De uniforme ou sem?

by Alberto Benett (1974), desenhista paranaense

José Horta Manzano

Não sei como anda a moda vestimentária da juventude no Brasil. Aqui onde vivo, as cores desapareceram: todos (ou quase todos) os jovens se vestem de preto. Dos pés à cabeça. Minto – é só das canelas à cabeça. O calçado escapa à ditadura do luto. É a única peça que dá um pouco de cor à silhueta.

Quando este escriba era jovem, o uso era o inverso do que é hoje. O sapato é que era obrigatoriamente preto, enquanto a roupa era livre. Era uma época mais colorida, com camisas estampadas, calças de todas as cores imagináveis. Só o calçado era uniformizado. Não usar sapato preto era pecado tão grave quanto ir a um baile de formatura de smoking e sandália de dedo.

Não sei de onde terá vindo essa ideia de cada um tentar afirmar a própria personalidade vestindo-se todos de urubu.

Enfim, se estão felizes assim, melhor pra eles.

O dia do voto está chegando. Os eleitores sairão de casa e, se não forem incomodados por algum assalto ou bala perdida, entrarão na cabine de votação. Cabine, daquelas de cortininha, é modo de dizer; nestes tempos de penúria, a cabine é virtual. Virou um minibiombo de papelão.

Aos que, distantes de corpo e alma da pátria-mãe, vêm me pedir orientação sobre os candidatos, dou meu conselho. E não esqueço de acrescentar um ponto primordial: o cuidado com a indumentária.

O risco não é grande, mas no exterior também há grupelhos exaltados e até violentos. São, em geral, pupilos do capitão – veja-se o que aconteceu em Londres, diante da residência do embaixador, quando da estada de Bolsonaro. Aquela gente mostrou aos ingleses o grau de incivilidade que a passagem do capitão pela Presidência provocou.

Aconselho a todos evitar vestir-se de vermelho no dia de votar. Touros selvagens se excitam com essa cor e podem tentar dar chifrada. Por seu lado, é bom evitar também a cor amarela. Ninguém é santo, e não é impossível que algum apóstolo inflamado do demiurgo de Garanhuns saque a peixeira.

Nesta época do ano, em que camisetas já foram lavadas, dobradas e empilhadas no fundo do armário, estamos todos de agasalho pesado, que costuma ter cores menos vibrantes. É raro ver capote vermelhão; mais raro ainda é ver abrigo amarelo. Assim mesmo, todo cuidado é pouco.

A gente se espanta e se solidariza com as infelizes mulheres iranianas que estão sendo massacradas por saírem de casa sem o véu islâmico. Ao mesmo tempo, não nos damos conta de que em nosso país, a sinistra função de Polícia de Costumes foi delegada a todos os cidadãos. Os mais desvairados estão sempre prontos a despachar para o Pronto Socorro os que não rezam pela sua cartilha. Para o Pronto Socorro ou para o outro mundo.

Veja quanto regredimos!

Pijânio

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 julho 2020.

Há pontos de contacto entre o governo de doutor Bolsonaro e a passagem meteórica do folclórico Jânio Quadros pela Presidência. Ainda que não se enquadrasse no figurino de pessoa de fino trato, Jânio não descia à profunda vulgaridade do presidente atual. Esse não é, por certo, ponto de afinidade entre os dois. O populismo de Quadros se resumia a subir ao palanque de comícios, cabelo desgrenhado, mordiscando um sanduíche de mortadela, a reclamar da carestia. Diferentemente de Bolsonaro, Jânio era o que hoje se costuma chamar de ‘workaholic’, termo inestético que define um viciado em trabalho. Era o primeiro a chegar ao Planalto e o último a sair. Portanto, o apego ao batente tampouco era ponto comum entre os dois.

Jânio teve a sabedoria de escolher os titulares de seu enxuto ministério (13 pastas) entre profissionais de alto nível. Ainda não era moda trapacear com currículo, o que facilitava a seleção. Cattete Pinheiro, ministro da Saúde, era médico sanitarista e senhor de longa experiência; Brígido Tinoco, da Educação, era membro da Academia Fluminense de Letras e autor de uma dezena de livros; Afonso Arinos de Mello Franco, das Relações Exteriores, era imortal pela Academia Brasileira de Letras e autor de mais de 30 obras. Não, a escolha de ministros tampouco foi o ponto comum entre Jânio e Bolsonaro.

