José Horta Manzano
A observação de Mário Quintana (1906-1994) nunca perde a atualidade: “A gente pensa uma coisa, escreve outra, o leitor entende outra, e a coisa propriamente dita desconfia que não foi dita”. Neste sábado encontrei dois bons exemplos.
Primeiro exemplo
Esta chamada está bem enrolada. Fala da neta de Allende (presidente do Chile de 1970 a 1973) e diz que ela “sofreu golpe pela ditadura militar”, o que evidentemente não corresponde à realidade.
Quando o golpe ocorreu no Chile, em 11 de setembro de 1973, a netinha do presidente ainda não tinha completado dois aninhos. Na verdade, quem sofreu o golpe foi o avô, Salvador Allende, que, aliás, morreu no mesmo dia. Suicidou-se? Foi induzido ao suicídio? Foi assassinado? A esperança de saber a verdade se esvai à medida que os personagens vão desaparecendo.
Tem mais. Salvador Allende não sofreu golpe “pela ditadura militar”. A ditadura só se instalou após sua morte. Se, por hipótese, ele tivesse resistido e repelido o ataque, ele teria sofrido golpe, mas a ditadura não teria se instalado.
Consertando:
“Neta de Allende, o presidente deposto por golpe militar, será ministra da Defesa.”
Fica melhor.
Segundo exemplo
Para o leitor medianamente informado, que já ouviu falar de Queiroga e Damares mas que não sabe das circunstâncias das tais visitas (quem visitou quem, quando e por quê), a chamada do jornal soa misteriosa. Fica a ideia de que há relação entre a vacina aplicada na criança e a visita dos senhores ministros.
Precisei refletir pra entender o que o estagiário queria dizer. Suponho que era isto:
“Após as visitas de Queiroga e Damares, Saúde confirma que vacina não deu reação em criança”.
Assim, depois de inverter a frase, fica claro o que o autor queria dizer. Do jeito que estava escrito, parecia que os visitantes podiam até ter causado alguma reação na pobre criança vacinada.
São ministros de Bolsonaro, é verdade, mas prefiro acreditar que uma simples visita rápida deles não tenha o poder de empipocar bracinhos infantis.