Hino recuperado

José Horta Manzano

Estava lembrando da primeira vez que, num jogo do Brasil de Campeonato Mundial, percebi que nosso hino tinha sido truncado. Aconteceu faz umas três ou quatro Copas. A execução parou no “salve, salve”. Foi esquisito. Cioso do respeito aos símbolos da nação, cheguei a pensar que a vitrola tivesse enguiçado, como ocorria nos discos de antigamente. Depois me informaram que o problema não era de toca-discos, o encolhimento era decisão da Fifa. Como assim?

Pois é, a imensa (e bilionária) empresa que regula o futebol no planeta um dia decidiu que nenhum hino poderia mais passar de 90 segundos (um minuto e meio). O nosso, incluindo a introdução, excedia o prazo estipulado. Portanto, guilhotina nele!

Achei revoltante. A meu ver, a Fifa não é a instância adequada para determinar o tempo de execução de hinos nacionais. Podem decidir, por exemplo, que hinos não sejam mais tocados. Mas não faz sentido alocarem um tempo “tamanho único” para todos.

Essa é minha visão. O Brasil de 2014, ansioso por hospedar a Copa, passou por cima dessas miudezas. Não se avexaram e engoliram o hino truncado. Cutucado, o público deu o troco. Uma vez desligado o som nos estádios na altura do “salve, salve”, o povo continuou cantando a cappella, sem orquestra, num espetáculo de dar arrepio.

Este ano, talvez o leitor já tenha reparado, nosso hino voltou a ser cantado até o fim. Talvez alguém tenha feito uma reclamação à Fifa, argumentando que do “Ouviram do Ipiranga” até o “Pátria amada, Brasil” correm 95 segundos, ou seja, somente 5 a mais que o permitido. Não era pedir muito. Foi concedido.

Bom, graças à Fifa, já recuperamos o hino. Falta que nos devolvam a bandeira, que anda por aí, coitada, tomando chuva e envolvendo ombros zumbis.

O país mal-amado

José Horta Manzano

Deslumbrada com as baboseiras cuspidas por Bolsonaro nos EUA, a grande mídia brasileira sonegou a seus leitores a notícia do ano: o corredor automobilístico Lewis Hamilton foi homenageado pela Câmara Federal brasileira.

O que me alertou foi um artigo publicado na mídia estrangeira. Um projeto de resolução relatado no ano passado pelo deputado federal Jhonatan (sic) de Jesus propunha conceder ao corredor britânico o título de cidadão honorário do Brasil.

Entre os partidos, só o Novo (Amoêdo) orientou seus deputados a rejeitarem a proposta. Sem mais objeções, o projeto acabou sendo aprovado quinta-feira passada. Sir Lewis Carl Davidson Hamilton, que já ostentava o título de cavaleiro da Ordem do Império Britânico, recebeu mais uma honraria para enriquecer sua coleção: é cidadão brasileiro “honoris causa”.

A justificativa para a concessão da cidadania honorária é a “relação emocionalmente forte” que o campeão tem com nosso país. Mas o que derreteu mesmo os deputados foi quando Sir Lewis (agora Senhor Lewis) teve a feliz ideia de desfraldar uma bandeira brasileira ao término do último GP de São Paulo de F1. O gesto trouxe a lembrança de Ayrton Senna, figura que marcou nossa memória coletiva.

Numa primeira análise, a reação dos parlamentares parece anacrônica. Afinal, com tanto problema mais importante no país, outorgar cidadania honorífica a estrangeiros parece falta do que fazer. No entanto, diante da situação atual do país, a atitude dos parlamentares é compreensível.

Estes últimos tempos, nossa bandeira tem sido confiscada por uma gente estranha, saída não se sabe de onde. Refiro-me a esse povo que, embora se enrole nas cores nacionais, dá sustentação a um presidente que corrói o pouco de civilização que tínhamos. Dá tristeza ver um símbolo – que é de nós todos – prisioneiro de gente que não enxerga além do próprio umbigo.

A visão do pavilhão verde-amarelo destemidamente desfraldado por um estrangeiro sem ligação com os violentos devotos do capitão foi como um bálsamo, o primeiro passo para a reapropriação de nosso símbolo maior.

Acredito que, embora nenhum dos parlamentares se dê conta, seja essa a razão inconsciente que levou boa maioria da Câmara a aprovar a acolhida de novo cidadão.

A pátria, machucada pelos maus tratos que vem recebendo dos que a governam, tem premente necessidade de reconhecimento internacional. Não sei se Senhor Lewis levantou a bandeira de caso pensado. Seja como for, acertou em cheio.

O dia seguinte

José Horta Manzano

24 maio 2022
Uvalde (Texas), EUA
Um adolescente que carregava pouco bestunto e muita raiva no coração resolveu se vingar a esmo de uma sociedade que lhe parecia opressora. Armou-se como verdadeiro Rambo e atirou na própria avó. Em seguida, dirigiu-se à escola que havia frequentado até outro dia e atirou às cegas. Adicionando crianças e adultos, matou mais de vinte. Foi abatido pela polícia.

Rio de Janeiro, Brasil
Operação policial de extrema violência levada a cabo na Vila Cruzeiro (Complexo da Penha, Rio de Janeiro) deixou um rastro sangrento de 25 mortos. Segundo relatos, bom número dentre os metralhados são “vítimas colaterais”, gente cujo único crime era estar no lugar errado, na hora errada. Ressalte-se que nosso ordenamento jurídico proíbe justiça expeditiva, execuções sumárias e atos de tipo miliciano-mafiosos como esse.

25 maio 2022
Washington (DC), EUA
Joe Biden, presidente da República, fez declaração emocionada sobre o massacre da véspera. Declarou-se “sick and tired” (= enojado e cansado) com a multiplicação desse gênero de ocorrência. A bandeira nacional que ondula sobre a Casa Branca foi baixada a meio-pau. O presidente acrescentou que, nos próximos dias, viajará ao Texas para uma visita pessoal às famílias das vítimas da tragédia.

