Insegurança de raiz

José Horta Manzano

Você sabia?

Insegurança é componente importante do espírito brasílico.

A desonestidade e a criminalidade geram insegurança e transformam o honesto cidadão em refém da violência de criminosos.

Caravela 2As artes da política transmitem tremenda insegurança – fica a impressão de que todos os do andar de cima, embora podres, sejam intocáveis.

A insegurança jurídica é proverbial. Vai-se dormir à noite sem ter certeza de que, no dia seguinte, leis e regulamentos ainda serão os mesmos.

Essas incertezas não vêm de hoje. Marcam a história do país desde o dia em que foi lavrada sua «certidão de nascimento». Falo da carta de Pero Vaz de Caminha, bordada com arte e carinho pelo escriba da esquadra de Cabral.

A missiva é cristalina ao datar a descoberta – ou o achamento, como prefiram – da terra tropical. Diz ela: «nos 21 dias de abril (…) topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho». No dia seguinte, foi avistado um «monte mui alto e redondo», além de serras e de terra chã com grandes arvoredos. Pronto o Brasil estava achado. E era 22 de abril.

Acontece que essa carta, devidamente guardada nalgum escaninho da burocracia lusa, não foi consultada durante 300 anos e acabou esquecida. Só viria a ressurgir no século XIX. Enquanto isso, o Brasil já se havia declarado independente da metrópole. Na complexa organização do novo país, foi buscada uma data de fundação. Na falta de informação segura, foi privilegiado o dia 3 de maio. E por quê?

Descobrimento 1A insegurança gerada pela ausência de provas documentais fez supor que o primeiro nome dado à terra – Vera Cruz – viesse do dia que a hagiologia católica consagra à celebração da verdadeira cruz, justamente o 3 de maio. (Entre parênteses: com o nome de Cruz de Mayo, esse dia ainda é festejado em alguns países da América Hispânica.)

Carta de Pero Vaz sobre o achamento

Carta de Pero Vaz sobre o achamento

Ao fixar os feriados oficiais, a República fundada em 1889 manteve a comemoração da chegada dos primeiros europeus em 3 de maio. Por essa altura, a carta de Pero Vaz já havia reaparecido – portanto, já se sabia que a verdadeira data não era aquela. Assim mesmo, por comodidade, deu-se preferência a manter a celebração no dia de Vera Cruz. Como o dia de Tiradentes, 21 de abril, já era dia de festa, não convinha impor dois feriados seguidos.

Não foi senão durante a ditadura de Getúlio Vargas que a História se rendeu oficialmente à evidência: estava-se comemorando no dia errado. De uma pedrada, derrubaram dois coelhos: o descobrimento passou a ser celebrado dia 22 de abril que, ao mesmo tempo, deixou de ser dia feriado.

Eu não seiMeus pais me contavam que o Brasil tinha sido descoberto em 3 de maio e eu não entendia por que, na escola, me ensinavam data diferente. A insegurança sobre as datas só se desfez muitos anos depois, quando eu descobri que eles me ensinavam tal como haviam aprendido na escola.

O distinto leitor há de convir que, numa terra que já começou com provas documentais desaparecendo de circulação, não espanta que a insegurança continue sobressaindo. Fazer sumir provas tornou-se esporte nacional. Decididamente, vivemos na terra do «eu não sabia de nada».

As pilhérias e os peixes

José Horta Manzano

Os antigos adoravam fazer festa. Qualquer motivo valia. Comemorações pagãs ou litúrgicas, pouco se lhes dava. Por que tanta gana de sair do sério?

Será porque o dia a dia era mónotono e sem variedade. Será porque a ordem das coisas parecia imutável, não deixando nenhuma esperança de melhora. Será porque eram poucos os anos que a cada um cabia viver. Será porque a vida miserável e sofrida que levavam demandava momentos de escapatória.

A origem de muitos desses festejos ― alguns dos quais perduram até nossos dias ― é muita vez desconhecida. Um exemplo significativo é o do primeiro de abril. Na infância, conhecíamos a data como o dia da mentira. Era o único momento do ano em que contar mentira não era pecado a confessar ao padre. Não somos o único povo a enxergar esse dia como diferente dos outros.

Como sói acontecer quando ninguém tem certeza, muitos são os que garantem que o dia da mentira é obra de algum antiquíssimo conterrâneo. Seja como for, a tradição de pregar peças continua muito forte em vários países.

Na França, as crianças costumam recortar peixes de papel e em seguida grudá-los nas costas de algum distraído. Não demora muito para gritarem em coro: Poisson d’avril!, peixe de abril.

Poisson d'avril!

Poisson d’avril!

Para os franceses, a versão mais aceita da origem da brincadeira segue uma lógica que todos imaginam cartesiana. Até meados do século XVI, algumas regiões do país consideravam que o ano começasse em abril, não em janeiro. Outras já tinham adotado o primeiro de janeiro. Assim foi até 1564, quando o rei Carlos IX decidiu botar ordem no coreto e oficializar o 1° de janeiro como primeiro dia do ano.

No entanto, os franceses, sempre prontos a contestar decisões vindas de cima, não se conformaram tão facilmente. Muitos continuaram a formular votos de bonne année no dia 1° de abril. Essa data cai frequentemente em plena Quaresma. período em que era proibido comer carne. Acontece que março/abril são também os meses em que os peixes se reproduzem. Pescar nessa época significaria prejudicar a pesca para os anos seguintes. O remédio, então, era presentear os amigos com… peixes falsos. Ninguém é obrigado a acreditar, mas é a versão mais aceita por estas bandas.

Já os ingleses, que dão a esse dia o nome de April Fools’ Day (dia dos loucos), não estão de acordo com a versão francesa. Brandem antigos manuscritos dos Contos de Canterbury para demonstrar que as troças de 1° de abril já eram mencionadas 200 anos antes do decreto de Carlos IX.

Espanhóis fazem as mesmas artes, mas escolheram outra data para zombarem dos ingênuos. As pilhérias são pregadas dia 28 de dezembro, justamente o dia dos Santos Inocentes. A tradição passou a algumas regiões da América hispânica.

Jornais, rádios e até canais de televisão costumam publicar notícias falsas dia 1° de abril. E sempre tem quem acredite. Uma delas, excelente, foi inventada por um jornal de Lausanne (Suíça) já faz anos.

As Filipinas tinham acabado de se livrar do casal ditatorial Ferdinand e Imelda Marcos. Os dois tinham abandonado palácios e bens na última hora, a tempo de salvar a própria pele. Os primeiros a penetrar nos aposentos particulares do par infernal ficaram boquiabertos com a quantidade de sapatos que a Primeira Dama possuía. Parece que eram mais de mil pares.

De brincadeira, o jornal anunciou que os sapatos de Imelda iam ser oferecidos, numa venda especial de um dia só, a preços de liquidação. O excepcional acontecimento se daria dia 1° de abril daquele ano, num dos salões do maior hotel 5 estrelas da cidade. Parece que o hotel nunca foi tão visitado como aquele dia.

Poisson d’avril!