Até onde vai a memória?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 24 novembro 2018.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi o conflito mais mortífero que o mundo tinha conhecido até então. O número exato de vítimas não é sabido. Estimativas giram em redor de 40 milhões, dos quais 15 a 20 milhões de mortos. Neste tempos em que grandes guerras cederam lugar a conflitos regionais, é difícil conceber matança assim, de proporções bíblicas. A participação do Brasil foi acanhada. Limitou-se ao envio de uma equipe médica, que serviu em Paris, longe dos campos de batalha. Afora isso, pequeno grupo de aviadores brasileiros foi incorporado às forças militares britânicas. O obituário dos confrontos não registra nenhuma vítima verde-amarela.

Duas semanas atrás, os países beligerantes comemoraram o centenário da assinatura do armistício firmado em 1918, que suspendeu as operações. Na 11a hora do 11° dia do 11° mês do ano, os sinos de todas as igrejas francesas badalaram em sinal de regozijo, exatamente como tinham feito cem anos antes. Monsieur Macron recebeu dirigentes de mais de 70 países para uma cerimônia em Paris. Vencedores e perdedores da guerra se irmanaram. Estavam lá Trump, Putin, Merkel, Erdoğan, Netanyahu, Felipe VI e outros figurões. Por razões que a razão tem dificuldade de explicar, doutor Temer não se abalou. Não terá julgado importante ir.

Em homenagem ao fim da guerra de 14-18, o dia 11 de novembro é, até hoje, feriado na França. Não faz muito tempo, a cerimônia em Paris contava ainda com a presença de ex-combatentes. Mas a passagem do tempo é implacável. Os antigos soldados foram minguando, chegaram em cadeira de rodas, até que desapareceu o último. Não sobrou mais nenhum. Este ano, a cerimônia foi especial por se tratar do centenário. Mas não é garantido que, dentro de 10 ou 20 anos, o 11 de novembro ainda seja feriado celebrado com banda de música sob o Arco do Triunfo. A propósito, já surgiu uma corrente que preconiza a escolha de um dia do ano para concentrar a comemoração de todos os conflitos. A iniciativa é sensata.

Batalha do Avahy, travada em 11 dez° 1868
by Pedro Americo de Figueiredo e Melo (1843-1905), artista paraibano

Até onde vai a memória? A partir de que momento um fato deixa de ser memória pessoal pra se tornar história? A pergunta é quase filosófica. Eu estaria tentado a dizer que a memória perdura enquanto vivem os que presenciaram o fato ou, alargando o círculo, enquanto vivem os que já estavam em idade de entender, quando o fato ocorreu. Assim, enquanto as celebrações do 11 de novembro ainda contavam com a presença de sobreviventes, estava viva a memória. A partir de agora, passado o centenário e falecidos os que vivenciaram aqueles tempos, a memória tende a se esgarçar. Defuntas as testemunhas, defunto o assunto. A guerra sobreviverá nos manuais de história e será celebrada como celebramos Tiradentes, o Descobrimento ou a Proclamação da República: uma cerimônia petrificada, sem emoção, cujo sentido profundo escapa ao cidadão comum. São datas que valem pelo feriado, nada mais.

A história do Brasil carece de grandes guerras. A mais importante foi a Guerra do Paraguai, a última que se travou em território nacional. Sua lembrança não faz jus a data específica mas sobrevive nas ruas cujo nome lembra alguma batalha: Riachuelo, Cerro Corá, Passo da Pátria, Tuiuti. Em vez de homenagear feitos bélicos, nosso calendário dá preferência à comemoração de fatos políticos. De modo insólito, o 7 de setembro e o 15 de novembro, festas maiores, marcam ambas uma ruptura ilegal e brusca da ordem então vigente, com implantação de novo regime.

No mundo globalizado em que vivemos, a interdependência é regra de sobrevivência e chega a ser anacrônico comemorar uma independência que retrogradou a conceito discutível. Quanto ao regime republicano, levando em conta que já foi abolido e reinstaurado por duas vezes no Brasil, o 15 de novembro já estourou o prazo de validade – comemora a instauração de uma primeira república que, na batata, já não existe.

Para nos esquivar de feriados cujo sentido profundo anda desfocado, seria interessante abrir debate sobre a instauração de um dia de festa maior, em que se celebrasse a memória de todas as glórias: os pais da pátria, as batalhas vencidas, os triunfos, os grandes artífices de nossa história, as conquistas. Afastaríamos, assim, o risco de defasagem entre fato e festa, entre memória e história. Fica plantada a ideia.

Deodoro, o arrependido

Marco Antonio Villa (*)

Sou um soldado, um velho soldado. Aprendi em casa com os meus pais que os interesses do Brasil estão sempre em primeiro lugar. Perdi três irmãos na guerra do Paraguai: Hipólito e Afonso, que morreram na batalha de Curupaiti, e Eduardo, que tombou em Itororó ‒ todos no mesmo ano.

