Quando foi que morreram os algarismos?

José Horta Manzano

Tudo aquilo que nasceu há de morrer um dia. Isso vale não só para seres que respiram, mas também para criações do intelecto.

Palavras, por exemplo, são criadas para designar fatos humanos. Na medida que esses fatos continuam a existir, elas permanecem vivas; assim que o fato sai de cena, elas tendem a desaparecer. Se não desaparecem, ficam guardadas numa gaveta tão funda que ninguém mais lembra de espichar a mão pra encontrá-las.

Uma palavra que sempre me pareceu simpática é algarismo. Talvez os mais jovens nem saibam o que significa. Algarismos são a base da representação aritmética. São dez sinaizinhos que se combinam para formar todos os números. O número 12, por exemplo, é formado por dois algarismos: o 1 e o 2. O número 79 é composto pelos algarismos 7 e 9. O jovem distinto leitor já deve ter entendido: estou falando do que hoje se conhece por dígito.

Quando frequentei a escola, faz muito tempo, algarismo se chamava algarismo. A palavra dígito não passeava pela linguagem do dia a dia. Fiquei curioso em saber quando e por que uma substituiu a outra. Andei pesquisando os jornais dos anos 1950, 1960 e 1970 e encontrei.

Até fins da década de 1960, dígito praticamente não aparece, a não ser como palavra técnica ou como substituto chique para dedo. No finzinho da década de 60 e, sobretudo, na década seguinte, há uma ‘explosão digital’, se assim me posso exprimir. Menções do termo dígito se decuplicam, marcando o ponto em que a curva da história da língua virou a seu favor e mandou algarismo para escanteio.

A partir de 1970, os algarismos praticamente desapareceram. Chego a me perguntar se um jovem medianamente instruído conhece hoje o significado dessa palavra. Me pergunto também como é que se chamam hoje os algarismos romanos. Serão dígitos romanos?(Cartas para a redação, por favor.)

Anúncio de calculadora publicado em set° 1978

Como nada acontece por acaso, tentei descobrir qual foi o responsável pela substituição das palavras. Acho que descobri. No finzinho da década de 1960, como resultado da miniaturização, começaram a aparecer no mercado brasileiro as primeiras calculadoras de bolso. Substituíam as antigas, de mesa, mecânicas e pesadonas. Na época, o preço era bastante elevado; nesse sentido, embora fossem ‘de bolso’, essas calculadoras pesavam no bolso.

Nos jornais, principalmente aos domingos, aparecia anúncio. Entre as qualidades da nova maravilha, estava o número de algarismos que a tela comportava – apresentados como dígitos, num possível decalque do original inglês.

Essa é a irônica história de como a maquineta que enfiou a matemática no bolso de todos conseguiu aposentar os algarismos e substitui-los por dígitos. Sabendo que dígito vem do latim digitus, que significa dedo, é permitido dizer que a ultramoderna maquininha reintroduziu o velho cálculo ‘com os dedos’.

Tudo passa
O tempo corre
Passa o tempo
E tudo morre

Assunto requentado

José Horta Manzano

Dizem que vale a pena requentar certos pratos: o gosto fica ainda melhor. Já as más línguas murmuram que isso não passa de desculpa de cozinheira atrapalhada. Enfim, quem não se conformar, que vista o avental, arregace as mangas e ponha as mãos na massa.

O voto eletrônico, apresentado anos atrás como conquista nacional digna de suscitar orgulho em todos os brasileiros, não pára de voltar às manchetes. É assunto requentado com frequência. É verdade que, quando se generalizou, a urna eletrônica (que lembra vagamente uma calculadora) nos pareceu um progresso extraordinário. Nosso país se tornou o primeiro no mundo(!) onde todos os votantes tinham acesso à engenhoca. Brasiiiiil!

Passados alguns anos, a poeira baixou e as suspeitas cresceram. Testado em outras terras, o sistema acabou descartado por se revelar opaco e de difícil controle. A possibilidade de fraude em grande escala existe. E, caso ocorra, será trambique praticamente impossível de ser comprovado. O crime perfeito. Muitos se perguntam ‒ eu, inclusive ‒ por que estranha razão o Brasil continua a ser o único a utilizar esse método.

Em vista das incertezas, as democracias mais ricas e mais civilizadas aferram-se ao velho e bom sistema de voto escrito. É tão mais simples e próximo do eleitor. Antes de entrar na cabine, o votante apanha a(s) cédula(s) oficial(is). Em seguida, escreve o número de seu candidato a cada cargo. Ao sair, enfia o voto na urna transparente. Se quiser, vale levar cola de casa.

Terminada a votação, os mesários de cada secção eleitoral são encarregados de apurar as próprias urnas, num escrutínio feito em público e diante de fiscais dos diferentes partidos. Em poucos minutos, a urna terá sido apurada. Anotam-se os resultados numa planilha que será despachada ao TSE. E pronto. Caso haja contestação, as cédulas poderão ser recontadas a qualquer tempo. O sistema é transparente.

Em vez disso, torramos o dinheiro do contribuinte na compra de 600 mil urnas (seiscentas mil!). Em consequência da desconfiança de muitos, um arremedo de voto escrito foi alinhavado. Cinco porcento das urnas contarão com um puxadinho, uma impressora que reproduz, em princípio, o voto emitido pelo cidadão. Pode acrescentar o custo da impressora ao da urna, que quem paga é a viúva.

Ora, diabos, não seria mais simples que o próprio cidadão depositasse na urna o voto em papel? O que é que justifica essa intermediação obrigatória da engenhoca que lembra uma calculadora? Sei não. Vejo duas explicações. A primeira é a recusa das autoridades que instituíram o voto eletrônico de admitir que se enganaram. A segunda… é bem mais tenebrosa. Melhor nem pensar nisso.