnaval 1L’Express (França)
«Brésil: le fils de Pelé condamné en appel à près de 13 ans de prison»
«Brasil : o filho de Pelé condenado em segunda instância a quase 13 anos de cadeia»

Der Spiegel (Alemanha)
«Gefängnisse in Brasilien: das Grauen hinter Gittern»
«Cadeias brasileiras: o horror atrás das grades»

Il Post (Italia)
«Il caso sulla corruzione in Brasile è tracimato»
«O caso de corrupção no Brasil transborda»
O artigo faz alusão à Lava a Jato que se alastra por uma dúzia de países

Reuters (Reino Unido)
«Brazil faces almost lost decade due to crisis: economists»
«Segundo economistas, o Brasil enfrenta quase uma década perdida devido à crise»

L’Équipe (França)
«Brésil: l’électricité de retour au Maracana»
«Brasil: volta a eletricidade ao Maracanã»
O artigo esclarece que a luz do estádio maior havia sido cortada por falta de pagamento.

O estádio do Maracanã já conheceu dias melhores

O estádio do Maracanã já conheceu dias melhores

El Comercio (Peru)
«Brasil: ‘Campos de concentración’, una historia para el olvido»
«Brasil: ‘Campos de concentração’, uma história para esquecer»
O artigo relata história pouco conhecida de campos de concentração montados em 1915 e em 1932 para receber nordestinos flagelados pela seca excepcional.

AfärsLiv24 (Suécia)
«Brasilien: 12,9 miljoner arbetslösa»
«Brasil: 12,9 milhões de desempregados»

Meteoweb (Italia)
«Febbre Gialla: in Brasile emergenza in 64 città, 83 morti»
«Febre amarela: situação de urgência em 64 cidades brasileiras, 83 mortos»

The Times of India (India)
«Brazil’s worst-ever recession likely extended into 4th qtr»
«A pior recessão jamais ocorrida no Brasil entra no quarto trimestre»

Radio France Internationale (França)
«Brésil: sur fond de crise, un carnaval de Rio au goût amer»
«Brasil: em cenário de crise, um carnaval carioca de sabor amargo»

carnaval-13Public Radio International (EUA)
«Dozens of cities across Brazil are canceling Carnival»
«Dezenas de cidades brasileiras cancelam o carnaval»

L’Expansion – L’Express (França)
«Corruption au Brésil: un ministre clé mis en cause»
«Corrupção no Brasil: importante ministro implicado»

Sputnik News (Rússia)
«Brasil: en nueve meses renunciaron ocho ministros por sospechas de corrupción»
«Brasil: em nove meses, oito ministros renunciaram por suspeita de corrupção»

Berliner Kurier (Alemanha)
«Horror-Karneval in Brasilien: täglich werden bis zu 50 Kinder missbraucht»
«Carnaval de horror no Brasil: abuso de até 50 crianças a cada dia»

dilma-e-lofven-2Arbetaren (Suécia)
«Sveriges vapenexport till diktaturer ökar»
«Crescem as exportações de armamento sueco para ditaduras»
O artigo ressalta o maior contrato firmado no ano anterior: a venda dos aviões Saab-Gripen ao Brasil. O texto é ilustrado por uma foto de Dilma Rousseff instalada na cabine de um caça. Reparem que o jornal inclui o Brasil no rol das ditaduras.

Bom carnaval a todos !

Desalinhados

José Horta Manzano

Você sabia?

No começo dos anos 1960, a Guerra Fria comia solta. O mundo, inquieto, temia que, a qualquer momento, a guerra esquentasse. Já à época, as duas superpotências ‒ EUA e União Soviética ‒ tinham arsenal nuclear capaz de aniquilar a humanidade. Vivia-se em tensão permanente.

Alguns países de importância secundária, na intenção de mostrar-se independentes tanto do bloco americano quanto do soviético, agruparam-se. Com o incentivo do Egito de Nasser, da Iugoslávia de Tito e da Índia de Nehru, dezenas de países médios e pequenos juntaram-se ao Movimento dos Não-Alinhados.

Não é fácil conciliar interesses de países díspares e espalhados pelo planeta. O objetivo do grupo nunca foi muito claro. Por exemplo, Cuba, membro fundador, embora se declarasse “não-alinhado”, estava visceralmente ligado ao bloco comunista, liderado pela União Soviética.