Brasília, Brasil
Jair Messias Bolsonaro, presidente da República, utilizou o Tweeter para dar parabéns aos “guerreiros”(sic) do batalhão policial que “neutralizaram”(sic) marginais. O presidente não declarou ter intenção de fazer visita de consolo às famílias das vítimas – pessoas que ele deve considerar sub-humanas. Em Brasília, a bandeira nacional não foi baixada a meio-pau.

Os espanhóis dizem: “Más vale vergüenza en cara que mancha en el corazón” (= Mais vale vergonha na cara que mancha no coração). Há os que preferem a mancha. Por não sentirem vergonha. Ou talvez porque lhes falte o coração.

Dia da Bandeira

José Horta Manzano

O golpe de Estado de 15 de novembro de 1889 destronou o imperador e instaurou regime republicano. Naquela altura, um punhado de militares de alto coturno era adepto das teorias sociológicas, filosóficas e religiosas do francês Auguste Comte (1798-1857), o idealizador da corrente de pensamento que viria a ser conhecida como positivismo. É dele a frase L’amour pour principe, l’ordre pour base, et le progrès pour but” (O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por objetivo).

Desterrado o imperador do Brasil e instaurada a república, fez-se necessário alterar rapidamente o símbolo maior – a bandeira. A que estava em vigor, que trazia a coroa imperial e a esfera armilar, já não servia. Em poucos dias, deu-se um jeito.

Para o novo estandarte, conservou-se o que era básico: o losango amarelo sobre fundo verde. Apagados os símbolos imperiais, sobrou um vazio no centro. Para preenchê-lo, os criadores complicaram a vida de futuros desenhistas, escolares e costureiras. Inseriram um globo azul rodeado de estrelas representando o céu do Rio de Janeiro no momento em que D. Pedro II foi apeado. Dado que cada uma delas ocupa um lugar preciso, as estrelas dão muito trabalho na hora de desenhar, esculpir, costurar, pintar ou bordar a bandeira.

Não contentes com essa extravagância, os criadores da flâmula procuraram um complicador. Decidiram inserir na bandeira a conhecida frase do sociólogo francês que admiravam. A ideia, a meu ver, era descabida. Muitos países têm divisa oficial, mas não é comum (nem necessário) vê-la inscrita na bandeira.

Alguém já imaginou a bandeira francesa estampada com a frase “Liberté, Égalité, Fraternité” (Liberdade, Igualdade, Fraternidade)? Ou a alemã carregando “Einigkeit und Recht und Freiheit” (Unidade e Direito e Liberdade)? Ou ainda a bandeira norueguesa com um “Alt for Norge” (Tudo pela Noruega) talvez grafado no braço mais longo da raçuda cruz escandinava? É questão de gosto. A mim, parece bastante cafona.

Bom, resolveram inserir a frase e ninguém os convenceu do contrário. Só que, por extenso, ela não cabia. Sem cerimônia, cortaram o que lhes pareceu secundário, deixando só o essencial. Mas acho que não leram direito ou não tinham conhecimento suficiente da língua francesa. Cortaram demais. A tríade sobre a qual Monsieur Comte tinha construído sua teoria perdeu uma pata. Em vez de “amor, ordem e progresso”, ficou só “ordem e progresso”. O amor escorreu pelo ralo.

Não está claro se era uma premonição. É permitido imaginar que os criadores da bandeira intuíram que, na República nascente, amor não haveria. Passadas 13 décadas, pode-se dizer que, em parte, acertaram. Assim como nunca houve ordem na nova República, até amor e progresso têm andado pra trás nestes tempos obscurantistas.

Até uns 20 anos atrás, a gente sentia o vento do progresso batendo no rosto; o país parecia correr para um futuro risonho. Hoje sobrou uma amarga lembrança de um tempo em que a gente achava que a felicidade estava na virada da esquina. Quanto ao amor, nestes tempos de ódio insuflado pelo capitão e destilado por redes e robôs, melhor nem falar.

Está na praça uma petição impulsionada por pessoas que gostariam de resgatar o amor que os criadores da bandeira republicana desdenharam; desejam acrescentá-lo ao lema, completando a tríade positivista. Certamente estão movidos por excelentes intenções, mas não creio que seja boa ideia. Este caso é daqueles em que a emenda periga sair pior que o soneto.

Em primeiro lugar, se bastasse escrever na bandeira as palavras-chave de um futuro que desejamos, a ordem e o progresso, que estão lá gravados há 132 anos já teriam surtido efeito e já teriam dado o ar de sua graça. Não deram. Portanto, pra que serve acrescentar o amor? Pra dar mais trabalho às costureiras que pregam letras nas bandeiras?

Em segundo lugar, escrever – seja o que for – na bandeira nacional é péssima ideia. Bandeira é feita para distinguir nosso país em meio a uma quantidade de países estrangeiros. Como marketing, qualquer palavra anotada é um desastre. Já parei de contar as vezes em que tive de responder a quem me perguntava o significado daquelas palavras. (Sendo que, após minha resposta, me pareceu às vezes entrever a sombra de um sorriso indulgente. Talvez seja impressão minha.)

Certos países árabes trazem inscrições na bandeira. Mas a caligrafia árabe é artística, elegante, um desenho das 1001 noites, uma festa para os olhos. A gente não entende nada, mas aprecia. Já nosso castigado lema, escrito em caracteres latinos, não tem graça. Um estrangeiro olha para aquilo como olharíamos para palavras escritas em turco.

Se este blogueiro ainda tivesse o vigor da juventude, levantaria bandeiras (sem trocadilho), desceria às ruas e lançaria uma campanha exigindo que se eliminasse toda inscrição em nosso belo e original pavilhão. Por si só, ele já é reconhecível de longe, entre outros mil. No centro, basta deixar o globo azul e sua faixa branca, virgem, sem palavras. Como se sabe, as palavras são de prata, mas o silêncio é de ouro.

