O imperador africano

Sagração de Bokassa 1°

José Horta Manzano

O século 19 marcou o apogeu da colonização da África pelas potências europeias. No final do século, o continente estava fatiado e repartido entre poucos países colonizadores. França e Inglaterra detinham a parte do leão. Os ingleses controlavam boa parte da costa Leste, enquanto os franceses mandavam no Oeste – aquela protuberância rombuda da África, que se projeta no Oceano Atlântico.

As potências europeias saíram enfraquecidas da Segunda Guerra mundial. O nacionalismo africano encontrou terreno fértil para se afirmar. Nos anos 1950-1960, não houve como segurar o movimento: uma a uma, foram pipocando novas nações recém-independentizadas.

A República Centro-Africana alcançou a independência em 1960. Trata-se de um território sem saída para o mar, pouco populoso mas de bom tamanho (maior que a França e maior que o estado de Minas Gerais).

Nas primeiras décadas após a onda de independência, a França conservou forte influência sobre as antigas colônias. Hoje em dia, a presença francesa é menos marcante mas, naquele tempo, Paris era o fazedor de reis. Para ser bem sucedido, todo golpe de Estado tinha de ter o apoio do antigo colonizador.

Em 1965, por meio de um golpe e com apoio francês, Jean-Bédel Bokassa foi alçado à liderança da África Central. Enquanto o governo do novo ditador seguia conforme aos interesses de Paris, tudo foi bem. Em 1976, deslumbrado com o poder, Bokassa inventou que queria transformar o país em império, e que ele seria o imperador. Assim foi feito. Houve festa de coroação, com trono, manto, cetro, coroa, diamantes e pedras preciosas. Um remake da sagração de Napoleão.

Tornado imperador, Bokassa impôs uma política autoritária e excessivamente repressiva. Sua política tomou nova direção, que contrariava os interesses franceses. Três anos depois da proclamação do império, Bokassa foi destituído por um golpe de Estado fomentado e financiado pela França. Isso aconteceu em setembro de 1979.

Um mês depois, em outubro de 1979, o Canard Enchaîné, popular semanário francês de sátira política, revelou que Valéry Giscard d’Estaing, presidente da França, tinha sido presenteado pelo imperador Bokassa com 30 quilates de diamantes. Considerando que o preço médio do diamante lapidado é de 12.000 euros por quilate, isso dá um total de 360 mil euros (R$ 1,8 mi). O escândalo se alastrou mais rápido que fake news.

Giscard d’Estaing estava em plena campanha de reeleição à Presidência. A notícia não podia cair em momento pior. A oposição fez a festa e ajudou a pisar na ferida. Abafa daqui, abafa dali, a história nunca foi elucidada preto no branco. Fica ao gosto do freguês. Por minha parte, acredito que o propagador da notícia tenha sido o próprio imperador africano destituído. Foi vingança pelo golpe de Estado que o arrancou do trono, fomentado pelo governo francês. O caso entrou para a história como Les diamants de Bokassa (Os diamantes de Bokassa).

Giscard d’Estaing acabou perdendo a reeleição. O desastre de imagem causado pelos diamantes do imperador há de ter contribuído para a derrota.

Estourou semana passada, no Brasil, o caso dos diamantes de Bolsonaro. Assim que fiquei sabendo, lembrei imediatamente dos “diamants de Bokassa”. Se a história das pedras das Arábias tivesse vindo à tona antes, Bolsonaro poderia até ter perdido a eleição. Mas… que bobagem estou dizendo! Ele já foi derrotado!

A saga dos diamantes ainda vai dar pano pra manga. Ninguém dá um presente de 3 milhões de euros sem ter um bom motivo pra isso. Reis, xeiques e emires são podres de ricos, mas nem por isso saem distribuindo milhões assim, sem mais nem menos. Alguns pontos ainda estão nebulosos.

Por que razão esse mimo milionário foi dado a Bolsonaro? Qual foi a contrapartida?

Outra curiosidade é o fato de ter sido necessário designar o sub do sub para viajar à Arábia, tomar posse da encomenda e embarcar num avião de volta carregando essa fortuna numa mochila(!). Por que é que Bolsonaro não trouxe na bagagem presidencial? Por que é que o presente não veio por mala diplomática árabe, para ser entregue ao capitão em Brasília?

Quem sabe um dia teremos as respostas. Ou será que o escândalo vai continuar enevoado para todo o sempre?

O Sete de Setembro é realmente o dia da independência do Brasil?

Dona Leopoldina e o conselho de ministros
Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1822
obra de 1922 by Georgina de Albuquerque (1885-1962)

Antônio Aurélio do Amaral (*)

Em viagem a São Paulo para controlar uma rebelião, o então príncipe regente Pedro transferiu formalmente o poder para a esposa austríaca, a futura imperatriz Leopoldina. Na época não existia telefone nem telégrafo para dispensar essa transferência de poder ao viajar.

Em fins de agosto de 1822, Dona Leopoldina recebeu uma carta de Portugal que comunicava a destituição de seu marido das funções e determinava que ele voltasse para Portugal. A missiva ordenava ainda que tratasse de obedecer pois uma força de 25.000 soldados portugueses estava a caminho do Brasil.

A princesa sopesou a situação, reuniu os ministros e tomou a decisão: assinou o rompimento das relações com Portugal e a independência do Brasil. Era 2 de setembro de 1822. Em seguida, enviou um emissário atrás do príncipe informando a situação e a sua decisão oficial.

Dom Pedro só foi alcançado pelo emissário no dia 7 de setembro, montado em sua mula, quando a vila de São Paulo já surgia no horizonte. Num cenário bem menos épico do que a “narrativa” retratada no imponente quadro de Pedro Américo – obra concluída na Itália 66 anos mais tarde –, proclamou a independência.