Nasser (Egito), Nehru (Índia) e Tito (Iugoslávia) Mentores do Movimento dos Não-Alinhados, 1961

Nasser (Egito), Nehru (Índia) e Tito (Iugoslávia)
Mentores do Movimento dos Não-Alinhados, 1961

Os países africanos, que acabavam de conquistar independência, entraram quase todos para o Movimento. Como a Cuba dos Castros, a maioria deles estava alinhadíssima com a URSS, ainda que alguns mostrassem simpatia pelo bloco ocidental. Resumindo, grande parte dos membros era constituída de não-alinhados pero no mucho.

Com a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética, o Movimento dos Não-Alinhados perdeu a razão de existir. No entanto, por razões que a razão nem sempre explica, não foi dissolvido. Continua, firme e forte, a organizar cúpulas a cada dois, três ou quatro anos. Os interesses dos membros continuam tão divergentes como sempre foram, mas… quem se importa com esse detalhe?

Registre-se que o único país europeu a participar do Movimento é a Bielorrúsia. Quanto aos países ibero-americanos, vários integram o grupo com a notável exceção das três maiores economias: Brasil, México e Argentina. Praticamente todos os africanos são membros. Os grandes deste mundo (EUA, China, Japão, União Europeia, Rússia) não participam da encenação.

Nicolas Maduro by Darío Castillejos, desenhista mexicano

Nicolas Maduro
by Darío Castillejos, desenhista mexicano

Que discutem nas reuniões? Que resoluções tomam? Que ideologia seguem? Difícil dizer. Quando se juntam visões de mundo heterogêneas ‒ Timor Leste, Paquistão, Burundi, Equador, Afeganistão, Suriname ‒ entre dezenas de outros ‒ é complicado chegar a alguma espécie de consenso.

Mas a vida segue e o Movimento dos Não-Alinhados sobrevive. A Venezuela, mergulhada no caos político e econômico, está recebendo a reunião de cúpula de 2016 do clube dos não-alinhados.

Que um país que não consegue alimentar o próprio povo acolha autoridades de mais de cem países ‒ sem contar as respectivas comitivas ‒ é decisão singular. O tiranete Nicolás Maduro há de ter esperança de que a festa distraia, por um momento, o ronco das barrigas vazias dos infelizes venezuelanos.

Baú de memórias

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Dentre as características de personalidade que mais admiro, o senso de humor e o raciocínio rápido ocupam lugar de destaque. Se uma pessoa tem a capacidade de me surpreender e de me fazer rir, ganha meu coração para sempre. Sei por experiência própria que, às vezes, mesmo um humor mordaz, longe de ser ofensivo, pode funcionar como provocação para que a gente desenvolva essas mesmas habilidades. No meu baú de memórias, estão guardadas com carinho algumas situações engraçadas – e reais, juro – que me ensinaram a não me levar tão a sério.

Eu estava planejando uma festinha na minha casa para colegas de trabalho, não me lembro mais por qual razão. Tínhamos concordado que cada participante se encarregaria de levar uma comida ou bebida e suas músicas preferidas para animar o encontro. Como minha carga de trabalho era muito alta naquela semana, deleguei a outros a distribuição das responsabilidades de cada um e confirmação das presenças.

Festa 2No começo da tarde do encontro, recebo um telefonema de uma das organizadoras avisando que havia surgido um imprevisto no trabalho e que ela não poderia ir. Fiquei chateada, é claro, mas não dei maior importância ao fato. Logo em seguida, uma segunda pessoa liga informando que também se ausentaria. Começo a me inquietar. Era final de mês e todos os departamentos estavam envolvidos com a preparação de relatórios de fechamento de números. Quando o terceiro convidado telefonou para dizer que não poderia ir e sugeriu que nosso encontro fosse adiado, percebi que seria burrice prosseguir com os preparativos. Resolvi cancelar a festa e pedi que todos fossem avisados.