O verdadeiro ponto de encontro entre os dois presidentes é este: o pendor para cuidar do particular em detrimento do global. Incipiente em Jânio, essa tendência de cuidar do detalhe e perder de vista o principal foi potencializada por Bolsonaro. Tivesse ficado mais que sete curtos meses no cargo, talvez o presidente-relâmpago de 1961 tivesse elevado a tendência ao pedestal de política de Estado. Não deu tempo.

As estrepolias de Bolsonaro, por serem recentes, estão na camada de cima da memória de todos. Se bem que, de tão numerosas, algumas pérolas acabam rolando para o esquecimento. Logo no início do mandato, o doutor propôs-se a transformar um santuário ecológico da costa fluminense num polo turístico; mostrou-se disposto a vedar o financiamento de filmes que não lhe agradassem; atracou-se pessoalmente com jornalistas e órgãos da imprensa. Enfim, cuidou de muita miudeza, mandando o principal para fora do tabuleiro.

Última Hora (RJ), 27 março 1961

Voluntarioso mas sem visão de conjunto, Jânio preferia seguir a própria intuição, caminho arriscado. Um belo dia, resolveu ditar moda. Não ficou claro de onde tirou a ideia. (Com JQ, nem tudo era claro.) Baixou um decreto criando uma espécie de farda, uma vestimenta uniformizada para uso dos funcionários federais, do presidente da República ao mais humilde. Dependendo do olhar de cada um, o ‘slack’ – esse era o nome da indumentária – deixava impressão diferente: podia lembrar o traje civil obrigatório na China, o uniforme do indiano Nehru, a roupa do egípcio Nasser, a ‘guayabera’ centro-americana.

A ordem presidencial determinava o uso, mas não previa financiamento. Cada um que se virasse. Os mais abastados torceram o nariz para o modelo, que lhes parecia vulgar. Os mais pobres se perguntaram de onde haviam de tirar dinheiro para comprar o uniforme. Um ou outro funcionário graduado – querendo agradar ao chefe – adotou logo a novidade. Jornalistas eram mais severos. Advertiam: «Esqueça-se o presidente de uniformes e de outras pequenas coisas e volte suas vistas para os grandes problemas do Brasil!» ou ainda «Acorde e medite, presidente, para que sua prometida ‘revolução’ não se reduza ao uso do ‘slack’!».

A permanência de Jânio na Presidência foi curta demais para apurar se a moda do ‘pijânio’ pegou. É de duvidar que pegasse. Ninguém gosta de novidades impostas de cima pra baixo. Essa rejeição se repete hoje quando Bolsonaro, que doutor não é, transpõe os limites de suas funções e se põe a fazer propaganda de remédio. Essa, nem um excêntrico Jânio ousou. Portar o uniforme janista era apenas questão de bom ou mau gosto. Já o tratamento preconizado por Bolsonaro é desaconselhado por autoridades médicas mundiais por representar risco para a saúde. Para JQ, é tarde; mas para Bolsonaro vale o conselho: cuide, presidente, que sua passagem pelo Planalto deixe rastro mais nobre que o do charlatanismo.

As passeatas de antigamente

José Horta Manzano

Houve uma época, não faz tanto tempo assim, em que opinião política se manifestava no grito. Na rua, de preferência. Havia quem chamasse de passeata; alguns diziam desfile; outros preferiam protesto. Faixa, megafone, cartaz, palavras de ordem eram de rigor. Por fim, o mais importante de tudo: a cor da indumentária. Aquela maré humana, principalmente fotografada do alto, não teria o mesmo encanto se não estivessem todos uniformizados. Boné, camiseta e bermuda respeitavam o código.

Manifestações assim sempre houve. Foi um lulopetismo desmascarado por mensalões e petrolões que cuidou de dar relevo a elas. Quando a seita já caminhava para o fim, multidões de aluguel vestiram o vermelho das bandeiras progressistas enquanto uma maré de gente se apresentou de verde-amarelo. Era o bom senso nacional despachando os vermelhinhos pra fora da pista.

A roda gira. Desfiles, passeatas e protestos andam meio fora de moda. Palavras de ordem (palavrões?) não saem mais de megafones, mas brotam de redes associais. Mas palavras não têm cor. Onde foi parar a alegre paleta dos velhos dias?

