A Colômbia e o sonho de Bolsonaro

Cédula eleitoral colombiana

José Horta Manzano

Hoje se vota na Colômbia. Escolhe-se o presidente da República. Ao que parece, as autoridades do país são como nosso presidente gosta: rejeitam a modernidade. Não aceitam o que ela traz de bom, essas coisas que facilitam a vida de todos. Urnas eletrônicas entram nesse grande balaio de rejeições. Xô!

Na Colômbia, vota-se à moda antiga, voto em papel, facilmente auditável. Ao chegar à seção, o eleitor vai receber um “tarjetón”, que é o nome dado à cédula eleitoral. É uma folha de papel tamanho A4 dividida em nove campos, cada um contendo a foto de uma dobradinha de candidatos – à Presidência e à vice-Presidência.

Cada campo contém ainda o nome dos candidatos e o logo da coalizão que os apoia. O resultado é uma folha atraente, cheia de cores. As fotos até que ajudam eleitores de poucas letras que pudessem ter dificuldade em encontrar o preferido.

Ao chegar ao posto de votação, o eleitor recebe uma cédula. Vai para a cabine e faz uma marca na dobradinha de candidatos preferidos. Se preferir votar em branco, vai encontrar um campo pensado justamente para isso.

Pode ser qualquer marca, desde que seja visível. Recomenda-se, no entanto, que o eleitor faça um grande xis no quadrado desejado. Se quiser votar em branco, que faça o xis no último quadrado.

Toda cédula que apresentar marcas em mais de um campo, inclusive no de voto em branco, será considerada nula. Fico a imaginar que a quantidade de votos nulos deve ser grande.

Ah, se um eleitor se enganar na hora de fazer o xis, não tem problema: basta voltar à mesa e pedir nova cédula. Sai de graça.

Excluindo o fato de que não há urna eletrônica, o ato de votar até que se parece com o nosso. A diferença grande vem na hora da apuração.

Procurei saber como se desenvolve a contagem dos votos. É um esquema complexo. Cada seção eleitoral abre sua urna e conta os próprios votos. Em seguida, preenche uma ata com a totalização. Essa ata será transmitida a uma entidade centralizadora que, por sua vez, se encarregará da totalização geral.

Imagine os riscos de fraude existentes em cada etapa do processo. Basta um dos mesários cooptar os colegas oferecendo, por exemplo, recompensa em dinheiro. A partir daí, estando todos de acordo, tudo é permitido. Dois subterfúgios são simples de executar: 1) Substituição de cédulas verdadeiras por cédulas trazidas já preenchidas; 2) Anulação de votos destinados a um candidato não desejado – para anular, basta fazer uma marca em mais de um quadrado.

Tanto o Lula quanto o capitão conseguiram comprar o Centrão, que representa meio Congresso. Pra quem fez isso, comprar mesário é aquele tipo de coisa que se faz com um pé nas costas. Mais fácil ainda quando é feito com nosso dinheiro.

Vendo isso, dá pra entender por que razão nosso presidente reclama de nosso sistema eleitoral, dia sim, outro também. É que o esquema brasileiro é hermético, sem manipulação possível, não oferecendo nenhuma porta de entrada para gente mal-intencionada.

Um presidente normal veria nas eleições colombianas uma excelente oportunidade comercial para o Brasil. É a possibilidade de vender nosso know how e urnas made in Brazil ao país vizinho. Mas nosso presidente não é normal. Sua grande preocupação neste momento é que, segundo as pesquisas, um candidato esquerdista está bem colocado para disputar o segundo turno colombiano.

Já pensou se ele vencer a eleição? A Colômbia, nossa vizinha de parede, será dirigida por um esquerdista! Será que esquerdismo é contagioso? Será que pega? Será que pode ressuscitar o comunismo? Será que pode nos transformar em jacaré?

Voto auditável

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 maio 2021.

É perceptível a desconfiança que todas as falas de Jair Bolsonaro suscitam. Nós, os que já nos demos conta de que o capitão profere uma bobagem atrás da outra, tendemos a jogar no lixo tudo o que ele disse, está dizendo ou vier a dizer. Nem adianta conferir, que nada presta.

No entanto, talvez não seja essa a melhor atitude. Por mais que um indivíduo tenha ideias embaçadas, sempre pode brotar, de quando em quando, uma proposição mais consistente. Antes de descartar, convém verificar.

