Nem tudo está perdido

“Quem é que quer saber do passado, agora que o Brasil está voltado para o futuro?”
by Patrick Chappatte (1966), desenhista suíço

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 27 agosto 2022

Afeganistão
Em 2001, na precipitação que resultou dos atentados perpetrados pelos terroristas da Al-Qaeda, o governo dos EUA tomou a decisão de cortar o mal pela raiz. Mandou tropas à região onde se presumia estivesse localizado o esconderijo dos cabeças da organização e deu início à Guerra do Afeganistão.

Relativamente modesta no começo, a força militar engrossou com o passar dos anos. No auge da intervenção, a coalizão encabeçada pelos EUA chegou a contar com um efetivo de 150 mil militares, oriundos de 48 países diferentes.

O objetivo perseguido era, na expressão do presidente Bush Jr., promover uma “guerra ao terrorismo”. Analistas militares botaram olho crítico na expressão e fizeram observar que, numa guerra, há que escolher o inimigo. Terrorismo não é o inimigo, mas apenas o método utilizado por ele. Ninguém faz guerra contra o esquema de combate do adversário. Assim mesmo, a descrição oficial permaneceu bastante vaga na hora de apontar o verdadeiro inimigo.

Em 2021, após duas décadas de ocupação e combates, as forças deixaram o território afegão. Apesar da permanência de vinte anos, foram incapazes de organizar a sucessão e de prever o que ocorreria. Aconteceu um desastre. No dia seguinte ao da partida do último soldado, os Talibãs voltaram, e o país deu um tremendo passo atrás. Foram tempos de morte, sofrimento, medo e privações que não serviram para nada. Em 20 anos ocupando o país, os invasores não aprenderam.

Ucrânia
Em fevereiro deste ano, um ultraconfiante Putin lançou sua versão 2.0 do Exército Vermelho contra a vizinha Ucrânia – país de superfície 28 vezes menor que a da Rússia. Ressalte-se que, desde os tempos da extinta União Soviética, os serviços de espionagem russos estão no topo da excelência. Na Ucrânia, para preparar a invasão, hão de ter tido grande liberdade de ação. Religião, costumes, clima, alfabeto, línguas são comparáveis, quando não idênticos. Um agente russo pode se perder em meio à massa humana de Kiev, por exemplo, sem que ninguém note a presença de um estrangeiro, visto que parte da população ucraniana tem o russo como língua materna.

Apesar dessa evidente vantagem, as boas informações não chegaram ao ditador em Moscou. Não está claro se por ineficiência dos agentes, traição, sabotagem ou algum outro motivo. É até possível que os russos, imaginando que seriam recebidos de braços abertos, tenham contratado espiões ucranianos, que se revelaram ser agentes duplos. A Rússia não levou em conta o patriotismo dos ucranianos.

Nessa guerra, que já dura seis meses, a Rússia vem sofrendo imensos reveses. Seu exército registra extensas perdas humanas e materiais; sua economia levou um baque que a fará recuar vários degraus; a fuga de cérebros jovens e promissores vai fazer falta no futuro; com a adesão da Finlândia e da Suécia, a Otan se aproximou mais ainda de suas fronteiras. Ao final, vê-se que os vinte anos de permanência de Putin no topo do poder não lhe ensinaram grande coisa. Apostou mal, arriscou demais e perdeu tudo.

Brasil
Quem assiste à constante multiplicação de desvios de conduta do presidente da República e a sua bizarra preferência por caminhos desviantes tem o direito de ficar intrigado. E assustado. São quase quatro anos sem um dia de trégua. Insultou dirigentes estrangeiros, ofendeu mulheres e negros, descambou para a homofobia, liberou armamento para todos, respaldou garimpo e desmate ilegais, exerceu o charlatanismo, louvou a cloroquina, vingou-se de servidores probos, menosprezou índios, desprezou a ciência, vilipendiou a cultura, fechou os olhos às milícias, minou a confiança de meio Brasil no sistema eleitoral.

Ao ver um currículo – que digo! – ao ver um prontuário dessa magnitude, a população brasileira tem razão em viver na angústia de um golpe de Estado ao aproximar das eleições. No entanto, recentes declarações do capitão de que aceitará o resultado do voto seja ele qual for tranquilizam. Vão no bom sentido. É um bálsamo saber que, diferentemente de estrategistas americanos e russos, ele parece estar se dando conta a tempo de que sua aventura não teria final feliz. Speremus, fratres!

République bananière

 

José Horta Manzano

“Mas… de onde saiu essa gente?” – é a pergunta que se faz desde que o capitão vestiu a faixa. De onde vem esse povo estranho que cerca o presidente, gente desprovida de inteligência, de bom senso e de lógica, sempre com quatro pedras no bolso e uma faca entre os dentes? Onde se escondiam antes? Como é que passaram despercebidos até chegar ao entorno de Seu Mestre?

Todos os jornais da França, sem exceção, reproduziram a inacreditável fala de Sua Excelência Guedes, ministro-chave desta República, que ousou apontar o dedo para a França e declarar que ela estava “ficando irrelevante para nós”.

O trecho do discurso em que o ministro chantageia o tradicional parceiro do Brasil e o ameaça de “irrelevância”caso não cessem as críticas sobre o desmatamento da Amazônia foi estampado em todos os jornais. Até o palavrão (coisa fina, Guedes!) sujou o papel. Fico aqui imaginando a incredulidade que marcou a expressão dos leitores, gente pouco habituada ao baixo nível da fala de Guedes. Talvez o ministro nem desconfie, mas francês é um povo que lê.

Falando nisso, muitos dados importantes sobre o comércio exterior brasileiro devem estar escapando a nosso bizarro ministro. Levantamento do Estadão mostra que, segundo dados fornecidos pela embaixada da França em Brasília, há 1.042 empresas francesas instaladas em nosso país, que dão emprego a 471.784 funcionários e atingem um volume anual de negócios de 66,1 bilhões de euros (R$ 350 bi).