Ela hoje está à porta do palácio presidencial, contida num cercadinho destinado a amestrados prontos a aplaudir o que Seu Mestre disser. Os vermelhinhos sumiram, e os figurantes se vestem de verde-amarelo. É manifestação unívoca, sem contestação possível, senão… «Cala a boca!».

Tudo estaria na santa paz, só que Seu Mestre só diz besteiras. As enormidades presidenciais vêm em modo mesa de pizzaria quando proferidas ao vivo, e em modo balcão de boteco quando são ditas em ambiente restrito. Quem quiser mostrar desagrado e não estiver disposto a escrever palavrão nas redes teria caminho certo: organizar contramanifestação. Só que vai enfrentar um problema espinhoso. A turma do ódio é que trocou o vermelho pelo verde-amarelo. Portanto, que cor o cidadão equilibrado deve vestir?

Está explicado o porquê do silêncio das ruas. Por um lado, a ala do bom senso não se anima a soltar palavrão pela internet. Por outro, dado que o verde-amarelo foi parar em mãos indevidas, gente fina está hesitando em manifestar nas ruas. Tá complicado, parceiro.

Azul e rosa

José Horta Manzano

Como peixe, o homem morre pela boca. Já disse e repito que está faltando coordenação à comunicação do novo governo federal. Falar, qualquer um fala. Dizer coisa com coisa, discorrer com lógica dentro de uma fala coerente é outra coisa. Medida importante e urgente a ser tomada pelo novo presidente é a designação de porta-voz oficial. Quanto aos demais assessores, devem manter boca fechada. Dá mais certo.

A peripécia mais recente foi protagonizada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ‒ aquela senhora da goiabeira, por ela chamada ‘pé de goiaba’. Entre risos e oba-oba, falando para plateia amestrada, limitou a paleta cromática do vestuário infantil: «meninas usam rosa e meninos usam azul». E pronto.

Deu um forrobodó dos diabos. Feministas, sexistas, fabricantes de roupa de criança ‒ todos subiram nas tamancas. Como ousa a ministra ditar a moda infantil? «Fui mal interpretada» ‒ desculpou-se ela, lançando mão do surrado pretexto de quem disse o que não devia e se vê obrigada a desdizer-se.

A trapalhada vai-se perder na poeira do caminho, enterrada que será pelos incontáveis quiproquos que estão por vir. Mas, já que estamos falando de vestuário infantil, vamos aproveitar a deixa.

Apesar do gosto restrito da ministra da goiabeira, a paleta de cores é vasta e compreende milhares de nuances. Mais importante do que padronizar roupa de bebê, no entanto, será normalizar a vestimenta de escolares. Pelas vantagens que acarreta, será importante pensar em impor o uso do uniforme a alunos da escola pública. Não será novidade: em muitas partes do mundo é assim que funciona. Entre nós, costumava ser assim num passado não muito distante.

O uniforme é fator importante para mitigar efeitos desagradáveis provocados pela diferença de poder aquisitivo entre alunos oriundos de diferentes classes sociais. Escola não deveria ser lugar para desfile de roupa de luxo. A família de cada aluno fica encarregada de providenciar o uniforme do pequerrucho, seguindo rigorosamente o modelo estabelecido. Em caso de impossibilidade financeira demonstrada deste ou daquele estudante, o Estado tomará a seu cargo a compra do fardamento. Em casa, menino pode se vestir de azul ou de cor-de-rosa, ao gosto do freguês. Na escola, só de uniforme.

O Vaticano e a modernidade

José Horta Manzano

Corria o ano de 1505 quando o papa Júlio II solicitou à Assembleia Suíça que fornecesse um corpo de guarda de 200 integrantes para sua proteção. É preciso saber que, meio milênio atrás, a Suíça era muito pobre. A terra ingrata e pouco propícia à agricultura obrigava os homens a procurar trabalho no estrangeiro.

Com o tempo, os suíços criaram fama como bons mercenários, que é como são chamados os soldados de aluguel. Em tempo de guerra, reis, príncipes, marqueses e outros dignitários europeus passaram a contratar soldados suíços. Uma vez acertado o preço, os mercenários se desempenhavam de modo admirável.

Os séculos passaram, os costumes mudaram, os reis rarearam, mas a guarda papal não mudou. Até hoje, a Cohors Helvetica Pontificia (Guarda Suíça Pontifícia) continua, garbosa, a proteger o Sumo Pontífice. Último destacamento de soldados suíços no estrangeiro, a guarda pontifícia é o segundo menor exército do mundo. É composta de 135 militares. Menor que ela, só a Companhia de Carabineiros do Príncipe de Mônaco, que tem 120.