Na minha época de escola nunca ouvi nem li nada disso. Hoje os historiadores sabem, baseados em registros e documentações da época. A pavonice insegura dos machistas tóxicos elaborou a narrativa que foi para os livros escolares. Machismo que ainda hoje mata cruel e covardemente várias mulheres por dia no Brasil. E que “fez a cabeça” da minha geração (homens e mulheres), dentre outras discriminações.

Narrativas
Esse longo “delay” de 66 anos entre o evento e a famosa pintura de Pedro Américo só é menor que o espaço de tempo decorrido entre a morte de Jesus Cristo e os primeiros relatos: 70 anos. Os evangelhos de São Tomé, Maria Madalena e outros foram proibidos pelo Concílio de Niceia, convocado pelo imperador romano Constantino.

Leopoldina era membro da família real austríaca, de pensamento alinhado com os chamados “déspotas esclarecidos”, incomuns na época, porém marcantes pela visão e decisões alinhadas com o progresso social de seus povos. Ou pelo que assim podia ser entendido diante dos padrões vigentes.


Em síntese:
O nascimento do Brasil independente ocorreu por decisão e pela assinatura de uma mulher !


E agora, por conta da minha imaginação. Ela pode ter dito ao emissário: “Corra! Entregue esta carta a ele. E diga ao paspalho que encene uma proclamação perante sua tropa. Vá!”

Viva a independência do Brasil!

(*) Antônio Aurélio do Amaral é engenheiro.

Sete de Setembro

José Horta Manzano

Pra quem não conhece, vamos começar do começo. Por estrada de rodagem, a distância entre Santos e São Paulo é de mais ou menos 70km. Dizendo assim, parece pouco, mas o desnível faz toda a diferença. Santos fica à beira-mar, enquanto SP se encontra num platô, a uma altitude de mais de 700 metros. Hoje, viajando num carro confortável, sobre quatro rodas de borracha girando no asfalto, a gente nem se dá conta de que subiu a serra. Duzentos anos atrás, eram outros quinhentos.

Dia 7 de setembro de 1822, o filho do rei fez a viagem de subida. Não se sabe como estava o tempo, se fazia sol, se chovia, se estava fresquinho ou quente como o diabo. Aliás, não se sabe grande coisa. Certo é que a viagem era laboriosa, cheia de perigos e imprevistos. Caminhava-se com as próprias pernas, quiçá agarrando em árvores. Cavalo não subia a serra. A tarefa de portar as bagagens era entregue a mulas. Nenhum viajante estava ao abrigo de um temporal, de um deslizamento de terreno ou de uma onça faminta que atacasse um infeliz que tivesse se apartado por via de uma necessidade urgente.

O príncipe, cujo caráter não era dócil, há de ter chegado ao planalto exausto e de maus bofes. Dizem que, naquele dia, estava com dor de barriga, o que só fazia piorar a situação. Na escola, aprendemos que um mensageiro o alcançou. Falando em mensageiro, não sei de onde terá saído esse personagem. Vinha do litoral ou de São Paulo? A história diz que a mensagem vinha do Rio. Dado que, naquele tempo, não havia estrada de ferro nem de rodagem, o moço terá vindo necessariamente pelo mesmo caminho que o príncipe. Portanto, também terá subido a serra. Como é que ele fez pra alcançar o príncipe às margens do Ipiranga, já às portas de SP? Subiu às carreiras? Enfim, isso não tem muita importância.

O magrinho e bem-comportado Riacho Ipiranga, São Paulo. Ao fundo, o Monumento da Independência.

O fato é que Dom Pedro não apreciou continuar a ser teleguiado desde Lisboa. Aconselhado por assessores, entrou na onda da independência das colônias americanas. A febre de movimentos independentistas tinha começado com as colônias inglesas da América do Norte, em 1776. A partir daí, os territórios castelhanos já se haviam despedaçado em quase duas dezenas de países. As colônias portuguesas estavam até atrasadas, situação que ajudou o filho do rei a tomar sua decisão (antes que algum aventureiro o fizesse).

Festejamos o Sete de Setembro como se dia de glória fosse. Fico um tanto pensativo. Gosto de examinar as coisas pelo avesso, fazendo a pergunta: “E se não tivesse acontecido?”. É puro exercício intelectual, que ninguém muda o passado. Mas como teria sido se Dom Pedro, cansado e com fome, tivesse decidido guardar a mensagem no bolso pra ler mais tarde, e tivesse tocado a mula pra chegar a São Paulo antes do anoitecer?

Neste ponto, pra continuar no exercício de futurologia-do-que-não-foi, é preciso admitir que nenhum movimento posterior tivesse conseguido a independência do Brasil. Os territórios lusos da América do Sul fariam parte do Império Português até hoje. Para nós, os brasileiros do século 21, isso seria um drama?

Não acredito. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves seria um império rico e importante. Seria, de longe, a nação mais populosa da Europa, bem mais que a Alemanha. Não haveria essa incômoda distinção entre europeus e americanos, dicotomia que, em geral, nos humilha. Assim como a Guiana Francesa faz parte da França, nós faríamos parte da União Europeia – uma vantagem e tanto.

Quanto ao desenvolvimento do Brasil, não acredito que tivesse sido muito melhor nem muito pior. Não há relação direta entre o desenvolvimento e o fato de o país ser independente. Canadá, Austrália e Nova Zelândia, que estão entre os países mais avançados, fazem parte do Commonwealth e reconhecem a rainha da Inglaterra como soberana, numa situação de semidependência.

