A história se repete

José Horta Manzano

O general João Baptista de Oliveira Figueiredo presidiu o Brasil durante exatos 6 anos, de 1979 a 1985. Foi o último presidente do período militar. Conhecido por seu falar franco, era um tipo sem papas na língua.

Apesar disso, que fique bem claro, não chegava nem perto da vulgaridade nem do linguajar chulo do capitão que ocupa hoje o mesmo cargo. Comparado a Bolsonaro, Figueiredo era um fidalgo. Não privei da intimidade do presidente, mas tenho certeza de que, na presença de dona Dulce, sua mulher, ele não soltava os palavrões que Bolsonaro solta diante de qualquer um, para um Brasil enojado ouvir.

Naquele começo da década de 1980, o regime já começava a amansar. A censura estava afrouxada. Os exilados retornavam. Não havia mais presos políticos. O sol começava a despontar no horizonte. Pois foi justamente nesse período cheio de promessas que o general sofreu um infarto.

Os brasileiros, habituados a tramas e golpes urdidos nos círculos do poder, ficaram ressabiados. Com um Figueiredo impossibilitado de presidir, como é que ficaria? Quem tomaria seu lugar? E a abertura democrática – continuaria ou não?

Bem ou mal, o presidente se recuperou do ataque. Mas não completamente. Naquela época, a medicina no Brasil estava defasada com relação a países mais adiantados. Ricos e poderosos, quando gravemente enfermos, procuravam ajuda médica no exterior.

Em 1983, dado que os problemas cardíacos do general continuavam incomodando, ele decidiu tratar-se nos EUA. Foi internado numa clínica de Cleveland, onde lhe implantaram duas pontes (nome que muitos aportuguesam para “bypass”, bem mais chique), uma de safena e outra de mamária. Depois da intervenção, com seu linguajar pouco aveludado, Figueiredo chegou a comentar que se sentia “como um peru de Natal, todo costurado”.

De lá pra cá, o Brasil avançou muito nas ciências médicas. Hoje em dia, é raro alguém procurar tratamento no exterior, seja para uma simples vacina, seja para cirurgias complexas. Em geral, os bons hospitais nacionais estão capacitados para atender a todos os casos.

Bem, nem todos os cidadãos seguem as mesmas regras. Há os que estão (ou imaginam estar) por cima da carne seca, como se diz. Quarenta anos depois dos problemas coronários de Figueiredo, a atual primeira-dama deu o ar de sua graça nesse palco iluminado.

Como todos ficaram sabendo, Madame Bolsonaro decidiu estender o braço para ser vacinada contra a covid justamente durante uma breve estada em Nova York. Por que razão fez isso? Por que repudiou a vacina daqui? É difícil saber.

Podia até ter guardado silêncio, que ninguém teria jamais descoberto. Mas o marido, linguarudo, dedurou numa entrevista. O que ele pretendia reafirmar é que ele, pessoalmente, não tinha tomado vacina, não estava tomando e não tinha a menor intenção de tomar. O nome da primeira-dama entrou na conversa assim como Pilatos entrou no Padre-Nosso: era pra ser uma citação dita “en passant”, mas foi o que marcou a fala.

O resumo da novela ficou feio, até para os padrões bolsonáricos. O presidente confessou, sem se dar conta, que não manda nem em casa. Não tem voz ativa. Embora continue remando contra a corrente e batendo o pé na sua estúpida convicção antivax, a mulher se vacinou. Os filhos também estenderam o braço para a picada anticovid. Isso prova que seus conselhos não são seguidos nem pela família, que dirá pelo resto da nação.

A ponte e a Copa

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 agosto 2018.

Faz dez dias, uma ponte desabou na Itália. Foi um horror difícil de descrever. O tráfego era denso naquele dia. O desmoronamento arrastou carros e caminhões para o abismo, deixando dezenas de vítimas, entre mortos e estropiados. Na hora de alinhavar o balanço da tragédia, voaram acusações. Era imperativo designar culpados. Foram apontados os técnicos encarregados da inspeção permanente, a concessionária da estrada, o arquiteto idealizador da obra (falecido há uma eternidade), as autoridades provinciais, até o governo central. Sem sucesso. Assim como é ingênuo esperar de um solitário messias a redenção de um povo, impossível será atribuir a responsabilidade de tamanha catástrofe a um único fator.