Quanto às estrelas, bem, já que estão lá, que fiquem. Na próxima existência, voltarei pra reclamar sua supressão. Se ainda houver Brasil, naturalmente.

Ciência, devotos e rebotalho

José Horta Manzano

93%
Esse é o percentual da verba cortada pelo governo de Jair Bolsonaro para gastos com estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos três primeiros anos da sua gestão – a comparação é com os três anos imediatamente anteriores.

Dados levantados pela BBC News Brasil mostram que, nos três anos anteriores (2016 a 2018), os investimentos nessa área foram de R$ 31,1 milhões. Ja na gestão Bolsonaro (2019-2021), foram R$ 2,1 milhões.
A notícia é do portal G1

Os devotos
Como provam os números levantados pela BBC, temos um presidente que, enquanto suborna parlamentares, foge da ciência. E atrás dele, vai a corte obediente, exatamente como nos tempos do “Ancien Régime”. De fato, quando o rei Luís XV se deslocava de Paris a Versailles, por exemplo, toda a corte ia junto – centenas de pessoas, com armas e bagagens. Todos diziam amém ao rei, pois dele dependiam.

Quando menciono os “devotos” de Bolsonaro, que nada mais são que a versão 4.0 da corte dos Luíses, não me refiro unicamente aos que se enrolam na bandeira para aclamar o “mito”. Incluo os personagens que têm mais destaque na vida nacional. São todos aqueles que, por ideologia ou interesses variados, fazem parte dos “agregados” do clã presidencial expandido: militares palacianos, parlamentares bolsonaristas, ministros de ocasião, blogueiros remunerados, e tanta gente mais.

A bandeira
Essa história de aparecer em passeatas e manifestações enrolado na bandeira brasileira não é costume habitual em outras partes do mundo. Bandeira foi feita para ondular ao vento, solta, livre, altaneira, desprendida de agarras humanas.

Esses que adquiriram o bizarro hábito de se enrolar nela, como se manipulassem um trapo ou um cobertor, deveriam saber que, se fizessem esse gesto nos tempos da ditadura militar (cuja volta eles reclamam ingenuamente), iriam direto para a prisão.

Os militares eram – imagino que ainda sejam – ciosos do bom uso dos símbolos nacionais. A execução do hino e a exposição da bandeira e do brasão de armas eram objeto de regras precisas e minuciosas. A cadência (velocidade) de execução do hino é normatizada, assim como a tonalidade (fá maior).

Querem um exemplo das limitações da exposição da bandeira? Nos anos 1960, surgiu um movimento global de liberação dos costumes. Muitas proibições caíram. Na Grã-Bretanha, popularizou-se o uso de roupa com o desenho estilizado da bandeira. Não me consta que isso tenha causado escândalo. Já no Brasil daqueles anos, ninguém ousaria estampar bandeira na camiseta. Sair à rua enrolado no pavilhão nacional dava cadeia. Direto.

Para entrar em conformidade com o regulamento, os que apreciam sair às ruas enrolados em bandeira deveriam abandonar o pavilhão nacional e criar um uniforme qualquer que os distinguisse. Sugiro um retalho de tecido tamanho bandeira – de flanela no inverno, de algodão no verão.

A cor tanto faz, mas é indispensável que haja um imenso B desenhado atrás. O B, é claro, se refere a Bolsonaro. Para os mais exaltados, pode até lembrar o nome de nosso país (sem ferir as regrar que proíbem o uso da bandeira como peça de vestuário). E pode ainda, para os não-devotos, evocar a letra inicial da palavra que designa o excremento dos bovinos. Deixa a todos sorridentes. Não é uma maravilha?

Rebotalho
Há uma emissora paulista de rádio, antiga, tradicional, que chegou a ter certa importância. Um dia, por razões que ignoro (embora desconfie), tornou-se abertamente bolsonarista, daquelas que preferem fechar os olhos para todos os horrores da administração atual, como se não existissem. Agem como blogueiros de aluguel.

Essa empresa acaba de contratar, como comentarista, o doutor Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente refugado alguns meses atrás. Salles caiu por ter sido acusado de estar acumpliciado com contrabandistas de madeira extraída ilegalmente da Amazônia.

Depois que ele saiu de cena, não se ouviu mais falar do andamento do respectivo processo penal. Talvez agora, com sua volta aos holofotes, alguém se lembre de desenterrar o assunto. (Se é que a dita estação de rádio ainda conta com alguma audiência além dos devotos do capitão.)

Faria Limer

José Horta Manzano

Até o começo dos anos 60, a Iguatemi, em São Paulo, era uma ruazinha de bairro, com uma fileira de bem-comportados sobradinhos de cada lado. Aquela região era um pouco afastada do centro.

Chegava-se lá depois de uma boa viagem desde o centro. Numa reminiscência do tempo em que o grosso da população vivia na zona rural, afastada do centro do povoado, o centro de São Paulo era chamado de “cidade”. “Hoje fui à cidade”, “Meu pai trabalha na cidade”, “Ah, pra comprar isso, só na cidade” – eram frases que se ouviam com frequência. Basta substituir “cidade” por “centro”, e o significado atual aparece.

A Rua Iguatemi era um pouco longe da “cidade”. Na euforia dos anos 60, decidiu-se que a expansão da capital seria direcionada para o oeste e para o sudoeste. Meio às pressas, sem grande planejamento, a (então) estreita rua Iguatemi foi escolhida como futuro eixo de circulação.

Mais de uma centena de propriedades foram desapropriadas para permitir o alargamento da rua. Ao final da década, apesar dos buracos que ainda obstruíam o leito carrossável, a nova avenida foi aberta. Em homenagem ao prefeito falecido pouco antes, ela recebeu o nome de Faria Lima.

Cinquenta anos mais tarde, os sobradinhos são apenas uma lembrança distante. A avenida está hoje coalhada de prédios altos que concentram empresas do setor terciário, como bancos, startups, empresas de informática, serviços especializados.