Fui para casa me sentindo um tanto perdida. Na falta do que fazer, tomei um banho, vesti a camisola e me sentei em frente à televisão com um pote de salgadinhos para assistir a um filme. Lá pelas dez horas da noite, o interfone toca e o porteiro me avisa que um amigo querido havia chegado. Baiano, tremendo gozador e uma pessoa sempre disposta a tirar humor das situações mais improváveis. Ele não deve ter sido avisado a tempo, pensei. Na dúvida, pedi que ele subisse para conversarmos. Mal tive tempo de colocar um peignoir e lá estava ele na porta, com um olhar curioso. Percebendo o silêncio e as luzes apagadas (só a tela do televisor estava iluminada), ele perguntou com um sorriso: “Cheguei cedo ou tarde demais?“

Festa 1Xingando mentalmente quem havia esquecido de avisá-lo, respondi que nem uma coisa nem outra. Expliquei resumidamente as razões do cancelamento da festa e pedi que ele me perdoasse por não deixá-lo entrar. Um tanto sem graça, ele se despediu e foi embora.

No dia seguinte, na hora do almoço, ao sair do restaurante da empresa, vi que ele estava de pé no meio de uma rodinha de homens, todos colegas engenheiros. Tinha um ar de moleque safado e me acenou de longe. Aproximei-me do grupo para conversar. Com um sorriso maroto, sem que ninguém esperasse, ele retirou lentamente uma meia feminina de nylon do bolso e disse: “Isto é seu. Ontem, quando saí da sua casa, peguei por engano…”

Inútil dizer que, diante do meu olhar de pasmo, o grupo todo se esbaldou de rir. Estimulado pela companhia masculina, ele prosseguiu triunfante com a vingança que havia arquitetado: “Imaginem que ontem ela me convidou para uma festa na casa dela. Quando cheguei, ela abriu a porta vestida só de negligé translúcido. Luz negra, musiquinha tocando… aí já viu, né…?“

Televisao 7Nova gargalhada que, dessa vez, se arrastou por mais tempo em função do meu evidente e crescente constrangimento. Em desespero, eu procurava mentalmente uma saída honrosa para aquela saia justa. Subitamente, tive uma inspiração: eu precisava fazer que ele experimentasse um pouco de seu próprio veneno. Esperei que as risadas diminuíssem de intensidade e ataquei. Encarei o grupo com coragem e disse, rindo: “Pois é, e apesar de tantos sinais, ele virou as costas e foi embora, me deixando a ver navios…”

A gargalhada que se seguiu ao meu contra-ataque fulminante deixava claro que a batalha estava perdida para ele. Sua fama de garanhão e sua autoconfiança haviam sido irremediavelmente abaladas…

Interligne 28a

Eu e um colega estávamos coordenando um workshop internacional em um hotel luxuoso do centro da cidade. Era uma região boêmia, cercada por teatros e cinemas, local de agitada vida noturna.

Os trabalhos se arrastaram por mais tempo do que o previsto e, por isso, decidimos jantar no restaurante nobre do próprio hotel. Embora só servissem pratos à la carte, meu amigo chamou o maître e pediu que fosse aberta uma exceção e lhe trouxessem um sanduíche. O maitre assentiu, a contragosto.

Hotel 1De início, fiz de conta que não havia percebido a inconveniência do comportamento dele. Alguns minutos mais tarde, nossas refeições chegaram, servidas com toda pompa e circunstância, em pratos de porcelana cobertos por uma cloche.

Meu colega não se fez de rogado. Pegou o sanduíche com as mãos e o abocanhou com a satisfação e a voracidade de uma criança em um parque de diversões. Consequência inevitável: molho escorrendo pelos lados da boca, recheio catapultado pelos lados da baguete e dedos lambuzados. Feliz da vida, ele deu prosseguimento ao festival de incontinências e lambeu os dedos como se estivesse no sofá de casa. Foi demais para mim. Olhando envergonhada para os lados, pedi que ele parasse com tudo aquilo, advertindo-o de que as pessoas ao lado estavam reparando.