No ano de 2020, com um volume de 32,3 bilhões de dólares (R$ 165.3 bi) a França foi o terceiro investidor estrangeiro no Brasil, atrás apenas dos EUA e da Espanha. Agora vem o dado mais interessante: enquanto a França ocupa o 11° lugar entre todos os países que vendem para o Brasil, o Brasil ocupa o 36° lugar entre todos os países que vendem para a França.

Tenho o dever de contradizer o ministro e informá-lo de que, no ponto em que estamos, é o Brasil que se está tornando irrelevante para a França, não o contrário. Sem as importações do Brasil, a França poderia continuar funcionando sem sobressaltos. Já sem as importações da França, o Brasil teria problemas.

É verdade que Paulo Guedes é reincidente. Já reclamou do horror que seria ter de viajar de avião ao lado de uma empregada doméstica; já deixou claro que lugar de filho de porteiro não é na faculdade; já insultou a primeira-dama da França ao dizer (em discurso público) que ela era feia mesmo. Tudo isso é verdade.

É verdade que ele é tolo, arrogante, boca-suja, inconsequente, imbuído da própria importância. Só que tem uma coisa: se seu chefe fosse um outro presidente que não Bolsonaro, sua soberba e essa sujeira que lhe sai pela boca ficariam quietinhas, guardadas no fundo de uma gaveta e trancadas a sete chaves. Se abre as asinhas e se comporta como se discursasse para bêbados num botequim, é porque se integrou no time presidencial e absorveu os princípios éticos e morais em vigor no Planalto.

Senhor Guedes acaba de dar excelente contribuição para cristalizar, aos olhos europeus, a imagem do Brasil como legítima república de bananas.

No Brasil, sua fala já saiu das manchetes e faz parte do passado; na França, há de marcar nossa imagem por décadas.

Ainda dá tempo

José Horta Manzano


Num mundo polarizado como o nosso, tentar se equilibrar em cima do muro pode não ser a melhor solução.


Poucos dias antes da invasão da Ucrânia, quando batalhões russos, em quantidade impressionante, já se amontoavam junto à fronteira, Bolsonaro foi a Moscou prestar reverência ao ditador Putin.

A guerra de conquista prestes a ser lançada não lhe pareceu motivo válido para suspender a viagem nem para acrescentar, de última hora, uma “visita de médico” a Kiev – nem que fosse pra equilibrar a posição brasileira.


 

Solidariedade “à” Rússia (sic)

Uma vez em Moscou, declarou – sem ter sido indagado – que o Brasil se solidarizava com a Rússia. Foi mais um erro monumental provocado por seu inexistente senso de geopolítica – fato raro mesmo entre seus antecessores mais incapazes.

Estivéssemos sob outras latitudes, sua carreira terminaria naquele instante e seu futuro eleitoral estaria comprometido por décadas, talvez para sempre. Mas não estamos sob outras latitudes. As nossas são tropicais.

Estourada a guerra, ninguém exigiu do presidente um posicionamento definitivo. E ele não se posicionou. Ficou, pois, o dito pelo dito mesmo. Ficou cimentada a posição do Brasil: todos nós nos solidarizamos com a Rússia. E ponto final. Pô.

Até certo ponto, é compreensível que o capitão procure amigos aqui e ali. Afinal, ele é rejeitado pelo mundo civilizado, justamente em razão das incivilidades que vem cometendo desde que vestiu a faixa. Parodiando a expressão inglesa “serial killer” (assassino em série), eu diria que nosso presidente é pessoa “serially incivilized” (um incivilizado inveterado).


 

Num mundo em plena turbulência, o Brasil precisa de aliados

Procurar amigos é uma coisa; bater à porta de ditadores ferozes e sanguinários é outra, bem diferente. Em vez de solidarizar-se com autocratas belicosos, Bolsonaro estaria mais inspirado se se dedicasse a aparar as arestas e aplainar as relações com os ofendidos. Os que foram por ele agredidos são justamente nossos aliados e parceiros tradicionais, dirigentes de países com os quais compartilhamos interesses comuns.

Se ele um dia ofendeu a esposa de Macron, ignorar a existência da França não é a melhor solução. Veja o resultado: o presidente francês acaba de ser reeleito para mais 5 anos no Eliseu. Se Bolsonaro não procurar consertar esse deslize, as relações franco-brasileiras permanecerão curto-circuitadas esse tempo todo, o que não é boa coisa.

Se insultou o presidente argentino, afastar-se do personagem não é o melhor remédio. Há que ter em mente que a Argentina não vai se mudar amanhã. Não vai sair do lugar e continuará sendo nossa vizinha pela eternidade.


 

É hora de virar a página dos insultos passados e olhar para a frente

Com a carta de desculpas redigida por Temer e assinada por Bolsonaro, este último conseguiu aplacar a indignação dos brasileiros com as barbaridades proferidas naquele 7 de Setembro de triste memória. Que convoque Michel Temer de novo e lhe confie a missão de preencher as lacunas de nossa diplomacia mambembe! O ex-presidente, que é culto, não é ministro de Bolsonaro nem deve favores ao capitão, saberá encontrar termos contritos mas não servis para expressar uma guinada no posicionamento internacional do Brasil neste momento grave para a humanidade.

Enquanto o destino do planeta se decide nas margens do Mar Negro, nenhum país tem o direito de virar a cara e fazer de conta que não é com ele. O peso populacional do Brasil, se não houvesse outra razão, nos obriga a nos posicionar claramente. Se Bolsonaro não sabe o que fazer – e as palavras pronunciadas em Moscou mostram que não sabe – que tome conselho com quem sabe.

A guerra acabará. Bolsonaro passará. Mas o Brasil ficará. Os brasileiros das próximas décadas não podem ser reféns das más decisões de um presidente pusilânime.

