Feriado

José Horta Manzano

Li ontem que o tráfego estava pesado por causa do feriado. Feriado? Que feriado? Olhei pro calendário – que eu, teimosamente, ainda chamo de ‘folhinha’. Pensei: «Mas… o 15 nov° já passou. Que feriado é mesmo esse dia 20?»

Crédito: Jodi Cobb

Crédito: Jodi Cobb

Hoje de manhã, rádio e jornal me ensinaram. É celebração nova, eis porque eu não estava a par. Marca a data de falecimento do jovem Zumbi, figura controversa de cuja existência não há provas sólidas. Os estabelecimentos lusos em terras sul-americanas no século XVII não eram conhecidos por rigorismo documental. Poucos eram os que sabiam escrever. Pouca era a preocupação em deixar memória escrita, e pouco escrito deixaram.

O feriado novo me fez refletir sobre os tradicionais. Constatei que, com uma ou duas exceções, os dias em que assalariados ganham sem trabalhar rememoram alguma ruptura histórica, alguma conquista de grupo minoritário com relação à lei vigente. Senão, vejamos.

Festas cristãs
Natal, Páscoa, Na. Sra. Aparecida, Corpus Christi são elas. Essas festas parecem tão evidentes que deixam a impressão de que sempre existiram. Não é exato. Dois mil anos atrás, os seguidores do Cristo eram escassa minoria.

Considerados ‘iluminados’, eram gente disposta a dar a vida em sacrifício por um ideal. O grosso da população não concebia lógica nessa obstinação. Para os padrões da época, a doutrina introduzida por aqueles ‘destrambelhados’ representou, sem sombra de dúvida, uma ruptura e tanto.

TiradentesTiradentes
Aprendemos todos na escola: Tiradentes é o ‘protomártir’ da independência do Brasil. Um parêntese para comentar que o epíteto não é o mais adequado. Protomártir, em rigor, quer dizer o primeiro a sacrificar-se. Ora, vários cidadãos se tinham, por motivos vários, alevantado contra a metrópole bem antes do tira-dentes mineiro. Atribuir a ele a primazia é problemático. Fechemos o parêntese.

Para nossa história de hoje, pouco importa ter ele sido ou não o primeiro. Ao fim e ao cabo, a verdade é que o 21 de abril marca a mais vistosa tentativa de abolição do regime vigente. Seu objetivo era a ruptura.

Independência
Essa é moleza, todo o mundo sabe. Nos bancos escolares aprendemos que, depois de subir a serra em direção a São Paulo, o buliçoso e imprevisível Pedro, filho do rei, decidiu dar um golpe em família. Era um 7 de set°. Menosprezou as ordens do pai e autodeclarou-se ‘defensor perpétuo’ do território onde se encontrava. A rebeldia do jovem príncipe causou profunda e irreparável ruptura.

Marechal DeodoroRepública
Essa também nos ensinaram no grupo escolar. (Para quem não sabe, era assim que se chamavam os primeiros quatro anos do ensino elementar.) Num 15 nov°, o Exército Imperial Brasileiro – personificado na ocasião pelo general Deodoro da Fonseca – deu golpe militar, destituiu imperador, derrubou governo e rasgou Constituição. Se isso não foi ruptura…

Trabalho
O Dia Internacional dos Trabalhadores é consequência direta da Revolução Industrial, de fins do séc. XVIII. A máquina a vapor viu pipocar fábricas por toda parte e criou nova casta de cidadãos: os empregados assalariados. Nas primeiras décadas, aqueles trabalhadores eram tratados como se escravos fossem. Folga, feriado, pausa, aposentadoria, salário mínimo, segurança no trabalho eram noções desconhecidas.

De conquista em conquista, a classe trabalhadora conseguiu melhorar condições de trabalho e de remuneração. É o que se comemora no 1° de maio: a abolição dos resquícios de ordem feudal e a instituição da relação empregatícia. Uma ruptura e tanto.

ZumbiZumbi
No meu tempo, se aprendia que a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 maio 1888, marcava o fim da escravidão, uma senhora ruptura da ordem vigente. Foi guinada tão impactante que selou o destino do regime monárquico. De fato, um ano e meio mais tarde, ele seria derribado.

Confesso que me escapa a razão pela qual se parece querer atribuir ao falecimento do Zumbi importância maior do que à abolição da escravatura. Costumo passar ao largo de considerações ideológicas – principalmente quando amplificam o risco de dividir a população em castas do tipo «nós contra eles».

Há de ser por isso que não atino com o objetivo por detrás dessa recomendação que nos chega do andar de cima. Parece que não sou o único nesta situação. Outros também hesitam em abraçar valores que exaltam diferenças raciais.

A Lei n° 12.519, sancionada pela presidente da República em 2011, institui o Dia Nacional do Zumbi, mas não determina que o trabalho assalariado cesse nessa data. Dentre os mais de 5500 municípios brasileiros, apenas cerca de 1000 comemoram a data com feriado.

Detalhe curioso
O Quilombo dos Palmares, onde teria vivido o Zumbi, situava-se entre os atuais Estados de Alagoas e Pernambuco. Acredite o distinto leitor ou não: o 20 novembro não é dia feriado em nenhum dos municípios do Estado de Pernambuco.