Já faz algum tempo que, num espírito oscilando entre admiração e galhofa, profissionais ligados a essas empresas de alto padrão são chamados de “Farialimers”. Alguns dias atrás, a imagem de doutor Guedes, nosso ministro da Economia, foi afixada em cartazes gigantescos, acompanhada da frase “Faria loser”, num evidente espírito de deboche que faz jogo de palavras mesclando o nome da rua e o termo inglês “loser” (=perdedor).

Passaram-se poucos dias. Refeitos do susto, autoridades (não sei quais, mas certamente com nosso dinheiro) mandaram cobrir as vergonhas da nação. Afinal, não se pode expor assim, de qualquer maneira, a inabilidade de um ministro.

A imagem que agora esconde o rosto sofrido do ministro é a de uma estranha bandeira brasileira. Digo estranha porque está fora das proporções oficiais. Não precisa ser doutor pra ver que o verde está espichado de um lado e do outro.

Os jornais dão hoje a notícia. Falam do cartaz jocoso que zombava do ministro. Falam da bandeira que substituiu a afronta. Ninguém, no entanto, se preocupou com o fato de a bandeira estar distorcida. A bandeira, minha gente, é símbolo nacional oficial. Seu desenho, suas cores e suas proporções são rigorosamente definidas em lei. A regulamentação vem do tempo dos militares, mas vigora, visto não ter sido abolida. Bandeira nacional não é pano decorativo. Como todo símbolo oficial tem de ser usada conforme manda o figurino. Em princípio, todo mau uso afronta a lei e está sujeito a punição. Mormente quando tiver sido orquestrado por autoridades, como parece ser o caso.

No entanto, no entanto, o pior passou em branco. A Folha de São Paulo, que publicou a foto da esquina com a bandeira e narrou a situação com abundância de detalhes, não deu muita importância ao que ninguém gosta de ver. Na foto da bandeira, bem no centro, aparece uma pobre criatura, um trapo humano, deitado na calçada da avenida. É visivelmente um morador de rua – perdão! um indivíduo “em situação de rua”, como a falsa pudicícia obriga a dizer hoje.

A brincadeira do “Faria loser” não passa de estudantada. A cobertura das vergonhas, apesar de ser mais truculenta e menos sorrisonha, também não mata ninguém. A verdadeira vergonha, que passou em branco, transparente como tudo aquilo que a gente não gosta de ver, é o cidadão estirado no chão, bem no centro da foto, como um traço horizontal a sublinhar o lema “Ordem e Progresso”. Certamente a criatura não está lá pelo prazer de dormir numa cama dura pra aliviar as dores de coluna.

Enquanto dramas como esse continuarem a passar despercebidos, quase como atrapalhando a foto, de pouco vão adiantar a crítica leve feita contra o ministro incapaz e a repressão peremptória da autoridade que prefere ver a parede limpa, mas se desinteressa da sorte da ralé.

Governantes – e povo – que dão mais importância à ilusão de muro impecável do que à feia realidade de um povo desgraçado não merecem dormir em colchão quentinho e macio.

Os milicos que se cuidem

Ruy Castro (*)

Foi num dia de semana à tarde, em 1970, auge da ditadura —me contaram. Um garoto de seus 15 anos ganhou uma flautinha de plástico e foi à praia com ela. Sentado na areia, numa Ipanema vazia, tentou tirar o Hino Nacional —afinal, ouvia-o todo dia. Ao extrair algo parecido com a frase inicial, percebeu uma sombra entre ele e o Sol. Olhou para cima e viu um sujeito forte, bronzeado, de cabelo reco. O homem rugiu: “Por que está tocando isso?”. O garoto, surpreso, ficou mudo. Não havia resposta. O homem emendou: “Estou ali naquela barraca escutando tudo. Se continuar com gracinha vai se dar mal!”. Um vendedor de mate sussurrou para o garoto: “Coronel do Exército”.

É típico das ditaduras se apoderarem dos símbolos nacionais. O Brasil de Médici era uma diarreia verde-amarela. Uma geração de escolares foi submetida a anos de bandeira e hino diários, de pé, no pátio do colégio. Talvez por isso, um garoto de cabelo comprido tocando o Hino Nacional na praia pudesse ser um deboche, uma contestação.

O governo Bolsonaro não é uma ditadura – ainda. Mas, em algumas matérias, já se comporta como. Assenhorou-se, por exemplo, das cores nacionais e de conceitos como “povo”, “democracia” e “liberdade” e da expressão “homem de bem”. São “homens de bem” os que, contra a corrupção do PT, apoiam o extermínio de brasileiros pela Covid, promovido por ele.

Mas, agora, Bolsonaro se superou. Apropriou-se daquele que se considera o detentor do monopólio dos símbolos – o próprio Exército. Do mais tosco soldado ao mais empafiado general, Bolsonaro embolsou-os com benesses, empregos, cargos e uma ideologia intangível, em nome da qual passou a ditar-lhes o regulamento e fazê-los abdicar até de uma de suas cláusulas pétreas: a disciplina.

Os milicos que se cuidem. Um dia, ainda veremos Bolsonaro de dedo no nariz de um deles por tocar o Hino numa flautinha de plástico.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Doctores

José Horta Manzano

Em razão da epidemia, o governo francês emitiu decreto, em março passado, autorizando a vinda de médicos cubanos às Antilhas Francesas (Guadalupe e Martinica). O intuito foi de reforçar equipes locais no enfrentamenteo da covid-19.

Ontem, sexta-feira, uma delegação de 15 médicos cubanos desembarcou na ilha da Martinica, situada a umas 3 horinhas de voo de Havana. Como de costume, o desembarque é festa profana, com direito a máscara e bandeira de Cuba. Acredito que o desfile de bandeira em punho seja exigência da gerontocracia cubana. É curioso. Ninguém imagina humanitários enviados pela Alemanha, pelos EUA ou pelo Japão desfilando na pista do aeroporto com bandeira.