Poderíamos ficar até amanhã neste exercício de futurologia-do-que-não-foi. De qualquer maneira, toda comprovação será impossível. Acredito que, muito mais do que comemorar bobamente uma independência que não mudou grande coisa no país, deveríamos escolher outros heróis. Mais vale festejar os que trabalharam para melhorar a Instrução Pública e a Saúde Pública. A abertura de um posto de saúde vale tanto quanto ou mais que um grito de independência, ainda que saído da boca de um príncipe.

O crime não compensa

José Horta Manzano

No Brasil, nas altas esferas do poder, a Operação Lava a Jato começa a ensinar que o crime nem sempre compensa. A demonstração ainda é tímida, mas todo começo é árduo. Um exemplo da dificuldade enfrentada pela operação é o foro privilegiado, esse espólio que esqueceram de enterrar. Ele tem servido de escudo pra muito bandido com mandato. Mas deixe estar: está fazendo água. Se nada de extraordinário acontecer, o foro está com os dias contados.

Uma clara mostra de que o crime, por mais continuado e incisivo que seja, não compensa acaba de nos chegar da Espanha. Sessenta anos atrás, um grupo de cidadãos fundou uma organização armada com o intuito de promover a independência do País Vasco ‒ uma região espanhola ‒ e de transformar o território numa república socialista. Para atingir o objetivo, ficou combinado que o melhor caminho era o terrorismo. O movimento tomou o nome de Euskadi ta Askatasuna (ETA), que se traduz por País Vasco e Liberdade.

Do fim dos anos 1960 até 2010, a história da Espanha se tingiu de sangue. Bombas e rajadas de metralhadora derrubaram policiais e civis indistintamente. A contabilidade macabra registrada pelo Ministério do Interior confirma 854 assassinados e 6.389 feridos, sem contar os 79 sequestrados ‒ 12 dos quais acabaram assassinados. Uma abominação.

Esta semana, a organização criminosa anunciou sua autodissolução. Em que pese essa hecatombe, os sessenta anos de luta armada não atingiram o objetivo. A Espanha continua inteira. O País Vasco não se separou nem o socialismo (leia-se comunismo) se implantou. Os milhares de vítimas foram inúteis. Assassinados ou estropiados para o resto da vida! Toda essa barbárie deu em fracasso total. O crime, claramente, não compensou.

Suicídio à catalã

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 outubro 2017.

Em 1939, disparado o último tiro da sangrenta guerra civil, a Espanha mergulhou numa ditadura longeva. Foram quase quarenta anos durante os quais nem Catalunha nem província espanhola alguma tinha direito de utilizar a língua regional. Pra se exprimir na língua materna, catalães, bascos, galegos e demais bilíngues tinham de fechar portas e janelas. E falar baixo, que o controle era pesado. Foram décadas de medo e de opressão, em que pai desconfiava de filho e irmão desconhecia irmão.

Promulgada três anos depois da morte do caudilho, a Constituição de 1978 devolveu aos cidadãos espanhóis as liberdades que lhes haviam sido sonegadas pela ditadura. Ampla autonomia foi concedida às províncias históricas. Dos catalães, o referendo convocado para validar a carta magna recebeu aprovação de 91%, taxa superior à média nacional. A língua local ganhou estatuto oficial em pé de igualdade com o castelhano. De lá pra cá, nas ruas, nas escolas, nas administrações e no governo provincial, o catalão é língua veicular. Nove em cada dez funcionários públicos respondem à administração local e não a Madrid. Os cidadãos contam com assembleia provincial eleita pelo sufrágio universal. Têm até um corpo de polícia regional. Não se pode, em sã consciência, classificar os catalães como povo oprimido.

No entanto, já faz anos que os dirigentes da província vêm soprando as brasas do sentimento nacionalista. Cada um dos sucessivos presidentes da região parece nutrir a vaidade de se tornar um Bolívar dos tempos modernos, um herói da independência. De tanto apregoarem que a secessão traria riqueza e felicidade para todos, conseguiram convencer parte dos cidadãos. Muitos acreditaram e o movimento foi crescendo até desembocar num plebiscito organizado à valentona e considerado ilegal por Madrid.

A partir daí, episódios desastrosos se sucederam. Por um lado, manifestações independentistas; por outro, passeatas unionistas. Intervenção enérgica da polícia nacional contra benevolência da polícia local. Declarações madrilenhas ancoradas na Constituição versus pronunciamentos barceloneses assentados numa (romântica) exaltação nacionalista. Se revoluções não estivessem fora de moda, todas as condições estariam reunidas para um levante armado. Por sorte, povo de barriga cheia não costuma pegar em armas.

Mas o dinheiro ‒ ou a perspectiva de empobrecer ‒ está forçando os catalães a encarar a realidade. Inquietas com a querela, muitas empresas se estão prevenindo contra más surpresas. Cerca de 1500 delas, por recear dupla tributação, já se transferiram para outros recantos da Espanha. De fato, o temor é de que tanto Madrid quanto a província rebelde cobrem impostos, o que criaria um enrosco fiscal inaceitável.

Tem mais. Para existir, um estado independente tem de ser reconhecido. A União Europeia já deixou claro que não reconhecerá o novo país. Dado que numerosas regiões europeias nutrem veleidades separatistas, a aceitação da independência catalã encorajaria movimentos semelhantes na França, na Itália, na Bélgica, no leste europeu. Nenhum Estado vê com bons olhos manobras que possam afetar sua integridade territorial. O novo país teria até dificuldade em se tornar membro da ONU, pois França, Rússia e China, que têm direito a veto, tenderiam a bloquear a adesão. Uma Catalunha independente periga ficar solta no mapa, como navio fantasma, um Estado não reconhecido.