Com um sorriso confiante nos lábios, ele me deu uma preciosa ‒ ainda que dolorida ‒ lição sobre a forma hipócrita com que nossa sociedade lida com as aparências e com as diferenças de gênero, dizendo: “Minha querida, eu sou um cara alto, loiro e de olhos azuis. Em suma, um tipo claramente europeu (era, de fato, húngaro). Faça eu o que quiser, todos pensarão, no máximo, que sou uma pessoa excêntrica…. Já você, se fizer a mesma coisa, o que os outros vão pensar é que você é a putinha que acabei de pegar na esquina…

Sanduiche 1Até hoje não me recuperei totalmente da provocação, mas confesso que aprendi a lição. Sei agora que, para me adequar aos ambientes que frequento, preciso diferenciar com rigor o impacto que pretendo causar e aquele que, de fato, provoco.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Insegurança de raiz

José Horta Manzano

Você sabia?

Insegurança é componente importante do espírito brasílico.

A desonestidade e a criminalidade geram insegurança e transformam o honesto cidadão em refém da violência de criminosos.

Caravela 2As artes da política transmitem tremenda insegurança – fica a impressão de que todos os do andar de cima, embora podres, sejam intocáveis.

A insegurança jurídica é proverbial. Vai-se dormir à noite sem ter certeza de que, no dia seguinte, leis e regulamentos ainda serão os mesmos.

Essas incertezas não vêm de hoje. Marcam a história do país desde o dia em que foi lavrada sua «certidão de nascimento». Falo da carta de Pero Vaz de Caminha, bordada com arte e carinho pelo escriba da esquadra de Cabral.

A missiva é cristalina ao datar a descoberta – ou o achamento, como prefiram – da terra tropical. Diz ela: «nos 21 dias de abril (…) topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho». No dia seguinte, foi avistado um «monte mui alto e redondo», além de serras e de terra chã com grandes arvoredos. Pronto o Brasil estava achado. E era 22 de abril.

Acontece que essa carta, devidamente guardada nalgum escaninho da burocracia lusa, não foi consultada durante 300 anos e acabou esquecida. Só viria a ressurgir no século XIX. Enquanto isso, o Brasil já se havia declarado independente da metrópole. Na complexa organização do novo país, foi buscada uma data de fundação. Na falta de informação segura, foi privilegiado o dia 3 de maio. E por quê?

Descobrimento 1A insegurança gerada pela ausência de provas documentais fez supor que o primeiro nome dado à terra – Vera Cruz – viesse do dia que a hagiologia católica consagra à celebração da verdadeira cruz, justamente o 3 de maio. (Entre parênteses: com o nome de Cruz de Mayo, esse dia ainda é festejado em alguns países da América Hispânica.)

Carta de Pero Vaz sobre o achamento

Carta de Pero Vaz sobre o achamento

Ao fixar os feriados oficiais, a República fundada em 1889 manteve a comemoração da chegada dos primeiros europeus em 3 de maio. Por essa altura, a carta de Pero Vaz já havia reaparecido – portanto, já se sabia que a verdadeira data não era aquela. Assim mesmo, por comodidade, deu-se preferência a manter a celebração no dia de Vera Cruz. Como o dia de Tiradentes, 21 de abril, já era dia de festa, não convinha impor dois feriados seguidos.

Não foi senão durante a ditadura de Getúlio Vargas que a História se rendeu oficialmente à evidência: estava-se comemorando no dia errado. De uma pedrada, derrubaram dois coelhos: o descobrimento passou a ser celebrado dia 22 de abril que, ao mesmo tempo, deixou de ser dia feriado.

Eu não seiMeus pais me contavam que o Brasil tinha sido descoberto em 3 de maio e eu não entendia por que, na escola, me ensinavam data diferente. A insegurança sobre as datas só se desfez muitos anos depois, quando eu descobri que eles me ensinavam tal como haviam aprendido na escola.

O distinto leitor há de convir que, numa terra que já começou com provas documentais desaparecendo de circulação, não espanta que a insegurança continue sobressaindo. Fazer sumir provas tornou-se esporte nacional. Decididamente, vivemos na terra do «eu não sabia de nada».

Frase do dia — 153

«‘Vai ser uma festa‘, anunciou Marta Suplicy, ministra da Cultura, no lançamento do programa Brasil de Todas as Telas, que, segundo o governo, destinará R$ 1,2 bilhão ao setor audiovisual. Trata-se de uma peça publicitária de campanha eleitoral, evidenciando que o Planalto governa com slogans.»

Editorial do Estadão, 6 jul° 2014.