Martinica: chegada de médicos cubanos

Falando nisso, não entendi até hoje por que é que os médicos cubanos sempre aparecem vestidos com o jaleco profissional, seja onde estiverem. Ainda que, numa hipótese optimista, essa peça de vestuário venha a ser lavada e esterilizada antes de o profissional entrar em serviço, pega mal pra caramba. Fica a impressão de falta de higiene, um cartão de visita bastante negativo.

Segundo a agência de notícias AFP, o envio de médicos ao estrangeiro é especialidade cubana lucrativa. No total, cerca de 30 mil profissionais estão constantemente em missão no exterior. Atuam em 60 países.

O programa, lançado nos anos 1960 por Fidel Castro, cresceu em importância com a pandemia. Estima-se que, em 2018, a atividade dos médicos cubanos tenha rendido 6,3 bilhões de dólares, o que representa suculenta fonte de renda para Cuba.

As passeatas de antigamente

José Horta Manzano

Houve uma época, não faz tanto tempo assim, em que opinião política se manifestava no grito. Na rua, de preferência. Havia quem chamasse de passeata; alguns diziam desfile; outros preferiam protesto. Faixa, megafone, cartaz, palavras de ordem eram de rigor. Por fim, o mais importante de tudo: a cor da indumentária. Aquela maré humana, principalmente fotografada do alto, não teria o mesmo encanto se não estivessem todos uniformizados. Boné, camiseta e bermuda respeitavam o código.

Manifestações assim sempre houve. Foi um lulopetismo desmascarado por mensalões e petrolões que cuidou de dar relevo a elas. Quando a seita já caminhava para o fim, multidões de aluguel vestiram o vermelho das bandeiras progressistas enquanto uma maré de gente se apresentou de verde-amarelo. Era o bom senso nacional despachando os vermelhinhos pra fora da pista.

A roda gira. Desfiles, passeatas e protestos andam meio fora de moda. Palavras de ordem (palavrões?) não saem mais de megafones, mas brotam de redes associais. Mas palavras não têm cor. Onde foi parar a alegre paleta dos velhos dias?

Ela hoje está à porta do palácio presidencial, contida num cercadinho destinado a amestrados prontos a aplaudir o que Seu Mestre disser. Os vermelhinhos sumiram, e os figurantes se vestem de verde-amarelo. É manifestação unívoca, sem contestação possível, senão… «Cala a boca!».

Tudo estaria na santa paz, só que Seu Mestre só diz besteiras. As enormidades presidenciais vêm em modo mesa de pizzaria quando proferidas ao vivo, e em modo balcão de boteco quando são ditas em ambiente restrito. Quem quiser mostrar desagrado e não estiver disposto a escrever palavrão nas redes teria caminho certo: organizar contramanifestação. Só que vai enfrentar um problema espinhoso. A turma do ódio é que trocou o vermelho pelo verde-amarelo. Portanto, que cor o cidadão equilibrado deve vestir?

Está explicado o porquê do silêncio das ruas. Por um lado, a ala do bom senso não se anima a soltar palavrão pela internet. Por outro, dado que o verde-amarelo foi parar em mãos indevidas, gente fina está hesitando em manifestar nas ruas. Tá complicado, parceiro.

A agonia de um regime

José Horta Manzano

Não há perigo
Duas vezes por dia, um general brasileiro acalma a população dizendo que «não há risco de guerra» entre Brasil e Venezuela. Tamanha é a insistência, que a gente acaba acreditando que há risco, sim, senhor. E pela frequência dos pronunciamentos pacificadores, o perigo deve ser grande.

Exército desastrado
No sábado 23 fev°, militares venezuelanos estacionados na fronteira de Roraima atiraram bombas lacrimogêneas em compatriotas deles que se encontravam em território brasileiro. Na prática, houve agressão belicosa contra o território nacional.

Em outros tempos, o ato seria objeto de protesto enérgico e indignado por parte de Brasília. Mas isso era em outros tempos. Hoje, há muito blá-blá e pouca ação.

Se soldados venezuelanos atiraram granadas contra solo estrangeiro, é porque foram mal-treinados. Se foram mal-treinados, é porque oficiais não sabem treinar. Se oficiais não sabem treinar, é porque o alto comando é incompetente. Portanto, não há por que temer a Venezuela. Ficou claro que as tropas que defendem o ditador são formadas por trapalhões.

Concerto de arromba
O concerto organizado em território colombiano, na fronteira com a vizinha Venezuela, atraiu 317 mil espectadores. É muita gente! Num desafio tolo e desnecessário, señor Maduro decidiu confrontar o espetáculo. Organizou um concerto paralelo para competir e para agradar aos militantes. Não reuniu mais que 20 mil pessoas. Um fiasco evitável, mas não previsto por uma elite que já perdeu o contacto com a realidade.

Fizeram falta?
Ao concerto de arromba, compareceram artistas de numerosos países da América Latina. Até artistas europeus fizeram questão de responder ‘presente!’. A ausência de astros brasileiros contrastou com o fervor dos colegas hermanos. Os artistas brasileiros engajados, aquelas figurinhas carimbadas que todos conhecem, tampouco deram as caras no concerto organizado pelos chavistas. Preferiram sorver um uisquinho em Ipanema. Pobre só é bom quando visto de longe, não é mesmo?

Sapateando no caixão
Causou escândalo o vídeo em que señor Maduro aparece ‘bailando’ em Caracas, no momento em que conterrâneos seus eram massacrados na fronteira. Por ordem sua, diga-se.

Comida destruída
Sob ordens do governo, as forças armadas atearam fogo a dois caminhões repletos de remédios e gêneros alimentícios. Ambos os veículos haviam logrado atravessar a fronteira e já se encontravam em território venezuelano.

O ato é um escárnio contra o povo sofrido, que morre por falta de alimentos e de remédios. A clique do andar de cima ‒ militares incluídos ‒ não vive essa penúria, donde o desprezo. Não dá mais pra esconder a face feia da repressão que se erigiu como sistema de governo.