Na altura em que escrevo, é impossível prever o desenrolar dos fatos num futuro próximo. Os dirigentes provinciais ultrapassaram a linha vermelha e se meteram num dramático dilema. A opinião pública catalã exige que cumpram o que alardearam e proclamem, por fim, a independência. Se o fizerem, no entanto, incorrerão em crime de alta traição, passível de ser punido pela justiça espanhola com 30 anos de cárcere. Foram longe demais, ultrapassaram a encruzilhada. Sero in periclis est consilium quærere ‒ quando se está no meio do perigo, é tarde demais para pedir conselho.

Por essas e outras, os independentistas catalães têm de botar água na fervura. Na (remota) hipótese de conseguirem o que pretendem, seriam rejeitados e boicotados por todos os vizinhos. Não teriam outra solução senão tornar-se semicolônia russa ou chinesa. Ou centro europeu de jogatina, uma espécie de Las Vegas mediterrânea. Seria verdadeiro suicídio. Mais vale deixar como está.

Nota
Artigo escrito antes do simulacro de proclamação de independência encenado pela assembleia provincial catalã em 27 de outubro.

Tudo errado

José Horta Manzano

Contra a atual corrente que leva pequenos Estados a unir forças para atingir «massa crítica», como se costuma dizer, o movimento independentista tem-se exacerbado na Catalunha, uma das regiões autônomas que formam o Reino da Espanha. Liberdade de usar a própria língua e permissão de ser dirigidos por governo autônomo não lhes parecem suficientes. Muitos catalães querem cortar o cordão umbilical e conseguir independência total.

As motivações são tão diversas quanto o número de adeptos da independência: cada um tem avaliação própria do assunto. Não há um objetivo único. Cada cidadão tem sua visão pessoal. Visto assim, de fora, é difícil entender.

Entre os partidários da separação, há de tudo. Alguns se sentem oprimidos pelo governo central, como se não passassem de colônia de Madrid. Outros, menos altruístas, julgam que o fato de não serem independentes atravanca o progresso da região que, afinal, tem o PIB per capita mais elevado do país. Há ainda os ressentidos, aqueles que viveram os anos da ditadura franquista e não conseguem esquecer o (longo) tempo em que, rebaixados e humilhados, não tinham sequer o direito de utilizar a própria língua.

Do outro lado da cerca, estão os que se opõem à separação. Mais realistas, dão-se conta de que a Espanha é o maior comprador da produção catalã e que, sem esse importante cliente, a produção local periga desabar. Muitos se lembram também de que, uma vez independentes, serão automaticamente excluídos da União Europeia. Para toda nova admissão no clube, a regra exige aprovação unânime. É aí que a porca torce o rabo: como conseguir aprovação da Espanha? Não será tarefa simples. Tem mais. Os mais idosos se perguntam quem garantirá sua pensão de velhice? E a questão da nacionalidade, como é que fica? Que fatores determinarão quem será e quem não será catalão? E a dupla nacionalidade será reconhecida? E a moeda ‒ obterão permissão para continuar dentro da zona do euro?

Muitas são as questões em aberto. Tenho, cá pra mim, a impressão de que, se Madrid permitisse a realização do plebiscito, o resultado poderia ser decepcionante para os independentistas. Embora sejam muito barulhentos, nada garante que sejam majoritários.

Por seu lado, a atitude que está sendo tomada pela Espanha é prepotente e antipática. Proibir a consulta popular, confiscar urnas e cédulas de voto pode ficar bem numa Venezuela. Na Espanha, não combina. Antipatia gera antipatia. Prepotência provoca violência. O empenho de Madrid em impedir a realização do plebiscito deixa a impressão de que o direito à independência está sendo negado a uma imensa maioria de cidadãos. Pode ser que não passem de minoria. Sem plebiscito, quem saberá?

Entendo que a Espanha não queira ver seu território amputado de uma região importante. Assim mesmo, julgo que, se os catalães querem seguir o próprio caminho, que assim seja. Tchau e bênção. Madrid deveria adotar atitude menos prepotente. O fato de proibir o atual plebiscito não sufocará o anseio independentista de muitos catalães. Melhor seria deixar que votassem. Se, como imagino, o voto unionista fosse majoritário e o plebiscito confirmasse isso, os ânimos se acalmariam por dez anos pelo menos.

Nota
O território da Catalunha, cuja capital é a cidade de Barcelona, se estende por 32 mil quilômetros quadrados, pouco mais que nosso estado das Alagoas. Conta com 7,5 milhões de habitantes, um pouco mais que a população do estado do Maranhão.

Uns que choram

José Horta Manzano

A queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética provocaram uma onda de choque que varreu todo o leste europeu. Durante os anos que se seguiram, os países satélites da URSS sentiram que era chegado o momento de reaver a independência perdida no epílogo da Segunda Guerra.

Chamada da mídia eslovena, 9 nov° 2016

Chamada da mídia eslovena, 9 nov° 2016

Um a um, foram todos retomando a soberania que havia sido posta de molho durante mais de quarenta anos. A Iugoslávia, embora não sendo propriamente um «satélite», foi palco de processo mais traumático que os demais. Guerras fratricidas ensanguentaram a região durante anos. Ao final, a federação explodiu e deu lugar a meia dúzia de pequenos países independentes.

Entre eles, está a Eslovênia. Apesar do território exíguo e da população diminuta ‒ ou talvez por causa disso ‒, separou-se mais tranquilamente que os vizinhos. Quando, por plebiscito, os eslovenos optaram pela independência, o poder central iugoslavo fez menção de invadir o novo Estado. Mas o conflito durou pouco. Em poucos dias, sob pressão da Comunidade Europeia, um tratado selou a separação e pôs fim às hostilidades.

Chamada da mídia eslovena, 9 nov° 2016

Chamada da mídia eslovena, 9 nov° 2016

O território esloveno é pouco menor que o de Sergipe. A população do país não passa de dois milhões de pessoas. Assim mesmo, o PIB por habitante é quase o dobro do brasileiro. O país é tranquilo, com paisagens muito bonitas, um daqueles lugares de que pouco se fala, onde raramente acontece algo importante.