Observação
Na verdade, distorcendo a norma gramatical, o capitão não disse que o Brasil se solidarizava com a Rússia, mas que se solidarizava à Rússia. O fundo foi tão desastrado, que ninguém se preocupou com a forma.

As artes do general

José Horta Manzano

Tem certas coisas que, não fosse estarem preto no branco, a gente não acreditava. Um tuíte soltado pelo general Villas-Boas, faz alguns dias, entra nessa categoria. Percebido pela mídia como desimportante, mereceu pouca divulgação.

Eduardo Dias da Costa Villas-Boas é general estrelado. Já ocupou por 4 anos o posto de comandante do Exército Brasileiro, que não é coisa pouca. Um cargo dessa magnitude não está ao alcance de qualquer um. O escolhido há de ter qualidades essenciais: sólida formação, visão estratégica, profundos conhecimentos de geopolítica, aptidão para o comando, ascendência natural sobre os comandados.

Só que… ninguém é perfeito. Nosso general, hoje septuagenário, continua chegado a uma polemicazinha. Por ocasião da campanha de Bolsonaro, em 2018, soltou um tuíte que foi entendido como tentativa de pressão sobre a Justiça que estava para decidir sobre a possibilidade de o Lula se candidatar à Presidência. Como por acaso, a mensagem, redigida em termos sibilinos, foi publicada na véspera do julgamento.

Faz uns dez dias, ele reincidiu. Com a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin tomando o noticiário, o tuíte do general passou despercebido. Melhor assim. Tivesse sido postado por um adolescente, ninguém se encresparia. Vindo da pluma de general estrelado, denotou o lado moleque e infantil do autor.

A mensagem veio com o seguinte título: “O que espera Macron na Amazônia”. Em seguida, um vídeo dramático com imagens de militares brasileiros em treinamento na selva. Como pano de fundo, uma paródia de Bella Ciao, canção identificada com os partigiani italianos – tropas não-regulares formadas por patriotas civis que combatiam o inimigo nazi-fascista na Segunda Guerra Mundial.

Meus leitores hão de se lembrar que, no começo do mandato, Bolsonaro acreditava que um presidente da República pode tudo. Foi quando se indispôs com meio mundo. Mostrou desleixo no combate às queimadas na floresta brasileira. O G7 se alarmou. Em reação, Macron lançou vaga ameaça ao dizer que a “internacionalização” da Amazônia (seja lá o que isso possa significar) estava em debate.

À época, o general Villas-Boas há de ter sentido cheiro de guerra no ar. Agora, que o ogro argentino está domado, um inimigo externo estava sendo procurado. De bandeja, Macron lhe ofereceu o temor que andava fazendo falta a nosso imaginário militar.

Com a finura que o caracteriza, Bolsonaro chegou à baixeza de insultar o presidente da França, ressaltando a feiúra da primeira-dama daquele país. Coisa de cortiço. Mas o general anotou no caderninho e guardou para uso futuro.

Sentindo que a proximidade das eleições presidenciais francesas oferecia um momento ideal para dar uma estocada em Emmanuel Macron, o general soltou o tuíte que descrevi acima. Deu furo n’água.

Primeiro
Por mais general que seja, sua voz é inaudível. Se seu tuíte praticamente passou em branco dentro das fronteiras, lá fora, então, foi olimpicamente ignorado. Publicar esse tipo de artimanha numa época em que o mundo está eletrizado pela invasão da Ucrânia? Francamente… Alguns anos atrás, podia ser que a voz de Villas-Boas ecoasse lá fora; porém, desde que se instalou a era Bolsonaro, nossas picuinhas internas perderam a pouca importância que possam ter tido um dia.

Segundo
A “internacionalização” da Amazônia é inexequível. O general precisa se dar conta de que o Brasil só detém 60% da floresta amazônica. Os 40% restantes se espalham por 7 países estrangeiros. Entre eles, a própria França! A Guiana Francesa, parte integrante do território da República Francesa, tem 90% de seu território recoberto pela selva amazônica. Acha possível um governo decidir “internacionalizar” parte do território nacional? E ainda ter de convencer 8 países amazônicos a seguir o mesmo caminho? E se acertar com os 27 sócios da União Europeia? Convenhamos, general…

Terceiro
Em vez de atirar no pianista, melhor faria o general se se debruçasse sobre a raiz do problema. O planeta está alarmado com a sobrevivência da humanidade. Fontes de energia renováveis e conservação do patrimônio florestal fazem parte da solução. Em vez de fazer ameaças ridículas de combater uma potência nuclear com estilingue, seria mais útil estudar o problema e tentar entender que o maior valor da Amazônia brasileira é seu patrimônio florestal e sua biodiversidade. Nióbio, grafeno, ouro e cloroquina não fazem parte do butim cobiçado por um consórcio de grandes potências.

Quarto
Se alguma(s) potência(s) decidisse(m) se apoderar da Amazônia brasileira, é inútil imaginar embates corpo a corpo na umidade equatorial. Há meios mais modernos e mais eficazes de fazer dobrar um país. O general deveria saber. Falando nisso, a quantas anda nossa proteção contra piratagem informática que poderia, por exemplo, interferir em nossas hidroelétricas e bloquear o país? Ou parasitar os sistemas de comunicação militar?

Para terminar, quero deixar claro que respeito a carreira do insigne militar. Se chegou aonde chegou, méritos há de ter. Nossas diferenças se limitam a uma questão de princípios. Quanto a mim, coloco a dignidade do profissional e do cargo acima da arena em que se debatem espíritos adolescentes e imaturos.

Seu tuíte veio fora de hora e fora de esquadro, general.