Bandeira Venezuela – Cuba

Oito estrelas
Desde a independência do país, alcançada duzentos anos atrás, a bandeira da Venezuela é ornada de 7 estrelas, que representam as regiões do país. Em 2006, um Hugo Chávez no auge do poder mandou que fosse acrescentada uma oitava estrela à bandeira.

No oficial, a razão era integrar a hipotética oitava região, um naco do território da vizinha República da Guyana reivindicado havia já muito tempo. No paralelo, diz-se à boca pequena que a oitava estrela era uma preparação para futura união da Venezuela com Cuba, que se tornariam um só país. Cuba tem uma estrela na bandeira. A Venezuela tem sete. Portanto, sete + uma = oito.

De novo a Coreia

José Horta Manzano

Você sabia?

Quando a Inglaterra sediou a Copa do Mundo, em 1966, os tempos eram outros. Estados Unidos e União Soviética se encaravam com ar feroz. Quanto aos demais países, cada um se alinhava com uma das potências. Em 1950, o norte da Coreia, alinhado com a URSS, havia invadido o sul, alinhado com os EUA. As superpotências guerrearam por procuração. O conflito armado só foi suspenso três anos depois, com a criação de uma zona desmilitarizada dividindo a península em duas zonas de influência. Foi o advento das duas Coreias, tais como as conhecemos.

Entre os 16 participantes da Copa de ’66, estava a Coreia do Norte, tão pobre e tão misteriosa quanto hoje. Sua participação dava dor de cabeça ao país organizador. Dado que a Inglaterra não reconhecia o regime de Pyongyang, tanto o hasteamento da bandeira daquele país como a execução do hino criavam problema. Depois de muita concertação, uma solução intermediária foi encontrada.

O hasteamento da bandeira era incontornável, pois não era concebível que uma delas fosse retirada enquanto as outras continuavam a ondular. A bandeira ficou. Quanto ao hino, ficou acertado que, com exceção do jogo de abertura e da partida final, não haveria execução de hino nenhum. O remendo atenuou o mal-estar causado pela presença do incômodo visitante.

Na fase de grupos, a Coreia do Norte amargou, dentro da lógica, um 3 x 0 da URSS. Em seguida, surpreendeu ao empatar com o Chile por 1 a 1. No terceiro jogo, enfrentou a poderosa Itália. Tranquilos, todos esperavam pela lavada que os orientais haviam de levar. O primeiro tempo já estava pra terminar, e nada de sair gol. Aquilo já estava ficando enervante. Eis senão quando, aos 40 minutos… os coreanos marcam! Estupor!

Ferida em seus brios, a Itália voltou do intervalo disposta a repor as coisas nos devidos lugares. Mas não houve jeito. Desorientados pela energia abnegada dos coreanos, os jogadores italianos tinham a impressão de que os orientais eram muito mais numerosos que os onze regulamentares. O tempo passou, o jogo terminou, e a Itália não marcou. Teve de engolir a derrota por 1 a 0. Os visitantes incômodos só seriam derrubados por Portugal, na partida seguinte.

Até hoje, passado meio século, os italianos comentam aquele momento ressentido como vergonha nacional. Tornaram-se a única grande equipe europeia a ter jamais sido batida pela Coreia em Copa do Mundo. Essa situação durou até ontem. A derrota concedida pela Alemanha neste 27 de junho de 2018 mudou o cenário. Doravante, alemães e italianos estão juntos. Guardarão a mesma lembrança constrangedora.

Bandeiras secretas

José Horta Manzano

Você sabia?

Antes de 1994, quando ainda vigorava o regime de segregação racial conhecido como apartheid, a África do Sul ainda se sentia próxima dos tempos coloniais. A população branca segurava firme as rédeas do poder mas, assim mesmo, pairava no ar a pouco agradável impressão de estar vivendo em terra alheia. A prova é que a bandeira do país guardava três bandeirinhas «de reserva» bem na faixa branca central. Embora já fosse independente, o país tinha dificuldade em desgrudar das origens britânica e neerlandesa.

Antiga bandeira da África do Sul. Foi substituída pela atual em 1994.

Com a eleição de Nelson Mandela à presidência e a transição miraculosamente pacífica que se seguiu, o regime mudou, o apartheid foi para o museu e a bandeira, naturalmente, foi redesenhada.

Hoje em dia, poucos são os países cuja bandeira guarda inserida uma bandeirinha «de lembrança». Esse fenômeno é frequente com pequenos territórios britânicos que vivem em regime de semi-independência.

Há uma bandeira, no entanto, que leva nada menos que oito bandeirinhas ocultas, como num jogo de esconde-esconde. É a elegante bandeira da Noruega. Como os demais países escandinavos, ostenta a cruz viking.

Bandeira da Noruega e as oito bandeiras escondidas.

Apesar da aparência relativamente simples, uma observação mais atenta revelará oito bandeiras nacionais mimetizadas, como naqueles quebra-cabeças que desafiam a «encontrar o coelho».

Há mais casos de bandeiras ocultas dentro de outras. Há que prestar atenção: quem procura, acha. Todavia, uma coisa é certa: nosso lindo pendão da esperança não se aninha dentro de nenhum outro.

Crédito
A descoberta das bandeiras ocultas dentro do pendão norueguês se deve à perspicácia do blogueiro espanhol Diego González.

Fair play

José Horta Manzano

Tem coisas que, contando, ninguém acredita. Dia destes, um jogador de futebol paulista foi protagonista de episódio inusitado. Num lance controvertido, constatou que o árbitro estava sancionando um jogador do time adversário por uma falta não cometida. Sua consciência falou mais alto. Avisou ao juiz que a verdade não era bem aquela e que a penalidade era injusta. Como resultado, o árbitro anulou a sanção.

Não sou torcedor de time nenhum, muito pelo contrário. Tampouco acompanho evolução de campeonatos. Portanto, sinto-me à vontade para comentar sem paixões. Pelo que li, o gesto do jogador deixou os adversários atônitos e enfureceu os que torciam por seu time. Houve até esportistas que, entrevistados, não ousaram desaprovar abertamente a atitude e torceram o verbo para censurar de mansinho, sem dar muito na vista. É paradoxal.