Está na ordem do dia a discussão sobre o “voto auditável”, também conhecido como “voto impresso”. Num primeiro momento, cheguei a acreditar que a ideia, mal explicada, fosse de abandonar a urna eletrônica e ressuscitar a velha cédula de papel. Tendo em vista a quantidade de gente fina reclamando que isso seria um retrocesso, vejo que muitos pensaram como eu.

Com o passar das semanas, creio ter entendido a proposta do capitão. O que ele quer é que uma impressora seja acoplada a cada urna eletrônica. Assim que o eleitor apertar o código de seu candidato e mandar um “confirma”, o sistema faz duas coisas: registra eletronicamente o voto e imprime o nome do candidato escolhido. Nessas alturas, o eleitor tem o direito de conferir o papelzinho – só conferir, sem poder tocar o papelito.

Se estiver de acordo, dá sua autorização para a finalização do voto. Se não estiver, aí já não sei o que a lei vai prever. Talvez o cidadão tenha de pôr a mão na cabeça e começar a gritar. Será um problemão porque, sendo o voto secreto, ninguém mais, a não ser o votante, tem direito a entrar na cabine. Enfim, os parlamentares, que são inteligentes, hão de encontrar uma saída. Quando a gente quer, sempre dá um jeito, não é?

Tirando a complicação que eventual enguiço da maquineta possa causar, o sistema não é de todo ruim. À primeira vista, a gente até que poderia se espantar: “Ora, por que é que quase todos estão descartando a novidade? Só porque a ideia vem do capitão?”

Bom, isso é à primeira vista. Após reflexão, vem a segunda vista. E aí as coisas começam a clarear. Já deve fazer algum tempo que Bolsonaro se deu conta de que terá dificuldades nas eleições de 2022. A reeleição, tão almejada, está longe de ser garantida. Com sorte (e muito marketing), ele chegará ao segundo turno. É aí que a porca vai torcer o rabinho.

Seja qual for o adversário, Lula ou um outro, o páreo vai ser dureza. As chances do capitão são magrinhas. Suponhamos que, anunciados os resultados, ele seja declarado perdedor. (Ele já há de ter feito essa suposição.) Como é que fica? Chama o “seu” exército e bota os tanques nas ruas? Convoca os baixas- patentes das PMs para prender governadores e tomar de assalto as metrópoles? Manda um bolsonarinho com um cabo e dois soldados fechar o Supremo? Por menos esclarecido que seja, nosso presidente já deve ter entendido que o caminho não pode ser esse.

Talvez ele tenha se inspirado na novela que foi a apuração das presidenciais americanas de 2000, quando George Bush Jr ganhou no tapetão, por decisão da Suprema Corte, depois de um mês de batalha jurídico-eleitoral. Com nossa urna eletrônica tradicional, é impossível seguir os passos de Bush. Já com cem milhões de papelitos, a coisa fica viável. Basta pedir a milhares de cupinchas que entrem com questionamento junto a todos os tribunais eleitorais do país, estado por estado. Imaginem o estrago que isso provocaria. Juntas de apuração teriam de se reunir às pressas, como nos anos 1950, com todos os riscos que o manuseio das (mini)cédulas comporta. Aí, sim, estará aberto o caminho para fraudes, falcatruas e votos-fantasma, exatamente como nos velhos tempos.

Eis por que o “voto auditável” é uma falsa boa ideia. Uma proposta que, apesar da aparência inocente, abriria as portas para gente mal intencionada tumultuar o processo. Os tempos atuais já estão suficientemente conturbados por si só. Além disso, nosso sistema de votação já deu provas suficientes de funcionar bem. Não vale a pena introduzir uma novidade que, além de não ajudar, pode complicar o processo. Que Bolsonaro procure ganhar a eleição baseado nos próprios méritos e não amparado por parceiros interessados e interesseiros.

Carolina do Norte e Niterói

José Horta Manzano

Para quem está acostumado com o esquema 1 eleitor = 1 voto, o sistema eleitoral americano parece surpreendente. Como é que é? Não é o mais votado que vence? Pois é, não é necessariamente o mais votado que vence. Em cinco ocasiões, ao longo da história americana, aconteceu de o vencedor ser o candidato que tinha ficado em segundo no voto popular. Da última vez, foi justamente em 2016, quando competiam Donald Trump e Hillary Clinton. Para nós, é desnorteante. É o famoso “ganha, mas não leva”.