Saltitante

José Horta Manzano

Leio no jornal que nosso valoroso capitão, em sua laive de ontem, apostrofou um senador da República. Tratou-o como se mulher fosse – numa evidente ofensa homofóbica. Referindo-se à comissão que toca a CPI da Cloroquina, disse: “Agora, tem uma saltitante na comissão que queria me convocar. É brincadeira, né? Ô, saltitante, está de brincadeira. Não tem o que fazer não, saltitante?”.

A comissão é composta unicamente de senadores, à exclusão de toda senadora. Portanto, ficou claro que a afronta era dirigida a um homem, donde a conclusão que se tratava de insulto homofóbico. Até aí, todos foram.

Só que a imprensa foi mais longe. Chegou à conclusão de que o insultado era Randolfe Rodrigues, senador pelo Amapá. É possível que seja, mas, a meu ver, a imprensa errou. Errou ao dar uma mãozinha ao presidente. Explico.

Bolsonaro é um sujeito covarde. Valentão quando está cercado de seguranças ou quando se exprime através das lentes de uma câmera, o homem se péla de medo de ter de responder por seus atos. Aliás, todo esse inferno que os brasileiros estão tendo de aturar há dois anos decorre do pavor que ele tem de chegar ao fim do mandato, não ser reeleito, e ser um dia despertado pela chegada do japonês da Federal. (É por isso que sonha com manter o poder até o fim de seus dias.)

O capitão imagina que, ao não dar nome ao boi, estará a salvo de toda acusação de injúria. É por isso que eu digo que a imprensa erra ao dar-lhe uma ajudazinha. Em vez de facilitar a vida do ofensor rasteiro, deviam mais é contar o episódio do jeitinho que ocorreu: sem mencionar nome de ninguém. Se assim tivessem procedido, teriam alcançado três objetivos: 1) teriam mantido fidelidade aos fatos; 2) o senador em questão não teria visto seu nome associado a uma ofensa de pinguço; 3) o presidente teria ficado falando sozinho.

Acredito que os jornalistas de bom senso deviam redobrar a atenção. É importante ter sempre em mente que estão reportando atos e fatos de um sujeito traiçoeiro. É indispensável refletir antes de facilitar os desvarios do capitão. Ele não passa de um ser covarde, um indivíduo que se oculta por detrás de escudos que ele julga intransponíveis.

Ele é o exemplo cuspido e escarrado do tradicional dito português: “Feito de vilão – atira a pedra e esconde a mão”.

Bochecha com bochecha

José Horta Manzano

Todos os brasileiros não-robotizados têm uma sensação de desconforto quando doutor Bolsonaro solta suas barbaridades. Elas são costumeiras, mas – que remédio? – a gente não se acostuma. Para nós que vivemos longe da pátria, então, o desconforto é maior; chega a ser vergonha. Quando alguém começa a falar do presidente do Brasil, a gente se mexe na cadeira e quer mais é que a conversa se desvie logo pra outro assunto. É muito chato ter de explicar o tempo como é que esse estropício chegou lá.

Quanto aos ministros, enquanto seus insultos não atingem personalidades do exterior, ninguém fala deles. Felizmente. Só entram para o noticiário quando algum, mais ousado ou com mais pressa de agradar ao chefe, agride um país estrangeiro ou um figurão internacional. Aí, de novo, a gente pode ir se preparando para uma sessão desculpa.

Estes dias foi a vez de senhor Guedes, ministro que gere os dinheiros da nação. Em videoconferência patrocinada por The Aspen Institute – uma célula de reflexão frequentada por investidores estrangeiros –, o auxiliar de Bolsonaro rodou a baiana. Ele falou em inglês. Procurei o vídeo em versão original, infelizmente só circula a versão semidublada, aquela em que a voz do locutor cobre a fala original. Portanto, tenho de botar fé na (má) tradução.

O ministro foi instado a dar explicações sobre a política ambiental do governo do qual participa. Em vez de responder, decidiu, malandro, imitar a manjada linha de defesa lulopetista: arreganhou os dentes e partiu para a agressão pra cima dos mensageiros – no caso, os jornalistas. Disse horrores. Esbravejou lembrando que os EUA já tinham matado seus índios e destruído suas florestas, portanto, que nos deixassem e paz pra matar os nossos e destruir as nossas. Classudo, não?

Cheek to cheek
by Romero Britto (1963-), artista pernambucano radicado nos EUA

Acusou os EUA de serem Estado escravagista e racista. Denunciou a política econômica daquele país por estar dançando «de rosto colado» com a China (a tradução, digna de um aplicativo de tradução automática, diz ‘bochecha com bochecha’, mas desconfio que o original fosse mesmo ‘cheek to cheek’). Num insuperável rasgo de elegância, disse que nem um brasileiro bêbado ousaria conduzir o sistema bancário como fizeram os EUA quando da crise bancária de 2008 – repare na classe! Numa passagem um tanto obscura, mencionou o Lula e disse que estaria dando «apertos de mão» a Obama porque havia corrupção e compra de pessoas no Brasil. Esse pedaço, confesso, não entendi.

Entender o que dizem auxiliares de Bolsonaro é tarefa árdua. Esse senhor Guedes não foge à regra. Petulante, rosna e atira insultos assim que um microfone lhe aparece. Se o objetivo era afastar investidores, o sucesso está garantido. Se era resgatar a confiança do empresariado internacional num governo aprumado, o tiro saiu pela culatra. Se era desviar a atenção da criminosa destruição da Amazônia, em cartaz atualmente, conseguiu o efeito contrário: todos se deram conta de que Guedes tentou fugir às respostas. Fugiu às respostas, mas seu chefe não fugirá às consequências.

Aqui na Europa, a conferência não foi divulgada. Melhor para nós, que não teremos de dar explicação. Tenho pena de nossos conterrâneos que vivem nos EUA – e são muitos. Desta vez, a canseira e a vergonha são para eles. Ânimo, patrícios!

Publicado também no site Chumbo Gordo.