Rodrigo Caio, o autor do gesto de fair play

O assunto do momento, que nos penetra até à medula, é a corrupção, fruto da desonestidade do pessoal do andar de cima. Faz anos que trambiques vêm sendo revelados, dia a dia, hora a hora. Prenderam este! Ahhhh, já era hora! Soltaram aquele! Ohhhhh, merecia continuar atrás das grades! E aquele lá, quando é que vai pra Curitiba?

Há quem diga que não ficaria triste se uma bomba atirada no Congresso eliminasse, de um golpe, toda a classe dirigente. Todos parecem acreditar que a salvação da lavoura e a redenção do país estão na honestidade de propósitos e de comportamento. No entanto… quando um gesto de lealdade vai contra nosso interesse pessoal, a coisa muda de figura.

Nada nem ninguém pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou ansiamos por viver num país honesto ou não estamos nem aí. Não se pode protestar de manhã ‒ de bandeira e camiseta amarela ‒ e desaprovar à tarde o comportamento honesto de um cidadão. Ainda que contrarie nosso interesse pessoal. É questão de coerência.

No fundo, honestidade está se tornando tão rara no país que, quando surge, choca. Estamos desacostumados.

O passaporte e as estrelas

José Horta Manzano

Já na escola primária, aquela que já se chamou «grupo escolar» e que muda de nome a cada vinte anos, a gente ficava sabendo que existia uma constelação chamada Cruzeiro do Sul. Aprendíamos também que aparecia entre as estrelas da nossa bandeira. Como não nos ensinavam que outros povos também a avistavam, a gente ficava com a impressão de que o Cruzeiro só era visível a partir do Brasil. Era nossa constelação nacional. Era só anos mais tarde que a gente se iria dar conta de que outros habitantes da Terra também enxergam o Cruzeiro do Sul em noite de céu claro.

cruzeiro-do-sul-1A olho nu, somente cinco estrelas são visíveis, mas os livros ensinam que o conjunto é composto de 54 estrelas. Pra vê-las todas, o observador tem de munir-se de luneta ou telescópio. Só que, aí, vai-se o charme de distinguir aquela cruz tão característica.

Bandeira da Austrália - Cruzeiro do Sul representado corretamente

Bandeira da Austrália – Cruzeiro do Sul representado corretamente

A particularidade da constelação é só poder ser avistada a partir do Hemisfério Sul da Terra. Dizem que os primeiros europeus a contemplá-la foram os marinheiros portugueses, aqueles que se aventuraram além do Cabo Bojador. Há quem conteste. No fundo, pouco importa.

Fato interessante é que, hoje em dia, mais de meia dúzia de países ‒ todos do Hemisfério Sul, naturalmente ‒ incorporaram o Cruzeiro do Sul à bandeira nacional. Além do Brasil, Austrália, Papuásia-Nova Guiné, Samoa, Nova Zelândia e outros pequenos Estados do Oceano Pacífico fizeram isso.

Passaporte brasileiro - modelo antigo

Passaporte brasileiro – modelo antigo

Para figurar uma cruz, bastariam quatro estrelas, mas a constelação tem cinco visíveis a olho nu. Cada uma delas aparece numa extremidade e a quinta, que leva o apelido de «intrometida», fica no espaço que, se fosse num relógio, marcaria as 4 horas ‒ no campo inferior, à direita.

Bem ou mal, o antigo modelo do passaporte brasileiro trazia a «intrometida» na posição correta. Já o modelo atual negligencia essa particularidade. A representação estilizada situa a quinta estrela na posição das 8 horas do relógio ‒ em baixo, à esquerda.

Passaporte brasileiro - modelo novo

Passaporte brasileiro – modelo novo

É surpreendente que essa representação errônea tenha sido adotada. Não se pode deixar de perceber, nesse grafismo, a negligência com que se costuma lidar com coisa séria em nosso país. Devemos concluir que o desleixo deturpa até os símbolos da nação?

Para o Dia da Bandeira

José Horta Manzano

Você sabia?

A bandeira ‒ em termos crus, um pedaço de pano amarrado num cabo ‒ é símbolo forte cuja origem se perde no passado. Desde a antiguidade, vem servindo como representação de um grupo ou de uma comunidade. Pode corresponder a um regimento, uma firma comercial, um território, uma cidade, uma nação.

No topo do mastro, a bandeira indica a vitória ou a predominância do grupo representado. Arriada ou, pior, destruída ou queimada, significa a perda de soberania, a derrocada. Em momentos violentos, tanto em batalha militar quanto em manifestação de rua, assiste-se por vezes ao triste espetáculo de queima da bandeira do adversário. É reminiscência de prática ancestral, embora os atores nem sempre se deem conta do significado do ato.

bandeira-2O que pode até ser compreensível num campo de batalha é desnorteante em manifestações populares. Em recentes passeatas no Brasil, bandos de ignorantes chegaram a queimar a bandeira do próprio país(!), numa atitude descabida. É como se se autodestruíssem e aniquilassem a própria identidade. Felizmente, demonstrações de estupidez desse jaez são raras em nossa terra.

A Europa medieval criou espetáculos festivos de homenagem à bandeira. Duas ou mais comunidades se afrontavam, numa espécie de concurso, onde cada participante agitava e atirava sua bandeira ao ar para recolhê-la antes que caísse ao chão. Há séculos, a Suíça importou essa prática de países meridionais. Os encontros em que a bandeira é personagem central sobrevivem em alguns poucos países. Na Suíça, no entanto, faz parte do folclore nacional. É tradição cultivada com carinho e renovada em momentos especiais a cada ano.