Tudo tem um porquê. Nos tempos de antigamente, quando o sistema foi instituído, o mundo era outro. Não havia internet, nem tevê, nem rádio, nem fax, nem telex, nem telefone. Não havia nem mesmo estrada de ferro. Ainda que o território fosse menos vasto que o de agora, os EUA já eram um país enorme. Viagens eram demoradas e penosas, por estradas poeirentas ou nevadas, em veículo a tração animal.

Por essa razão, ficou combinado que, a cada 4 anos, na hora de escolher o presidente do Executivo, os eleitores de cada estado federado escolheriam, por voto popular, uma comitiva de grandes eleitores, cujo papel era representar os eleitores do estado. No dia marcado, cada unidade da federação enviaria seu grupo de grandes eleitores à capital do país. Cada grupo levava o resultado do voto de seu estado. Na época, a solução era excelente: evitava transportar papéis, borderôs, livros ou urnas.

O tempo passou, muita coisa mudou. Hoje há rádio, tevê, telefone, internet. Viaja-se de trem, de carro, de avião. As mulheres têm (já faz tempo) o direito de votar. No entanto, acomodados com um sistema secular, os americanos hesitam em alterá-lo. A cada vez que a apuração se espicha e ameaça terminar nos tribunais, volta-se ao assunto. Em seguida, as coisas se acalmam e o assunto morre. Até a próxima eleição.

by Adam Zyglis (1982-), desenhista americano

Outra particularidade da eleição americana, surpreendente para um país avançado, é a lentidão da apuração. Neste ano de pandemia, a razão da demora foi o fato de grande parte do eleitorado ter dado preferência ao voto enviado por correio em vez de se arriscar a apanhar um vírus qualquer num local apinhado.

Os estados têm bastante autonomia para fixar as regras da apuração. Alguns deles só validam as cédulas que forem recebidas até o dia do voto nacional – o que me parece correto. Já outros reconhecem votos que cheguem mais tarde; a Carolina do Norte, um caso extremo, aceita votos que deem entrada até 12 de novembro (9 dias depois da eleição). Essa medida é uma maçada, na medida que trava a proclamação do resultado nacional.

Não acredito que o esquema de eleição indireta venha a ser modificado tão cedo. Mas ouso esperar que, com o objetivo de evitar a angústia deste 2020, as normas de aceitação de votos antecipados seja revista. Dependesse de mim, só os votos recebidos o mais tardar 3 dias antes do pleito seriam validados. Assim, a comissão de apuração já poderia começar a trabalhar antecipadamente, de modo que, no dia do voto final, o resultado final sairia rapidinho.

O que eu disse acima não passa de visão de espírito, pura opinião pessoal. Como diziam os gaiatos no Rio de antigamente: ‘não sou daqui, sou de Niterói’(*).

(*) São palavras de um samba de Ataúlfo Alves e Wilson Batista, lançado em 1941 por Aracy de Almeida. No youtube aqui.

Nota de 500 euros

José Horta Manzano

Você sabia?

Povos diferentes têm tradições diferentes. A diversidade se conjuga em atos e fatos do dia a dia. A ‘revolução’ provocada pelo aparecimento dos cartões de crédito, nas últimas décadas, não teve efeito uniforme. Em alguns países ‒ os EUA em primeiro lugar ‒ a novidade entrou rapidamente nos hábitos. Em outros, foi olhada com alguma desconfiança.

Na Europa, não foi diferente do resto do mundo. Enquanto a maioria dos países reservou boa acolhida ao novo meio de pagamento, outros foram mais reticentes. Na França, por exemplo, o cartão teve dificuldade em mandar o cheque pra escanteio. Até hoje, boa parte dos cidadãos franceses prefere tirar o talão de um bolso, a caneta de outro, os óculos do estojo, preencher o chequinho, assinar, entregar para conferência.

A Alemanha, a Áustria e a Suíça sempre tiveram especial apego ao dinheiro vivo. Carregar na carteira certo montante em notas e moedas é costume nacional que nem o cheque nem o cartão de crédito conseguiram desbancar. Na Alemanha e na Áustria, a introdução do euro não afetou o velho hábito. Berlinenses e vienenses continuam preferindo pagar com cédulas.