O drama de Gênova, como toda calamidade, vem de longe e tem muitos pais. Errará quem se obstinar em eleger causa única. O mesmo raciocínio vale para a tragédia brasileira, que nos desaba sobre a cabeça quotidianamente. Desastre como o nosso não se arma em um dia. É obra de gerações. Nos tempos coloniais, a proscrição de cursos superiores já anunciava a ignorância que se havia de instalar e que acabaria sendo louvada (quem diria!), séculos mais tarde, por um figurão da República. Enquanto a América Espanhola inaugurava a primeira universidade nos anos 1550, a colônia lusa teve de se contentar, por três séculos, com mestres-escolas esforçados, mas de limitados recursos. Como nada fica sem consequência, pagamos hoje a conta atrasada. Com juros e correção.

E como dar cabo do atraso acumulado? Como chacoalhar o vidro pra fazer a emulsão? A essa pergunta, a resposta costuma ser: Educação. Sem dúvida. Boa escola pública e formação profissional de qualidade estão entre os ingredientes básicos do sucesso de um povo. Só que, no nosso caso, visto que partimos de patamar baixo, o caminho será longo, vai levar gerações. Supondo que, por milagre, a Instrução Pública adotasse novas diretivas agora, o Brasil não poderia esperar parado até que os guris, munidos de formação adequada, chegassem à idade produtiva. É imperativo encontrar um atalho que dê resultados já.

A cada quatro anos, tem Copa. Vêm aqueles meses de fervor popular durante os quais a pátria calça chuteiras e os olhares não desgrudam dos gramados e do entorno. Cidadãos comuns que, na vida normal, não costumam frequentar estádios nem vestir camisa de time, são capazes de recitar o nome dos integrantes da Seleção, reservas incluídos. Os fatos e gestos de cada jogador, o braço torcido deste, o mau-humor daquele, o dedinho quebrado de um terceiro, a nova namorada daqueloutro, nada escapa. Tudo o que concerne às estrelas do momento é de domínio público. Aqueles que nos representam no campo carregam nos pés a promessa de heroísmo que palpita na cabeça de todos nós.

Por coincidência, também a cada quatro anos, tem eleição das gordas, pra uma pancada de cargos. Na Copa, que o Brasil vença ou deixe de vencer, não muda grande coisa na vida de ninguém. Já os dirigentes e os representantes do povo que saírem das urnas vão, sim, determinar o destino da nação. No entanto, é esquisito que, a poucas semanas do dia da eleição, a maioria não tenha ainda escolhido candidato para os diversos cargos. Penso, principalmente, nos deputados e senadores que vão votar leis e reformas que balizarão a vida de todos nós.

E pensar que é justamente esse o (único) atalho susceptível de produzir, em prazo mais curto, as reformas pelas quais todos ansiamos. Votar em fichas sujas, trapaceiros, ladrões ou aventureiros é condenar o país a permanecer no atraso em que se encontra desde os tempos coloniais. Cada eleitor deveria se informar sobre o passado, a experiência, o programa (e a eventual folha corrida) do candidato que lhe parecer simpático. Hoje em dia, com as facilidades da rede e dos portais de transparência, é tarefa pra lá de simples. Só não faz quem não quer. Presidente é importante, mas deputado e senador têm mais força. Sem o apoio da Câmara e do Senado, o presidente pode muito pouco. É nossa escolha de representantes que desenhará o perfil do país até a próxima Copa.

Fim da boquinha

José Horta Manzano

AQUI
Mostrando poder sem limites, outro dia o STF interveio no calendário. Ao dar-se conta de que um feriado caía num sábado, sua presidente tomou a decisão de transferi-lo para a sexta-feira da semana seguinte. O Brasil deu de ombros e não viu nada de errado.