Estes dias, enquanto eventual eleição de Donald Trump assustava muita gente, as expectativas na Eslovênia divergiam do resto do mundo. A razão é peculiar: a eslovena Melania Trump (nascida Melanija Knavs) será a nova primeira-dama americana pelos próximos quatro anos. A ex-modelo está casada há onze anos com o presidente eleito.

Chamada da mídia eslovena, 9 nov° 2016

Chamada da mídia eslovena, 9 nov° 2016

Ao falar de Trump, a mídia eslovena nunca perde a ocasião de dirigir os holofotes para Melania. Se os cidadãos do pequeno país pudessem ter votado, Trump teria sido eleito por maioria staliniana se não por unanimidade.

Uns que choram, outros que riem. E vamos em frente.

Organização dos Estados Americanos

José Horta Manzano

Desde que os primeiros europeus aportaram no continente americano, começaram a surgir estabelecimentos estáveis e permanentes. Ingleses, franceses, portugueses, espanhóis, holandeses se fixaram ao longo da costa.

Com o passar do tempo, colônias inglesas, portuguesas e espanholas se mostraram mais vigorosas que as demais. À custa de muito enfrentamento e muita briga ‒ tudo temperado com boa pitada de vaidades pessoais ‒ as colônias primitivas foram-se sentindo cada dia mais fortes para pleitear independência da metrópole. Após pouco mais de três séculos de colonização, a maior parte do território tinha alcançado independência. Uma vintena de novos Estados havia surgido.

OEA 1A linha histórica comum a todos incentivou-os a criar um foro de encontro e discussão. A ideia, que já vinha das primeiras décadas do século 19, foi tomando corpo com os anos. A forma atual foi sacramentada com a adoção da Carta de 1948, quando todos os países americanos independentes aderiram à Organização dos Estados Americanos.

Por seu peso econômico e militar, os EUA sempre representaram papel importante no bloco. No entanto, tirando um ou outro esporádico atrito aqui e ali, essa situação não incomodou a maioria. Isso durou até o fim do século 20.

Os anos 2000 trouxeram mudanças significativas que viriam balançar o coreto. Governantes populistas e pseudonacionalistas pipocaram em diversos países do continente. Venezuela, Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Honduras, Nicarágua sofreram as agruras que esse tipo de medalhões costuma gerar. Pouco a pouco, os regimes vão caindo de podres. Mas as consequências da corrupção e da incompetência se farão sentir por muitos anos.

OEA 2No auge do movimento populista, dirigentes se mancomunaram na defesa de seus interesses. Como outros governantes autoritários registrados pela História, julgavam-se inamovíveis e definitivamente instalados. Nosso guia juntou-se aos pranteados Chávez e Kirchner para fundar uma nova organização. No fundo, funcionaria exatamente como a OEA, com uma grande diferença: os EUA não seriam admitidos no clube.

E assim foi feito. Criou-se a Unasur, que as más línguas apelidam de União dos Cucarachas. Lula, Chávez, Kirchner & companhia exultaram por ter mandado a OEA para escanteio. Enfim, livres dos imperialistas!

Interligne 18h

Estes dias, em desespero de causa, os advogados de dona Dilma estão queimando os gravetos de que ainda dispõem para alimentar fogareiro moribundo. Algum assessor, brilhante como os demais, teve a genial ideia de denunciar, pela milésima vez, o «golpe» desferido contra a (ainda) presidente.

Diabo 3Para obter maior eco internacional, foi escolhida naturalmente a Unasur, certo? Errado, distinto leitor. Engolindo cobras, lagartos e jacarés, apelaram para… a Organização dos Estados Americanos. Ai, ai, ai… Pedir socorro aos odiados «loiros de olhos azuis», que vergonha! Só faltava isso.

Nossa idolatrada líder declarou, um dia, que, nas eleições, «se faz o diabo». Agora fica claro que não é só nas eleições

De lemas e motes

José Horta Manzano

A maioria dos países adotou um lema nacional. Não é obrigatório, mas costumeiro. Muitos deles são binários (Patria o Muerte) ou ternários (Liberté, Égalité, Fraternité). Há os que seguem outro padrão, como o AEIOU do falecido Império Austríaco: Austriae Est Imperare Orbi Universo ‒ cabe à Áustria reger o mundo. Presunçoso, não?

Lema 3Um exame mais atento dá boas pistas sobre o foco das prioridades nacionais no momento em que cada divisa foi escolhida. A inquietação com relação à coesão nacional é generalizada, com especial ênfase em países que congregam etnias, religiões ou línguas variadas. Boa parte das antigas colônias na África segue a receita:

Maláui:              Unidade e Liberdade
Burkina Faso:        Unidade, Progresso, Justiça
Costa do Marfim:     Unidade, Disciplina, Trabalho
Rep. Centroafricana: Unidade, Dignidade e Trabalho
Gabão:               Unidade, Trabalho, Justiça
Serra Leoa:          Unidade, Liberdade, Justiça
Angola:              A União faz a Força
Burundi:             Unidade, Trabalho, Progresso

Além desses, mais uma dezena de africanos inclui no lema a aspiração à unidade nacional. Foge à regra a divisa de Botsuana. Resume-se a uma palavra: Pula que, no dialeto banto falado naquelas bandas, significa chuva. É de crer que o clima seja bastante árido.

Lema 5Nas Américas, domina a sensação de falta de liberdade. Alguns séculos depois da chegada do colonizador, foram surgindo gerações de nativos que identificaram no europeu o agente da opressão. No momento em que se tornaram independentes, os novos países adotaram motes que faziam alusão à liberdade recém-conquistada.