Minha querida mãe, dona Rosa, ao receber a notícia da morte dos filhos, só quis saber se tinham morrido com honra. Fiquei cinco anos na guerra. E voltei com mais dois irmãos que lá lutaram. Gosto de brincar dizendo que devo a minha carreira ao [ditador paraguaio] Solano López.

Quando vejo o que acontece no Brasil, dá um desânimo… Uma vez disse que gostaria de pegar os ministros e levá-los à praça pública para que o povo os julgasse. E em seguida iria ao Parlamento e exporia as razões do meu gesto. Vejam que não há nada mais antipolítico do que isso. Mas sou assim.

Sou militar e não compartilho a forma como os políticos tratam o governo. Não gosto da forma como os partidos agem. Já fui presidente e não entendo nada de confabulações ou acordos políticos. Na verdade, não é que não entendo, é que os acordos geralmente envolvem transações que meu espírito de militar repugna.

marechal-deodoro-2Vocês sabem que até cheguei a fechar o Congresso Nacional ‒ a bem da verdade, não fui o único, e muita gente pensa nisso até hoje. Queriam votar uma lei sobre crimes de responsabilidade para me atingir. Logo eu, que moro na mesma casa há anos, não tenho filhos e nunca fui acusado de nenhum delito no trato da coisa pública.

Lembro até de um quadro que me foi ofertado. Dias depois vieram cobrar um favor e recordaram do presente. Imediatamente paguei o quadro, porém fiz questão que o finório assinasse um recibo.

Mas eu estava falando do Congresso. Foi reaberto duas semanas depois pelo Floriano [Peixoto]. Antes, renunciei à presidência. Deixei claras minhas razões: «Assino a carta de alforria do derradeiro escravo do Brasil».

Certamente, alguém deve estar perguntando por que quero novamente ser presidente. Bem, peço desculpas por ficar lembrando a toda hora o que fiz, mas há muito tempo disse que República, no Brasil, é desgraça completa.

(*) Marco Antônio Villa é historiador e comentarista político. O texto reproduzido é parte de artigo publicado há dez anos. A íntegra está aqui.

O meu primeiro de abril

José Horta Manzano

Folhinha 1964-1Podem dizer o que quiserem do Grito do Ipiranga, da Guerra do Paraguai ou da Revolução de 1930. Desses acontecimentos antigos, só tive notícia pelos livros de História. A visão que tenho deles terá sido obrigatoriamente filtrada pelas lentes de outrem.

Os eventos de 1964 são outros quinhentos. Fazendo eco ao bordão do velho Repórter Esso, fui «testemunha ocular da História». Quem viveu os fatos não depende de relatos.

O golpe de 1889, que despachou a família imperial para o exílio e instaurou um regime republicano, inaugurou uma era de instabilidade política. Entre golpes, revoluções e tentativas, fica difícil nomear todos. O nome que se dava a golpes de Estado bem-sucedidos era revolução. Do verbo revolver, virar de ponta-cabeça.Folhinha 1964-2

De memória familiar, todos já tínhamos ouvido falar nas revoluções de 1924, de 1930, de 1932. A intentona de 1935 estava na memória de nossos pais, assim como os putsches de 1937, 1945, 1955. O último movimento insurrecional, a Revolta de Jacareacanga, tinha acontecido fazia apenas 8 anos. Revolução e golpe de Estado não costumavam assustar ninguém.

Naquele fim de março, embora não fosse ainda adulto, eu já era bem crescidinho. Frequentava o último ano do ensino médio e já me preparava para prestar vestibular no fim do ano.

Dia 1° de abril caiu numa quarta-feira. Era um dia fresquinho, de pouco sol, um antegosto do inverno. Lá pelo meio-dia, voltando da escola de ônibus, alguém veio espalhar a notícia:

Interligne vertical 14― Você soube da revolução?

― Revolução? Não. Como é que foi?

― Parece que o exército derrubou o presidente da República.

― Ah, é? Mas aqui está tudo tão calmo. Será que vai ter confusão?

― Acho que não.

Pronto, encerrado o assunto. Confusão, não houve. Cada um voltou pra casa e a vida continuou, como tinha sempre continuado após cada golpe e cada revolução. Logo de cara, a mudança de regime não teve particular incidência na vida da imensa maioria do povo do Brasil. Não me lembro de multidões que tenham saído às ruas na sequência da destituição do presidente ― nem para aplaudir, nem para amaldiçoar. As preocupações eram outras. O golpe de 1964 foi apenas mais um.

Assim foi o 1° de abril que eu vi.