É sabido que parlamentares federais não costumam aparecer na segunda nem na sexta-feira. Quando um feriado cai numa quarta-feira, então, é comum enforcar a semana inteira. O Brasil dá de ombros e não vê nada de errado.

ALI
Em agosto de 2013, uma diplomata de carreira foi nomeada para o posto de embaixadora da Suíça na Venezuela. Acompanhada do marido, transferiu residência para Caracas. Sua missão durou pouco mais de dois anos, até o fim de 2015, quando foi chamada de volta a Berna.

Uma auditoria de rotina havia revelado que, nos anos de 2013 e 2014, a diplomata havia tirado 69 dias de férias a mais do que devia. Com salário pleno, evidentemente. Um inquérito administrativo foi aberto.

Além de confirmar o excesso de férias, a investigação revelou outros abusos. Descobriu-se que, quando de suas viagens entre a Suíça e a Venezuela, a diplomata aproveitava para fazer escalas prolongadas em outros países. Acompanhada do marido e sem motivos profissionais. E as despesas, pagas com cartão corporativo, eram cobertas pelos cofres públicos.

A embaixadora foi imediatamente suspensa de suas funções e tornou-se ré de processo por improbidade administrativa. Na Suíça, considera-se que seus atos não somente contrariaram a relação entre empregado e empregador, mas foram desrespeitosos para com o interesse público.

A sentença do Tribunal Administrativo Federal acaba de sair. A acusada foi condenada à perda do emprego por justa causa, efetiva desde o dia em que foi suspensa. Sua carreira diplomática está encerrada.

AQUI E ALI
No Brasil, a lei concede benefícios extraordinários a ex-presidentes. Dá-lhes direito a pensão vitalícia, automóvel, motorista, guarda-costas, secretários. Ao conceder a aposentadoria, o legislador levou em consideração a dificuldade que um ex-presidente teria em encontrar novo emprego, o que parece justo. Já os demais penduricalhos foram acrescentados com o passar do tempo.

Embora os benefícios pareçam exagerados, vamos admitir que sejam normais. O que não me parece normal é que nossa ex-presidente destituída saia pelo mundo acompanhada do séquito ‒ viajando à nossa custa ‒ para dar palestras nas quais diz, entre outros horrores, que foi apeada por «golpe de Estado».

Da alma?

José Horta Manzano

Você sabia?

A morte precoce de Diana, Princesa de Gales, comoveu o mundo. A tragédia aconteceu em Paris na noite de 31 agosto 1997. Foi consequência de um violento desastre de automóvel na via expressa que passa sob uma das pontes que atravessam o rio Sena. A construção, erigida entre 1854 e 1856, chama-se em francês Pont de l’Alma.

Na época, a mídia brasileira hesitou na hora de indicar o local do acidente. Houve quem conservasse a grafia original. Outros ficaram no meio do caminho e mencionaram a Ponte Alma. E houve até quem ousasse afirmar que a desgraça tinha acontecido debaixo da Ponte da Alma. Ficou pra lá de esquisito, coisa de assombração. Passar embaixo da Ponte da Alma seria como passar debaixo de escada ou cruzar gato preto numa sexta-feira?

Riacho Alma, Crimeia

Riacho Alma, Crimeia

A história é diferente e bem menos charmosa. Essa «alma» não tem nada que ver com crenças religiosas nem com predestinação de família real. O nome faz simplesmente referência a um rio às margens do qual a coalizão franco-britânico-otomana ganhou sua primeira batalha, contra o Império Russo, na Guerra da Crimeia (1853-1854).

O rio ― que, de tão magrinho, está mais para riacho ― chama-se justamente Alma. Corre a meio caminho entre Sebastopol e Simferopol. A batalha entrou para a História como Batalha do (rio) Alma. Donde, a Ponte do (rio) Alma ou, mais simplesmente, Ponte do Alma.

Precedente
Mesmo havendo perdido a guerra, o Império Russo conseguiu, no tapetão, conservar a Crimeia. Eis mais um argumento a reforçar o que previ faz alguns dias: os russos não abandonarão aquela península por nada deste mundo.