Os anos que se seguiram demonstraram que o colonizador não era o único responsável pela opressão e que a liberdade podia ser suprimida por conterrâneos, como de fato foi. Cubanos, venezuelanos, haitianos e até brasileiros já viram esse filme.

Vários dísticos americanos exaltam a liberdade:

Argentina:       Na União e na Liberdade
Colômbia:        Liberdade e Ordem
Rep. Dominicana: Deus, Pátria, Liberdade
Guatemala:       Liberdade
Peru:            Livre e Feliz pela União
Uruguai:         Liberdade ou Morte

Lema 1Na Europa, vários lemas mencionam Deus: Dinamarca, Liechtenstein, Monaco, Polônia, por exemplo. Sintomaticamente, a Moldávia, pequeno país de língua latina espremido entre vizinhos de fala eslava, escolheu mote apropriado: «Nossa língua é um tesouro».

Curiosa é a divisa da Itália: «Una Repubblica democratica, fondata sul lavoro» ‒ uma República democrática baseada no trabalho. A frase aparece já no primeiro artigo da Constituição de 1946. A menção à democracia é compreensível para um povo que acabava de se livrar do regime fascista. Já a alusão ao trabalho é mais intrigante.

Lema 4Para finalizar, vamos lançar uma rápida vista d’olhos a nosso conhecido «Ordem e Progresso». Trata-se de abreviação de frase bem mais longa forjada pelo pensador Auguste Comte. O original francês é: «L’amour pour principe et l’ordre pour base; le progrès pour but.»o amor como princípio e a ordem como base; o progresso como objetivo.

Em geral, slogans não me agradam. Mais imprudente ainda é transformá-los em símbolo nacional. Situações mudam, a vida segue e a frase pode deixar de fazer sentido. Pode-se chegar ao ponto de ter de explicar o que a frase significava no contexto em que foi escrita.

Não é nosso caso, como sabem os distintos leitores. Nosso lema continua sendo aspiração de todos. Ordem, nunca tivemos. A cada vez que a coisa parecia bem encaminhada, sobreveio mudança brusca de regime, capaz de tudo demolir e de nos obrigar a reconstruir a partir do zero.

Lema 2Quanto ao progresso, com altos e baixos, a segunda metade do século XX trouxe muita esperança e muito otimismo. Até não faz muito tempo, parecia até que estávamos chegando lá.

Desgraçadamente, de um ano pra cá, descobrimos que muitos dos avanços apregoados não passavam de propaganda enganosa. Na verdade, o ritmo de transformações diminuiu tanto que temos hoje a sensação de regredir.

Que «Ordem e Progresso» continue sendo nosso lema. Ainda falta muito, mas, quem sabe, um dia ainda chegamos lá.

A rabugice e a kalachnikov

José Horta Manzano

Interligne vertical 12«Je défendrai mes opinions jusqu’à ma mort, mais je donnerai ma vie pour que vous puissiez défendre les vôtres.»
«Hei de defender minhas opiniões até morrer, mas darei a vida para que você também possa defender as suas.»

François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), escritor e filósofo francês.

Nem sempre é fácil aturar o contraditório. Ter de suportar opinião contrária à nossa não é exercício agradável. Que fazer? Não tem jeito: a convivência entre desiguais é a base da sociedade civilizada. Não é agradável viver num grupo de pensamento único, onde a expressão individual é proibida.

Psiu 1O fato de não tolerar ideias distintas é mau sinal. No mínimo, mostra insegurança, medo, preocupação. É indicador seguro de fraqueza. O desconforto em coabitar com opiniões divergentes pode ser expresso de diversos modos. Vai da ranzinzice até o assassinato.

O sujeito de ideias liberais que não suporta o falatório inflamado do primo comunista prefere desaparecer quando o parente chega de visita. Já o fraco de espírito – pouco instruído, doutrinado e fanatizado – parte direto para o assassinato: foi o que vimos dia 7 jan° 2015 em Paris, quando doze viventes foram ceifados por rajadas de metralhadora.

Metralhadora 1Há os que fogem do primo falante. Há também os que sacam da kalachnikov. Há ainda outros métodos de calar opiniões que estorvam. Os que nos governam atualmente, vendo que a massa pensante do Brasil é barreira para a conquista de seus objetivos hegemônicos, procuram um meio de silenciar vozes discordantes.

Pisoteiam nossa história. A liberdade, em todas as suas facetas, tem sido o alvo maior da luta do povo brasileiro. O símbolo do apreço que temos por esse bem precioso aparece, logo de saída, na data mais importante do País. Nem a insituição da República, nem o dia de Natal, nem o dia de Tiradentes, nem o Dia das Mães é comemorado com a mesma ênfase que o 7 de setembro. E por quê? Porque marca a conquista da liberdade, nossa maior riqueza.

Censura 1Nossa presidente, que se autoproclama «democrata» e que costuma dizer que combateu a ditadura para que o Brasil recobrasse a liberdade, chefia um governo que insiste em instaurar a censura dos meios de comunicação.

O plano vem com nome adocicado, mas não consegue ocultar seu verdadeiro objetivo, que é calar vozes discordantes. Para evitar esse retorno ao obscurantismo, pressão tem de ser exercida sobre nossos distraídos parlamentares. Em última instância, a aprovação desse monstrengo legislativo depende deles.

Abram o olho, compatriotas! Guardadas as devidas proporções, rabugice, kalachnicov e «regulação da mídia» são farinha do mesmo saco. Todas elas exprimem intolerância para com opiniões divergentes.

Feriado

José Horta Manzano

Li ontem que o tráfego estava pesado por causa do feriado. Feriado? Que feriado? Olhei pro calendário – que eu, teimosamente, ainda chamo de ‘folhinha’. Pensei: «Mas… o 15 nov° já passou. Que feriado é mesmo esse dia 20?»