A conta chega

José Horta Manzano

O povo diz que ‘aqui se faz, aqui se paga’. Em linguagem mais elevada, o axioma newtoniano diz a mesma coisa: ‘A toda ação corresponde uma reação oposta e de igual intensidade’. No frigir dos ovos, todos sabem que nada sai de graça, tudo tem seu custo. Mais cedo ou mais tarde, a conta chega.

Um dia, logo no início do mandato, com aquela incúria de adolescente mal-educado cuja mãe nunca botou fé em simancol, doutor Bolsonaro achou uma graça comentar uma tuitada que ofendia Brigitte Macron, esposa do presidente da França. Acumpliciou-se ao autor da patacoada e ainda completou com um MDR (morto de rir).

A ofensa, em si, estava mais pra deboche que pra insulto. Fazia alusão ao fato de madame já ter perdido o frescor e o encanto da juventude. Piada de sarjeta. Só que doutor Bolsonaro ainda não tinha se dado conta – não se deu até hoje – de que não era dono do botequim da esquina, mas chefe do Estado brasileiro.

Na ocasião, vi pela televisão o semblante de Monsieur Macron, colhido assim que lhe deram a notícia, em plena reunião do G7. Fez, por breve instante, aquela cara de quem não estava acreditando no que ouvia. A pedrada era suficiente para derrubar qualquer Golias.

Inteligente e bom orador, engoliu em seco, pronunciou meia dúzia de palavras e fechou: «Je pense que les Brésiliens, qui sont un grand peuple, ont un peu honte de voir ces comportements – Acho que os brasileiros, que são um grande povo, sentem vergonha de ver esse tipo de comportamento». Uma saída elegante, diferente do nível rasteiro que vigora no Planalto. No final, ficou tudo por isso mesmo.

Ficou tudo por isso mesmo? Não acredite, distinto leitor. Nada fica por isso mesmo. Aqui se faz, aqui se paga. Vindo da boca de um chefe de Estado, a ofensa passou de desacato: na França, foi interpretada como agressão. Um obtuso Bolsonaro instilou ressentimento no espírito do colega francês. Todo agredido costuma ter desejo de vingança.

Hoje o episódio anda esquecido. Para azar nosso, Monsieur Macron, que ainda tem dois anos de mandato, não se esqueceu. São coisas que marcam para a vida toda. Como resultado da brincadeira de um irresponsável Bolsonaro, o Brasil pode dizer adeus – e por muitos anos – à ratificação do acordo de comércio entre a UE e o Mercosul, aquele que levou 20 anos pra ser costurado. Enquanto Macron estiver na presidência, não será assinado porque a França vai bloquear.

A conta chega. Não adianta correr.

Tem mais. A covid-19 revelou fragilidades que ninguém imaginava. A Europa descobriu que a desindustrialização das últimas décadas privou o continente de rapidez de reação. Não há mais fábrica de máscaras, por exemplo. Tudo vem da China. Por seu lado, as estrepolias de nosso ministro Salles estão puxando os holofotes para a Amazônia brasileira e o desmatamento que a destroça. Em Paris, as autoridades encarregadas de pensar o futuro do país se deram conta da total dependência, em matéria de alimentação animal, da soja estrangeira, importada principalmente do Brasil.

Macron, com o tuíte de Bolsonaro ainda zunindo no ouvido, está embarcando em nova cruzada. Tem dito, a quem quer ouvir, que seu país – grande importador de soja – tem de diversificar, procurando novos fornecedores. Países interessados em tomar o lugar do Brasil é o que não falta. É só uma questão de tempo, que essas coisas não se fazem do dia para a noite.

Sozinho, o presidente francês não tem o poder de determinar de onde seu país vai importar soja. Mas seu prestígio tem peso, e ele está se valendo disso. Tem mexido os pauzinhos no sentido de alargar o leque de fornecedores e deixar o Brasil à míngua. Para isso, conta com o apoio entusiasta de Greenpeace e de outras centenas de ongs. Agindo assim, dá satisfação à ala ecologista de seu eleitorado, colhe pencas de votos e, de quebra, dá o troco a Seu Jair.

Pois é, a conta do jantar acaba chegando um dia, embora nem sempre seja cobrada de quem encheu a pança. No caso da imbecilidade cometida por nosso presidente, quem vai pagar a dolorosa é você, sou eu, somos todos nós. Ao fim do mandato – quer siga como previsto, quer seja encurtado – o verdadeiro ofensor estará livre e solto, com pensão vitalícia, carro, motoristas, secretários e seguranças pagos com nosso dinheiro. Nós, sem ter pedido a conta, vamos ter de enfiar a mão no bolso.

Publicado também no site Chumbo Gordo.

Caladão

José Horta Manzano

Convocado a depor, ministro Weintraub mantém-se calado.

Cá entre nós, não é banal ser convocado a dar explicações à polícia por ter feito travessuras. Quando se está ministro, então, é mais grave. Quando se é ministro da Educação, ser chamado à ordem por ter proferido insultos é vexame a figurar em futuros livros de história.

Ajuizados, os romanos já haviam previsto a situação. Veja:

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Que país é este?

José Horta Manzano

Que país é este em que um semianalfabeto é convidado a assumir a chefia do Ministério da Educação e… aceita sem se sentir embaraçado?

Que país é este em que um funcionário graduado da República insulta publicamente nossa maior atriz, figura emblemática do teatro nacional?

Que país é este em que o presidente da República ofende publicamente o presidente de países hermanos e, não satisfeito, insulta despudoradamente a esposa do presidente de grande nação europeia – tradicional aliada do Brasil?

Que país é este em que o presunçoso indivíduo que comanda a Instrução Pública se permite ofender publicamente o Marechal Deodoro, ícone que habita nosso panteão, ao lado de outras glórias da nação?