Para integrar o corpo de guarda do Vaticano, a seleção é rigorosa e o candidato tem de preencher numerosos critérios. Entre eles, tem de ser de nacionalidade suíça, solteiro, com idade inferior a 30 anos, católico praticante. Terá também de apresentar um atestado assinado pelo vigário de sua paróquia confirmando que ele frequenta assiduamente a igreja e que tem reputação absolutamente imaculada. As entrevistas de contratação podem durar dias inteiros.

Capacete antigo – ferro forjado à mão

O colorido uniforme dos guardas suíços do Vaticano é exatamente o mesmo dos mercenários que serviram ao papa Júlio II, quinhentos anos atrás. No entanto, a modernidade está se insinuando timidamente. O tradicional capacete de ferro forjado, pesado e caro, está sendo substituído por um novo, produzido por impressora 3D.

De formato idêntico ao antigo, é feito de plástico rígido, bem mais leve e sobretudo mais barato. A produção de um capacete de ferro consumia 100 horas de trabalho manual, enquanto o de plástico fica pronto em 14 horas. Os guardas estão felizes: reclamam que, sob o sol escaldante de Roma, o capacete antigo lhes causava queimaduras.

Novo capacete – produzido por impressora 3D

Mas que todos se tranquilizem: de longe, praticamente não se notará diferença entre o antigo e o novo capacete. A forma é a mesma. Uma primeira remessa de 40 unidades já foi entregue.

Ninguém segura o progresso.

Intervenção

José Horta Manzano

O Executivo decretou ‒ e o Congresso está em via de aprovar ‒ uma bizarra intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Tal medida de exceção não se tomava desde o período militar, faz mais de trinta anos. A manobra é vistosa mas, a meu ver, intempestiva, incompleta, inócua e, ao mesmo tempo, danosa. Vamos por partes.

Vistosa
Ah, isso ela é. Um general que surge de repente nas manchetes em uniforme de camuflagem não deixa de ser espetacular. Dá calafrios na memória dos mais antigos, mas não há como negar: impõe respeito. Resta saber se a autoridade do interventor será reverenciada pela bandidagem.

Intempestiva
Lembro que «intempestiva» se opõe a «vir a calhar». Significa que vem fora de hora. De fato, a metrópole carioca está dominada pela ‘malavita’ há décadas. Os bicheiros, antigos donos do pedaço, parecem coroinhas se comparados aos traficantes de hoje. Bicheiro não incendiava ônibus nem soltava rajada de metralhadora sobre cidadãos.

Ações saneadoras tinham de ter sido tomadas décadas atrás, quando o tráfico estava começando a se instalar. Hoje, a simples presença de um fardado ao lado do governador não mete medo a ninguém.

Incompleta
Intervenção que se preze tem de ir até o fundo. Demolir o edifício trincado e construir um novo no lugar. Intervir unicamente na área da Segurança Pública equivale a aplicar emplastro em perna de pau. O Rio, como todo organismo complexo, não é composto de departamentos estanques. A Segurança é ligada à Educação, à Saúde Pública, à Viação, à Justiça. Quando a casa está pegando fogo, não faz sentido combater o incêndio unicamente num dos quartos. As chamas que devoram os demais cômodos vão acabar invadindo o quarto preservado.

Inócua
Pelos motivos que enumerei, a intervenção não passará de intromissão. Não tem como funcionar. Seu efeito mais marcante será o enfraquecimento da imagem do Executivo estadual ‒ se é que essa imagem pode ser mais malvista do que já é.

Danosa
Este ponto me parece o pior. Todas as pesquisas sugerem que, das altas instituições brasileiras, o Exército é a mais respeitada, passando muito à frente de Executivo, Judiciário e Legislativo. Uma intervenção intempestiva, incompleta e inócua resultará em dano certeiro à ideia que os brasileiros fazem das forças militares.

Não sei se terá sido exatamente esse o intuito de quem determinou a intervenção, mas a nomeação de um general para o posto de interventor parcial é desastrosa. A imagem das Forças Armadas, trincheira última da segurança da nação, periga sair arranhada. A instituição inteira carregará o peso de um fracasso pelo qual não é responsável. É pena.