Crédito: Jodi Cobb

Crédito: Jodi Cobb

Hoje de manhã, rádio e jornal me ensinaram. É celebração nova, eis porque eu não estava a par. Marca a data de falecimento do jovem Zumbi, figura controversa de cuja existência não há provas sólidas. Os estabelecimentos lusos em terras sul-americanas no século XVII não eram conhecidos por rigorismo documental. Poucos eram os que sabiam escrever. Pouca era a preocupação em deixar memória escrita, e pouco escrito deixaram.

O feriado novo me fez refletir sobre os tradicionais. Constatei que, com uma ou duas exceções, os dias em que assalariados ganham sem trabalhar rememoram alguma ruptura histórica, alguma conquista de grupo minoritário com relação à lei vigente. Senão, vejamos.

Festas cristãs
Natal, Páscoa, Na. Sra. Aparecida, Corpus Christi são elas. Essas festas parecem tão evidentes que deixam a impressão de que sempre existiram. Não é exato. Dois mil anos atrás, os seguidores do Cristo eram escassa minoria.

Considerados ‘iluminados’, eram gente disposta a dar a vida em sacrifício por um ideal. O grosso da população não concebia lógica nessa obstinação. Para os padrões da época, a doutrina introduzida por aqueles ‘destrambelhados’ representou, sem sombra de dúvida, uma ruptura e tanto.

TiradentesTiradentes
Aprendemos todos na escola: Tiradentes é o ‘protomártir’ da independência do Brasil. Um parêntese para comentar que o epíteto não é o mais adequado. Protomártir, em rigor, quer dizer o primeiro a sacrificar-se. Ora, vários cidadãos se tinham, por motivos vários, alevantado contra a metrópole bem antes do tira-dentes mineiro. Atribuir a ele a primazia é problemático. Fechemos o parêntese.

Para nossa história de hoje, pouco importa ter ele sido ou não o primeiro. Ao fim e ao cabo, a verdade é que o 21 de abril marca a mais vistosa tentativa de abolição do regime vigente. Seu objetivo era a ruptura.

Independência
Essa é moleza, todo o mundo sabe. Nos bancos escolares aprendemos que, depois de subir a serra em direção a São Paulo, o buliçoso e imprevisível Pedro, filho do rei, decidiu dar um golpe em família. Era um 7 de set°. Menosprezou as ordens do pai e autodeclarou-se ‘defensor perpétuo’ do território onde se encontrava. A rebeldia do jovem príncipe causou profunda e irreparável ruptura.

Marechal DeodoroRepública
Essa também nos ensinaram no grupo escolar. (Para quem não sabe, era assim que se chamavam os primeiros quatro anos do ensino elementar.) Num 15 nov°, o Exército Imperial Brasileiro – personificado na ocasião pelo general Deodoro da Fonseca – deu golpe militar, destituiu imperador, derrubou governo e rasgou Constituição. Se isso não foi ruptura…

Trabalho
O Dia Internacional dos Trabalhadores é consequência direta da Revolução Industrial, de fins do séc. XVIII. A máquina a vapor viu pipocar fábricas por toda parte e criou nova casta de cidadãos: os empregados assalariados. Nas primeiras décadas, aqueles trabalhadores eram tratados como se escravos fossem. Folga, feriado, pausa, aposentadoria, salário mínimo, segurança no trabalho eram noções desconhecidas.

De conquista em conquista, a classe trabalhadora conseguiu melhorar condições de trabalho e de remuneração. É o que se comemora no 1° de maio: a abolição dos resquícios de ordem feudal e a instituição da relação empregatícia. Uma ruptura e tanto.

ZumbiZumbi
No meu tempo, se aprendia que a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 maio 1888, marcava o fim da escravidão, uma senhora ruptura da ordem vigente. Foi guinada tão impactante que selou o destino do regime monárquico. De fato, um ano e meio mais tarde, ele seria derribado.

Confesso que me escapa a razão pela qual se parece querer atribuir ao falecimento do Zumbi importância maior do que à abolição da escravatura. Costumo passar ao largo de considerações ideológicas – principalmente quando amplificam o risco de dividir a população em castas do tipo «nós contra eles».

Há de ser por isso que não atino com o objetivo por detrás dessa recomendação que nos chega do andar de cima. Parece que não sou o único nesta situação. Outros também hesitam em abraçar valores que exaltam diferenças raciais.

A Lei n° 12.519, sancionada pela presidente da República em 2011, institui o Dia Nacional do Zumbi, mas não determina que o trabalho assalariado cesse nessa data. Dentre os mais de 5500 municípios brasileiros, apenas cerca de 1000 comemoram a data com feriado.

Detalhe curioso
O Quilombo dos Palmares, onde teria vivido o Zumbi, situava-se entre os atuais Estados de Alagoas e Pernambuco. Acredite o distinto leitor ou não: o 20 novembro não é dia feriado em nenhum dos municípios do Estado de Pernambuco.

O fim da zelite

José Horta Manzano

Segundo o discurso oficial, a zelite foi apeada do poder doze anos atrás. Desde então, nos livramos da promiscuidade entre o probo e austero governo tupiniquim e o execrável e corrupto império norte-americano.

Demos as costas ao bicho-papão para melhor dar as mãos a compañeros mais póximos do nosso feitio. Ahmadinejad, os Castros e Chávez foram os primeiros. Depois aceitamos novos sócios no clube dos virtuosos: Correa, Evo, Ortega, Zelaya e a inefável señora de Kirchner. As inscrições continuam abertas, mas por tempo limitado.