Essa turma arrogante é composta por aprendizes de feiticeiro. Incultos, estão-se deixando inebriar pelo (que imaginam ser o) poder, descurados de que, se a coisa vai, a coisa volta. A maré sobe e a maré desce. A terra gira, e nós vamos junto.

A soberba é pecado que não perdoa. Esses ignorantes serão ceifados pelos bumerangues que eles mesmos soltaram. O fim do homem público indigno não é necessariamente a cadeia: pode ser o ostracismo, que dói pro resto da vida. Da cadeia, se sai rápido. Já o ostracismo, quando vem, é pra ficar.

Ignorantes e ignorantes

José Horta Manzano

A palavra ignorante pertence a família numerosa. Seus membros estão presentes não só entre nós, mas também em quase todas as línguas europeias. Mas esse é assunto que desenvolveremos numa outra oportunidade.

Hoje gostaria de lembrar ao distinto leitor que, na variante brasileira da língua portuguesa, o termo ignorante tem dois significados principais.

Ignorante 1
É aquele que ignora, que desconhece, que não sabe. Exemplos:

Joãozinho é realmente um ignorante; imagine que tirou zero em três provas!

Está escrito ali na parede! Não sabe ler, ignorante?

Ignorante 2
É o indivíduo abrutalhado, malcriado, tosco, pesado, grosseiro, não necessariamente ignaro. Exemplos:

Você viu? Uma velhinha de pé e aquele ignorante sentado!

Marido que maltrata a mulher é ignorante.

Tivemos, na época em que a patota lulopetista estava aboletada nas poltronas macias do andar de cima, bom exemplo de ignorantes no poder. Eram do tipo 1, aqueles que não sabem. A tônica era dada pelo próprio presidente, avesso a todo tipo de alimento que lhe pudesse enriquecer o intelecto. Obedientes, os demais acompanhavam o chefe. Com deleite.

Varridos os ignorantes do tipo 1, convivemos agora com um bando de ignorantes do tipo 2. Ai, Jesus! Em matéria de conhecimento, embora não sejam luminares, até que sabem o básico. Não se imagina, por exemplo, que acreditem na terra plana. Já no quesito civilidade, são todos espinhudos. De novo, quem dá o tom é o presidente, o mais ignorantão, aquele que carrega sempre um insulto no bolsinho, pronto a ser disparado. Obsequiosos, os demais seguem o chefe. Com facilidade, desdenham e ofendem. São pesadões, vulgares, rasteiros.

Este blogueiro, já entrado em anos, tem pouca esperança de vir a conhecer um governo cuja característica maior não seja a ignorância. Por enquanto, estamos condenados a assistir a um desfile de ignorantes, com direito a alternância entre ignorantes 1 e ignorantes 2. Até quando vai durar? Cabe à próxima geração decidir se rompe esse círculo vicioso ou se deixa tudo como está.

Bolsonaro, o insulto e a Macedônia

José Horta Manzano

Se o distinto leitor não sabe muito sobre a Macedônia do Norte, não há por que ficar encabulado: quase ninguém sabe nada. O minúsculo país, com dois milhões de habitantes e superfície menor que a do estado de Alagoas, é produto da explosão da antiga Iugoslávia. Sem saída para o mar, está encravado entre Grécia, Bulgária, Sérvia e Kosovo. Como se dizia antigamente, fica pra lá do fim do mundo.

Em média, doutor Bolsonaro costuma protagonizar um escândalo por dia. A maioria é para uso interno e não atravessa fronteiras. Alguns, no entanto, são de alcance internacional. O deste fim de semana, produzido sábado passado, é tipo exportação. Repercutiu forte na mídia europeia. Chegou até à longínqua Macedônia – uma façanha!

Reporter – Jornal online da Macedônia
Tradução da manchete: “Macron tem inveja de eu ter mulher melhor que a dele”- Bolsonaro insulta Brigitte por causa da aparência física

Aos que ainda não sabem e quiserem conhecer os detalhes sórdidos da história, aconselho consultar a mídia ou as redes. Aqui ou também aqui, por exemplo. Resumo: doutor Bolsonaro endossou um comentário, postado numa rede social, que zombava da aparência física de Madame Brigitte Macron, mulher do presidente da França. Se o pecado já é repugnante em si, é surrealista que um chefe de Estado tenha ousado cometê-lo. E é desesperador que esse chefe de Estado seja o presidente de nosso país.

Na França é, compreensivelmente, o assunto do dia. No resto da Europa, idem. Ai, senhor, que vergonha! Já tirei, faz anos, a bandeirinha verde-amarela que estava grudada no porta-malas do carro. Não são as molecagens desse presidente ignorante e malcriado que me farão içar de novo o pavilhão.

Ofensas como essa não se esquecem facilmente. Guerras já estouraram por menos que isso. Um dia, os brasileiros, mesmo não sendo diretamente culpados, acabarão pagando a conta. A não ser que se redimam destituindo o presidente. Porquoi pas? – por que não? De todo modo, o próximo não poderá ser pior. Ou?

Ode ao ódio

José Horta Manzano

Quando, em 1785, o poeta alemão Friedrich Schiller deitou no papel os versos que viriam a ser conhecidos como An die Freude (=Ode à Alegria), estava longe de imaginar o destino fabuloso que teriam aquelas poucas linhas.

Da mesma forma, quando Ludwig van Beethoven, tempos depois, poria música em cima dos versos do poeta e os incluiria ao último movimento de sua 9Sinfonia, não podia sonhar que aquela melodia se tornaria um dia o hino de uma Europa pacificada e unida. Logo ele que, contemporâneo de Napoleão, passou a vida num continente conflagrado.

E nem em delírio algum dos dois ousaria supor que a obra sofreria, duzentos e tantos anos mais tarde, agressão tão pesada como a que sofreu em 2 de julho de 2019. E justamente no recinto aveludado do Parlamento Europeu! A peça de Schiller e Beethoven serviu de fundo musical para o espetáculo mais incivilizado e deprimente que aquela Casa já conheceu.