6 pensamentos sobre “Feriado

  1. Interessante… Estou aqui, em meu cargo na UFMG, como tantos colegas, trabalhando muito e seriamente. Sem feriado. Aliás, esses nossos feriados deveriam ser revisados, principalmente por sermos um Estado laico, não é assim mesmo? A nossa Constituição, de 1988 reforçou a importância do Estado laico, sem igreja oficial, marcando o RESPEITO À LIBERDADE DE CRENÇA. Mas muito embora esteja em nossa constituição que o Estado é laico, parece que as tradições católicas e neste caso as questões étnicas vem sendo mantidas. No Brasil somos muitas crenças e muitas etnias com datas e celebrações próprias que não apenas as católicas ou negras (com muito respeito a todas elas quero aqui afirmar) e que não são consideradas feriado. Então como resolver isso? Ah… o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal seriam os órgãos competentes para isso, mas… haveria algum interesse nisso? Bem… são outras questões… ou outros feriados para se pensar sobre o assunto…

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    • Moema,

      Uma coisa é a laicidade do Estado, outra coisa são as tradições religiosas do povo. Os dois conceitos se superpõem mas não se anulam.

      Estado laico é aquele que não adota uma religião de Estado. A maioria dos países se encaixa nessa categoria. Menos de trinta países reconhecem alguma religião de Estado ou alguma(s) religião(ões) oficial(ais).

      Na Europa, Grécia, Reino Unido, Finlândia, Noruega, Dinamarca e Islândia adotam religião de Estado. Cristianismo ortodoxo na Grécia e protestantismo nos outros países (variante anglicana no Reino Unido).

      O maometanismo é religião de Estado em quase todos os países árabes e até em alguns outros.

      Na Suíça, o Estado é laico, mas três religiões são consideradas oficiais: o catolicismo, o protestantismo e o catolicismo tradicional – uma variante do catolicismo. Com isso, recebem subsídios do governo central.

      No entanto, Estado laico não é sinônimo de Estado ateu. A laicidade não se traduz em combate contra tradições religiosas enraizadas. Por isso, parece-me perfeitamente normal e aceitável que, no Brasil, se comemore a Páscoa, o Natal e o Dia da Padroeira. No mundo civilizado, ainda que não tenham religião oficial, os Estados costumam respeitar festas e tradições populares.

      O que me atrapalha nessa promoção de novos herois – falo agora do Zumbi – é o risco de acirramento de antagonismos religiosos, raciais, regionais. A meu ver, nenhuma medida susceptível de estimular rachaduras na população deveria adotada. As divisões que já existem são suficientes. Não precisamos encorajar novas variantes do «nós & eles».

      Dia da Consciência Negra, Dia do Orgulho Gay, Dia do Nordestino, Dia da Altivez do Índio caem bem como manifestações regionais, folclóricas, turísticas. Jamais deveriam, no meu entender, ser objeto de lei federal. E muito menos deveriam dar motivo a dia feriado.

      Obrigado pela fidelidade.

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  2. Caro Horta,

    Concordo plenamente contigo. E quando citei o Estado laico, e compreendo muito bem que não se refere a um Estado Ateu, não quis também ser contra às festas mais tradicionais e populares, adotadas por nosso país assim como em grande parte do mundo, como a Páscoa, o Natal e o Dia de nossa Padroeira. São festividades importantes e que fazem parte inclusive do meu universo particular, das minhas memórias e creio de quase todos nós brasileiros. E das quais respeito imensamente, tanto as festas religiosas quanto as tradições populares. Talvez não tenha sido clara no meu desabafo…
    O que quis dizer é que fico um tanto perplexa por ver cada vez mais crescente em nosso país essas divisões das quais você cita tão apropriadamente e que a cada vez mais se acirra. Como se não fossemos uma só nação, buscando um ideal de crescimento e um caminho melhor para todos. As “rachaduras” já estão aqui, acirradas, no dia a dia, nas redes sociais, no que estamos assistindo nos interesses de governos, partidos e coligações (algum escapa? Rememoremos nossa última eleição…)que adotam discursos que vem provocando esses antagonismos e acirramentos religiosos, raciais, regionais.

    Eu creio que seria melhor termos feriados nacionais para comemorarmos o Dia da Consciência do Coletivo, Dia do Orgulho do Ser Integral, Dia da Honestidade, Dia da Amizade, essas coisas… E que os grandes feriados coletivos se restringissem à Páscoa, ao Natal e ao Dia do Trabalho, ao de nossa Padroeira, Amém. As outras questões, sábados e domingos são um excelente motivo para estarmos reunidos em praças e parques para celebrarmos juntos e em comunhão. Se nos interessarmos por tal assunto. Caso não, respeitemos e continuemos a vida, não é? E obrigada por sua colocação. Adoro seu blog.Um grande abraço!

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    • Moema,

      Feliz, constato que estamos em perfeita sintonia. É exatamente isso.

      Oxalá tenhamos ainda um Dia da Honestidade – que digo? – um Ano da Honestidade – que digo? – o País da Honestidade!

      Sonhar não custa caro e faz bem. Vamos em frente, que nada é impossível.

      Obrigado pelas palavras gentis.

      Abraço.

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  3. Pingback: Enquanto isso no BrasilDeLonge… | Caetano de Campos

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