Para coroar tudo, estabelecemos as bases de uma sólida, profícua e duradoura parceria estratégica com a Rússia, a Índia e, principalmente, com a China. Foi a melhor decisão político-econômica jamais tomada na história deste país. Afastamo-nos dos malvados e atrelamos nosso vagão à locomotiva chinesa que representa, sabemos todos, o futuro brilhante da humanidade. Um modelo de equidade, lisura e justiça.

Perdemos algumas plumas no meio do caminho, é verdade. Mas que importa se descemos alguns degraus, se nos desindustrializamos, se voltamos a ser produtores de matéria-prima? Isso é coisa pouca se comparado ao caminho radioso que preparamos para nós mesmos.

O grito lançado em 1822 pelo filho do rei tinha ficado meio entalado na garganta. Afinal, que história é essa de o símbolo maior da zelite ― o herdeiro da coroa! ― liberar o país? Coisa esquisita. Pois agora a obra está completa. Estamos independentes!

O governo popular, preocupado exclusivamente em servir ao povo, fechou o círculo. Os peçonhentos americanos ― ou estadunidenses, como usam dizer alguns ― foram definitivamente removidos de nosso horizonte.Interligne 18d

Excelente reportagem de investigação assinada por Rubens Valente e publicada na Folha de São Paulo deste 15 de julho contradiz frontalmente os parágrafos anteriores. Essa história de bater na madeira e nos isolar dos malvados do Norte não passa de cortina de fumaça, produto de elaborado marketing palaciano. A história real é bem diferente.

Se já não o fizeram, leiam a reportagem da Folha. Ela nos informa que os serviços de inteligência dos Estados Unidos continuam colaborando estreitamente com a Polícia Federal brasileira. Acordos ― alguns sigilosos, outros não ― continuam sendo firmados entre os dois países.

Ajuda financeira

Ajuda financeira

Entre 1999 e 2008, ajuda financeira por um total de 140 milhões de reais foi oferecida pelas autoridades americanas. E, naturalmente, aceita pelos altos responsáveis brasileiros.

Essa detestável zelite não tem jeito mesmo: a gente enxota pela porta, e ela entra pela janela. Acabrunhado, o governo popular não sabe mais que fazer.

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Interligne vertical 5Nota pessoal:
Não tenho notícia de que nenhum de nossos parceiros estratégicos ― China, Índia, Venezuela, Bolivia, Nicarágua, Irã & companhia ― tenha desatado os cordões da bolsa para nos enviar alguma ajuda. Nem que fosse simbólica.

Uma reflexão para o 13 de maio

José Horta Manzano

Os primeiros europeus a desembarcarem na ilha Hispaniola estavam a serviço da coroa espanhola. Cristóvão Colombo em pessoa pisou aquelas praias em 1492. Aventureiros logo apareceram à cata de metais preciosos. Encontraram ouro na parte oriental da ilha.

Como no restante das terras americanas, também em Hispaniola grande parte dos indígenas sucumbiu às doenças trazidas pelos estrangeiros. Os poucos que escaparam mostraram-se inaptos ao trabalho servil e preferiram refugiar-se nas zonas montanhosas. Para explorar suas minas, os espanhois recorreram à mão de obra africana, importada em condições de escravidão.

A parte ocidental da ilha, desprovida de riqueza mineral, foi abandonada. Acabou colonizada por franceses, que lá criaram grandes plantações de tabaco e de cana de açúcar. Como os espanhois, também eles se valeram de escravos trazidos da África.

No fim do séc. XVIII, a Revolução Francesa inaugurou um período conturbado. Na confusão daqueles anos, a parte oeste da ilha, depois de muitas peripécias, conseguiu expulsar os cultivadores franceses e declarar sua independência em 1804. Era o nascimento do Haiti, primeiro país negro independente.

Nenhuma potência colonial europeia apreciou. Muito menos a França, que levou mais de 20 anos para reconhecer a perda da antiga colônia e só o fez com uma condição: a de que o novo país pagasse uma indenização de 90 milhões de francos à antiga metrópole. O dinheiro era destinado a ressarcir os plantadores que haviam perdido suas terras. Haiti pagou.

Crédito: Gonzalo Fuentes, Reuters

Crédito: Gonzalo Fuentes, Reuters

Dois séculos se passaram. Alguns anos atrás, o presidente Chirac decidiu designar o 10 de maio como dia comemorativo da abolição da escravidão.

Haiti, como país independente, nunca deu certo. Desde a partida dos colonos, ditaduras, golpes de estado, catástrofes naturais se abateram sobre o país, numa série ininterrupta de infelicidades.

No 10 de maio deste ano, uma ong francesa chamada Cran (Conselho Representativo das Associações Negras) prestou queixa contra a Caixa de Depósitos, estabelecimento bancário estatal francês equivalente a nossa Caixa Econômica. Acusam o banco ― que é um dos braços financeiros do governo francês ― de cumplicidade de crime contra a humanidade.

Referem-se aos milhões que o Haiti pagou para conseguir ter sua independência reconhecida. Segundo o Cran, o montante não foi inteiramente redistribuído aos plantadores, tendo sobrado um saldo que a Caixa embolsou. Calculam que os 90 milhões da época equivalem a 21 bilhões de dólares atuais, montante considerável.

O próprio presidente Hollande já declarou que a queixa não será levada em consideração. Não entendi bem o objetivo real da iniciativa, mas qualquer um percebe que ela não tem a menor chance de prosperar. É mais uma daquelas ideias despropositadas que dão a seus autores 5 minutos de exposição midiática, nada mais.

Concordo que se possa, em parte, atribuir o atraso do pequeno país caribiano ao montante exorbitante pago à antiga metrópole. No entanto, em vez de uma queixa de crime contra a humanidade, melhor seria se pedissem que o governo francês lhes desse uma mão para melhorar a Instrução Pública haitiana.