Três anos atrás, como se sabe, um plebiscito revelou que metade do povo britânico queria abandonar a União Europeia enquanto a outra metade preferia continuar no barco comum. A estreita diferença entre o ‘sim’ e o ‘não’ ao Brexit tem dado margem a muito conflito. Dois primeiros-ministros já caíram por isso. O divórcio, que já devia estar consumado, continua emperrado. Alguns sugerem a organização de nova consulta. Desorientada, a política britânica vive um deus nos acuda.

Faz algumas semanas, foram eleitos os novos deputados europeus, que são, na União Europeia, os únicos representantes eleitos diretamente pelo povo. A câmara é composta de 751 deputados. Cada país tem direito a um contingente correspondente a sua população. Dos 79 deputados britânicos, 29 são afiliados ao partido favorável ao Brexit, cujo lider é Mr. Nigel Farage. Vivem uma situação surreal: embora sejam contrários à permanência de seu país na União Europeia, têm assento garantido no parlamento europeu.

A decência ensina que, quando o deputado está numa situação delicada como essa, se faça o mais discreto possível. Faltar às sessões, em sinal de protesto, é solução aceitável. Pois não foi o caminho escolhido pelos membros do partido do Brexit no dia 2 de julho, na sessão inaugural da nova legislatura. Estavam todos presentes à sessão solene, com direito a música ao vivo e até soprano para abrilhantar a execução do hino europeu. (É justamente a Ode à Alegria, obra bicentenária de Beethoven e Schiller.)

Assim que a música começou, no entanto, os deputados britânicos do partido do Brexit puseram-se de pé e viraram as costas para o plenário, numa atitude de escracho e desrespeito, não habitual em ambientes solenes. E não foi só. Cada um deles já tinha instalado uma bandeirinha britânica, bem visível sobre a escrivaninha, ato que não combina com um ambiente pan-europeu e supranacional.

Não se deve desrespeitar um hino nacional, ainda que seja de país estrangeiro. O que os deputados brexistas fizeram foi ofensa gravíssima a todos os europeus. Imagine se, durante uma sessão do parlamento inglês, alguém desse as costas durante a execução do ‘God save the Queen’. Perigava ser linchado. Pois foi exatamente o que fizeram os deputados do Brexit. Coisa de gentinha.

O comentário de um leitor do site da BBC acertou na mosca: eles certamente não dariam as costas ao salário nem às mordomias do cargo. Ao final do ultraje explícito, não ganharam um voto a mais. O desaforo só acentuou a antipatia que eles já despertam em muita gente. Foi tremendo erro de marketing. Além de gentinha, são pouco inteligentes.

Aqui está um vídeo de menos de um minuto em que a BBC flagra o momento do insulto.

Battisti: desta vez vai?

José Horta Manzano

É impressionante a que ponto a insegurança marca o dia a dia do Brasil e dos brasileiros. Dúvidas atingem gente fina e gente menos fina. Se há uma coisa que põe mocinhos e bandidos em pé de igualdade, essa coisa é a incerteza. Com certeza.

Gente boa não sabe se a lei de hoje ainda estará de pé amanhã. Condenado ignora se irá pra prisão. Cidadão de bem sai de casa de manhã sem muita certeza de voltar à noite são e salvo. Bandido condenado por unanimidade em todas as instâncias pode ainda, no último minuto, ser inocentado por um salto de humor do STF. No Brasil, em matéria de Justiça e de Segurança Pública, caminha-se numa corda bamba. Pode-se cair pra um lado, pro outro ou até continuar no precário equilíbrio. Tudo é possível, até o impossível.

Vira e mexe, volta às manchetes a novela sem fim de signor Cesare Battisti, aquele terrorista condenado na Itália à prisão perpétua por envolvimento em quatro assassinatos cometidos nos anos 1970. Como sabem todos, o moço ‒ que hoje se apresenta como escritor ‒ vive fugido da polícia há quase quarenta anos. Homiziou-se no México e na França antes de se esconder no Brasil.

Em nosso país, passou por processo de extradição nos conformes. O STF decidiu que fosse devolvido à Itália. No último dia de mandato, nosso guia, o Lula, houve por bem dar vexame horas antes de sair de cena: negou a extradição. Nunca antes ‘nessepaiz’ se tinha visto algo assim. O capricho de um dirigente que, com um pé já fora do governo, decide peitar decisão do tribunal maior. Um despautério.

Excetuando os que apreciam bandidos, ninguém engoliu o desvario do demiurgo. De lá pra cá, mais de três anos se passaram. Anos de incerteza. O Lula podia ter feito o que fez? Não podia? A polêmica corre solta, cada um dá sua opinião, mas os que têm o poder de decidir não ousaram tomar nenhuma atitude. Numa ocasião em que foi apanhado em flagrante ao tentar escapar para a Bolívia, o terrorista chegou a passar curta temporada atrás das grades. Mas logo foi solto.

Esta semana, a Procuradoria-Geral da República enviou ao STF parecer sobre o caso. Julga a presidência da República competente para dar (de novo) a palavra sinal sobre a extradição do condenado. Foi o que bastou para pôr a Itália de orelha em pé. De fato, o povo de lá nunca se esqueceu do criminoso agasalhado pelo lulopetismo. A mídia peninsular repercutiu o ocorrido.

É verdade que doutor Temer tem preocupações mais prementes. Mas há que se levar em conta que o presidente não trabalha sozinho: o governo federal é estofado por milhares de funcionários, entre assessores, ministros, secretários e outros auxiliares. Se a «última palavra» cabe ao presidente, por que tergiversar e postergar?