O desamor que os demais sentem pelo dinheiro vivo é visível no fato de a imensa maioria dos europeus nunca ter tido nas mãos uma nota de 500 euros (2100 reais), a de maior valor. Ela não faz falta a ninguém, exceto aos alemães e aos austríacos. Na Espanha, chegou a ganhar o apelido de binladen ‒ a que todos procuram mas ninguém encontra. Em vez de servir ao honesto cidadão, a nota de 500 tem sido mais útil para doleiros e lavadores de dinheiro, daqueles que carregam elevados montantes em sacolas. Ou em cuecas.

Dezessete anos depois da introdução do euro, o Banco Central Europeu decidiu deixar de imprimir cédulas de 500 euros. As que estão em circulação serão retiradas à medida que passarem por um estabelecimento bancário. Sem desaparecer totalmente, vão escassear nos próximos anos. No entanto, se o distinto leitor tem alguma cédula de 500 euros escondida debaixo de uma pilha de camisas não se alarme: ela não vai perder validade. Se comerciantes se recusarem a aceitá-la, lembre-se que bancos continuarão a reconhecer-lhe o valor indefinidamente.

Entendo que essa nota seja de pouco uso e que esteja mais servindo a interesses escusos. No entanto, visto que alemães e austríacos são apegados ao dinheiro vivo, a decisão de descontinuar sua produção me parece injusta. Mal comparando, seria como se se deixasse de fabricar telefones celulares sob o pretexto de eles estarem sendo utilizados por traficantes de droga. Há outros meios para combater lavagem de dinheiro.

Que se veja o caso brasileiro. O baixo valor das notas de real ‒ a de maior valor (100 reais) equivale a pouco mais de 20 euros ‒ não impediu a circulação dos bilhões afanados da Petrobrás e dos cofres públicos. O único inconveniente é que as malas têm de ser mais amplas. Ou as cuecas.

Assunto requentado

José Horta Manzano

Dizem que vale a pena requentar certos pratos: o gosto fica ainda melhor. Já as más línguas murmuram que isso não passa de desculpa de cozinheira atrapalhada. Enfim, quem não se conformar, que vista o avental, arregace as mangas e ponha as mãos na massa.

O voto eletrônico, apresentado anos atrás como conquista nacional digna de suscitar orgulho em todos os brasileiros, não pára de voltar às manchetes. É assunto requentado com frequência. É verdade que, quando se generalizou, a urna eletrônica (que lembra vagamente uma calculadora) nos pareceu um progresso extraordinário. Nosso país se tornou o primeiro no mundo(!) onde todos os votantes tinham acesso à engenhoca. Brasiiiiil!

Passados alguns anos, a poeira baixou e as suspeitas cresceram. Testado em outras terras, o sistema acabou descartado por se revelar opaco e de difícil controle. A possibilidade de fraude em grande escala existe. E, caso ocorra, será trambique praticamente impossível de ser comprovado. O crime perfeito. Muitos se perguntam ‒ eu, inclusive ‒ por que estranha razão o Brasil continua a ser o único a utilizar esse método.

Em vista das incertezas, as democracias mais ricas e mais civilizadas aferram-se ao velho e bom sistema de voto escrito. É tão mais simples e próximo do eleitor. Antes de entrar na cabine, o votante apanha a(s) cédula(s) oficial(is). Em seguida, escreve o número de seu candidato a cada cargo. Ao sair, enfia o voto na urna transparente. Se quiser, vale levar cola de casa.

Terminada a votação, os mesários de cada secção eleitoral são encarregados de apurar as próprias urnas, num escrutínio feito em público e diante de fiscais dos diferentes partidos. Em poucos minutos, a urna terá sido apurada. Anotam-se os resultados numa planilha que será despachada ao TSE. E pronto. Caso haja contestação, as cédulas poderão ser recontadas a qualquer tempo. O sistema é transparente.

Em vez disso, torramos o dinheiro do contribuinte na compra de 600 mil urnas (seiscentas mil!). Em consequência da desconfiança de muitos, um arremedo de voto escrito foi alinhavado. Cinco porcento das urnas contarão com um puxadinho, uma impressora que reproduz, em princípio, o voto emitido pelo cidadão. Pode acrescentar o custo da impressora ao da urna, que quem paga é a viúva.

Ora, diabos, não seria mais simples que o próprio cidadão depositasse na urna o voto em papel? O que é que justifica essa intermediação obrigatória da engenhoca que lembra uma calculadora? Sei não. Vejo duas explicações. A primeira é a recusa das autoridades que instituíram o voto eletrônico de admitir que se enganaram. A segunda… é bem mais tenebrosa. Melhor nem pensar nisso.