Festa de lançamento de bandeiras clique para ampliar

Festa de lançamento de bandeiras
clique para ampliar

A arte de atirar a bandeira ao ar chama-se «Fahnenschwingen» em alemão, «lancer de drapeau» em francês, «sbandieramento» em italiano. É exercício com regras rígidas. Não se joga de qualquer maneira. Consiste em agitar de um lado para outro uma bandeira de formato padronizado, em seguida lançá-la para cima e apanhá-la pelo cabo antes que caia ao chão. Parece simples, mas exige muito treino e técnica apurada.

O regulamento descreve 90 figuras, das quais cerca de 50 são executadas por ocasião de todo concurso. Frequentemente, os lançadores de bandeira são acompanhados por um conjunto de instrumentos de sopro típicos chamados trompa dos Alpes (Alphorn, cor des Alpes, corno alpino).

Corno dos Alpes clique para ampliar

Corno dos Alpes
clique para ampliar

Nos tempos de antigamente, a trompa alpina ‒ cujo comprimento pode atingir 18 metros ‒ servia para comunicação à distância, num expediente análogo aos sinais de fumaça usado pelos índios de Hollywood. Nestes tempos de telefone celular, deixou de transmitir informações para dedicar-se unicamente a alegrar momentos festivos.

Ao vivo
O youtube traz alguns vídeos de arremesso de bandeira acompanhado por corno alpino. Quem estiver interessado pode dar uma espiada neste aqui (de 1min50) ou neste aqui (de 48 segundos).

Ouvir estrelas

José Horta Manzano

Talvez o distinto leitor se lembre de que, durante os Jogos Olímpicos do mês passado, as cerimônias de distribuição de medalhas mostraram bandeira chinesa com erros. As quatro pequenas estrelas estavam desalinhadas. No original, todas apontam um vértice para a estrela maior, diferentemente do que se viu no Rio.

Os chineses, pra lá de ciosos com símbolos nacionais, não costumam brincar com essas coisas. Protestos oficiais chegaram rapidinho. Segundo O Globo, 8 milhões de posts raivosos circularam pelas redes sociais chinesas. A reclamação chegou até à criação de hashtag para denunciar o escorregão.

bandeira-brasil-3Logo depois de tomar posse do cargo de presidente, senhor Temer participou de reunião de chefes de Estado e de governo do G20, realizada na China. Naturalmente, o recinto estava paramentado com a bandeira nacional de cada país participante. Aquelas fotos esquisitas em que dirigentes se cumprimentam com aperto de mão mas sem se olhar nos olhos foram batidas e publicadas na mídia planetária.

Pois digo ao distinto leitor que nossa bandeira verde-amarela também tinha defeitos. Menos rigoroso ‒ haja vista os representantes que constuma eleger ‒ o povo brasileiro nem se tocou. Ainda que se tocasse, dificilmente se melindraria.

Bandeira brasileira como manda o figurino Clique para ampliar

Bandeira brasileira como manda o figurino
Clique para ampliar

O círculo azul do centro da bandeira brasileira não é salpicado de estrelinhas a esmo, de qualquer tamanho, em qualquer posição, só pra ficar bonitinho. Criança de escola elementar tem direito a pensar assim. Já quem organiza cúpula internacional é obrigado a ter mais cuidado.

Nossa bandeira nacional mostra 27 estrelas, uma para cada Estado e uma para o Distrito Federal. A disposição do conjunto retrata o céu do Rio de Janeiro tal como se apresentava no dia 15 novembro 1889 às 8h30, quando os militares deram o golpe que derrubou a ordem vigente e acabou com o Império. É aquele golpe militar «do bem», cujo festejo é politicamente correto. É até dia feriado.

Bandeira brasileira em versão chinesa Clique para ampliar

Bandeira brasileira em versão chinesa
Clique para ampliar

Nossas estrelinhas não são todas do mesmo tamanho. Cada uma é desenhada conforme sua grandeza aparente. Há 5 tamanhos diferentes. Posição e tamanho são rigorosamente definidos por lei. A correlação tampouco é aleatória: cada uma delas representa um Estado determinado. É proibido misturar.

A bandeira hasteada durante o G20 da China está mais pra desenho de escola elementar. Posição, disposição e tamanho das estrelas não conferem com o que manda o figurino.

Que se saiba, ninguém reclamou. É possível que ninguém tenha sequer notado. Sinal destes tempos estranhos. Não se pode exigir que outros respeitem o que nós mesmos não respeitamos.

Tempos difíceis

José Horta Manzano

Os tempos andam complicados para todos – mais para uns que para outros. Para o partido que dominava a cena política federal até poucos meses atrás, o momento é mais que espinhoso. Depois que perderam a hegemonia, seus afiliados estão tentando colar os cacos.

O instantâneo tomado ontem no Congresso Nacional do PT deixa perceber que, por detrás de sorrisos de triunfo, há muita preocupação. Vejamos dois detalhes:

Dilma 12Interligne vertical 14A bancada oficial é ornada pelas bandeiras do Brasil, da Bahia e do partido. Detalhe sintomático: a bandeira nacional ocupa a posição central, jogando a do partido pra escanteio.

Nos tempos áureos, teriam vindo todos de roupa vermelha. Hoje, dado que o partido está irremediavelmente associado à roubalheira e à bandidagem, o vibrante vermelho-revolução – marca registrada da agremiação – foi substituído pela sem-gracice do traje de todos os dias. Alguns até de camisa pra fora da calça, composição pra lá de chique.

Pra finalizar, fato singular, importante e inquietante: a presença da presidente da República. A pessoa que acumula as duas funções maiores – chefe do governo e chefe do Estado brasileiro – deve ter a sabedoria de pairar acima de partidos. No momento em que foi eleita, dona Dilma deveria ter passado a distanciar-se de comemorações e festejos partidários. Faz parte da liturgia da função.

Dilma e Lula 2A presidente não fez mera visita de cortesia. Foi parte integrante e figura capital do convescote. Dado que nunca foi vista em convenção de nenhum outro partido, fica a certeza de que não é a presidente de todos os brasileiros, mas somente do partido do «nós». O «eles» fica de fora.

No fundo, é melhor assim.