Nunca é tarde demais pra corrigir uma (das inúmeras) trapalhadas do ‘filho do Brasil’. Que doutor Temer mande preparar a papelada e assine embaixo. Com esse gesto, estaremos livres de um delinquente. Já temos suficientes malfeitores nacionais, não precisamos de bandidos importados. De quebra, o gesto servirá como desagravo à Justiça italiana, insultada pelo Lula.

A árvore e o fruto

José Horta Manzano

Você sabia?

Papa Francisco 3Aconteceu na Bolívia em 1867. O embaixador britânico foi recebido em palácio pelo ditador Mariano Melgarejo. Como era costume local, foi-lhe oferecido um copo de chicha, bebida feita com milho fermentado. O embaixador recusou e pediu um chocolate quente. A recusa foi tomada como afronta pelo ditador que, enfurecido, decidiu vingar-se imediatamente.

Mandou vir uma grande tigela de chocolate e obrigou o visitante a engoli-la até a última gota. Em seguida, ordenou que pusessem o diplomata sentado de trás pra diante no lombo de um burro. Assim que o homem foi amarrado na incômoda posição, a população foi chamada para o espetáculo. Com o embaixador em cima, o burro deu três voltas na praça principal de La Paz. Após o episódio, Melgarejo despachou o estrangeiro de volta a Londres. Sem o burro.

Queen Victoria:

Queen Victoria: “Bolivia does not exist”

Victoria, imperatriz britânica e mulher mais poderosa do planeta à época, não apreciou o ocorrido. Em reação epidérmica, ordenou que um destacamento da frota inglesa singrasse imediatamente em direção à Bolívia e bombardeasse a capital. Alertada por seus assessores sobre o fato de La Paz ficar nas alturas, longe da costa e fora do raio de ação da marinha de guerra, Victoria descarregou sua raiva simbolicamente. Dirigiu-se ao mapa-múndi, riscou um enorme X sobre o país ofensor e declarou: «Bolivia does not exist» – a Bolívia não existe.

A história encarregou-se de cumprir (ou quase) a profecia da rainha Victoria. Em menos de um século, a Bolívia perdeu metade do território.

Bolívia - territórios perdidos desde 1867 (clique para aumentar)

Bolívia – territórios perdidos desde 1867
(clique para aumentar)

Ao oferecer ao papa Francisco uma bizarra escultura representando um crucifixo camuflado sobre foice e martelo, señor Morales, atual mandachuva da Bolívia, retomou a tradição nacional de ofensa a estrangeiros ilustres.

Com o deboche, o irrespeitoso presidente logrou a façanha de insultar, ao mesmo tempo:

Interligne vertical 12um chefe de Estado;

um sorridente senhor com idade para ser seu pai;

o chefe da religião seguida por 80% dos bolivianos;

um bilhão de católicos que respeitam seu líder religioso.

Não é coisa pouca.

Señor Morales demonstrou o que todos já sabiam: sua estupidez e sua inépcia para exercer o cargo que lhe foi confiado. Descendente político direto do ditador de 1867, confirmou também o ensinamento daquele sábio provérbio: o fruto nunca cai muito longe da árvore.

A China e o macaco gaúcho

José Horta Manzano

Justiça

Justiça

Na China, a família do condenado à pena capital tem de pagar ao governo pela bala utilizada na execução. Era assim, não sei se a prática continua. Talvez estejam cobrando com desconto ― na «potência oriental» tudo se costuma negociar.

Quis mencionar esse estranho costume para embasar o que vem a seguir. A aplicação da pena capital é resquício de barbárie que perdura em certas regiões. Além de ser punição de arrepiar qualquer cristão, tem um defeito: é irreparável. Seu risco maior é o de servir de ponto final a um erro judiciário. Uma vez executada a sentença, não há volta possível. A descoberta tardia de que o culpado não era bem aquele só pode render um inócuo pedido de desculpa. Nada trará o defunto de volta.

Se a pena capital já causa horror, a cobrança feita à família do condenado chinês ultrapassa os limites do suportável. Pelo menos, em nossa maneira de enxergar o mundo. Com efeito, um dos princípios basilares de nosso Direito é a individualidade da culpa. Não se pode exigir de ninguém que pague pelo crime de um outro. Cada um é responsável por seus próprios atos.

Macaco 1Já comentei neste espaço, faz alguns dias, o caso daquela moça que chamou de macaco um jogador do time adversário, insulto que se transformou em comoção nacional. Levada à Justiça, a causa teve desdobramentos rápidos e pesados.

Começo por aplaudir a rapidez da decisão judicial. Habituados que estamos a ver processos se arrastando por anos, resta-nos saudar a diligência do Superior Tribunal de Justiça Desportiva. Isso dito, a decisão, em si, me deixa pensativo. Mais que isso, preocupado.

Enquanto a xingadora foi banida de estádio por dois anos ― pena relativamente leve ― a mão da justiça foi particularmente pesada para com os outros atores da cena. Árbitro e bandeirinhas ficaram proibidos de atuar por várias semanas e ainda terão de pagar multa. E o clube da moça impudente ― o Grêmio, do Rio Grande ― levou a bofetada maior: foi excluído do campeonato em que atua, a Copa do Brasil. O castigo é encorpado.

Que a moça seja castigada, estou plenamente de acordo. Infringido o regulamento e apanhado o culpado, não tem jeito, tem de responder pelo delito. Já a extensão da punição ao clube é, a meu ver, discutível. A agremiação não tem como exercer controle sobre seus aficionados. Na medida que são maiores e vacinados, os torcedores são os únicos responsáveis por suas ações.

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Esse tipo de punição em que Benedito pode ser condenado pelo crime de Sebastião exala um desagradável perfume de justiça chinesa.

Pior que isso, abre a porta para malandragem grossa. Indivíduos mal-intencionados podem perfeitamente se infiltrar na torcida do time adverso para provocar, por meio de baderna, apupo ou ofensa, o rebaixamento da equipe rival. Ou não?